2O estudo do conceito de fantasmagoria permite elaborar descrições e análises de narrativas nas quais as relações entre passado e presente são incomuns e complexas. É o caso do filme O nó do diabo, composto por uma série de cinco episódios, todos abordando situações de violência contra negros. O filme inicia com uma referência à atualidade, e gradativamente recua até o período colonial, no qual se desenvolve o último episódio.

3O primeiro episódio apresenta a inserção da percepção, por parte de um funcionário branco armado de uma fazenda, de imagens fantasmáticas. O filme, especialmente nesse episódio, expõe uma reaparição do passado em meio ao presente, e que as imagens fantasmáticas sinalizam a violência e a injustiça a que negros tinham sido submetidos no passado (inclusive, no período escravocrata). Ao longo do filme, como o passado recua gradativamente, é como se fossem mostrados negros que poderiam ter aparecido como fantasmas na parte inicial.

4O nó do diabo e O diabo mora aqui apresentam entre si uma afinidade ; em ambas as narrativas, ocorrem irrupções de elementos do passado no presente. No primeiro, os elementos fantasmáticos referem aos negros que foram vítimas de violência por parte de brancos ao longo dos episódios narrados. No segundo, um escravo aparece, vindo de dentro da terra na qual estava enterrado. Simetricamente, o homem branco que o explorava também emerge dos mortos. O enredo apresenta uma retomada do confronto entre senhor e escravo, como uma luta de morte que impregna o contexto no qual circula um grupo de jovens.

5Essas narrativas fílmicas utilizam recursos convencionais do gênero terror, como a indeterminação, a suspensão dos limites entre a vida e a morte, e a perseguição, para abordar o recalque histórico da violência contra escravos. Com o emprego do recurso da fantasmagoria, com a visibilidade de elementos não resolvidos do passado junto a acontecimentos do presente, constitui horizontes de percepção crítica da escravidão, em favor de imagens de um passado inconformado, que não se resigna à consumação ou ao esquecimento.

6O retorno do escravo em O diabo mora aqui pode ser considerado uma metonímia de um conjunto de sinais, encontrados em narrativas de terror brasileiras, de uma necessidade de expressão de recalques da violência histórica. Seguindo essa hipótese, seria plausível atribuir ao cinema de terror brasileiro contemporâneo uma disposição para elaborar configurações da história do país, em ruptura com percepções convencionais. O passado recalcado, ao emergir no presente, o instabiliza, estabelecendo subversões de valores dominantes. As vozes fantasmáticas que aparecem para infernizar e destruir o homem violento na fazenda em O nó do diabo, assim como o escravo, disposto a destruir o seu antigo senhor e quem a ele seja leal, em O diabo mora aqui, correspondem a forças históricas silenciadas, às quais os diretores de cinema dão passagem diante dos olhos dos espectadores. É próprio, em termos convencionais, que narrativas de fantasmas, seguindo convenções conhecidas, apresentem a volta de mortos para « trazer à luz (...) vingança ou reparação », tendo como mediação a « reencenação de um passado totalmente repugnante » (Carroll, 1999 : 148).

7Indo além dessas convenções, esses dois filmes despertam questionamentos produtivos. Cabe registrar pelo menos duas hipóteses. A primeira consiste em que, em termos especulativos, as narrativas propõem rupturas com as narrativas históricas lineares, em favor de irrupções do passado que problematizam a confiabilidade no princípio de causalidade. Assim como, ficcionalmente, um escravo pode retornar ao mundo dos vivos para confrontar o responsável pela violência que sofreu, historicamente, a reavaliação e o avanço dos conhecimentos acadêmicos sobre a escravidão pode potencialmente transformar as maneiras dominantes de atribuir significado aos acontecimentos do passado impregnados por essa prática.

8A segunda consiste em que as visões promovidas pelas narrativas de terror (o funcionário da fazenda em agonia, os jovens desesperados diante dos acontecimentos) sugerem que seria possível elaborar condições de produção de conhecimento do passado que, diante de experiências sociais recalcadas ou silenciadas, transformassem as percepções habituais de problemas contemporâneos, como as práticas racistas e a desigualdade social no Brasil. Para essa perspectiva, as narrativas de terror poderiam alcançar uma função epistemológica, a saber, imaginar formas de conhecimento capazes de lidar com os impactos coletivos de níveis elevados ou extremos de violência dirigida a grupos ou segmentos na sociedade. Em termos conceituais, as narrativas de terror poderiam atuar como figuras epistemológicas para as quais hipóteses não correspondessem a dogmas (Andriopoulos, 2014: 49) ; elas abririam o pensamento para indeterminações a respeito do conhecimento do passado, que atuariam como « tipos de pensamento vestigiais » (Frosh, 2018 : 41). Essas narrativas, ao invés de estabilizar ou reforçar maneiras convencionais de perceber o passado, apontariam para este como um « turbilhão que pode surgir a qualquer momento, imprevisivelmente, na correnteza do rio » (Didi-Huberman, 2017 : 95).

