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Obituário

Carlos Rodrigues Brandão (in memoriam)

Ellen F. Woortmann

Notas da redacção

Recebido em 18/10/2023.Aprovado para publicação em 18/10/2023 pela editora Kelly Silva (https://orcid.org/0000-0003-3388-2655)

Texto integral

1Brandão, como era chamado, nasceu em 14 de abril de 1940 no Rio de Janeiro, mais exatamente em Copacabana. Foi no âmbito das férias no interior, com a família, que ele despertou para o fascinante mundo rural e da poesia.

2Em sua última carta-e-mail (2023), destinada à “Gente amiga de perto e de longe”, ele registra, com orgulho, que, como jovem, escalou o Dedo de Deus e o Paredão Baden-Powel, no Irmão Maior do Leblon. Foi no período dos agitados anos 1960 que ele cursou Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em paralelo, viveu sua mais atuante participação nos movimentos de cultura e educação popular, participação essa que manteve durante toda a vida, sempre em busca da justiça social. Como membro da Juventude Universitária Católica (JUC), uma das organizações da Ação Católica, e depois sua adesão ao Movimento de Educação de Base (MEB), teve os primeiros contatos com as ideias e ideais de Paulo Freire. Tendo realizado curso no México sobre educação de adultos, em 1967, e já na qualidade de educador e pesquisador, ele ingressa como professor na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE-UnB). É quando publica seu primeiro livro, ainda com dimensões de abordagem do folclore: Cavalhadas de Pirenópolis: Um estudo sobre representações de cristãos e mouros em Goiás (1974).

3Em 1972, Brandão dá início a uma nova etapa de sua trajetória de formação acadêmica. Ao optar pela Antropologia, ingressa no recém-criado curso de Mestrado em Antropologia Social da UnB. Concluído o seu mestrado em 1974, torna-se o primeiro aluno do curso a defender a dissertação, que será publicada em 1977: Peões, Pretos e Congos: Trabalho e identidade étnica em Goiás, sob a orientação de Roberto Cardoso de Oliveira.

4Concluída essa etapa, ele trabalha por dez anos em Goiânia, na condição de docente da Universidade Federal (UFG) e na então Universidade Católica de Goiás (UCG). É o período em que Brandão – sempre um intelectual engajado – desenvolve vários projetos de pesquisa na área rural com seus colegas e alunos. Com base nesse longo e detalhado período de constantes trabalhos de campo é que ele, “com afeto”, apresenta gradativamente à Antropologia, o multifacetado universo camponês. Centrando-se especialmente no campesinato goiano e depois no mineiro, analisa dimensões do sertão com seu ideário, suas concepções e práticas rituais, sociorreligiosas, de trabalho, de alimentação, entre outras.

5Em 1976, Brandão transferiu-se para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde permaneceu como professor e destacado orientador. Em 1979, ele concluiu o Doutorado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), com a tese: Os deuses de Itapira: Um estudo sobre a religião popular, sob a orientação de José de Souza Martins. Na década de 1980, ele intensifica seus diálogos, agora pessoalmente, com o pensador recém-retornado do exílio, também professor da Unicamp, Paulo Freire. A sintonia de ideias e ideais de Brandão com as do prestigiado educador pernambucano, em especial suas concepções de educação, alfabetização e cultura popular, promoveu diálogos que forjaram uma forte e produtiva amizade acadêmica e pessoal entre os dois intelectuais.

6Na Livre-Docência, defendida em 1988 na Unicamp, Brandão aprofunda-se na análise das dimensões rituais e simbólicas do catolicismo popular, que sempre lhe foram tão caras no plano pessoal. Suas vivências e experiências de pós-doc em 1992, nas Universidades de Perugia, na Itália, e Santiago de Compostela, na Espanha, lhe foram particularmente interessantes, e dentre elas, percorrer, viver, o Caminho de Santiago de Compostela.

7Nessa consolidada fase de sua vida, ele dá início a algo muito especial, o Sítio da Rosa dos Ventos, em Pocinhos do Rio Verde, Minas Gerais. O Sítio constituiu, para Brandão, a materialização de seu sonho acalentado por muito tempo. Torna-se a configuração de um espaço de pesquisas, de contato criativo com a natureza, de realização de cursos, oficinas, redação de dissertações e teses. Enfim, um espaço de encontro e hospedagem, aquilo que, num momento informal, definiu – com o bom humor que lhe era peculiar – como uma “casa de acolhida, sem ser pousada ou mosteiro”.

8Aposentado em 1997, Brandão continuou como Professor Colaborador e Orientador no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Unicamp. Também atuou como Professor Convidado na Universidad Veracruzana (MX) e na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e como Professor Visitante na Universidade Estadual de Goiás e na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), entre outras instituições.

9Sua notável produção antropológica sobre o universo rural goiano e mineiro toma novo significado, quando se entende sua relação com a Educação. Declarando-se educador, e não pedagogo (2023), Brandão afirma que “(…) desde 1963, nunca deixei de participar do debate extrauniversitário dos movimentos e experiências de educação e cultura popular (…) são os meus relatórios de pesquisas de Antropologia ou os livros entre a didática e a militância, dirigidos a educadores” (1986, 174).

10Sempre em diálogo constante e marcante com a Antropologia, desenvolveu também uma significativa produção bibliográfica em outras áreas afins “porque o conhecimento deve ser compartilhado”, ser acessível a todos.

