1Na história da literatura, percebe-se, a partir dos anos 1960, uma abertura para outras formas de fazer literário que permitiu que focos periféricos entrassem na discussão literária. Como exemplo de literatura marginal brasileira, enquanto expressão da subalternidade, evidencia-se Carolina Maria de Jesus, que escreveu sobre a fome, os trâmites político-sociais, a herança escravocrata e, especialmente, o descaso governamental para com a "favelização", como moradora da comunidade do Canindé. Hoje, 60 anos depois, consegue-se ter acesso a novas formas de literatura nas plataformas digitais, como no Wattpad, que possibilita a publicação de autores amadores e o acesso gratuito a essas obras, caracterizando assim, uma literatura duplamente marginalizada. Nela, encontram-se escritores como @EuaaMalu, que também descreve a vivência em uma favela, mas, diferentemente de Carolina, sob o viés da relação com o crime organizado, naturalizado entre os personagens.
2Partindo do conceito de "entre-lugar" (Bhabha, 1998; Santiago, 2000), como o movimento de resistência dos grupos subalternos ao poder, evidenciando a heterogeneidade cultural, buscamos compreender a representação das tensões entre centro e norma, margens e periferias em obras contemporâneas, podendo, ainda, observar o contágio do literário pelo social, econômico e étnico.
3Sevcenko (2003) defende a literatura como um ângulo para a avaliação das tensões existentes em uma estrutura social e acredita ser possível conhecer a história de um país lendo sua literatura. Baseando-nos nisso, destacamos a necessidade de ler o que autores silenciados pelo mercado editorial têm a dizer. Por se tratar de uma publicação sem edição, o Wattpad permite que realidades não aceitas em outros meios e formatos sejam apresentadas nas histórias on-line, assim como acontece com as narrativas de fãs e seus discursos tabus.
4É por meio da fala de uma jovem moradora de uma das maiores favelas do Brasil que conseguimos adentrar na realidade cotidiana que a imprensa, majoritariamente, não consegue ou não quer revelar. E é por meio da comparação com o bestseller de Carolina Maria de Jesus que conseguimos visualizar as mudanças ocorridas em 60 anos da percepção dos moradores sobre o que é ser "favelado". Em outros termos, é por intermédio das aproximações entre os dois textos que percebemos as mudanças oriundas da entrada e do domínio do tráfico nos territórios periféricos.
5Para tanto, foi realizada uma leitura comparativa das duas obras tendo como eixos centrais de análise: questões de classe, raça e gênero. É necessário considerar o salto temporal entre as obras e entender como as mudanças sócio-históricas ocorridas durante mais de 60 anos resultaram em narrativas demasiadamente diferentes, mas que carregam, ainda que descritas de formas diversas, as mesmas dores.1
6Ao examinarmos o ambiente digital como um ponto de convergência entre comunicação e literatura, na prática da escrita eletrônica entre pessoas de diferentes estratos sociais, recorremos ao estudo de Homi Bhabha (1998, p. 24) sobre fronteiras para compreender esse novo domínio proporcionado pela internet. Segundo o autor, a fronteira se torna o "lugar onde algo começa a se fazer presente" . Essa cultura "de partes", para Bhabha, é o que une as culturas, enquanto também as impede de existir isoladamente, criando uma fronteira entre elas. O resultado é o "entre-lugar", marcado por sua diversidade. Ele também descreve como o resultado do diálogo entre duas culturas, como o espaço entre o colonizador e o colonizado, ou seja, entre o centro e as margens.
7Esse conceito é a resistência das margens à imposição dos valores do centro, como formulou Silviano Santiago (2000). É uma ruptura com a norma, evidenciando a diversidade cultural. A fronteira demanda o contato com o novo, não apenas revisitando o passado, mas se estabelecendo como um "entre-lugar", desafiando a influência do presente, como formulou Bhabha (1998). O "entre-lugar" está relacionado à forma como os grupos subalternos resistem ao poder, já que, segundo ele, as fronteiras desempenham um papel crucial na relativização do poder e do conhecimento. Essa "estratégia" traz à tona questões sociais e políticas, e as culturas subalternas têm suas próprias narrativas sobre sua história e podem trazer consigo as subjetividades da resistência.
