Introdução

1Segundo dados divulgados pela Agência Nacional do Cinema – Ancine, o Brasil é o país latino-americano com o maior número de opções de serviços de vídeo sob demanda, contando com 59 diferentes plataformas disponíveis no mercado nacional (ANCINE, 2022). A Agência ainda revelou que o Brasil é o segundo país que mais consome streaming no mundo (atrás apenas da Nova Zelândia), consagrado como um dos dez maiores mercados de SVoD do planeta (ANCINE, 2022). Esse cenário não apenas confirma aspectos de reconfiguração do mercado audiovisual como revela a atenção que se deve dar a produtos nacionais para apreender lógicas de mercado e consumo. No caso brasileiro, a chegada da Netflix foi um determinante para estas mudanças que, posteriormente, se desdobraram e vêm se materializando nas ações e empreendimentos de diversos outros serviços de vídeo sob demanda no país.

2No Brasil, Netflix chegou em 2012 e passou a produzir séries originais em 2016. Ao investir em produções originais de diferentes gêneros e formatos no país, Netflix se associou a companhias produtoras nacionais, geralmente custeando a integridade dos gastos de produção para, assim, garantir os direitos de exclusividade e controle sobre as obras (ROCHA, ARANTES, 2023).

3A chegada ao Brasil de players como Netflix, em função das dinâmicas e da política que rege a produção de um serviço global, levou à crença de que a produção pudesse tornar-se descentralizada e/ou regionalizada, já que faz parte da política de conteúdos uma mescla entre apelos locais com vistas a uma produção de viabilidade global. Esta inserção no mercado nacional obrigou os conglomerados já existentes a uma reorganização para fazer frente a esse novo agente que demonstrou competitividade financeira, capacidade de inserção em mercados locais, disposição para parcerias e negociações em prol de expansão de públicos, gerando um “efeito Netflix” (SHARMA, 2016). A partir daí, empresas com larga história no audiovisual em países latinos adentraram o novo mercado com a criação de seus próprios serviços de streaming, como foi no Brasil, em 2015, com TV Globo lançando Globoplay.

4Globoplay é o serviço de streaming pertencente ao Grupo Globo. “Inicialmente, a plataforma era vista como serviço on demand em formato crossmediatico desenvolvido para abrigar produções veiculadas pela TV Globo e, assim, suplantar GloboTV e GloboTV+” (MEIGRE, ROCHA, 2020, p. 139). Globoplay pode ser interpretada como uma plataforma “nativa de televisão” (JOHNSON, 2019) com estrutura organizacional verticalizada e fechada, com vantagens evidentes pela vinculação à TV Globo. O modelo do Globoplay abarca a transposição da grade televisiva da TV Globo para o catálogo online, a disponibilização da programação ao vivo e gratuita, a composição de catálogo com obras antigas da TV Globo, a inserção de conteúdos originais e exclusivos para a plataforma, licenciamento de conteúdos estrangeiros – o que resulta num modelo misto de negócio no caso do serviço prestado pela plataforma.

6Atentos a estes players, interessa-nos refletir quanto ao contexto destas produções originais nacionais, bem como ponderar quais gêneros narrativos e temáticas sociais se destacam. Exemplificamos a abordagem com duas séries originais brasileiras: Os Outros, do Globoplay, e Manhãs de Setembro, do Prime Video, a fim de sinalizar aspectos de cidadania passíveis de se trabalhar nestas ficções.

Considerações sobre a criação de conteúdo original

Procedimentos de coleta e análise

Por uma macro-contextualização industrial: plataformas e empresas produtoras

8Os serviços de vídeo sob demanda que produziram ficções seriadas no Brasil entre 2020 e 2023 são plataformas de cobertura global, com disponibilidade internacional, permitindo acesso em diferentes países. Outros pontos característicos são acesso multilíngue (suporte oferecido a vários idiomas, incluindo legenda e dublagem) e catálogo de conteúdo internacional (oferta de conteúdo com produções de múltiplos países, além da inclusão de produções originais em diferentes idiomas). Essas características implicam que as plataformas tenham acordos de distribuição e licenciamento com empresas de mídia ao redor do mundo.

