1Ao longo da década de 2000, cursei a graduação em Geografia na Universidade Federal do Pará, maior instituição de ensino superior público da Amazônia brasileira. Durante cinco anos, fui apresentado a interpretações diversas da formação do território nacional e, dentre os temas e interpretações desta formação, algumas disciplinas específicas na grade curricular da época que diziam respeito às particularidades da região amazônica, fossem estas particularidades no âmbito da chamada Geografia Física e, portanto, com ênfase em aspectos da biogeografia regional, ou os temas da Geografia Humana, com maior importância as “questões sociais” e suas relações para com aquelas mesmas particularidades.
- 1 Derivam dessa imagem a relativamente extensa lista de substantivos e adjetivos que buscam uma carac (...)
- 2 É o que ocorre na literatura especializada e mais disseminada sobre a região a partir da segunda me (...)
2Nesta trajetória de formação como geógrafo, a Amazônia a qual fui apresentado nas leituras oficiais, fossem estas leituras vindas da maior parte da interpretação acadêmica, através de suas teses e teorias explicativas apreendidas em salas de aula e laboratórios, ou fossem apresentadas por autoridades efêmeras nos vários simpósios e eventos a que pude participar, era uma região visualizada a partir de dois ângulos mais fundamentais. O primeiro, como um espaço imageticamente imaginado a partir da premissa da imensidão e exuberância da natureza1; o segundo, a partir dos olhares que atentavam para os objetivos, causas e consequências dos ciclos econômicos de modernização da região2.
3São imagens fortes e recorrentes e que estão presentes nos livros didáticos, nas principais matérias dos veículos de imprensa, no discurso político regional e nacional e; por fim, no senso comum popular. Estas imagens, aceitas e repetidas, possibilitam identificar a estrutura de reconhecimento da região no pensamento social brasileiro e que também está cristalizado na academia mainstraim.
4Ao esmiuçar o desdobramento de cada uma dessas imagens, chega-se a duas consequências mais fundamentais. A primeira, a derivação lógico-racional do primeiro imaginário é vislumbrar a Amazônia a partir da suposta infinidade de recursos naturais que devem ser, na melhor das hipóteses, valorizados, conhecidos e preservados dadas as hoje conhecidas restrições ambientais.
- 3 Em alusão aos conceitos sociológicos de “frentes de expansão” e “frentes pioneiras”.
5A segunda das consequências diz respeito ao papel dos ciclos de modernização que periodicamente pousam na região. Em geral, os ciclos econômicos, são narrados como "frentes de modernização3", pois viabilizam a chegada de relações capitalistas, supostamente relações de produção modernas e que teriam o papel de dinamizar a economia regional e integrá-la aos eixos mais dinâmicos em escala nacional ou mundial. Quando esses ciclos se esgotam, pois são episódicos geograficamente e limitados temporalmente, a região retorna à estagnação.
- 4 A revolta, entre 1835 e 1840, teve fortes consequências políticas e sociais. Por um lado, provocou (...)
6Foi assim com o pequeno ciclo reformista da coroa portuguesa nos oitocentos, dos quais em geral a ideia de modernização política é apresentada no estabelecimento do Diretório dos Índios como o reconhecimento da cidadania, ainda que de segunda classe, das populações tradicionais. O encerramento desse momento de incremento econômico foi seguido de um longo período de estagnação, durante o qual criaram-se condições de existência de revoltas populares, tais como a mais conhecida delas, a Cabanagem, na década de 18304.
- 5 A força de trabalho regional estava majoritariamente organizada em torno de um sistema de trabalho (...)
- 6 As reformas urbanas em Belém e Manaus foram reflexos de mudanças estruturais e dinâmicas conjuntura (...)
- 7 A maior parte da historiografia regional e nacional trata o período que vai do final do colapso gom (...)
7Foi assim no início dos novecentos, com a urbanização das duas maiores cidades da região amazônica, Belém e Manaus, que estavam envoltas pelo excedente de dinheiro advindo da extração da borracha e do trabalho dos seringueiros no interior da floresta5. As cidades, que cresceram na época, logo foram tomadas pela tentativa de mimetizar nos trópicos o ideal de civilização. As expressões “pequena Paris” e “Paris dos Trópicos” para designar as reformas urbanas6 logo ganharam vida na linguagem das elites. De forma esperada, findo o ciclo, veio uma nova e longa depressão7.
- 8 A denominação Grandes projetos tornou-se padrão para caracterizar os grandes empreendimentos (econô (...)
8De 1960 em diante, inaugurado um novo ciclo, dessa vez pelo Estado nacional, com a intensificação da integração da região a sociedade e ao território brasileiro, são os "grandes projetos8" que passaram a traduzir essa imagem da chegada da modernidade aos confins da floresta e da civilização.