8A transgressão criada a partir de um novo "modelo" de literatura, subvertendo a cultura dominante, representa uma subversão e não apenas uma dependência. "Os entre-lugares proporcionam o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação — individuais ou coletivas — que iniciam novos sinais de identidade e posições inovadoras de reflexão e contestação, ao definir a própria ideia de sociedade" (Bhabha, 1998, p. 20). Com base nessa concepção de "entre-lugar", podemos cautelosamente estabelecer uma analogia entre a literatura em ambiente digital — no presente artigo, o Wattpad — como sendo uma literatura marginal, já que os espaços de fronteira são geralmente habitados por indivíduos à margem da sociedade.
9Posto isso, o Wattpad2 é uma plataforma canadense conhecida por compartilhar uma variedade de literatura original em diversos gêneros, autodenominando-se como "a maior comunidade de histórias do mundo". Atualmente, possui mais de 97 milhões de usuários e se descreve como uma plataforma que utiliza tecnologia inovadora para explorar um vasto mundo de possibilidades literárias. Esse site não apenas altera o suporte da literatura, mas também influencia a maneira como as narrativas são concebidas, escritas e percebidas.
10Ao navegar no Wattpad, encontramos uma quantidade significativa de histórias que possuem como pano de fundo o "morro". Muitas das obras ultrapassam a casa de milhares de leituras e comprovam a ascensão da temática. Esse sucesso pode ser atribuído ao desejo de jovens por consumirem uma literatura na qual eles se veem representados, estabelecendo laços com outros que buscam a mesma representatividade nos produtos culturais.
- 3 Também chamada de mandonismo, de alguém que tem poder sobre os demais.
11Dentre as narrativas que ocupavam os primeiros postos, Complexo do Alemão (2024) foi a que mais nos chamou atenção pelo motivo de a autora ter admitido, nas interações com os leitores, que era moradora do Complexo3 e, além disso, os protagonistas do livro são favelados. Mais especificamente, no momento da finalização da coleta de dados, a narrativa, que conta o romance entre Anny, filha do gerente do tráfico, e Zaion, o herdeiro do morro, contava com 38,2 mil leituras e ocupava o primeiro lugar na tag "Amizade", 8° em "Conflito" e 16° em "Amor proibido".
12"Hey Malu", como a autora preenche o campo destinado ao nome, ou, optando por seguir o funcionamento do Wattpad e aderir uma marca de autoria, "@EuaaMalu", juntou-se à plataforma em dezembro de 2022 e tem, em 2024, sete obras publicadas e 7,4 mil seguidores, sendo seis de suas obras ambientadas em favelas. No dia 6 de março de 2024, ainda durante o processo de pesquisa, @EuaaMalu alterou o "sobre" em seu perfil para a seguinte mensagem: "Goodbye dear reader...this profile is Dead :/... The End". Por meio desta mensagem, a autora anunciou que estava parando de escrever e, consequentemente, deixou algumas histórias em "pausa", ou seja, incompletas, dentre elas a escolhida para a análise, Complexo do Alemão. A autora também publicou uma nova história, "Fim", com apenas um capítulo, no qual ela agradece a todos os leitores e conta como se sentiu realizada durante a sua trajetória na plataforma, mas que precisou parar por motivos pessoais.
13Como grande parte das usuárias do Wattpad, @EuaaMalu utiliza-se de um perfil fake para publicar suas narrativas, o que dificulta a identificação e o contato com a autora, ainda assim, houve a tentativa de uma entrevista para conseguir informações sobre raça, idade e escolaridade, mas não obtivemos resposta. Entretanto, como a história escolhida já tinha 29 capítulos e um rico material para análise, mantivemos a escolha de corpus e optamos por trazer mais essa característica da literatura nativa digital: a possibilidade de pausar ou simplesmente abandonar uma história ainda em construção, ainda que ela ostente números grandiosos de audiência.
14Uma autora considerada demasiadamente relevante na literatura brasileira contemporânea é Carolina Maria de Jesus, que, em vida, escreveu textos de cunho social, evidenciando, por meio de uma linguagem coloquial e, até certo ponto, "marginal" e poética, a sobrevivência e a vulnerabilidade de uma mulher negra, catadora de lixo, mãe de três filhos e moradora da favela do Canindé. A comunidade, onde se situava o quarto de despejo de Carolina, em São Paulo, existiu durante treze anos, entre 1948 e 1961, quando foi desocupada e extinta para dar lugar à construção da Marginal Tietê, já que o terreno era público e concedido pela Prefeitura Municipal de São Paulo.