9Em 2019, foi lançado o livro de Bernardo Kucinski A nova ordem. Nessa obra, os personagens vivem sob um regime totalitário ; as condições de vida dentro desse regime são expressas por ações de personagens, e delimitadas pela apresentação direta de elementos de legislação. Em diversos capítulos, em notas de rodapé, são apresentados éditos, que consistem em regras impostas pelo Estado para legislar e controlar ações e pensamentos. A obra articula, em sua forma, elementos narrativos com elementos de discursos jurídicos.

10No mesmo ano, foi lançado o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A obra apresenta uma comunidade vivendo em um local no interior do país, chamado de Bacurau, tendo como governante um prefeito irresponsável. Essa comunidade se torna alvo de um grupo de pessoas que traz armas ; esse grupo tem como propósito destruir os moradores, em práticas semelhantes a um jogo competitivo. Os diretores utilizaram recursos que remontam a diversos gêneros cinematográficos, incluindo o horror, a ficção científica, a ação e o drama.

11A aproximação entre essas duas obras permite verificar afinidades importantes. Em ambas, o tema da violência está presente ; elementos próprios de narrativas de terror são articulados com recursos de ficção científica, especificamente de distopias. Nesses casos, as imagens de futuro atribuídas ao Brasil aparecem condicionadas pelo risco de morte coletiva. A nova ordem é um relato sobre o poder tirânico ; Bacurau aborda uma comunidade resistente à destruição. De maneira similar ao que ocorre em O diabo mora aqui, o horror aparece de maneira devastadora, ameaçando personagens. Esteticamente, a orientação é diferente em A nova ordem e em Bacurau. Como ocorre em outras narrativas distópicas, os riscos de destruição são associados a dispositivos de controle ; com isso, as obras « problematizam os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam » (Hilário, 2013: 206), propiciando uma especulação crítica a respeito de problemas sociais do Brasil contemporâneo. Formas de pensamento vestigiais aparecem em ambas as obras, sendo que nesses casos não se trata de perceber o passado como um campo de forças inesperadas, mas de observar o futuro como tempo de catástrofe. Perceber os vestígios do devir em catástrofe, os sinais de morte e destruição, consiste em um procedimento de sustentação do terror artístico nessas obras.

12No caso de A nova ordem, o Estado atua de maneira destrutiva, como mostra, por exemplo, a aniquilação de professores universitários no início da obra. Uma reação ocorre, também através de violência, quando um personagem, Angelino, atira no General Lindoso de Freitas (Kucinski, 2019 : 12). Em Bacurau, um grupo de estrangeiros realiza ações violentas, tendo sua invasão da comunidade apoiada pelo prefeito corrupto. A comunidade organiza, de modo a manter sua sobrevivência, uma resistência armada aos invasores. Em ambos os casos, a violência aparece como uma dinâmica de reciprocidade entre as posições em conflito.

13O planejamento da destruição dos moradores, por parte de Michael e seu grupo, tem uma semelhança com relação à gestão política do general Fagundes. Em ambas as obras, são expostas ações voltadas para obter destruição coletiva. Na obra de Kucinski, o líder manifesta querer reduzir a população brasileira a um contingente que considera suficiente, realizando um « saneamento demográfico » (Kucinski, 2019 : 126-128) ; seu interesse é eliminar 90 milhões de pessoas, em doze anos.

14Em termos formais, guardadas as especificidades da literatura e do cinema, as obras rompem com convenções. Em Kucinski, a presença constante de fragmentos jurídicos cumpre uma função descritiva que aproxima a narrativa de configurações de um relatório institucional. A narrativa literária está integrada com uma retórica e uma estilização próprias da área do Direito. Os éditos consistem em enunciados propostos pelo Estado. A leitura desses fragmentos permite perceber o amplo alcance das injustiças a que a racionalidade do Direito pode impelir (Adorno, 2009 : 258).

15É como se um ponto de vista institucional de um regime totalitário constituísse reiteradamente um lugar de enunciação, o que resulta em que a obra não reserva espaço suficiente para resistências ao totalitarismo, seja por parte de personagens ou por parte do narrador.

