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Dossiê "Mundos especulativos: Narrativas etnográficas para além do julgamento"
Ensaios

E o Rio tem Memória? Quatro Ensaios/Diários de Campo sobre a Região do Médio Solimões

Does the River have a Memory? Four Field Essays/Diaries on the Médio Solimões region
Carlos Henrique Rezende Falci
p. 31-43

Resumos

Este ensaio agrupa quatro textos sobre a memória dos rios na região do Médio Rio Solimões. Cada um deles aborda um dos momentos em que estive em Tefé - ou nas comunidades ribeirinhas da Floresta Nacional de Tefé ou na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. As visitas a essas comunidades fazem parte do meu projeto de pós-doutorado cujo nome é "E o rio tem memória? Narrativas das comunidades ribeirinhas sobre os rios Tefé e Japurá, na região do Médio Rio Solimões". Os textos foram escritos em situações distintas e relatam aspectos singulares das águas, relacionados aos seus modos de manifestação. O primeiro narra minha aproximação inicial do Lago e do rio Tefé; o último trata do rio que se esconde na seca. Em cada um, procurei destacar elementos de memória, construindo uma espécie de poética das águas

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Notas da redacção

Recebido: 11/2023
Aceite: 5/2024

Texto integral

“Uma questão”

1E o rio tem memória? Essa pergunta me foi feita por um morador da região de Tefé, logo na primeira vez em que estive na cidade, e acompanhei a chegada de um barco vindo de Manaus, atracado no porto. De seu interior saiam pessoas, malas, carros, cargas, uma variedade de coisas e vidas para dentro do Amazonas.

2Parado na praia, o rapaz me abordou, perguntou se eu precisava de carregador. Agradeci e disse que não, que já estava hospedado no hotel. Ele me perguntou o que eu fazia ali. Me agachei na beira do lago de Tefé, e falei: “vim conversar com as pessoas daqui sobre as memórias dos rios.” Ele me olhou e perguntou: “E o rio tem memória?” De imediato, devolvi a pergunta para ele: “Não sei, você acha que tem?” Ele se agachou, pegou uma pedra, jogou no leito do lago e falou: “É fluido, né? Está sempre indo e voltando, muda muito. Acho que tem memória, mas não sei bem…” Ficamos os dois, lado a lado, em pé, olhando o lago por onde passa o rio Tefé.

Foto 01: Tefé, acervo do autor, novembro de 2022.

3Não sei se essa pergunta tem resposta. Mas concordo com a fala do rapaz: acho que tem memória, mas não sei bem… Isso porque talvez não seja uma memória como a nossa, como o que chamamos de memória, que já é muito fluida.

4No seu movimento, o rio faz algumas coisas que se parecem com memória. Não essa de lembrar de algo, de buscar algo na mente. Mas talvez uma de repetir caminhos, quando enche e busca as áreas mais baixas para ir se avizinhando da floresta, se misturando com as árvores. Ou quando sobe as mesmas encostas das comunidades, às vezes com mais vontade, às vezes mais devagar, e reencontra as casas de palafitas que já conhece.

5A primeira imagem (ver foto 01) é de novembro de 2022; a segunda (ver foto 02), tirada quase do mesmo ponto, é de março de 2023. Esse é o porto de Tefé, na beira do Lago Tefé.

Foto 02: Tefé, acervo do autor, março de 2023.

6Quando as chuvas caem nos lagos, o rio refaz conexões muito antigas e muito recentes, porque elas se desfizeram não faz muito tempo, coisa de meses atrás, no período da seca. Mas eis que o rio escoa lento por caminhos que pareciam esquecidos, e retoma conversas ancestrais entre as águas que habitam a Amazônia.

Foto 03: Paraná do Mamirauá, acervo do autor,novembro de 2022.

7O rio deixa marcas nas árvores da várzea, como que para nos dizer onde esteve na última cheia e talvez onde venha estar de novo, quando voltar a ficar sem margem. Podemos medir com réguas a altura das águas, mas o rio parece nos dizer que há outras medidas, abrindo caminhos que as pessoas sabem ver no período da seca. Os ribeirinhos veem uma praia e dizem: “ano passado ela não estava aqui. E vai sumir daqui a pouco, quando o rio encher mais”.

Foto 04: Paraná do Mamirauá, acervo do autor, março de 2023.