Tabela 1: Produções originais de ficção seriada para streaming no Brasil (2020-2023)

Série	Plataforma	Ano	Empresa produtora	Sede
Arcanjo Renegado	Globoplay	2020	Estúdios Globo/AfroReggae Audiovisual/Hungry Man	RJ
Todas as Mulheres do Mundo			Estúdios Globo	RJ
Desalma			Estúdios Globo	RJ
As Five			Estúdios Globo/Gullane	RJ/SP
Filhas de Eva		2021	Estúdios Globo	RJ
Onde está meu coração?			Estúdios Globo	RJ
Rensga Hits!		2022	Estúdios Globo/Glaz Entretenimento	RJ
Rota 66			Estúdios Globo/Boutique Filmes	RJ/SP
Encantado’s			Estúdios Globo	RJ
Todas as Flores			Estúdios Globo	RJ
Turma da Mônica - a série			Estúdios Globo/Biônica Filmes/Mauricio de Sousa Produções	RJ/SP
Theodosia			Cottonwood Media/ZDF	Paris
Os Outros		2023	Estúdios Globo	RJ
A vida pela frente			Estúdios Globo (GNT)/ Daza Filmes	RJ
Aa aventuras de José e Durval			Estúdios Globo/O2 Filmes	RJ
Codex 632			Estúdios Globo/RTP1/SPi	RJ/ Portugal
Fim			Estúdios Globo/Conspiração Filmes	RJ
Rio Connection			Estúdios Globo/Sony Pictures/Floresta	RJ/EUA/ SP
Acampamento de magia para jovens bruxos			Estúdios Globo (Gloob)/Conspiração Filmes	RJ
Vicky e a Musa			Estúdios Globo	RJ
Betinho: no fio da navalha			Estúdios Globo/Afroreggae Audiovisual/Formata Produções e Conteúdo	RJ
Onisciente	Netflix	2020	Boutique Filmes	SP
Spectros			Moonshot Pictures	SP
Reality Z			Conspiração Filmes	RJ
Boca a Boca			Gullane Entretenimento/Fetiche Features	SP
Bom dia, Verônica			Zola Filmes	RJ
Cidade Invisível		2021	Pródigo Filmes/ Boipeba Filmes/BottleCap Productions	SP/RJ
Temporada de verão		2022	Boutique Filmes/Ocean Filmes	SP/RJ
De volta aos 15			Glaz Entretenimento	SP
A sogra que te pariu			Os Suburbanos Produções	RJ
Maldivas			O2 Filmes	SP
Nada suspeitos			Glaz Entretenimento	SP
Só se for por amor			Coração da Selva	SP
O cangaceiro do futuro			Glaz Entretenimento	SP
Todo dia a mesma noite		2023	Morena Filmes	RJ
Sem filtro			A Fábrica	RJ
B.O.			Camisa Listrada	RJ
DNA do crime			Paranoid Filmes	SP
Olhar indiscreto			Mixer Films	SP
Hard	HBO Max	2020	Gullane Entretenimento	SP
Todxs nós			Coiote Paranoid	SP
Galera FC		2021	A Fábrica	RJ
Os ausentes			Panorâmica	RJ
O hóspede americano			HBO Max	EUA
Vale dos esquecidos		2022	HBO Max	EUA
No mundo da Luna			Warner Bros, Discovery	SP
Além do guarda-roupa		2023	Coração da Selva	SP
B.A.: o futuro está morto			Gullane Entretenimento	SP
Insânia	Star+	2021	Intro Pictures	SP
O rei da TV		2022	Gullane Entretenimento	SP
Não foi minha culpa			Cinefilm	SP
Santo maldito		2023	Intro Pictures/Pródigo Filmes/Pink	SP
Dois tempos			Cinefilm	SP
How to be a carioca			Moovie Productions	SP
Últimas férias			Intro Pictures	SP
Compro likes			Aquarela Produções Culturais	Brasília
A história delas			Intro Pictures	SP
Tudo igual… SQN	Disney+	2022	Cinefilm	SP
O coro: sucesso, aqui vou eu			Nonstop/Formata Produções e Conteúdo	SP
Mila no multiverso		2023	Nonstop/Boutique Filmes	SP
Tá tudo certo			Formata Produções e Conteúdo	SP
A magia de Aruna		2023	Formata Produções e Conteúdo	SP
Rio #SEMLIMITES	Prime Video	2020	Multiphocus Arte & Comunicação	RJ/SP
5x comédia		2021	Dueto Filmes/Viacom CBS International Studios	SP/EUA
Dom			Cimarrón Cine/Conspiração Filmes	Uruguai- Argentina-México/ RJ
Manhãs de setembro			Amazon Studios/O2 Filmes	EUA/ SP/RJ
Desjuntados			FJ Productions	EUA/SP
Sentença		2022	Cimarrón Cine/Amazon Studios	Uruguai- Argentina-México- EUA
Eleita			Conspiração Filmes	RJ
Lov3			Amazon Studios	EUA
Jogo da corrupção			Amazon Studios	EUA
Cangaço novo		2023	O2 Filmes	SP
Novela			Porta dos Fundos	SP
Negociador			Boutique Filmes	SP
Feita pra sonhar			LT3 Studios	SP
Amar é para os fortes			Pródigo Filmes	SP
Anderson Spider Silva	Paramount+	2023	Pródigo Filmes	SP

