Apresentação

O sentido não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida. O futuro está depois do futuro e não atrás do passado.

Eduardo Prado Coelho

1A investigação historiográfica de uma obra de art

Agrandir Original (png, 1,0M) Agrandir Original (png, 882k) Fig. 1 – A Má Notícia (detalhe da pintura), de Belmiro de Almeida. Óleo sobre tela circular em moldura de madeira, 168 x 168 cm, Museu Mineiro, Belo Horizonte, 1897.

4A pintura expressa, por intermédio de sua própria historiografia, a tecedura dos acontecimentos, criando um turbilhão de fatos e formando inúmeros pontos de vista. A partir desta imagem, podemos retomar as palavras de Veyne (1987, p. 46):

Um acontecimento, seja ele qual for, implica um contexto, dado que tem um sentido; ele remete para uma intriga da qual é um episódio, ou melhor para um número infinito de intrigas; inversamente, pode sempre dividir-se um acontecimento em acontecimentos mais pequenos. Qual poderá ser o acontecimento?

5A pintura A Má Notícia revela como uma rede geometral de fatos impossibilita diferenciar a história da ficção. A constituição analítica deste texto seguiu a concepção da iconologia do intervalo e, diferentemente da condução de Warburg (2012), não destacamos a transformação dos gestos figurados pela obra. O objetivo é observar como uma experiência narrativa da história da obra foi integrada ao turbilhão de acontecimentos durante a Primeira República, buscando analisar o espaço mental constituído diante da imagem, pois ele representa uma história da mentalidade brasileira. O temor da morte, o medo da perda, o sentimento do luto e a expressão da melancolia tecem uma constelação simbólica da partilha do sensível diante da imagem representada pela obra.

A Má Notícia & a borda preta da história

A expressão do histórico nas coisas não é mais do que o tormento passado.

Theodor Adorno

6Warburg (2012) investigou a memória das imagens a partir do movimento e da mudança. Assim, o sentir, os sentimentos e as interpretações dependeriam dos movimentos que constituiriam o nosso páthos. As formas atravessam o tempo e criam diferentes espaços, e esse espaço criado no movimento é denominado “intervalar”. Em cada intervalo, deparamo-nos com uma iconografia que é movida por um afeto. Para Didi-Huberman (2013, p. 32), seria um movimento típico da imagem que revela outros tempos e outras histórias. Pela ideia da iconologia do intervalo, uma imagem poderia produzir inúmeros saberes, pensamentos e sentimentos ao longo da história. Esses afetos e percepções poderiam se desdobrar em uma temporalidade fantasmal, criando uma experiência estética muito singular, construindo uma nova experiência do páthos.

7Há nesse deslocamento um tipo de anacronismo que misturaria as coisas do passado e os fatos do presente, gerando uma vertiginosa complexidade dos fatos culturais. Este seria o rastro e a tênue sobrevivência dos fantasmas imagéticos na história, seria o “nó dos anacronismos” que poderia tanto nos conduzir às heterocronias da “filosofia da distância” como provocar um choque pela “experiência aurática das proximidades”. Ao citar leituras metodológicas de Tyler (1861) a respeito da tenacidade das sobrevivências culturais, Didi-Huberman (2013, p. 47) revela algo importante sobre os múltiplos passados: “dizer que o presente traz a marca de múltiplos passados é falar, antes de mais nada, da indestrutibilidade de uma marca do tempo – ou dos tempos – nas próprias formas da vida atual”. Didi-Huberman (2013, p. 47) retoma Tyler para introduzir as reflexões sobre as superstições: a palavra superstição vem do latim e, segundo o autor, significa “o que persiste das eras antigas”. Para além da essência que a nossa contemporaneidade atribuiu ao termo, a noção da sobrevivência persiste como uma força oculta da tradição. A superstição seria o exemplo deste espaço do pensamento criado ao longo dos anos na cultura. A iconografia do intervalo se constitui como uma significação que se evidencia pela força fantasmal: um tipo de força supersticiosa que se manifestaria como um sentimento ou como a criação de um pensamento.