8“O rio é vivo”, uma moradora me disse. "Foi isso que ele me ensinou esses anos todos." Se é vivo, é porque tem identidade, se faz reconhecer na sua mudança constante. Quando marcamos o aumento do volume de águas a montante, e calculamos quanto tempo esse volume irá demorar para chegar numa comunidade mais abaixo no rio, estamos conversando com o movimento dessas águas, buscando entender seus gestos.

9A foto acima (ver foto 03) é de novembro de 2022; a seguinte (ver foto 04), com o paraná cheio, é de março de 2023. As duas feitas no paraná do Mamirauá, na RDS Mamirauá.

“Da experiência da chuva”

10Enquanto leio a tese de Jaqueline Gomes (2022) sobre os lugares-tempos no Lago Amanã, não paro de pensar na experiência que vivi há uma semana e poucos dias (em maio de 2023), na comunidade de Boca do Mamirauá. No meio de uma entrevista que uma colega realizava, com uma parteira da comunidade, irrompeu um temporal que eu chamaria de amazônico, mas que talvez não tenha nome aqui (estava na Amazônia quando redigi esse texto), porque faz parte do comum da vida nessas paragens. Fiz algumas imagens e vídeos daquele momento, não só porque era a primeira vez que via uma tempestade no meio da tarde, junto às águas da região da reserva Mamirauá, mas porque o modo como a chuva preencheu minha visão produziu um efeito muito impressionante em todo o meu corpo.

Foto 05: Boca do Mamirauá, acervo do autor, maio de 2023.

11O primeiro aspecto que me tocou foi a força da chuva, medida pelo som que fazia ao bater no telhado de zinco da casa em que estávamos. E aqui posso dizer da potência da chuva, mas talvez seja melhor falar da relação entre ela e os telhados de zinco de tantas casas da comunidade, que ressoam fortemente, ampliando em muitos decibéis e outros volumes o que as águas do céu produzem. Não era possível saber do barulho da chuva lá fora, a não ser indo para o meio do temporal, o que exigiria já estar numa canoa assim que descesse os três degraus do local em que eu estava. Afinal, essa é uma época em que os paranás e rios estão cheios, e as águas chegam até à beira do assoalho das casas sobre palafitas. O som da chuva então é parcialmente produzido pela presença das construções humanas em meio às águas.

Foto 06: Boca do Mamirauá, acervo do autor, maio de 2023.

12Um segundo aspecto se deu pela formação de uma cortina de água em contraste com um sol que continuava a se fazer presente, ainda que de um local mais distante do que aquele das nuvens. Olhar a chuva significava apontar os olhos na contraluz, pois o sol estava de frente para as grandes janelas onde eu fiquei, parado, vendo o tempo. E foi justamente essa contraluz que me trouxe a sensação de que a água do rio ganhava uma concretude, um aspecto sólido, ainda que milhares de gotas agitassem aquela superfície. Na câmera, entretanto, dois tempos colidiam: um, configurado pelo temporal que não cessava nem arrefecia, numa consistência aparentemente infinita; e outro tempo, aquele da água paralisada, se transformando em algo solidificado, como um rio congelado no meio do verão amazônico, resultado da leitura feita pela câmera do encontro da luz solar com a tempestade volumosa.

13Na primeira foto (ver foto 05), no canto esquerdo, o vulto de uma pessoa (que eu sei ser uma criança) parece se preparar para pular, se olharmos para o movimento dos braços. Em função da granulação que as gotas fazem na imagem, essa pessoa se situa entre uma aparição e uma paralisia, ela também congelada no instante do encontro.

14Nessa segunda foto (ver foto 06), o encontro de luzes, sombras e águas transforma a foto num P&B improvável, destacando vários fios de uma malhadeira pendurada em uma espécie de varal de madeira. A cor dos fios parece tornar ainda mais irreal o tempo fotográfico: é como houvesse uma distância incomensurável entre o colorido próximo e o temporal que cai logo adiante, e que também inunda o tecido colorido.

“Como se faz o tempo de um rio?”

15Numa quinta feira, no final da tarde, fui até o centro de Tefé comprar algumas coisas e depois caminhei até o Mirante das Mangueiras. Nunca havia ido até ali no pôr do sol. Não é um local muito alto, fica somente um pouco acima do nível do Lago Tefé. É uma praça, com as mangueiras e arquibancadas de uma pequena quadra de futebol. Naquela tarde, a quadra estava tomada pelas águas. Embora não seja um mirante alto, é o suficiente para ver muitas cenas sobrepostas, dali e de outros lugares em que vi o rio e as águas do Médio Solimões. E se bem me recordo, de águas outras que não as dessa região. Naquele instante, havia vários tempos misturados nas águas do Lago Tefé, por onde também corre o rio de mesmo nome.