15Em Quarto de Despejo (1963), ela partiu da premissa de que a fome, os trâmites político-sociais, a herança escravocrata e, especialmente, o descaso governamental para com a "favelização" deveriam ser denunciados à sociedade por meio da sua escrita. E, no que se refere às premiações, foi homenageada pela Academia Paulista de Letras e Academia de Letras da Faculdade de São Paulo, somado ao título argentino e honorífico da Orden Caballero del Tornillo. Ainda assim, Carolina é considerada como pertencente à literatura marginal.
16Ao observarmos a obra Quarto de Despejo, compreendemos que Carolina, considerada uma escritora de grande prestígio e que se diferencia por ter morado na favela do Canindé e contado aos leitores sobre a sua própria realidade, escreve para pessoas que têm interesse em narrativas minoritárias e subalternas. Nas palavras da autora: "É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la" (De Jesus, 1963, p. 34). Isto é, os sujeitos são atraídos pela sua história pelo motivo de ela ter "local de fala", enquanto mulher negra e moradora da favela que luta diariamente contra a fome, a violência e a miséria.
17Na narrativa contada por ela, percebemos que não há uma diversidade de gírias, e compreendemos que existe também uma tentativa da autora de manter a história da forma mais verossímil possível. Isso significa que ela apresenta, por meio do seu livro, a sua vida cotidiana, buscando escrever todos, ou quase todos, os dias como foi a sua rotina, por mais repetitiva que fosse, enfatizando o desgaste mental e físico de um cotidiano marcado pela pobreza, e denuncia à sociedade a vivência árdua pela qual passava, tornando a autora uma testemunha do que acontecia no Canindé nos anos 1950.
18Diferentemente de outros escritores que retratam o cotidiano da favela por meio da literatura, Quarto de Despejo (1963) corresponde a um diário de uma moradora de comunidade que foi transformado em livro, tornando Carolina uma escritora renomada no sistema literário brasileiro. É considerada por muitos como uma "escritora favelada de sucesso", e isso é justificado pela publicação da obra, com mais de 1 milhão de cópias, denunciando uma recepção do público marcada pela curiosidade de conhecer a miséria pelos olhos de quem sobrevive a ela diariamente.
19Ao nos debruçarmos sobre as duas narrativas, de Carolina e @EuaaMalu, encontramos pontos de semelhança e afastamento nos textos que, ao serem analisados, possibilitam uma elaboração do sentido de ser "favelado" presente em cada obra, considerando o salto temporal de aproximadamente 60 anos e as mudanças socioeconômicas ocorridas na favela. Tal sustentação narrativa e literária, bem como a produção de sentido, vai ao encontro de três pilares: classe, raça e gênero.
20Como eixos de política e poder, atrelados à classe, observamos determinados trechos na obra que representam os trâmites político-sociais, como, nas palavras de Carolina: "[...] as favelas não formam carater (sic). A favela é o quarto do despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo" (De Jesus, 1963, p. 100). Tal negligência vai ao encontro do mandato de Adhemar de Barros, prefeito da cidade de São Paulo na década de 1940 e, posteriormente, à presidência de Juscelino Kubitschek, que, por meio do Plano de Metas, visava ao desenvolvimento acelerado do Brasil, com o slogan "50 anos em 5", que favorecia os ricos e prejudicava os pobres. "[...] Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram (sic) os corvos" (De Jesus, 1963, pp. 55-56).
21Essa árdua realidade de viver à margem do cânone literário e da sociedade pode ser observada nos argumentos de Pierre Clastres (2017). Para ele, as sociedades primitivas, aquelas que vieram primeiro, são vistas como se fossem "ultrapassadas", "atrasadas" e "incompletas", já que não servem ao Estado, não têm escrita, história e economia. "As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade, simula uma opinião, um juízo de valor" (Clastres, 2017, capítulo 11, não paginado). Isso quer dizer que essas sociedades supostamente não teriam uma organização de mando com relações de poder determinadas no interior dessas sociedades. No entanto, é uma mera constatação e um juízo de valor.
22Seguindo essa lógica, a coletividade humana negligenciada pelas autoridades na obra de Carolina são os favelados, isto é, um agrupamento minoritário inserido em uma sociedade com Estado, porém este está parcialmente dando assistência. "[...] Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido" (De Jesus, 1963, p. 42). A partir disso, ocorre o surgimento de outros sujeitos e/ou instituições que ajudam essas minorias, exercendo um papel público, como, no livro, igrejas e indivíduos específicos vindos de lugares privilegiados de São Paulo, como a cidade, e pertencentes a classes sociais superiores.