9A Má Notícia foi exposta no Liceu de Artes e Ofícios da cidade de Ouro Preto e, a partir de então, muitos rumores em torno da obra foram criados. Atribuiu-se ao título da obra a ideia da transferência da capital para a nova cidade, Belo Horizonte, antigo Curral Del Rey (Fig. 3). Além disso, a “má notícia” também poderia figurar todas as tensões e conflitos de interesses da elite política brasileira. As disputas políticas tinham relação com a fragilidade do sistema republicano, instaurado sob a égide de conspirações golpistas que trazia consigo todos os problemas não resolvidos do passado monárquico, imperialista, escravocrata e atrelado às crenças morais do catolicismo. Em suma, os rumores construídos a respeito da “mudança da capital” que foram vinculados à experiência estética da obra escondiam algo muito mais profundo. O que se desvela por de trás desse mito é a grande crise política tecida pelos fatos da história e pelas intrigas que misturavam, de forma aleatória, a experiência estética ao drama político. As intrigas são, segundo Veyne (1987, p. 44), tudo aquilo que é tecido enquanto trama da história. A maldição atribuída à obra nos faz notar que a criação da capital era vista como uma transformação dos hábitos, e a cultura moderna republicana era compreendida como um tipo de corrupção dos valores tradicionais. Este seria o pormenor digno de nota para nos fornecer “as figuras de cena” do contexto histórico do ano em que a obra foi exposta.

10Menciona-se ainda que havia, em 1897, a composição dos mais diferenciados grupos que se opunham aos ideais republicanos. Eles formavam movimentos atomizados, ora para defenderem a federalização do país, a fim de preservar os interesses regionais, ora para se oporem ao projeto de modernização social do Estado, impedindo, assim, a laicização no espaço da República. Os rumores atrelados à Má Notícia escondiam, na verdade, as divergências e as disputas do jogo político entre monarquistas, republicanos, federalistas, liberais, católicos radicais etc. Essa questão histórica segue o proposto por Viscardi (1995, p. 47), que analisa o campo acontecimental das intrigas, apontando para o conflito de interesses advindo do fato de não haver uma correspondência entre os valores sociais e as novas perspectivas para um projeto político do país. Os mitos tecidos em torno da obra tornaram-se um evento dentro do acontecimento da Proclamação da República. Em correspondência às emoções produzidas pela imagem da pintura, poder-se-ia apontar a formação dos elementos intangíveis da história das mentalidades: os modos de pensar e de sentir. Daí, a borda preta da carta figurada na pintura como signo da “má notícia” revelaria que o regime estético de toda imagem expressaria, simultaneamente, o seu regime ético: a maneira de sentir e de pensar das coletividades (Rancière, 2005 p. 29).

11Além dos conflitos políticos da elite do poder, é preciso lembrar o sentimento de revolta das inúmeras pessoas em situação de vulnerabilidade, do seu baixo grau de escolarização e da situação de insegurança alimentar que assolava o território nacional. A construção de uma nova cidade também esgarçou outras forças políticas já tensionadas, como os setores econômicos (privados e públicos) de Minas Gerais. As palavras de Azevedo (1989, n.p.) legitimam a importância da mudança do regime simbólico no espaço geopolítico brasileiro: “a república surgiu em Minas em 1889 com uma ideia feita – a de mudança da capital”. Para demarcar as mudanças deste novo tempo, o projeto de Belo Horizonte integrava o ideal republicano ao ideal urbanístico das metrópoles modernas do século XIX (Fig. 4). Teixeira (1999, p. 77) lembra que a equipe de engenheiros e de paisagistas do Barão Haussmann, responsável pela reurbanização de Paris do século XIX, também participou do projeto arquitetônico da cidade.

12Teixeira (1999) lembra que pouco restou da configuração do vilarejo Curral Del Rey. O desenho da cidade compôs a malha citadina a partir das linhas de fuga com largas avenidas para que se permitisse acolher a turba (uma multidão ausente na cidade com características provincianas). Apesar do cunho republicano do urbanismo de Belo Horizonte, a reorganização do espaço era altamente hierárquica. Os projetos das novas capitais “republicanas” reproduziram o vício das sociedades monárquicas. O desenho da malha citadina refletia a distância simbólica das camadas sociais: os representantes do poder e a elite financeira ocupariam os centros reurbanizados, as camadas populares ocupariam as periferias, desprovidas das transformações da infraestrutura urbana. A remodelagem do espaço das urbes brasileiras não escondia as marcas de uma antiga paixão: a distinção social.

A Má Notícia: uma alegoria dos fatos e das conspirações políticas no Brasil?

A fecundidade do inesperado excede de longe a prudência do estadista.