Fonte: Projeto Selo América Latina de Exportação da Ficção Televisiva II, equipe Brasil, 2024.

9Em 2020, com Globoplay, Netflix e Prime Video, foram lançadas 11 séries. Em 2021, mesmo com a chegada da HBO Max ao mercado de originais, o total de lançamentos caiu para 9, tendo Netflix e Prime Video lançado uma produção cada. Uma variável que pode explicar o baixo número é a pandemia de COVID-19 em 2020, quando a produção foi interrompida, assim como muitas outras atividades da economia. Em 2022, com a chegada de Disney+ e Star+, o lançamento de produtos seriados praticamente dobrou em relação a 2020, tendo Netflix e Globoplay retornado aos patamares daquele ano, com sete e seis lançamentos respectivamente.

12A alta taxa de concentração de empresas produtoras no eixo Rio de Janeiro-São Paulo reforça as dinâmicas que imperaram no audiovisual durante décadas e realçam dois tópicos controversos: primeiro, este cenário inviabiliza que profissionais de outras regiões consigam projeção e engajamento nas atuais lógicas de produção ficcional seriada, tal qual já se firmava no modelo de televisão aberta; segundo, há potenciais chances de réplica de estereótipos socioculturais e foco narrativo em áreas restritas do país, marginalizando boa parte do Brasil e dando protagonismo a regiões historicamente visibilizadas. Assim, comprometem-se, também, as dinâmicas de promoção da cidadania e de valores, pois é possível que demandas, apelos e especificidades culturais sejam negligenciadas por não estarem inseridas no polo geográfico que encabeça as produções. Ao posicionar o audiovisual enquanto potencial esfera de expressão da cidadania comunicativa, entendida esta como “o reconhecimento da capacidade de ser sujeito de direito e de demanda no terreno da comunicação pública, e o exercício desse direito” (MATA, 2006, p. 13), entendemos que a produção para streaming no Brasil – concentrada em regiões detentoras do poderio audiovisual – pode comprometer o pleno exercício desta cidadania comunicativa que, outrora vista com bons olhos após a chegada dos serviços de streaming, hoje concretiza a disparidade geográfica como modus operandi no setor e assim impõe urgentes desafios para um reposicionamento destas engrenagens produtivas do audiovisual.