23Ousamos dizer que Carolina, como pertence à coletividade dos favelados, pode ser associada ao texto de Clastres (2017) no que se refere às sociedades primitivas. Isso porque a própria autora cita que vive no "primitivismo", já que usa lenha para esquentar os alimentos e a miséria não a deixa utilizar artefatos elétricos e/ou de alto custo para a sua sobrevivência e subsistência. "[...] O senhor Dario ficou horrorizado com a primitividade em que eu vivo. Ele olhava tudo com assombro. Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada" (De Jesus, 1963, p. 137).
24No entanto, Clastres (2017) aborda o fato de os grupos primitivos não terem uma inferioridade técnica em relação às demais sociedades. Neste quesito, os favelados sobrevivem da sua própria maneira, portando um modo de vida próprio e singular. Logo, não se pode dizer que outras coletividades humanas são mais desenvolvidas e que os favelados, por serem, de alguma maneira, menos "privilegiados" pelo Estado e portarem menos instrumentos técnicos, são "atrasados". Posto isso, é essencial ressaltar pontos fortes e positivos que podem caracterizá-los, como a luta dessa população e os movimentos que exaltam o modo de viver dessa coletividade específica. Para além disso, é importante olhar para tal agrupamento social pelo modo como se sentem e vivem em conjunto, como Carolina tentou ao escrever no próprio diário, e não por "lentes" externas.
25Nesse ponto, Quarto de Despejo pode ser representado, quando a autora expõe: "[...] Depois fui catar lenha. Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade" (De Jesus, 1963, p. 78). Isto é, com uma dose de poesia, e também de ironia, Carolina faz um desabafo sobre o fato de a sociedade capitalista "sugar" a sua força de trabalho, impossibilitando-a de ser feliz. Em paralelo, também diz: "[...] Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoando de viver. Tambem (sic), com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?" (p. 116). Novamente, por meio de uma tática de repetições enfáticas, refere-se à vida demasiadamente difícil do trabalhador pertencente a uma lógica capitalista progressista.
[...] Hoje tem muito papel no lixo. Tem tantos catadores de papeis nas ruas. Tem os que catam e deitam-se embriagados. Conversei com um catador de papel [...]
- Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido. Eu quero morrer! (De Jesus, 1963, p. 169).
26Na frase "o nosso mundo é à margem", é possível inferir duas questões: 1) à margem da sociedade predominantemente material; 2) e à margem do cânone literário, no caso de Carolina. Em ambas as proposições, ocorre o silenciamento do favelado, ou melhor, dos sujeitos em vulnerabilidade social que são enterrados sob a palavra de ordem da "diferença" e sob o silêncio. "[...] Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhavel (sic) escrever a realidade" (De Jesus, 1963, p. 100). Isso porque a realidade dos favelados, ao ser expressa por meio escrito, pode ser considerada um "tabu da linguagem", termo criado por Michel Foucault (1996). Entretanto, quando se trata do Wattpad e da literatura nativa digital, esses tabus não existem, pelo menos não da forma como aparecem em Quarto de Despejo.
- 4 Diversas palavras e expressões foram mantidas da forma como Carolina e @EuaaMalu escreveram em suas (...)
27Embora a pobreza e a fome façam historicamente parte das favelas e seja um dos personagens de Carolina, ela é ignorada na obra Complexo do Alemão (2024). Na narrativa, os personagens têm fácil acesso à comida e bebida, como, por exemplo, em um trecho do capítulo quatro no qual Anny afirma: "O picolé desse moço é barato e é muito bom" (@EuaaMalu, 2024, on-line). Entretanto, o ponto que realmente chama atenção é a descrição que a protagonista faz da casa de Zaion, o filho do Dono do Moro, no capítulo doze: "É linda. É verde, tem palmeiras e até um (sic) piscina!" (@EuaaMalu, 2024, on-line). Em um primeiro momento, a descrição de uma mansão luxuosa no centro de uma favela pode parecer estranha e fantasiosa, todavia, essa é a realidade vivenciada por aqueles que compõem o crime organizado4.
28O luxo também aparece nos primeiros capítulos, quando os amigos saem para aproveitar o dia em uma lancha alugada. Sendo assim, a favela apresentada por @EuaaMalu não é lugar de miséria e/ou fome, mas local de ostentação. Em Quarto de Despejo, são as pessoas com um maior poder aquisitivo, podendo residir na favela ou não, que fornecem ajuda a Carolina, já que ela passa por dificuldades financeiras, denunciando uma diferença de classe, que pode ser simbolizada e sintetizada como a segregação entre pobres e ricos. "Percebi que entre os ricos há sempre uma divergência por questões de dinheiro. Não posso esclarecer estas questões porque sou pobre como rato" (De Jesus, 1963, p. 114). Essa segregação ainda pode ser observada em Complexo do Alemão, porém entre os membros do crime organizado e os demais moradores das favelas. Todo o poder aquisitivo e facilidade relatada está diretamente relacionada ao pertencimento ao crime organizado — representado por Anny, protagonista e filha do "sub" do Morro, e Zaion, par romântico de Anny e filho do "Dono do Morro".