Pierre-Joseph Proudhon

13No fim do século XIX, o Brasil passou por uma grande transformação política sob a perspectiva dos ideais republicanos. O plano de transferência da capital era antigo e, com o advento da República, originou uma campanha para inserir o país na experiência da modernidade (ANDRADE, 2004). O Governo Provisório de 1889 determinou que cada estado pudesse constituir a transferência das novas capitais. Assim, a constituição Mineira de 1891 criou as disposições transitórias para a mudança. Em 1893, a nova capital foi escolhida, intensificando as batalhas imaginárias e as celeumas na estrutura política das intraelites do poder. Por intermédio da Lei da Constituição de 1893, determinou-se a mudança da capital da antiga Ouro Preto para o pequeno vilarejo denominado Curral Del Rey, que passaria a ser denominada Belo Horizonte.

Que lugar poderia ocupar, no presente, uma Capital com fortes laços com a tradição, quando se tratava, justamente, de livrar-se do fardo do passado? Restava-lhe o abandono ou, na melhor das hipóteses, prestar-se a monumento de recordação. Aos olhos de adeptos da mudança, Ouro Preto apresentava-se como uma espécie de lembrança a interpelar a promessa de progresso (JULIÃO, 2011).

14Para inaugurar a nova era política do país, o antigo vilarejo seria reconstruído, seguindo o estatuto urbanístico das cidades modernas, em particular, a ideia da destruição criativa que poderia instaurar uma ruptura radical com o passado colonial. No entanto, a ruptura foi confrontada por uma violenta resistência, colidindo com as proposições republicanas e gerando uma verdadeira constelação de incidentes.

Do Local onde seria construída a capital (o tímido e singelo Curral del Rey), a comissão resolve erradicar as coisas que pudessem lembrar o bairrismo daquele lugar – ou seja, tudo. ‘Ele contou-me a curta estória de Belo Horizonte […] pintou-me, com tintas muito exatas, o velho arraial desaparecido, e a fantasmagórica cidade que, entre uma população pitoresca de engenheiros, arquitetos, empreiteiros e operários, pouco a pouco surgiu do meio dos destroços daquilo que havia sido o Curral del Rey. Que diabo! Façam-me ver alguma coisa velha! Disse aos seus obsequiosos cicerones. Pois bem, vamos fazer-lhe a vontade mostrando a velha matriz da freguesia do Curral del Rey. E, é contentar-se com isso; não temos mais nada velho (AZEVEDO, 1989, p. 80).

16O lócus do projeto da modernidade brasileira se traduz a partir do evento de construção da urbe. A demolição completa da antiga cidade para a renovação urbana produzia o mito da ruptura radical com o passado colonial no imaginário republicano brasileiro. Como dizia Benjamin (2006, p. 430), para se determinar se uma cidade seria ou não moderna era preciso verificar “a ausência de monumentos”.

Os republicanos mineiros construíram a nova capital de Minas Gerais na tentativa de unificar política e culturalmente um estado de economia decadente e marcado pela divisão de poder entre as diferentes facções da oligarquia regional que disputavam o controle político na antiga capital, Ouro Preto. O projeto de Belo Horizonte foi imposto de modo autoritário, repressivo e violento: exigiu a destruição total do povoado do Curral del Rey, a expulsão da população pobre para a zona suburbana e a distribuição ordenada por bairros […] essa elite desenhou Belo Horizonte com um curioso sentido de modernidade: largas avenidas que permitissem maior fluência de tráfego, muitas praças e uma noção de hierarquia da área urbana (Schwarcz; Starling, 2015, p. 328).

18Podemos lembrar as noções de Arendt (2008) sobre a instauração do novo no campo da política como algo da ordem da natalidade e da contingência. Se a ação política carrega em seu cerne a transformação, ela não estaria isenta imprevisibilidade. Encontramos na historiografia desta pintura algo semelhante na análise de Adverse (2018), que examina a ação e a contingência na esfera política sob a ótica da fragilidade dos afazeres humanos: o inesperado e o improvável correspondem tanto ao discurso quanto ao agir, sendo inerentes às teceduras dos acontecimentos nas relações humanas. A Má Notícia revelaria a força alegórica do imprevisível no cenário histórico, os conflitos e as conspirações políticas revelam o nascimento da constelação de incidentes. Se a “má notícia” poderia ser para os monarquistas a mudança da capital para o novo espaço republicano, ela também poderia revelar para os idealizadores da Primeira República as inesperadas revoltas e revoluções resultantes da criação de um novo regime de governo.