11A produção de poesias e fotografias, música e outros trabalhos estéticos que sempre o acompanharam, também são contribuições suas aos educadores, acionando, contudo, outras formas de expressão, que ele trabalha como multilinguagens. Via de regra, as poesias e letras de músicas que remetem à sensibilidade, ao emotivo em meio à luta pela vida, revelam os encantos da profunda fé que sustenta o árduo cotidiano do camponês, e em sintonia fina, com a natureza, face ao mundo em mudança. Nessa perspectiva, manteve intensos diálogos com a literatura, em especial com a memória e o sertão de Guimarães Rosa. Manuelzão, um camponês e sofisticado pensador, com quem manteve longo e produtivo contato, foi a fonte na qual Brandão encontrou a inspiração para muitas de suas publicações sobre esse “sertão profundo”, ou, por que não, esse “Brasil profundo”, inspiração essa que também contagiou positivamente a muitos de seus orientandos e orientados.

12Todo esse extenso e notável trabalho divulgado em forma de livros, artigos, cartas, são significativas contribuições à Antropologia, à Educação e áreas afins. Elas lhe trouxeram grande prestígio e reconhecimento, tanto na esfera acadêmica quanto no âmbito dos movimentos sociais e depois nas contribuições para a formulação de políticas públicas. Dentre suas inúmeras premiações, destacam-se a sua incorporação à Ordem do Mérito Científico no grau de Comendador do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a medalha Roquette Pinto da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o Prêmio Dom Helder Câmara da PUC-Rio, os títulos de Doutor Honoris Causa pelas Universidad Nacional de Luján (Argentina), Federal de Uberlândia (UFU) e Federal de Goiás (UFG), e em 2015 o título de Professor Emérito da Unicamp.

13Todo esse trabalho e reconhecimento como intelectual engajado contou com o incondicional apoio de sua dedicada esposa Maria Alice, goiana, com quem se casou em 1966. Também militante da Ação Católica, ela foi colega de Brandão no curso de Educação de Adultos no México e posteriormente coordenou o Movimento de Educação de Base de Goiás.

14Maria Alice em muito contribuiu para abrir as portas do ideário do campesinato goiano ao carioca Brandão. A expressiva observação de agradecimento que ele lhe faz na dissertação de mestrado pode hoje ser estendida para toda a sua vida em comum. Nas palavras dele, ela “(…) foi, durante todo o tempo, a esposa e a companheira sempre presente e capaz de criar, tanto em casa como à distância, o ambiente e as condições que tornaram cotidianamente possível começar e concluir o trabalho dentro do período de tempo previsto (…)” (1977, 21).

15Em Campinas, coerente com a proposta de vida engajada como a dele, Maria Alice passou a atuar como professora de crianças e adultos com dificuldades de aprendizagem. Tiveram os filhos Luciana e André e três netos, as alegrias de Brandão e que, no fim, prestaram o forte e incondicional apoio ao pai e avô.

16Brandão, no derradeiro e-mail acima referido, destaca ainda um outro pensador que o acompanhou desde os idos de 1962. É o pensador Teilhard de Chardin, SJ, ícone jesuíta dos anos 1950 e 60, cujas obras, no final, ele estava relendo, ao som de música clássica mas também das modas de viola, ambas tão ao seu gosto. Seu pensador alfa e ômega…

17Concluindo, em conversa informal, ele reconhecia que o Sítio Rosa dos Ventos se tornou, com o passar dos anos, seu “espaço-âncora”, assim como o foi para muitos dos que o frequentaram. Na derradeira carta, ele reconhece que lamentou muito quando teve que deixar o Sítio para se recolher em Campinas. Foi em Campinas que ele precisou se submeter às intermináveis internações, tratamentos, consultas, laboratórios e às exigências, especialmente restritivas de isolamento, impostas pela pandemia, em meio à sua luta contra a leucemia. Se essa luta o fragilizou, o contágio pela Covid-19 o levou, em 11 de julho de 2023.

18Num esforço coerente com toda sua vida, a família concluiu sua trajetória em conformidade com a sua ruralidade e realidade vividas. No velório, bem a seu gosto, aos muitos que dele foram se despedir, foram servidos pão de queijo e quitandas acompanhadas de café e suco, ao som do choro e das modas de viola, cantorias etc. No seu enterro, no cemitério do Campo dos Amarais, a bandeira do Divino em sua homenagem foi carregada por Maria Alice, auxiliada pelos filhos.

19Gratidão, Brandão!

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Bibliografia

Brandão, Carlos Rodrigues. 1974. Cavalhadas de Pirenópolis: Um estudo sobre representações de cristãos em Goiás. Goiânia: Oriente.

Brandão, Carlos Rodrigues. 1977. Peões, Pretos e Congos: Trabalho e identidade étnica em Goiás. Brasília: Editora UnB.

Brandão, Carlos Rodrigues. 1979. Os deuses de Itapira: Um estudo sobre a religião popular. Campinas: EdUFU.

Brandão, Carlos Rodrigues. 1986. Identidade e etnia: Construção da pessoa e resistência cultural. Brasília: Brasiliense.

Brandão, Carlos Rodrigues. 2023. Carta-e-mail: “Gente Amiga de Perto e de Longe”.

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Índice das ilustrações

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Ellen F. Woortmann, «Carlos Rodrigues Brandão (in memoriamAnuário Antropológico [Online], v.48 n.3 | 2023, posto online no dia 13 dezembro 2023, consultado o 08 novembro 2025. URL: http://journals.openedition.org/aa/11474; DOI: https://doi.org/10.4000/aa.11474

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Autor

Ellen F. Woortmann

Universidade de Brasília – Brasil.

Graduada e especialista em História pela Unisinos, mestre e doutora em Antropologia Social pela UnB ministrou cursos e publicou no Brasil e exterior . Com pós doutorado na Oslo University e Universidad de Barcelona, foi vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia . Atualmente é professora pesquisadora associada do PPGAS/UnB, Atua com os temas: campesinato, parentesco, imigrações comparadas, gênero e saberes tradicionais.

ORCID https://orcid.org/0009-0004-7391-9699. ellen@unb.br

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