16Na contraluz do pôr do sol, dois homens conversavam numa mureta, uma barreira para as águas do Lago Tefé não invadirem a quadra, provavelmente. Segundo me disse um ribeirinho da região, “este ano a seca vai ser forte porque o rio não subiu o muro”. Ele deveria ter ficado um metro acima dessa barreira, numa estação normal de cheia.

17No mesmo muro, um pouco mais à esquerda dos dois homens, um grupo de pessoas alternava movimentos agitados e uma certa calmaria. Pareciam enrolar linhas no ar e jogá-las de volta nas águas, para só então olhar para o lago, sem se mexerem.

18Bem mais à frente, perto do meio do lago, que nessa beira do porto não é tão largo assim, um rabeta (tipo de barco muito comum nessa região) atravessou meu olhar, navegando de uma maneira que já pareço reconhecer. Não andava nem muito lento, nem tão veloz. A beira dessas grandes canoas, na parte da popa, com um motor quase aéreo, desaparece na linha d’água. O motor se liga a uma pequena hélice por uma longa haste de ferro, o que faz com que ela aparente estar bem na linha d’água, muito rasa. E constatei depois que ela fica dessa maneira realmente. A proa, por sua vez, se projeta como um bico acima da água e o barqueiro parece conduzir a embarcação de dentro do próprio lago. Sempre fico impressionado com o modo como o barco parece estar saindo do fundo das águas, num movimento incessante que, no entanto, não consegue fazer com que isso finalmente aconteça.

19Mais ao longe se aproximava um barco um pouco maior, um tipo de lancha rápida, agitando o lago ao seu redor, abrindo outra espécie de brecha no movimento das ondas naquele final de tarde. Me lembrei de quando subimos o Solimões, indo de Tefé para Alvarães e depois para o encontro entre o rio Solimões e o Japurá. No mapa, há aí um local chamado “Imensidão do rio Amazonas”. Todas as vezes que vejo esse nome no mapa ou me lembro dele, me ponho a pensar que o rio Solimões/Amazonas experimenta uma certa solidão durante o seu curso, imenso em tamanho e volume. No nosso caminho, indo na mesma direção, havia uma lancha rápida, agitando ainda mais a correnteza. Nosso barqueiro, sentindo os baques no fundo da baleeira (nome para barcos de pequeno porte nessa região), diminuiu a velocidade, acompanhando o ritmo daquelas ondas que soavam num outro compasso. Ali, voltei-me para uma descida que havia feito no rio Caraíva, dois anos atrás, de caiaque, de manhã bem cedo, com o rio quase acordando. As águas interligam instantes que não cessam de passar.

Foto 07: Lago de Tefé, acervo do autor, agosto de 2023.

20Na descida do rio Caraíva, avistei uma lancha subindo rápida, com várias pessoas. Assim que me viu, o condutor da lancha desacelerou o motor, fazendo as ondas mais largas, separadas e lentas. De minha parte, virei o caiaque de frente para cada uma delas, e me deixei balançar pelo tempo que fosse necessário. O rio continuaria à minha espera.

21Voltei para a beira do Lago Tefé, no pôr do sol, no Mirante, e vi como as luzes do céu faziam ondas-sombra nas águas. Um rio se movimenta também em cores, cada uma com sua extensão.

22Nas conversas realizadas em Tefé e nos arredores, ouvi que quando chove, ou quando começa a secar em Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, daí a quinze dias a cheia ou a seca chegam a Tefé. O tempo do rio pode começar bem longe de onde a gente o vê, mas as águas sempre o alcançam.

23Num dos diálogos que travei, em Bom Jesus da Ponta da Castanha, antes de chegar na conversa em si, vi a senhora com que eu iria falar do lago (e ainda nem sabia) se dirigir para um banco no alto do morro onde está a comunidade, numa das pontas do barranco, deixando o lago muitos metros abaixo. Ela se sentou, tirou algumas linhas de um saco e começou a mexer com algo que parecia uma costura. Olhava longamente para o lago, acompanhando o final de tarde. Fiquei em pé, longe, vendo nela a duração daquelas águas. Depois de alguns instantes, ela me viu, me chamou para sentar no banco ao lado dela, e conversamos um pouco. Em sua fala, no olhar, nos gestos, ela costurava o presente.