A constelação de incidentes: acontecimento & contingência na política

A história é feita da mesma substância que a vida de cada um de nós.

Paul Veyne

19Veyne (1987), ao analisar a narrativa histórica, chama a atenção para o modo como os rumores e as paixões reorganizam o sentido apreendido pelos fatos. Os fatos não se organizam pelo determinismo atômico de causa e efeito, visto que eles são compostos tanto pela singularidade dos acontecimentos quanto pelas intrigas que o reorganizam em uma “constelação de incidentes”. Essa constelação de incidentes é responsável pela verdade histórica, ensinando-nos que os recortes temporais concebem as tramas que humanizam a narração dos fatos. A essência da história estaria concatenada a uma “mistura” muito humana e pouco “científica” de causas materiais, rompendo com a racionalidade lógica e com a cronologia. As intrigas ou as conspirações fazem a tecedura dos fatos a partir de urdimentos irregulares, transfigurando as consequências em futuros imprevisíveis: “as narrativas que, de um lado, um nativo e um viajante fariam de um mesmo acontecimento, de outro lado, o que fariam um homem comum e um jornalista político: o abismo está na quantidade de ideias” (VEYNE, 1987, p. 43). Ao estudarmos os fatos e as conspirações políticas que permearam a construção de um novo espaço para a república, lidamos com a estrutura de uma tecedura narrativa em que o drama unifica medo e fruição narrativa.

20A superstição d’A Má Notícia é um exemplo disso. Pela fruição da imagem se explicita o páthos do luto e o medo da perda, instaurando, assim, uma narrativa dramática a respeito do infortúnio político. A elegemos, nesta pesquisa, como uma alegoria dos conflitos da Primeira República. A obra é uma constelação de incidentes porque desvela, por intermédio da sua historiografia, a trama dramática dos acontecimentos conflituosos que colocaram em xeque os ideais republicanos de igualdade e de liberdade. A imagem da jovem enlutada poderia desvelar dialeticamente o próprio contexto histórico brasileiro, explicitando o sofrimento de uma jovem república enlutada. Como observado na alegoria da República (Fig. 7), perceberemos uma correspondência com os artefatos da jovem representada por Belmiro de Almeida. A mulher enlutada na cena da pintura porta vestes íntimas, deixando os braços à mostra, e apresenta um vestido mais curto do que as mulheres vestiam no século XIX. Aparentemente são detalhes ínfimos, mas que permitem propor uma livre correspondência para analisar, à maneira de Warburg (2012), os acessórios em movimentos no tempo.

Agrandir Original (png, 6,0M) Fig. 6 – Detalhe da pintura A Má Notícia, de Belmiro de Almeida.

21Encontramos também uma correspondência no vestuário da jovem melancólica representada na obra de Belmiro de Almeida com as vestes de Marianne, alegoria francesa que representava os ideais civis da liberdade, igualdade e fraternidade no século XVIII. A livre correspondência iconológica se deve ao fato de A Má Notícia prospectar, de acordo com as superstições, maus agouros para a vida política. Então, se a mudança da capital seria a primeira má notícia, o infortúnio anunciaria dissenções políticas vindouras.

22Schwarcz e Starling (2015, p. 339) apontam para as mudanças na ordem do discurso. Enquanto o indígena fora utilizado como símbolo do Império, a partir da República, a imagem francesa de Marianne fora utilizada como linguagem subjacente das transformações políticas. Este gesto semântico é o que nos conduz a pensar as semelhanças na iconologia intervalar da jovem enlutada com a alegoria da República. É pelo elemento alegórico da mala affectatio, apontado por Kothe (1986, p. 24), que podemos refletir sobre a “má afetação” da imagem nos agentes políticos republicanos. A natureza contingente da inconsequentia rerum, isto é, a “inconsequência do acontecimento”, introduz a imprevisibilidade no horizonte de expectativas das ações políticas nos eventos ocorridos na Primeira República.