Aspectos da criação de conteúdo original quanto a gêneros narrativos e temáticas

13Quanto aos gêneros narrativos, houve significativa diversificação. Constatamos produções que adotam gêneros como terror, ação, aventura, musical, suspense e ficção científica, entre outros, o que demonstra incremento e amplitude de competências na construção de enredos e a presença de um hibridismo. Os gêneros narrativos já são alvo de reflexões no âmbito televisivo por diversos estudiosos. Mungioli (2019) toma os gêneros narrativos como instância de mediação a partir das considerações de Martín-Barbero, quando o autor propõe o reconhecimento dos gêneros não apenas pela dimensão da narrativa, mas também pelos sentidos circulantes e circundantes ao texto, numa perspectiva que contempla os aspectos culturais. Pensados enquanto “esferas de intenção” (MACHADO, 2001), os gêneros televisivos evocam lógicas de produção e consumo próprias, reconhecíveis e identificáveis pelos agentes envolvidos no processo comunicativo. A estabilidade do gênero permite uma produção continuada, a partir da repetição de fórmulas e esquemas consagrados que vão se consolidando nos formatos e na relação com os consumidores dos textos (BALOGH, 2002). Nesse sentido, “[...] o gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora, um certo modo de organizar as ideias, meios e recursos expressivos, de modo a garantir a comunicabilidade e a continuidade do próprio gênero junto às comunidades futuras” (MACHADO, 2001, p. 68). Na interseção com outros textos, o gênero narrativo se conforma a partir das contribuições, continuidades e ressignificações advindas de antecedentes – como, por exemplo, a telenovela enquanto gênero televisivo é devedora de precursores consagrados, tais como “o melodrama teatral, o romance em folhetim, a radionovela, a fita em série norte-americana, a fotonovela e as histórias em quadrinhos.” (PALLOTTINI, 2012, p. 49) e assim se consagra como propenso ao hibridismo desde suas bases fundantes.

14Para Jason Mittell (2012, 2015), um dos precursores da reflexão sobre a complexidade narrativa na televisão contemporânea, a mescla de gêneros configura-se como uma importante estratégia dramatúrgica na definição do chamado drama seriado contemporâneo. Para o autor, o hibridismo começa na concepção do design conceitual da obra e envolve combinação de elementos provenientes de gêneros tradicionalmente separados, através dos quais diferentes características narrativas e estéticas são habilmente misturadas para produzir novidade.

16Seguindo Dunleavy (2009, 2018), tomamos o drama contemporâneo enquanto um meta-gênero que, apesar de reunir sub-gêneros muito distintos, apresenta características comuns regidas, sobretudo, por seu esforço dramatúrgico e estilístico de afastar-se das normas regulares da produção de ficção seriada, notadamente na TV aberta. Desse modo, inovação conceitual que conduz a exploração de novos territórios narrativos, a busca por audiência de nicho, a maior autonomia criativa dos profissionais de escrita, a complexidade narrativa e a serialização, hibridismo de gênero, a sofisticação estilística e a estética realista são elementos constitutivos desse meta-gênero que representa uma inovação importante na produção de ficção seriada nacional, a partir da chegada dos serviços globais de streaming.

17Considerar o drama como meta-gênero ajuda a compreender o panorama de obras produzidas sob esse rótulo. O drama abre espaço para diversos sub-gêneros que servirão como predicado do meta-gênero e dará lugar a uma produção diversificada. Assim, são chamadas de drama desde uma trama sobre a carreira bem sucedida de um importante comunicador brasileiro (O Rei da TV, Star+, 2022) até a história que investiga a atuação violenta e truculenta da polícia do estado de São Paulo (Rota 66, Globoplay, 2022), ou seja, obras que se distinguem em diversos aspectos quanto às convenções adotadas, a construção dos protagonistas, o ritmo narrativo, tom e efeitos emocionais. O que vai refinar o pertencimento genérico desses seriados é a subcategoria a que se vinculam, fazendo emergir classificações compostas, tais como drama policial, drama político, drama sobrenatural, drama criminal, drama distópico. O drama contemporâneo se estende a uma quantidade expressiva das séries que, em alguns casos, como Onisciente (Netflix, 2020), a categorização inclui “Drama, brasileiro, ficção científica, suspense”, num expediente de ampliação de escopo que pode até mesmo gerar emoções compostas e/ou ambíguas.