- 9 A falta de professores em nível da educação básica é um gargalo, como aponta o Relatório intitulado (...)
9Concluí minha formação como geógrafo e mestre em geografia no final da década de 2010. De lá em diante, passei a atuar como professor e pesquisador na rede de educação básica e superior nas instituições de ensino, o que me permitiu uma certa liberdade de movimento na região dada a necessidade de mão de obra. A Amazônia, como demonstram as estatísticas dos censos educacionais9, é uma das regiões nas quais a formação de professores há bastante tempo é dependente da educação à distância e mesmo do chamado ensino remoto, ainda que em condições muito precárias de viabilização.
- 10 As pesquisas resultaram em uma tese de doutorado intitulada “Metrópoles amazônicas: trajetórias do (...)
10Aproveitei essa liberdade, ainda que precária em termos de recursos, para exercer o ofício de pesquisador que se familiariza com o local empírico de pesquisa, fosse para o desenvolvimento de pesquisas em torno das grandes cidades como Belém, Manaus e São Luís10 nas quais me especializei ao longo desse tempo, fosse como orientador de trabalhos de conclusão de curso e ministrando disciplinas e cursos em cidades pelo interior.
11Nesta década, percorrendo a região, a Amazônia que conheci em campo e pesquisa é um tanto diferente daquelas interpretações inicialmente apresentadas. Não que elas sejam enganosas ou equivocadas. De fato, os ciclos econômicos e os projetos de integração e desenvolvimento fazem parte da produção do espaço regional, sua grandiosidade estrutural é inegável, os objetivos aos quais estavam ambicionados, integrar a região, foram alcançados. Mas há um elemento menos conhecido e visível na sua área de influência imediata: as ruínas do entorno.
12Em uma das primeiras viagens, no ano de 2013, estive em Altamira para ministrar um curso de geografia urbana em formato EaD. A cidade estava em plena expansão por conta da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e o debate sobre a cidade antes, durante e após o projeto foi um dos temas das discussões em sala. Após o encerramento da semana de aulas, manifestamos, eu e uma colega de formação, nossa intenção de percorrer a região até a obra, um dos alunos gentilmente se dispôs a nos acompanhar.
13O primeiro trajeto da viagem incluía uma estrada de terra saindo do perímetro urbano. Essa estrada era uma composição de uma das mais famosas rodovias do Brasil, a Transamazônica. Em um trecho inicial, registramos ainda presente o tronco da árvore abatida como símbolo da construção rodoviária da integração nacional. Nesse arremedo de tronco, foi fincada uma placa em celebração à "arrancada histórica para conquista do gigantesco mundo verde", inaugurada pelo então General Presidente Emílio G. Médici, no longínquo ano de 1973.
Figura 01 - Símbolos do arruinamento amazônico
Fonte: o autor (2013)
14Continuando o percurso, como havia proibição de adentrar a área de construção pela Norte Energia, consórcio formado para construção da obra, por alegadas razões de segurança, o caminho pelo qual nosso aluno nos levou era cortando algumas estradas paralelas, já na saída de Altamira e adentrando o município de Vitória do Xingu. Chegando na pedreira, no campo externo da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, após uma longa manhã por estradas perigosas, empoeiradas e entediantes, a paisagem com a qual nos deparamos era apenas uma variação de tons de cinza. Não era uma paisagem inesperada, mas não deixou de ser um pequeno choque, pois iniciamos nossa viagem pela estrada que prometia “trazer o desenvolvimento” à região, e terminamos em um campo que em nada se diferenciava de um quadro de guerra. Foi a primeira das impressões do arruinamento, não seria última.
- 11 No início da década de 2010, em virtude da elevação dos preços de commodities minerais, Parauapebas (...)
15Em 2014, organizamos um trabalho de campo com uma turma de licenciandos do curso de Geografia. Nosso destino foi Parauapebas, município do Sudeste do Pará, naquele momento responsável por boa parte da produção mineral brasileira primeiro na pauta de exportações11. Saímos de Belém para percorrer os, cerca de, 600 quilômetros que separam a capital da mais rica província mineral do Estado, na qual é extraída o melhor minério de ferro conhecido e levado através de uma ferrovia de 890 quilômetros em direção ao Porto de São Luís e, de lá, direto para o sudeste asiático.
16Acampamos no interior da Floresta Nacional de Carajás, em uma visita técnica organizada em conjunto com uma das cooperativas controladas pela VALE, multinacional que opera na região e detém a gestão corporativa do território a partir de seus empreendimentos. O ápice da visita é a observação do mirante da Mina da Serra Nacional dos Carajás, local no qual se consegue observar parte da área minerada. Nos dias seguintes à visita, um dos alunos em um momento de descontração fez um pequeno comentário informal que guardei na memória: “Ah, era grande mesmo, impressionante, mas não deixa de ser apenas um grande buraco”.