23A imagem da Má Notícia figura não somente a perda; ela explicita que o fatídico e a fatualidade da condição humana fazem parte da vida política. Nota-se, aqui, que o contexto político dos anos 1890 foi repleto de eventos violentos imprevistos. Alonso (2017, p. 25) diz que, de fato, a República era opositora da República, pois o ímpeto de modernização acabou por arrastar consigo inúmeros conflitos, como a Revolta da Armada (1893-1994), a Revolução Federalista (1893-1895) (Fig. 8) e a Revolta de Canudos (1896-1897) (Fig. 9), um dos conflitos mais violentos do Brasil que causou mais de 20 mil mortes no Sertão.

24O cenário da Revolta de Canudos explicita as conspirações políticas e os rumores que tensionaram as relações entre as oligarquias agrárias e urbanas. O fim da guerra, em setembro de 1897 (mesmo ano da obra de Belmiro de Almeida), expressa a tentativa do Estado de coibir as ameaças à República. Almeida (2017, p. 94) diz que as articulações políticas sob o governo de Prudente de Morais geraram ainda mais desavenças entre as facções políticas: monarquistas, republicanos, liberais, militares e as lideranças religiosas radicais. Apesar da proposta de reconstrução e de integração, o movimento armado transformou a narrativa dos fatos políticos em imagens do barbarismo cultural. Ao analisar as fotografias documentais de Augusto Flávio de Barros, Almeida explica que a fotografia se torna a narrativa moderna dos conflitos no século XIX. O realismo das imagens tinha como efeito romper com as estórias não muito confiáveis que se multiplicavam e, simultaneamente, entrelaçavam o progresso tecnológico à narrativa ficcional da história. Seria impossível negar que a experiência do luto fazia parte do imaginário republicano.

25O luto movimenta o páthos porque, diante da imagem da morte, o fluxo do tempo é transformado: “o luto coloca o mundo em movimento” (Didi-Huberman, 2017, p. 290). Esse movimento encontraria sua força nas manifestações psíquicas que erigem os nossos afetos, sejam relacionados à revolta contra a perda ou pela insubmissão ao destino. O afeto faz erguer os gestos corporais que expressam as nossas paixões, e esses gestos estariam, ainda segundo Didi-Huberman, inscritos na história, podendo apresentar o ritmo e as correspondências que encontramos nas formas. Seria justamente para este ponto que gostaríamos de chamar a atenção: o luto expresso na pintura de Belmiro de Almeida seria como uma imagem dialética das pessoas mortas ou assassinadas nas incontáveis revoltas, nas tentativas de Golpes de Estado, nas insurgências, nas revoluções, nos movimentos armados e nas guerras que aconteceram no país a partir de 1889 (Fig. 10).

26O páthos do drama, do horror e do sentimento de perda nos conflitos armados ocorridos na Guerra de Canudos, na Primeira República, é relatado nos diários das testemunhas oculares. Almeida (2017, p. 98) cita a descrição do Tenente-coronel Dantas Barreto, comandante da 3º Brigada: “Tinham fisionomia calma, o olhar de quem já não havia coisa alguma no mundo que espantasse […] as grandes misérias da humanidade não podem criar situações mais desoladoras! Todas as torturas do Inferno de Dante estavam ali resumidas”.

27Este páthos estaria presente no sentimento de desencaixe da população negra expulsa do Curral Del Rey (Fig. 11) pela Comissão Construtora da Cidade de Belo Horizonte. A construção da cidade evidenciou a violência do Estado para com a antiga população. Basta lembrar as violentas ações de desapropriações por intermédio de demolições e incêndios de casas, cujos habitantes, por vezes, recusavam-se a abandonar em favor dos projetos do poder público. Inúmeras lendas surgem deste fato, dentre elas, a ideia de que a cidade estaria permeada de fantasmas descontentes com a desapropriação de seus imóveis (Starling, 2002).

28O luto constitui uma iconologia do intervalo porque cria uma dialética psíquica estruturada pela melancolia. Ensina-nos Kristeva (1989, p. 61) que todo luto seria uma forma de transposição, e a sua condição fundamental seria o movimento rítmico das significações. Transportar afetos seria experimentar uma temporalidade descentrada de um passado em movimento: um passado que não passa. Esse passado hipertrofiado fixa no horizonte o momento do acontecimento. Ousamos encontrar na imagem de Belmiro de Almeida o movimento patético de uma república enlutada, que expressaria a ideia de uma continuidade da iconologia do intervalo de uma memória sem futuro.