18No quesito “temática”, baseamo-nos nas sinopses e storylines das séries e extraímos os temas centrais abordados, de modo a identificar assuntos que emergem nos textos. Ao todo, foram 34 temas gerais identificados nas 77 séries (Gráfico 3), ainda que a maior parte delas tenha tratado de assuntos comuns à produção de ficção seriada, como os relacionamentos familiares (14,9%) e amorosos (9,5%). Contudo, isso não quer dizer que a abordagem tenha sido a mesma de sempre. Tendo em vista as características já mencionadas do drama contemporâneo, como a inovação conceitual, a complexidade narrativa e o incremento da serialização, é possível dizer que as histórias apresentam maior densidade, complexidade moral das personagens e evitam visões reducionistas e simplistas sobre os temas. Desse modo, inovação no design conceitual e temática se retroalimentam, ou seja, a complexidade nos dramas de TV começa com a concepção conceitual, que ganha impulso com a presença de um conceito original e/ou um ponto de vista diferenciado sobre o tema.

19Destacamos, por exemplo, Os Outros (Globoplay, 2023-) que trata de relacionamentos familiares e entre vizinhos e o faz a partir de uma abordagem distinta daquela por meio da qual a família era retratada nas ficções. O seriado mistura melodrama familiar ao horror urbano para demonstrar como o medo contemporâneo emerge de espaços, situações e pessoas próximas. Ao trazer para o ambiente doméstico os medos que antes povoavam o lugar externo das ruas, Os Outros traz o conflito iniciado a partir da agressão do jovem Rogério (Paulo Mendes) a Marcinho (Antonio Haddad), outro adolescente morador do condomínio fechado Barra Diamond. A agressão é o detonador de uma escalada de violências que marca as duas famílias: de um lado, a mãe de Marcinho, Cibele (Adriana Esteves), busca meios para proteger o filho e, ao mesmo tempo, se vingar pela agressão sofrida (como comprar uma arma); do outro, a família de Rogério, na figura do pai Wando (Milhem Cortaz), age e reage dentro de uma lógica violenta. As duas famílias centrais em Os Outros se cruzam pela maneira como os personagens fazem da violência física, patrimonial e psicológica uma resposta para seus medos. A partir da apresentação do cotidiano destes lares cercados de temor, o seriado reflete aspectos contemporâneos de uma sociedade marcada por intolerância, abusos e opressões. Na ausência de saídas dialogadas entre os personagens, os problemas são equacionados por meio de ataques explosivos – tanto internos (violência doméstica de Wando contra a esposa) quanto externos (entre as famílias e outros moradores). Assim, os limites da civilidade e da ordem são rompidos para dar lugar a uma espécie de luta desenfreada por proteção e garantia de direitos individuais (integridade física, segurança), numa mescla de preceitos melodramáticos com aspectos do horror. É nesse sentido que a série pode se tornar uma potencial maneira de trabalhar a cidadania comunicativa (MATA, 2006) e dar a ver aspectos da sociedade contemporânea e seus medos, lutas e embates que têm escalado os níveis de violência urbana.