29Até o final do século XIX, as favelas eram vistas como um problema social — estético e de saúde pública — que ia contra a visão de uma cidade limpa e incentivava iniciativas para eliminar essas áreas. Algumas foram implementadas nas décadas de 1940 e, posteriormente, de forma mais intensa, entre 1965 e 1975, quando o governo removeu cerca de 60 favelas e realocou mais de cem mil pessoas nas periferias do Rio de Janeiro (Burgos, 1998). É nessa época que Carolina vivencia a vida na favela. Em outras palavras, inicialmente os favelados representavam um perigo à cidade por serem pobres e/ou desempregados.
30Em 1950, quando cresceu a venda de maconha (Dowdney, 2004), os envolvidos, geralmente, eram moradores do local e só possuíam armas para se protegerem, sendo, quase sempre, revólveres. Foi a partir da década de 1980, com a chegada da cocaína colombiana, que o tráfico se internacionalizou e passou a gerar fluxos financeiros vultosos — o que ocasionou disputas pelos pontos de venda a varejo. A crescente ação policial — cada vez mais repressiva e violenta devido à Ditadura Militar — contribuiu para a criação das facções e a utilização de armamento militar. Assim, ocorreu uma reestruturação do sistema, e a violência é inserida como instrumento de dominação pelos traficantes. Nesse sentido, os moradores das comunidades passam a ser identificados como uma classe perigosa e as favelas se tornam territórios de violência.
31A percepção da favela como um local associado à violência começou a ser usada para justificar e legitimar a separação da cidade em "morro e asfalto". As reivindicações dos moradores das comunidades por acesso à cidadania deixaram de ser conflito de classes, como relata Carolina em sua obra, para serem vistas como questões de segurança pública, justificando a "guerra ao tráfico" como uma manobra necessária para combater os favelados violentos. Realidade essa que não aparece em Complexo do Alemão, uma vez que, embora os protagonistas tenham relação direta com o tráfico de drogas, a atividade não é vista como ilegal, mas natural. Para exemplificar, no capítulo nove, a protagonista questiona o pai, gerente do tráfico, ao dizer: "Vai trabalhar?". E, logo em seguida, complementa: "Bom trabalho" (@EuaaMalu, 2024, on-line). No capítulo onze, Zaion explica a ausência do pai de Anny: "Deu B.O no Morro e ele e meu pai foram resolver".
32Não há, em momentos da obra, a palavra "tráfico" ou qualquer insinuação de condenação ou estranhamento pelas atividades claramente exercidas pelo "Dono do Morro" e pelo "Sub". Contudo, a hierarquização e o poder exercidos pelos dois aparecem diversas vezes. No capítulo dez, o MC pede que o amigo, e "sub" do Morro, seja mais compreensivo com a filha: "Qual é, deixa a garota se divertir, tu sabe que ninguém vai fazer nada com ela, tu é o sub do Morro, porra, ninguém é maluco nesse nível" (@EuaaMalu, 2024, on-line). Então, o medo e o respeito são construtores dos personagens, embora sejam amáveis e gentis com os filhos.
33Uma das características das webnovelas, é a possibilidade de montar um "elenco" apresentando os personagens, ou seja, um capítulo, geralmente o primeiro, no qual a autora atribui rostos aos personagens por meio de fotos ou desenhos. @EuaaMalu opta por esta prática. O primeiro ponto a ser destacado é a grande representatividade negra na obra. Todos os personagens masculinos e a maioria dos femininos são negros, assim como os dois protagonistas. Segundo a pesquisa Indicadores de Cidadania do Complexo do Alemão (2020), realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em parceria com o Instituto Raízes em Movimento, uma organização não-governamental com atuação no Complexo do Alemão, 74% da população do Complexo se declara negra, contra 47% da cidade do Rio de Janeiro. O que enfatiza a concentração da população negra em territórios de favela, um sintoma do processo de urbanização racista. O estudo também mostra que 60% dos jovens entre 15 e 29 anos, moradores das favelas que compõem o Complexo do Alemão, já sofreram discriminação em virtude da sua raça/cor, condição financeira, religião e/ou gênero.