29À maneira de Benjamin (2011, p. 88), poderíamos perguntar se o ethos do drama histórico da política brasileira também se dissolveria nos acontecimentos dramáticos ou se, pela montagem deste tempo sofrido, poderíamos compreender o infortúnio do processo temporal a partir da imagem. Disso, surge a questão: que tipo de narrativa histórica pode um país representar sob a lógica do páthos? A pergunta pode soar retórica, mas ela aponta para a relação entre a ambiguidade e a complexidade dos fatos históricos no Brasil finissecular e a pintura.

30O imaginário criado pelas mentalidades conservadoras expressaria não somente o luto pelo sentimento de desenraizamento com relação às tradições do passado. Ele também revelaria os violentos confrontos diante de diferentes crenças e perspectivas de futuro que se confrontavam para a construção de um projeto de país. A novidade desconcertante que o desejo de modernização social esboçava colidia com os diferentes ideais de futuro almejado pelos grupos que conflitavam entre si. Como se isso não bastasse, os grupos de orientação republicana atritavam não somente entre si, mas também com as oligarquias rurais, complicando o cenário de disputa pelo poder. Por fim, não podemos nos esquecer dos interesses dos militares que eram, segundo Alonso (2017, p. 28), mobilizados para as conspirações políticas de acordo com os interesses desses setores oligárquicos:

A República herdou um país que mal saíra do regime escravista no qual funcionara por quatro séculos. Era tudo novo, o trabalho livre e o regime republicano […] Grosso modo, agrupavam-se em três posições. Havia os defensores de governo forte, intervencionista na economia e na sociedade, garantidor de direitos sociais aos nacionais e regido pelo mérito da moralidade pública. Essa linha se orientava pela política científica […] na banda contrária, estavam os republicanos de orientação liberal, que queriam garantir a federação, com ampla autonomia dos estados […] a terceira posição era dos restauracionistas, que, exilados em 1989, voltaram, pós-anistia, ao país e à política e ainda julgavam como melhor estado de coisas o anterior: monarquia católica e parlamentarista.

31De acordo Lefort (2007), embora tivesse em mente um período distinto da história brasileira, constatamos uma profunda cisão entre os grupos que defendem diferentes interesses; eles jamais conseguiram se unificar para a construção de um possível projeto político para a República. O Brasil não conseguiu enraizar a democracia porque o projeto desenvolvimentista foi nutrido pelo sistema do capital e pelos valores utilitaristas, impedindo que grande parte da população gozasse do exercício fundamental dos direitos mais básicos para a constituição de uma vida pública republicana e igualitária. Na perspectiva de Lefort (2007, p. 724), a desigualdade e a hierarquia constituíram as bases para a íntima relação entre o espaço social e o capital no Brasil. Se transpusermos essa grade de análise para o final do século XIX, constataremos que o conflito entre as elites termina por alimentar também a lógica da exclusão, alijando do direito de cidadania a grande massa dos miseráveis.

Considerações finais

32Tentamos entender como uma constelação de incidentes entrelaçou a narrativa da história do Brasil pelas experiências humorais, expressando o ethos do medo, da perturbação e do terror. Elegeu-se neste estudo a tela A Má Notícia para apresentar a expressão dialética do projeto político na Primeira República. A alegoria seria responsável por criar o jogo do luto com a própria morte e o que reaparece no movimento do luto seria a experiência imaginária da ausência do futuro. Ela exerceria sobre a política e seus agentes o páthos da imprevisibilidade, colocando-os fortuitamente nas teceduras de acontecimentos históricos, atestando que ninguém estaria protegido do perigo das conspirações políticas, da perda do poder, da morte ou do sofrimento.

33A pintura de Belmiro de Almeida estaria situada exatamente nesse topos intervalar da história e, por isso, inspirados pelos trabalhos de Warburg (2012), entrelaçamos ao longo deste ensaio os movimentos de cruzamento do passado, do presente e do futuro. A narrativa do páthos a partir da abordagem da iconologia do intervalo não teve intento didático ou documental, mas foi um apelo à memória dos sofrimentos da humanidade que são e estarão presentes nas bordas pretas da história. A Má Notícia nada mais seria do que a alegoria da história da dor e do trágico na cultura brasileira. Parafraseando Benjamin (2011, p. 176), a história do Brasil, com tudo aquilo que, desde o início, apresentou-se em si mesma extemporânea, ganhou ainda mais expressão na imagem de um rosto: a República enlutada.