20Outro exemplo que tematiza relacionamentos familiares, mas de maneira inovadora e complexa, é Manhãs de Setembro (Prime Video, 2021-), que conta a história de Cassandra (Liniker), uma mulher trans que trabalha como motogirl e cantora na cidade de São Paulo. Após anos de dificuldades, a protagonista conquista o próprio apartamento, sua autonomia e certa estabilidade. Cassandra vê tudo isso ameaçado quando é surpreendida com a notícia da existência de Gerson (Gustavo Coelho), seu filho de dez anos. A história traz uma abordagem e uma estética realista com problemas marcantes do Brasil atual – como a falta de moradia, a precarização dos empregos e as dificuldades de viver em grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo, Manhãs de Setembro desloca para a linha de frente as vivências da comunidade trans, a diversidade na constituição de famílias e de afetos. Ao longo dos episódios, conhecemos diferentes arranjos familiares que vão adicionando camadas à trama: a família de Leide (Karine Teles), Gersinho e Cassandra; Grazy (Isa Ordoñez) e sua mãe solo; o casal homoafetivo Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos); a família heteronormativa de Ivaldo (Thomas Aquino). Essa diversidade estimula o entendimento de que família não é necessariamente uma formação nuclear, cis e heterossexual. A obra questiona esse paradigma justamente porque constrói um enredo atravessado por diferentes formações familiares no entorno de Cassandra. Assim, enquanto acompanha a evolução dos sentimentos da protagonista pelos personagens que a cercam, o telespectador é motivado a refletir como o conceito de família pode ser bem mais amplo e ater-se a novos sentidos de família, numa projeção da cidadania comunicativa (MATA, 2006), que pluraliza os sujeitos em tela e suas demandas por legitimidade, reconhecimento e aceitação.

21Esse tratamento inovador dos temas, como foi o caso de relações familiares, dialoga com a multiplicidade de gêneros e com o fenômeno da complexidade narrativa, o que pode incidir sobre a conquista da atenção e o engajamento da audiência, bem como abrir espaço para importantes reflexões sobre os temas da identidade, dos direitos e da cidadania de pessoas vulnerabilizadas por diferentes razões, entendendo que a centralidade do comunicacional perpassa hoje níveis políticos, mercadológicos e tecnológicos, atravessados por questões interpessoais e sua conexão com as emoções da audiência, e também por dimensões racionais que reforçam o entendimento das audiências como cidadãs (CASTELLS, 2016).

Considerações finais

22Em se tratando de uma análise econômico-cultural, o período analisado vivenciou uma expansão dos serviços de streaming de financiamento privado, aumentando o número de empresas produtoras de ficção seriada no país. Contudo, ao contrário do que se poderia supor, as novas empresas inseridas no mercado local replicam o modelo de associação com produtoras e equipes locais de grande portfólio, algo utilizado pelas pioneiras no segmento – Netflix e Globoplay. Este modelo permaneceu concentrado no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e abriga as principais produtoras de conteúdo audiovisual brasileiro.

23Em termos narrativo-culturais, a leitura dos dados sobre as produções seriadas ficcionais para streaming no Brasil permite identificar a presença notável da categoria drama nos sistemas de classificação de obras, tal como praticado pelas plataformas, pois cada uma tem se apropriado dos sentidos em torno do drama para criar suas próprias definições e expectativas sobre o gênero, com destaque para Netflix, que pratica uma instabilidade entre categorias ao associar ao drama um predicado, de modo a garantir flexibilidade e reestruturação segundo interesses corporativos. Tal procedimento tem permitido a inclusão de um número significativo de produções, cuja diversidade pode se dar pelo sub-gênero de pertencimento, o que demonstra certo empenho da indústria contemporânea para streaming de se desviar das normas há muito estabelecidas para a produção de teledramaturgia, tal como praticadas na TV aberta.

25Sabemos que as várias dimensões – estética, economia, instituições, tendências culturais, novas tecnologias – que envolvem a produção de ficção seriada para streaming estão interligadas e necessitam de constante monitoramento e reflexões atualizadas, notadamente num contexto no qual capturar e reter os espectadores tornou-se mais premente num ambiente competitivo e desigual como o que marca a produção audiovisual global.