- 5 O Complexo do Alemão é um bairro que abriga um dos maiores conjuntos de favelas do município do Rio (...)
34Por isso, além de classe, a raça é um outro pilar que pode ser observado em Quarto de Despejo (1963), especialmente em determinados trechos da obra que simbolizam e sintetizam o racismo deliberado. "Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: 'É uma pena você ser preta'" (De Jesus, 1963, p. 63). Além disso, Carolina expõe em seu livro diversos outros diálogos como esse que remetem ao que Muniz Sodré (2023) chamou de forma social escravista, ou seja, ao poder senhorial, ou à "senhorialidade5", que continuou sendo exercida no Brasil como uma herança de mando e privilégio. Para ele, associa-se à figura do "coronel" nordestino que foi continuada ao longo do tempo em território brasileiro como um traço marcado no imaginário de um aspecto da forma social escravista. Portanto, a senhorialidade é a expressão da desigualdade racial e social, que perpassa e vai além da estrutura escravista. "Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibate?" (De Jesus, 1963, p. 101). Assim, na baixa cultura republicana brasileira e no capitalismo dependente, a igualdade do negro é proclamada, mas sem reconhecê-lo como sujeito de voz própria com as próprias singularidades e potências.
35Para Sodré (2023), a escravidão se diferencia de racismo, já que um está atrelado às instâncias jurídicas, políticas e econômicas e o outro a uma forma social escravista que pode, eventualmente, revelar-se estruturante, mas perpassa a estrutura e persiste na hierarquização escravista. Isto é, a escravidão chegou ao fim com a Lei Áurea, mas emergiu fortemente o vínculo da senhorialidade e do racismo pós-abolicionista. Mais precisamente, o conceito de forma social escravista não é a sociedade, mas uma imagem atuante da sociedade. Em outras palavras, a forma é o modo como as classes dirigentes querem ser reconhecidas e também o próprio país, que o autor cita sociologicamente como "reflexividade social", sendo o modo como a sociedade quer ser representada. "As práticas desse processo contribuem para a reprodução da lógica de subalternidade dos descendentes de africanos (...) porém não mais constituem uma estrutura econômica, política e jurídica, a exemplo de uma sociedade plena e formalmente escravista" (Sodré, 2023, p. 49). E essa forma está intimamente ligada, também, ao capital, fazendo classe e raça não serem eixos diametralmente opostos.
36Já para hooks (2019), a questão imagética atinge os negros devido às representações negativas do que é ser negro em uma sociedade patriarcal, capitalista e supremacista branca. Assim, as imagens consumidas na mídia de massa contemporânea continuam abordando as mesmas representações prejudiciais com relação à negritude. "Embora muitas pessoas negras tenham se tornado produtoras, diretoras e roteiristas, muito do que elas produzem segue os mesmos padrões da cultura dominante imperialista supremacista branca capitalista patriarcal" (hooks, 2019, p. 26). Nesse sentido, a autora pontua que houve poucas revoluções e mudanças progressistas relacionadas às questões de raça e representação, além de um aumento na quantidade de imagens odiosas, sendo necessário que as/os negras/os se autoquestionem e reflitam sobre o sistema dominante supremacista branco, concomitantemente ao movimento de se enxergarem de maneiras diferentes e descolonizadas.
É muito provável que vejamos imagens de pessoas negras que reforçam e reinstitui a supremacia branca. Essas imagens podem ser construídas por pessoas brancas que não se despiram do racismo, ou por pessoas não brancas ou negras que veem o mundo pelas lentes da supremacia branca - o racismo internalizado (hooks, 2019, p. 32).
37Tal questão pode ser encontrada em Quarto de Despejo (1963), quando Carolina, enquanto mulher negra, ao ser questionada se as crianças que estavam à sua frente eram seus filhos, reflete: "Meu, era apenas dois. Mas como todas eram da mesma cor, afirmei que sim" (De Jesus, 1963, p. 29). Ela, assim como diversas outras mulheres negras, no que se refere, ao mesmo tempo, à raça e ao gênero, em alguns momentos intensificam o apagamento da cultura negra e reforçam o racismo na sociedade. Isso se dá por conta de um desconhecimento por parte delas e/ou por não adotarem uma postura antirracista, ou seja, não lutarem contra o preconceito, ao considerar todos os/as negros/as como "iguais" e ignorar as subjetividades do indivíduo.