24Fui a um igapó com um morador da comunidade de Boca do Mamirauá, para fazer imagens dos caminhos da floresta dentro d’água. Perguntei a ele, depois de termos entrado bem fundo na floresta, com o barco navegando pelo meio das árvores, em direção a um lago que ele conhecia, como se orientar quando é a primeira vez que ele vai a um igapó desconhecido. “Ir olhando para as árvores pelas quais você passou”, me disse. “Se o paraná (um canal de água largo, que pode fazer e se desfazer com cheias e secas) está do lado do pôr-do-sol, quando for sair do igapó e voltar para o rio, lembrar de ir para onde a lua vai nascer”. E, por último, “ver e sentir se está contra ou a favor da correnteza na hora que você entrou. Mas, às vezes, a correnteza pode mudar”.

25Quando saímos do igapó, depois de entrar no lago Matá Matá, que abria uma clareira de água no meio das árvores, ele me disse que ia só colher uns bacuris numa árvore perto de casa. Tudo isso fizemos pela água, já que nesse período, em junho, as comunidades estão alagadas, e o caminho é de barco. Chegamos embaixo da árvore, ele amarrou a baleeira no tronco, subiu e começou a balançar os galhos. Me disse para ficar atento com os bacuris, pequenos frutos amarelos, bem azedinhos, porque eles iam cair da árvore. Achei que ele ia balançar ou jogar os frutos já dentro do barco. Alguns realmente vieram a cair dentro da baleeira, mas uma grande parte ia direto para a água. E para minha surpresa, não afundavam, nem lá em cima ele estava preocupado com isso. Peguei o remo e comecei a puxar alguns para perto do barco, colhendo os frutos da água. Mexi com a baleeira para chegar perto de outros. Muitos estavam já bem longe e só então comecei a perceber o movimento do rapaz em cima da árvore. Os frutos podiam cair na água, não iriam desaparecer. Depois de um tempo balançando os galhos, ele desceu, pegou o remo e fomos colher o restante dos bacuris que boiavam ao nosso redor. Remar foi, então, um gesto de aproximação: o gesto começara na árvore e terminava agora com pequenas voltas do barco na água.

26Saímos debaixo daquela árvore, ele remou para o meio do paraná. No final da tarde, tudo parecia se fazer lento, como se o rio e o sol trocassem suas últimas palavras daquele dia. Ali, bem no meio da correnteza, ele se sentou na proa, pegou um primeiro bacuri e começou a abri-lo para comer. Repeti o seu gesto e, quando percebi, estávamos de bubuia no rio, abrindo bacuris, comendo a polpa, jogando as cascas na água e deixando o rio seguir seu caminho. O barco ia no rumo da correnteza, o tempo escurecia lento. Ele então me disse: “então, Carlos, isso é uma das coisas que eu mais gosto de fazer no final do dia”, deitado na proa do barco. Abri um bacuri ao meio, olhei para o tudo que se fazia em volta daquele fruto, me recostei no fundo da baleeira e respondi: “sim, entendi”.

A seca é uma distância

27No dia 01º de julho, 8,38m tinha o Solimões, em Tabatinga
31 de agosto - 1,64m
30 de setembro - 0,14m
09 de outubro - 0,71m
Era, então, um rio sem tamanho, o Solimões

04 degraus para pisar dentro d’água na cheia, na Boca do Mamirauá
60 degraus para chegar no cano (braço de rio) na seca

Uma cacimba quase seca na beira do leito seco
100 pessoas
Mais de 500 metros subindo e descendo com baldes na cabeça
Uma água impossível de beber,
Em Santa Luzia do Juazinho

03 horas para chegar no hospital em Tefé, de barco
17 horas na seca.

40 dias de seca no Lago Tefé.
Na lama, ninguém anda, só se arrasta.

  • 1 O Boletim das águas, publicação digital, é elaborada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentáve (...)

28Olhar de manhã cedo quantos centímetros o rio subiu ou desceu. Perguntar no grupo de Whatsapp “Boletim das águas”1 quanto desceu em Iquitos, no Peru. E depois em Tabatinga, na fronteira Colômbia/Brasil. O que acontece em Tabatinga demora por volta de quinze dias para chegar em Tefé. Na semana de 07 a 14 de junho o nível da água caiu 21 centímetros em Tabatinga. E no mês caiu 1 metro e 27 centímetros. Nessa região, é possível ver o nível do rio através de réguas de medição em Fonte Boa, na Casa do Baré, no Cano do Mamirauá, no Paraná do Jarauá. Na semana em questão, o rio oscilava entre descer e subir, dependendo de onde era feita a medida.