17O filme inclui em sua construção referências a estados alterados de consciência, que estariam associados a comprimidos ingeridos por moradores de Bacurau (as sementinhas de Damiano). Por exemplo, na cena do funeral, Teresa (Bárbara Colen) tem uma percepção de que o caixão em que está Carmelita estaria vibrando (Mendonça Filho/ Dornelles, 2020 : 292-293). Essa abertura a efeitos alucinatórios impregna formalmente o filme, no qual são encontrados recursos próprios do cinema onírico (Xavier, 2008).

18Guardadas as diferenças entre A nova ordem e Bacurau, é possível observar que, nas duas obras, as variações entre as perspectivas de observação dos acontecimentos são fundamentais para a atribuição de significação aos eventos narrados.

19Essa perspectiva pode ser fundamentada em ideias de Stephen Frosh para quem uma aparição fantasmagórica consiste na manifestação de uma injustiça não resolvida (Frosh, 2018), e em proposições de Zahid Chaudhary, que elaborou um conceito de estética fantasmagórica, para abordar produções culturais fundamentadas em restos de extermínios coloniais (Chaudhary, 2005). Além desse filme, essa abordagem pode ser estendida, entre outros casos, à literatura de Bernardo Kucinski e ao cinema de Tata Amaral.

20O estudo de fantasmagorias pode ser articulado com outros conceitos importantes. Entre eles, cabe destacar as seguintes referências. (1) a configuração limiar do tempo, um tema desenvolvido por Ettore Finazzi-Agrò em seu livro Entretempos. De acordo com o autor, « a história literária brasileira está semeada por imagens que remetem » a uma « falta constitutiva » , constituindo um « impasse histórico » que problematiza as delimitações do passado e do futuro (Finazzi-Agrò, 2013 : 218-219). Ao longo dos capítulos desse livro, o autor elenca aporias referentes a conceitos básicos do campo de estudos de literatura brasileira (origem, identidade, nacionalidade), que se tornam nítidas em razão de uma crítica ponderada sobre « o uso do tempo feito pela historiografia » segundo o qual uma linha deve partir de uma origem estabelecida para « chegar até o presente e para pré-escrever o futuro a partir do passado » (Finazzi-Agrò, 2013 : 26-27). (2) as reflexões sobre « espectro textual » realizadas por Roberto Vecchi, em seu livro Excepção Atlântica, a respeito da literatura das guerras coloniais. Utilizando os conceitos de fantasma e ruína, e em diálogo com Eduardo Lourenço, o autor estuda o caráter críptico de escritas que apontam para memórias não expressas, e que se constituem em torno de perdas não elaboradas. De acordo com o autor, no corpus estudado, a « rearticulação do tempo » é importante em condições em que a escrita se depara com « o trabalho da melancolia e a problemática da testemunha » (Vecchi, 2013: 106). (3) as reflexões de Stefan Andriopoulos a respeito da presença do conceito de fantasmagoria em escritos de filósofos canônicos (Andriopoulos, 2014) permitem expandir o alcance do estudo do tempo, levando em conta conexões, algumas delas subterrâneas, entre pautas conceituais e parâmetros de percepção visual.

22Retomando as obras mencionadas anteriormente, é possível observar que ambas apresentam configurações do tempo que merecem atenção. Em A nova ordem, embora existam elementos que permitam delimitar um enredo em andamento, com episódios que se articulam, a presença dos fragmentos de discurso jurídico resulta em uma restrição do alcance da dinâmica narrativa, em favor de uma configuração de um espaço cerceado e delimitado por recursos de vigilância.

23Diversos éditos da « nova ordem » política consistem em fixações de cortes com o passado, de maneira que o mundo existente antes da instalação do regime aparece em fissuras, sob ângulos que o decompõem. Kucinski indica o ano de 2019 como o presente da enunciação no livro, identificando assim a referência de tempo do enredo com a referência ao ano no qual A nova ordem foi publicado. Essa escolha pode ser compreendida como uma sugestão de que o Brasil estaria, em hipótese, dentro de um contexto de repressão e terror similar ao desenhado na distopia ficcional. A proposição do totalitarismo é sustentada, em manifestações do general Lindoso Fagundes, em um planejamento de uma transformação do Brasil em uma economia eficaz exportadora, e para isso é constituído um conjunto de ações excludentes, para eliminação de « indesejáveis ». Segundo Fagundes, a eliminação de moradores de rua seria seguida por destruição de outros grupos, incluindo « os aleijados, os cegos, os doentes mentais » e outros, com o argumento de que a população ficaria habituada a procedimentos de eliminação (Kucinski, 2019 : 125).