38Ao longo da narrativa de @EuaaMalu, há apenas uma citação direta ao racismo: Anny, a protagonista negra, conta sobre o motivo de ter se afastado do Zaion, seu interesse romântico, durante a infância. A relação se estremeceu quando um terceiro amigo inventou que Zaion teria comentado sobre o excesso de peso de Anny e afirmado que seu cabelo "parece bombril" (@EuaaMalu, 2024, on-line). O cabelo crespo e/ou cacheado é percebido, em nossa cultura, como impuro, em direta oposição ao cabelo liso, dito puro. O ritual de alisamento dos fios é apresentado às mulheres negras ainda na infância e, muitas vezes, até mesmo contra sua vontade. Anny utiliza o cabelo natural na narrativa, um ritual de naturalização do cabelo, não remetendo a uma negação da sua etnia.
39Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.
40[...] Um dia, um branco disse-me:
41- Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto reconhece a sua origem (De Jesus, 1963, p. 63).
42De modo paradoxal e antitético, pode-se observar no trecho acima que Carolina, ao mesmo tempo em que ignora as subjetividades, reforça a negritude e o orgulho de ser negra. Isso pode ser justificado em diversos outros momentos, quando denuncia a supremacia branca, o patriarcado e o capitalismo, como: "Os moços foram embora e disse que iam jogar os sanduíches no lixo que gente da favela são estupidos e quadrupedes que estão precisando de ferraduras. [...] O mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações" (De Jesus, 1963, pp. 68-69). Em outros termos, coloca-se em uma posição à margem, que, em momentos específicos, exclui-a da entropia urbana e da desordem à qual é apresentada por ela em seu livro.
43Para hooks (2019), muitas mulheres oprimidas e exploradas podem, em algum momento, direcionar contra elas mesmas internamente, ou externamente contra outros, uma raiva em forma de violência avassaladora. "Entre as mulheres negras, essa dor internalizada tão profunda e a autorrejeição estimulam a agressividade direcionada à imagem no espelho — outra mulher negra" (p. 97). Por isso, é preciso descolonizar as mentes e adquirir uma identidade radical progressista pautada no "amor à negritude", para que as mulheres se olhem nos olhos e se cumprimentem com solidariedade e irmandade. Além do mais, é preciso internalizar que não existe uma "experiência oficial das mulheres negras "que" pareçam ser o telos da totalidade", ou seja, as mulheres negras não podem se sentir ligadas às outras somente por narrativas de dor e vitimização, mas devem falar de uma identidade elaborada por meio de uma história diversificada, já que há uma heterogeneidade de experiências.
44Nesse sentido, Carolina não é defensora das mulheres, já que argumenta que, no Canindé, as mulheres são agressivas e histéricas, e os homens são mais passivos. Nesse quesito, a violência se torna um elemento demasiadamente presente, e o corpo das mulheres, brancas e negras, é "apreciado", como um fascínio por cenas pornográficas. "A Meiry é temida porque anda com gilete. E ela foi bater na Nair e apanhou. A Nair rasgou-lhe as roupas, deixando-lhe nua. Que gargalhada sonora! Que espetaculo apreciadissimo (sic) para o favelado que aprecia profundamente tudo que é pornografico!" (De Jesus, 1963, p. 70). Paralelamente, essa questão do corpo, isto é, essas fantasias sexuais e o anseio contemporâneo pelo "primitivo" e pela selvageria, unem os sujeitos à dominação racista e perpetuam o racismo, ao contrário do que muitos pensam sobre esse aspecto ser considerado uma mudança progressista. "Na cultura de massa, a nostalgia imperialista toma forma na reencenação e na rerritualização, de diferentes modos, das jornadas imperialistas e colonizadoras como fantasias narrativas de poder e desejo, de sedução pelo Outro" (hooks, 2019, p. 69).
45O dito "pornográfico" também aparece em Complexo do Alemão (2024), seja por meio do funk e das suas danças ou do corpo sempre como objeto de desejo e orgulho. A autoestima feminina e o culto ao corpo são exaltados em todos os momentos do texto, seja quando a protagonista se queixa das mentiras que foram ditas durante a sua infância sobre o excesso de peso ou, no presente, quando ela e as amigas destacam o padrão estético exibido por elas, "Somos gostosas!" (@EuaaMalu, 2024, on-line). As roupas também são sempre escolhidas para exibir o quão "gostosas" as meninas são. O corpo está sempre à vista e invoca um olhar de diferença. "Ao corpo é dado uma lógica própria. Acredita-se que, ao olhar para ele, podem se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas" (Oyewùmí, 2021, p. 28).