29Antes mesmo da seca de 2023 começar, o Boletim já indicava que os níveis estavam baixos demais (mensagem de 19 de junho de 2023). A descida do rio se dava em cinco centímetros a cada dia, como se o rio já estivesse secando a conta gotas. E em julho, pelas trocas de textos no grupo, era possível notar que o Solimões começava a perder água bem rápido. As mensagens de preocupação subiam no ritmo da queda do rio. Mesmo sem estar na beira da água, era possível sentir a seca se anunciando, no número cada vez maior de centímetros que o rio deixava para trás.

30Ainda em julho, comparativos mediam o rio em três grandes secas: 2010, 2022, 2023 (que ainda era só uma previsão ruim). Os números se multiplicavam na tela, e a intensidade das águas passava a ser medida nas réguas de cada ano. Rapidamente, no Boletim, recebemos indicações de aplicativos para acompanhar os dados hidrológicos à distância. A memória dos rios se conta de várias formas.

31Os gráficos com o nível da água, nas estações de medição, mostravam as flutuações de cheias e secas do rio, em cada estação, e em cada mês. O Solimões apresentava então um aspecto encurvado, com as costas arqueadas, como se estivesse cansado de levantar a cabeça mais uma vez para enxergar o próprio futuro. Em setembro, com um índice pluviométrico muito baixo e com queimadas na região de Tefé, a cidade se encheu de fumaça e a estiagem secava ainda mais o que restava dos rios. Os números do Solimões eram menores a cada dia, e em setembro baixaram assustadoramente.

32Pedir confirmação se o rio subiu ou desceu, de ontem para hoje, passou a ser uma atividade feita mesmo antes do café da manhã, a julgar pelo horário das mensagens no Whatsapp. O rio comanda a vida, como dizia Leandro Tocantins (1983). Comemorar ou chorar alguns centímetros de subida ou descida do nível das águas parecia ser o que restava. A seca é uma espera pelas águas.

33E então, a régua de medição começou a apresentar um nível negativo. Uma medida irreal daria conta de entender o rio? Surgiram no Boletim fotos e imagens buscando dar conta do número incompreensível. O rio secava, não cabia em números. Em muitos lugares, se interrompia, e a água parecia querer começar de novo a cada pausa.

34A seca deixa rastros incontáveis, mas parece impedir o fluxo da narrativa.

35Na seca, o que resta é o barro mole, em que os pés e o corpo afundam. Resta uma imensidão de água com somente 30 centímetros de fundura. Sobram as falas que dizem: “a água chegava até aqui”. Quando olhamos para as imagens, não é possível divisar exatamente onde é o aqui.

36“Antes a gente vinha direto pelo furo (o canal de água que se forma nas cheias e liga dois cursos d’água), agora demora quase uma hora de caminhada.” A extensão da seca se mede em passos, em tempo de caminhada. A água não some, mas se torna feia, e água feia não é boa para beber.

  • 2 Os vídeos citados foram enviados por comunitários ao coletivo Unidos pelo Médio Solimões, do qual (...)

37As pessoas nos chamam, nas imagens, para ver o leito seco dos lagos, ou quão distante os rios estão das casas e das comunidades. Quando seu Jucelino2 fala “…para mostrar para quem nunca viu o lago de Tefé seco”, é para a ausência da água que temos que voltar nossos olhos. Ali à frente, onde vai Dona Raimunda com os pés na terra fofa, é onde fica o lago. Na voz de seu Jucelino, essa me parece uma distância impossível de existir.

38“O porto da comunidade é lá pra frente, quando tá cheio.” E completa: “quando tá cheio, não há quem diga que fica desse jeito.” A seca, paradoxalmente, precisa da imaginação para encher o lago. Como se o que sumisse não fossem as águas, mas a nossa memória delas.