17Em 2015, novo campo com alunos, dessa vez em Tucuruí, município no qual está localizada uma das grandes usinas hidrelétricas construídas no ciclo de integração. Recordo que nesta visita, em particular, eu apenas lembrava de uma outra viagem, feita anos antes ao município de Presidente Figueiredo, estado do Amazonas, onde se localiza a usina hidrelétrica de Balbina. A memória foi ativada pelo encontro de dois depoimentos tão distantes quanto semelhantes. Em Tucuruí, um dos técnicos foi perguntado sobre a perda de trabalhadores no momento da construção da obra. E relatou que não apenas era comum, quanto muitas vezes ignorado pela direção da empreiteira, pois se “caísse um homem lá dentro, não havia muito o que fazer”. Foi um depoimento que já havia escutado no lago de Balbina, pelo canoeiro que levou a mim e dois amigos até a proximidade da barragem. São as histórias que se conhecem ao percorrer esses lugares.
- 12 A Estrada de Ferro Belém – Bragança, simbolizou o anseio de modernização da época através da introd (...)
18Em 2017, recebemos a visita de um grupo de pesquisadores do Sudeste brasileiro. Organizamos um campo ao longo da antiga Estrada de Ferro de Bragança. Essa ferrovia foi um importante modal de transportes construído entre 1880 e 1910, na época da Borracha e foi mantida em operação até os anos 196012, quando a região passou a ser cortada pelas rodovias, supostamente vetores de modernização e desenvolvimento. No trajeto, chegamos à antiga ponte de ferro da ferrovia, hoje apenas uma das várias rugosidades daquela época, um objeto que envelheceu pela ausência de sua função original, pois uma das características da modernização na Amazônia é o constante apagamento do passado, ainda que esse passado não esteja tão distante assim pois “Aqui tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína”, em uma das interpretações antropológicas clássicas sobre o Brasil.
19Uma das últimas viagens a campo, antes do advento da pandemia de Covid-19, foi realizada no hoje distante abril de 2019, novamente ao Sudeste do Pará, mas dessa vez com destino a Marabá, passando por Curionopólis e finalizando em Xinguara. A viagem em direção ao I Simpósio Nacional de Geografia Regional, organizado pelos professores do curso de Geografia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), uma das dezenas de unidades de ensino construídas no processo de expansão e interiorização da educação superior.
20Para chegar ao nosso destino, passamos pela “Curva do S", na estrada em Eldorado dos Carajás, onde se localiza o Memorial aos Mártires de Abril do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), uma das marcas da violência que a modernização deixa em seu caminho, pois a realização desses projetos não seria possível sem a aniquilação de determinados grupos sociais.
21Em Curionopólis, município no qual fica localizada a área alagada do Garimpo abandonado de Serra Pelada, conhecemos o relato do massacre dos garimpeiros na década de 1980 pela voz dos personagens que lá estavam e ainda estão. Nessa última viagem ficaram registradas algumas das imagens que me fizeram escrever sobre estes anos.
22Em todas as viagens e reconhecimento das áreas de influência dos projetos era com esse tipo de cenário com os quais me deparei. Pedaços de territórios, fragmentos de destruição, lugares destituídos de memória. De certa forma aqueles “Espaços Quaisquer” que a linguagem deleuziana em Imagem-movimento identificava nas áreas abandonadas, desafetadas, rugosidades de um tempo perdido.
- 13 O Polamazônia foi um dos programas de desenvolvimento da ditadura com inspiração na teoria francesa (...)
23Não havia uma paisagem das promessas de modernização tantas vezes reiteradas nos discursos oficiais e nas interpretações convencionais, quando muito, havia apenas um vislumbre provocado por esses atravessamentos de modernização, que sempre era interno aos projetos, nada que espraiasse pelo entorno regional, como era a hipótese de uma famosa teoria econômica francesa testada nos vários “polos de desenvolvimento” da Amazônia13. Esses polos nunca foram pontos que irradiavam luminosidade ao seu entorno, ao contrário, disseminaram apenas opacidade.
24O conhecimento empírico das imediações apenas reforçava a imagem de que aqueles objetos nada mais são do que fixos dos sistemas de engenharia, com objetivo de viabilizar não apenas a fluidez de capital para a região, mas o seu contrário, a extração da energia vital dos povos e dos territórios em que os recursos estão localizados. Daí o padrão de arruinamento se repetir por tantos lugares e tempos distintos pela região.
- 14 Em 1991, participando de um evento científico da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em (...)
25Pensar outras formas de preservação da Amazônia passa necessariamente por constituir um vocabulário específico sobre as heranças que estes artefatos estão deixando por toda Amazônia. Os locais que rodeiam estes grandes objetos14, hoje poderiam ser denominados de ruínas do desenvolvimento.