46Em Complexo do Alemão, o grande culto ao corpo e a afirmação do quão desejável a protagonista é acaba gerando uma discussão com o seu interesse amoroso, Zaion, no qual o filho do Dono do Morro se mostra preocupado e enciumado com o fato de a jovem estar bêbada no baile, retratado no capítulo treze. A jovem, em resposta, destaca que não há perigo de assédio ou estupro na comunidade: "Se alguém fizesse algo comigo já estaria morto, você sabe que no Morro é totalmente proibido esse tipo de coisa" (@EuaaMalu, 2024, on-line).
47Conclusão
48Ser favelado, segundo os argumentos de Carolina em Quarto de Despejo (1963), é andar sempre sujo, como um "projeto de gente humana", fazendo emergir a reflexão sobre o morador da favela ser ou não "gente". Para ela, ser favelado é estar na sucursal do Inferno, ou no próprio Inferno, porque sabe o que é a fome. "É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la" (p. 34). E, também, é se reconhecer como tal, isto é, como os corvos e infelizes, e, de forma poética, ter um coração roxo, simbolizada como a cor da amargura que envolve os corações de quem vive no Canindé. É, ainda, ser sepultado como um "Zé qualquer", ou melhor, um marginal que, após a morte, é enterrado sem ter nome.
49Carolina acrescenta que, como todos os favelados são considerados marginais e estúpidos aos olhos de quem vive na cidade, ser marginal é comer pão duro e ter a vida negra, já que negro é tudo o que o rodeia. E que, por isso, só é feliz quando reside em "castelos imaginários", pois, fora deles, a vida é corrompida pela miséria, pela necessidade de pedir esmolas e aceitar que não tem qualidades.
50Já para @EuaaMalu, ser favelado é naturalizar o crime organizado, enxergar o tráfico como um trabalho como outro qualquer e usufruir dos benefícios que ele oferece: casas luxuosas, acesso ilimitado à bebida e comida e proteção dentro da comunidade. O favelado de 2024 não é mais amargo, mas alegre e orgulhoso de tudo aquilo que vem da favela, da comida e das músicas. Ser favelado, hoje, é ceder à hierarquia que o crime organizado construiu nas brechas fundadas pelo esquecimento proposital do Estado em relação à população às margens da cidade. É fundamentar a dualidade entre "morro" e "asfalto", criando e normalizando as engrenagens da favela, para que assim ela consiga uma existência independente da cidade que a despreza.
51No quesito "corpo", ser favelado, aos olhos de Carolina, é apreciar profundamente tudo o que é pornográfico, como as mulheres peladas durante as brigas na vizinhança. A escritora também percebe que ser morador da favela é ser temido. "Quando alguém nos insulta é só falar que é da favela e pronto" (De Jesus, 1963, p. 79). O corpo se mantém como um discurso de liberdade para os favelados do Complexo do Alemão. As roupas curtas e justas e o funk evidenciam a importância que o corpo, principalmente o feminino, mantém diante da cultura das margens.
52A violência foi instaurada na medida que o crime organizado se consolidou nas favelas. Como um reflexo dos atos da Ditadura Militar, as facções passaram a ter acesso a cada vez mais poder bélico e, como consequência, forjaram as relações sociais e econômicas das comunidades por meio da violência. E o racismo mantém o morador da favela como alguém a ser temido. Ainda que essa naturalização do crime possa ter mais a ver com a necessidade de se adaptar ao ambiente no qual se sobrevive, há, sem dúvidas, uma forma de resistir ao lugar de excluídos que o Estado tenta destinar aos favelados.
53Se Carolina Maria de Jesus usou as páginas do seu diário para denunciar o descuido do Estado em relação aos favelados do Canindé, @EuaaMalu utilizou-se das páginas do Wattpad para mostrar que, mesmo depois de tudo que eles mesmos sofreram, ainda há alegria e orgulho em ser morador de uma comunidade. Hoje, com os jornais denunciando toda a violência que esses moradores sofrem, a função da literatura marginal é escancarar que a favela, apesar do crime organizado, também é lugar de romance e vivências comuns a todos os adolescentes. E, principalmente, que o Complexo do Alemão é berço de jovens que sonham em se tornarem escritoras e iniciam esse caminho na literatura on-line escrevendo sobre aquilo que elas conhecem: a realidade da favela.
Flux RSS