39A seca torna impossível olhar para as memórias que temos. No momento que escrevo esse texto, experimento uma dupla distância. Não me encontro em Tefé e só tenho acesso às imagens (fotos ou vídeos) enviadas pelas moradoras e moradores da região do Médio Solimões. Trago comigo as lembranças de ver o Lago Tefé cheio, de quando estive presencialmente em várias comunidades, e fotos e vídeos que fiz de tais lugares. Mas ao olhar para as imagens secas que nos chegam, é como se eu não soubesse dizer de onde elas são. Não tenho os olhos de seu Jucelino, que já viu muitas vezes essas distâncias. São terras estranhas porque elas pertencem ao lago, mas agora estão separadas de suas águas.

40Olho para as fotos e a primeira coisa que vejo é a extensão da escada improvisada com pequenos toras de madeira, ligando as casas no alto das comunidades com o pouco de água que resta dos igarapés, paranás ou furos. O lago se recolheu, como se fosse hibernar.

41Agora olho para as fotos feitas por mim e por um outro pesquisador, Rafael Cardoso, em julho de 2019, e surge o lago junto da floresta. São fotos aéreas, e produzem proximidades que não cabem nas palavras de seu Jucelino, girando seu celular em volta do corpo, tentando capturar distâncias, com os pés dentro de um lago que ele sabe que deveria estar ali.

  • 3 Vídeo enviado por Welison André, morador do Sítio São Miguel do Cacau, na RDS Amanã

42Quando Welison3 nos fala da secura do Igarapé do Cacau, sua câmera está bem longe da água. Vemos mato, um pequeno riacho correndo no fundo da imagem, mas ele afirma: “isso tudo era água, o igarapé passava aqui”, como se o tamanho da seca fosse exatamente a distância que a câmera testemunha. Depois, ele se aproxima do fio de água que restou do igarapé, para confirmar o que a distância nos impede de ver e sentir. No leito barrento de poças de água suja fica mais patente a impossibilidade de reencontrar o rio. Fico me perguntando: onde passava o igarapé aqui?

43Os rios se afastam devagar, como se não quisessem ir, mas não pudessem escolher o próprio destino.

44A seca é uma distância.

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Bibliografia

Santos, Jaqueline G. 2022. Lugares-Tempos no Lago Amanã: paisagens arqueológicas e habitabilidades ribeirinhas. Tese de doutorado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: < https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/50246>, consultado 2024-05-06.

Tocantins, Leandro. 1983. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: José Olympio.

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Notas

1 O Boletim das águas, publicação digital, é elaborada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, e distribuído através do grupo público de Whatsapp mencionado no texto.

2 Os vídeos citados foram enviados por comunitários ao coletivo Unidos pelo Médio Solimões, do qual faço parte, criado para angariar fundos e levar cestas básicas, água potável e kits de higiene para comunidades isoladas na região, por conta da seca.

3 Vídeo enviado por Welison André, morador do Sítio São Miguel do Cacau, na RDS Amanã

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Índice das ilustrações

Legenda Foto 01: Tefé, acervo do autor, novembro de 2022.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 2,2M
Legenda Foto 02: Tefé, acervo do autor, março de 2023.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 2,8M
Legenda Foto 03: Paraná do Mamirauá, acervo do autor,novembro de 2022.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 258k
Legenda Foto 04: Paraná do Mamirauá, acervo do autor, março de 2023.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-4.jpg
Ficheiro image/jpeg, 3,2M
Legenda Foto 05: Boca do Mamirauá, acervo do autor, maio de 2023.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-5.jpg
Ficheiro image/jpeg, 4,1M
Legenda Foto 06: Boca do Mamirauá, acervo do autor, maio de 2023.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-6.jpg
Ficheiro image/jpeg, 4,0M
Legenda Foto 07: Lago de Tefé, acervo do autor, agosto de 2023.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5066/img-7.jpg
Ficheiro image/jpeg, 3,7M
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Carlos Henrique Rezende Falci, «E o Rio tem Memória? Quatro Ensaios/Diários de Campo sobre a Região do Médio Solimões»Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 13 | -1, 31-43.

Referência eletrónica

Carlos Henrique Rezende Falci, «E o Rio tem Memória? Quatro Ensaios/Diários de Campo sobre a Região do Médio Solimões»Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 13 | 2024, posto online no dia 01 agosto 2024, consultado o 31 outubro 2024. URL: http://journals.openedition.org/cadernosaa/5066; DOI: https://doi.org/10.4000/12bpl

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Autor

Carlos Henrique Rezende Falci

UFMG, Belo Horizonte, Brasil
chfalci@gmail.com

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Direitos de autor

O texto e outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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