24No pensamento de Fagundes, as ações repetidas estão associadas à purificação social, com a eliminação de fatores de diversidade. Essa forma de tomar decisões políticas integra elementos do arianismo, da disciplina que exige repetição mecânica de comportamentos, e da conversão do país em uma unidade, no interior da qual nenhuma contrariedade ao Estado poderia se manifestar. As configurações do tempo, para a perspectiva dos militares no poder, integram um triunfalismo mítico, um discurso de defesa de um progresso condicionado ao controle hierárquico da sociedade, e uma tendência a depurar valores, eliminando registros do passado e fixando princípios conservadores de comportamento. Essas configurações apontam para um tempo constituído como « um processo homogêneo » (Bornheim, 2015 : 110), nos termos de Gerd Bornheim, sendo esperado da população que contribua para reforçar o que é determinado pelo Estado. Os fragmentos de discursos jurídicos reforçam essas configurações, pois diversas normativas do Estado têm como efeito a eliminação de capacidades de reflexão e de crítica. Os éditos servem à consolidação de um tempo homogêneo, potencialmente capaz de perpetuar o controle repressivo da sociedade.

25Em Bacurau, uma cena importante é a reunião da comunidade por ocasião dos atos fúnebres dedicados a Dona Carmelita, que ali residia. Essa cena expõe o grupo de maneira integrada, partilhando o respeito pela mulher. Como uma prática ritual, a movimentação dos moradores expressa um entendimento coletivo da perda, quando moradores, seguindo um carro que expõe uma fotografia do rosto da falecida, cantam e acenam com panos brancos (Mendonça Filho/ Dornelles, 2020 : 231-233).

26Outras cenas da obra estabelecem contrastes com relação a esse trecho. A partir do ponto no qual o grupo de invasores inicia suas ações contra os moradores, a montagem propõe cortes abruptos e deslocamentos súbitos de ângulos de câmara. Um trecho do roteiro apresenta o seguinte :

« 165. Ext. cabana de Damiano – dia

(...) Cuidadosamente, Willy e Kate aproximam-se da cabana, pistolas em punho. Willy tem um cigarro por acender na boca. Ao chegar junto da cabana, ele tira um isqueiro Zippo, acende e leva o fogo para o telhado de palha do casebre (que começa a queimar). Ele logo depois usa o mesmo fogo para acender o cigarro. Ele guarda o isqueiro. Kate diz :

KATE Go,go...

Ele movimenta-se tranquilamente em direção à porta da frente do casebre, enquanto Kate aguarda ao lado para dar sequência ao ataque.

CORTA PARA :

166. INT. CABANA DE DAMIANO – DIA

Num piscar de olhos, Damiano nu atira com um bacamarte, cujo coice é extraordinário, a explosão, assustadora, e o estouro, ensurdecedor.

167. INT. CABANA DE DAMIANO – CONTRACAMPO – DIA

Willy não tem tempo de entender o que houve. Com a força bruta da explosão e o impacto certeiro, sua cabeça explode num jorro de massa encefálica, as laterais da porta são destroçadas simultaneamente com o tiro de alcance aberto. » (Mendonça Filho/ Dornelles, 2020 : 292-293)

27O roteiro inclui especificamente uma observação sobre o tempo – «Willy não tem tempo de entender o que houve». Essa observação não consiste em uma instrução sobre imagens a serem constituídas em cena, mas a uma elipse, ou seja, a um elemento que não deve constar na tela. Ela está em oposição a « cuidadosamente » e « tranquilamente », termos que expressam uma confiança no resultado obtido pelas ações planejadas. Embora os invasores tenham uma relação preditiva com o tempo, pois planejam ações em acordo com seus propósitos, a forma da narrativa contraria essa lógica antecipatória.

28A construção do filme inclui, como foi sugerido, elementos ritualizados que integram o grupo, em afinidade com uma concepção mítica do tempo (retomando os termos de Benedito Nunes, existe um « tempo público » no rito fúnebre (Nunes, 1994 : 127) ; indicações de uma concepção preditiva do tempo, segundo a qual ideias antecipariam ações reais ; e também uma indicação (textualmente explicitada) de ausência de tempo, com a morte resultante da explosão. Como um filme centrado em um espaço, a localidade interiorana, a obra propõe configurações diversas de tempo, o que contribui para acentuar indeterminações ao longo do enredo.

31O livro O tempo na narrativa, escrito por Nunes, desenvolve articulações entre a filosofia e a teoria da narrativa ; nessa obra, são estabelecidas diferenciações entre diversas configurações de tempo. De acordo com o autor, o tempo físico seria caracterizado por uma « irreversibilidade », apoiada pelo « princípio da causalidade, isto é, na conexão entre causa e efeito, como forma de sucessão regular dos eventos naturais » (Nunes, 1988 : 19). Para Paul Ricoeur, em narrativas históricas, são importantes as relações causais entre os acontecimentos, como recursos para a produção de conhecimentos históricos (Ricoeur, 1994 : 142). No entanto, se o conhecimento de um fenômeno depender necessariamente de uma cadeia causal linear, existiria um desafio como contraponto, que consiste em reconhecer que nenhum acontecimento singular é excluído de uma pluralidade de séries de fatores (Adorno, 2009 : 223), não podendo ser completamente explicado por um único fator isolado.

32Em obras ficcionais, argumenta Nunes, « o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles » (Nunes, 1988 : 25). Com esses procedimentos, « as anacronias interrompem e invertem o tempo cronológico, deslocando presente, passado e futuro » (Nunes, 2010b : 322).

33Narrativas em que elementos do passado irrompem como fantasmagorias (como os filmes O nó do diabo e O diabo mora aqui) se afastam dos modelos convencionais de configuração do tempo como, nos termos de Nunes, « sucessão regular » dos acontecimentos. Contrariamente, nessas obras, o efeito das imagens fantasmagóricas pode apontar para uma demanda de especulação sobre possibilidades de entendimento de ocorrências do passado ; seguindo o raciocínio de Paul Ricoeur, com mudanças no que se refere à causalidade, os conhecimentos históricos podem ser transformados. Em hipótese, por exemplo, a proposição, expressa no roteiro de O nó do diabo, de que o presente está impregnado de vestígios do passado, mesmo que estes não sejam perceptíveis à primeira vista. A sustentação de um princípio de recuo gradativo no tempo, colocada à prova por esse roteiro, permite distinguir, por um lado, como o presente delimita imagens do passado, e por outro, como o passado resiste a se acomodar no presente. A resistência política expressa em O nó do diabo, configurada como confronto entre fantasmas, atribui visibilidade à disputa de interpretações a respeito das responsabilidades e das consequências de práticas escravocratas. Na sua maneira específica de configurar o tempo, incongruente com a rotina dos relógios, o filme convida a pensar tendo como mediação uma « arte de ver » que prevalece « sobre qualquer determinação espaço-temporal », na qual « a experiência visual determina sua própria temporalidade » (Xavier, 2008 : 122).

34Gerd Bornheim elaborou uma reflexão sobre distinções entre concepções metafísicas e materialistas do tempo. No primeiro caso, o tempo constituiria « um processo homogêneo » (Bornheim, 2015 : 110), e ao ser humano seria atribuída a repetição do que existe. A essas concepções de tempo estariam associadas proposições sobre a produção de conhecimento ; este seria entendido « como adequação (ad-equatio), ou seja, como um ir ao igual », como uma procura de referenciais comuns em meio a variações (Bornheim, 1984 : 95). Para a segunda abordagem, o ser humano é promovido a « inventor do novo », e pode romper criativamente com o que existe (Bornheim, 2015 : 120). Ele pode, nessa perspectiva, confrontar dogmas e reelaborar sua humanidade, em confronto com a passividade (Bornheim, 1970 : 70-72). As narrativas aqui comentadas, tanto por fantasmagorias como por distopias, apresentam propriedades epistemológicas ; elas se valem de rupturas ou deslocamentos para « não unificar o devir, inquietar o tempo » (Didi-Huberman, 2015 : 196).

35Como foi mencionado anteriormente, eventos do Brasil contemporâneo despertam necessidades de reflexão. O período entre 2019 e o presente trouxe rupturas com conquistas de movimentos sociais em anos anteriores, danos irreparáveis a campos como a educação e a saúde pública, e uma disseminação de ideias e práticas regressivas que incluem elementos encontrados em totalitarismos do século XX. A reflexão e as discussões sobre esses temas podem ser beneficiadas pela busca de clareza a respeito das concepções de tempo que, impregnadas nas práticas sociais brasileiras, são expressas e questionadas por artistas, incluindo escritores e cineastas. Além disso, cabe investigar categorias que podem ser articuladas com reflexões sobre o tempo, em favor da clareza dessas reflexões.