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A Arte dos Paulestinos: Lambe-lambes e Reflexões do Degredo

The art of the Paulestinos: Wheatpaste Art and Reflections on Exile
Ygor Diego Delgado Alves e Pedro Paulo Gomes Pereira
p. 103-124

Resumos

A Cracolândia é conhecida como lugar de conflitos, vulnerabilidades e violências. No entanto, ali há também uma intensa produção artística, ainda pouco abordada, mas que merece reflexão. Este artigo pretende descrever e analisar a arte e agência nesse local, partindo de mais de uma década de pesquisas e de uma etnografia que buscou, sobretudo, captar essa produção. Nesse sentido, volta-se para o trabalho dos Paulestinos, dupla que produz lambe-lambes com frases e ideias retiradas da convivência dos dois artistas com outras pessoas que compartilham o cotidiano de um mesmo território de degredo. A arte dos Paulestinos, espalhada pela região, promove o encontro das pessoas que ali habitam com pensamentos retirados de seu entorno, como se a Cracolândia, através desses sujeitos, fosse convidada a refletir sobre si mesma.

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Notas da redacção

Recebido: 2/2023
Aceite: 6/2024

Texto integral

Introdução

1A Cracolândia é uma cena aberta de uso de crack, localizada na região central da cidade de São Paulo, ocupando, por vezes, os limites do que ficou conhecido como Boca do Lixo, no bairro da Santa Ifigênia (Adorno et al. 2013). Com uma existência que se inicia em meados dos anos 1990, a cena aberta de uso, a depender das ações repressivas por parte do Estado, chegou a ocupar os entornos da praça Princesa Isabel, em outras oportunidades do largo Coração de Jesus e da praça Júlio Prestes (Ramos 2022). A Cracolândia reuniu até 3 mil pessoas aglomeradas nas ruas, o que possibilitou sua exploração por parte da mídia através de imagens geralmente aéreas, sendo que as ações policiais violentas acabaram por fornecer parte fundamental dessas cenas. Os contínuos fracassos dessas intervenções não resultaram em mudanças procedimentais significativas, notadamente por parte do aparato policial, dado que seus objetivos eram alcançados na repercussão midiática instantânea, não poucas vezes relacionada à disputa eleitoral. (Alves, Pereira & Peres 2020) A Cracolândia acabou sendo representada de modo estigmatizado, como local violento, verdadeiro depósito de flagelados que, considerados doentes e criminosos, deveriam ser reprimidos e internados à força (Rodrigues, Conceição & Iunes 2015).

  • 2 Buscaremos, em próximos artigos, analisar outras manifestações artísticas na Cracolândia, tais co (...)

2Na busca de descrever e analisar parcela da produção artística na Cracolândia, este artigo volta-se para os Paulestinos – uma dupla de artistas nordestinos, Átila Fragozo e Renoir Santos –, que residem em São Paulo desde a infância. Dessa origem regional e da condição de migrante surgiu a inspiração para o nome da dupla: a “derivação sufixial do radical de ‘paulistano’ somado ao sufixo de nordestino” (Baptista 2019: 245). Desde 2012, dedicam-se à produção e colagem de lambe-lambes pela cidade de São Paulo. Os lambe-lambes são cartazes impressos em uma ou duas cores, colados nas ruas, principalmente para divulgação de shows; como seu uso está sujeito a multas na maioria das cidades, por serem colados, sem licença, diretamente em muros ou tapumes, não costumam indicar endereços ou nomes dos locais de eventos, porém, podem ser subvertidos em um uso artístico. (Rodrigues 2017) Para sua fixação aplicam, com a utilização de rolinhos, cola branca misturada com água sobre folhas impressas para facilitar sua aderência no concreto, “tanto na parede que recebe o lambe quanto no próprio papel” (Koester 2017: 69). Trata-se de uma das várias manifestações artísticas naquele espaço,2 mas que, pela relevância, merece uma abordagem mais detida e direcionada.

  • 3 A arte na Cracolândia é tema ainda pouco explorado, principalmente pela antropologia. Procuramos (...)

3Apesar da profusão de expressões artísticas, até o momento da conclusão deste artigo encontramos escassa produção acadêmica que aborde o tema,3 o que nos impulsionou a tentar contribuir com a discussão. No decorrer dos últimos 12 anos, alguns(mas) autores(as) buscaram distinguir e elucidar as características mais significativas da Cracolândia. Frúgoli Jr. e Cavalcanti (2013) observaram como esse local vem se constituindo como uma territorialidade itinerante, em meio a territorialidades em disputa e na conjuntura de grandes intervenções urbanas, o que gera conflitos e conexões com outros espaços. A Cracolândia seria, portanto, lugar de degredo e, por isso mesmo, de grande atração (Rui 2014). Ao se referirem aos discursos dos moradores do bairro da Luz, que costumam atribuir a degradação do bairro a presença dos “noias”, Frúgoli Jr. e Spaggiari (2011) observam que esses usuários de crack são simbolicamente associados a sujeira, violência e ameaças à segurança, além do uso de drogas. A decomposição das paisagens urbanas (Rocha & Eckert 2009) nos suscita a refletir sobre as pessoas que consomem crack nesse contexto – que não poderiam ser dimensionadas apenas pelo seu uso de drogas (Alves & Pereira 2021) – e que são para ali atraídas e acabam desenvolvendo suas próprias estratégias cotidianas de sobrevivência e de redução de danos (Camargo et al. 2022), enquanto circulam pela trama institucional local (Fromm 2017).

4Uma constatação importante foi a dos efeitos deletérios da ação estatal violenta sobre as pessoas que estão ali usando drogas, por vezes sob políticas separatistas e excludentes (Oliveira Camargo et al. 2022). Nasser (2018) argumentou que as políticas conduzidas pelo poder público seriam capazes de produzir verdadeiros labirintos que induzem e condicionam o movimento dessas pessoas pela cidade. Mesmo assim, o uso do crack nessas circunstâncias pode proporcionar uma vida de tipo comunitária, com relações fraternais entre despossuídos (Alves 2014), materializadas em trocas constantes e múltiplas (Adorno et al. 2013).

  • 4 O DBA foi um programa municipal que provia moradia, alimentação, trabalho e assistência integral (...)
  • 5 Instituto Adesaf (Articulação de Tecnologias Sociais e Ações Formativas)

5Como mencionado, a produção sobre a arte na Cracolândia ainda é insipiente. No entanto, a produção artística por parte de pessoas que residem ou frequentam a Cracolândia se faz presente pelo menos desde a implantação do programa De Braços Abertos (DBA),4 a partir de 2014. O “artista visual Eduardo Kobra, conhecido internacionalmente por seus grafites de grandes proporções” (Okuma 2019: 61), expôs alguns de seus trabalhos e orientou usuários de crack a produzirem coletivamente uma pintura, que foi leiloada em favor do DBA. Na mesma época, a Casa Rodante, uma iniciativa multidisciplinar de artistas, pôde, durante dez meses e no âmbito do DBA, oferecer ateliê de fotografia e oficina de mobiliário urbano aos beneficiários do programa (Vianna 2019). Também destacamos as oficinas “de objetos artesanais; decorativos em pneus, madeiras e isopor; pintura sobre tela; desenho e outros” (Adesaf 2017: 48), desenvolvidas pela Adesaf,5 gestora do DBA no âmbito das ações promovidas pela antiga Secretaria Municipal de Trabalho e Empreendedorismo. Chamado por vezes de Basquiat da Cracolândia, o pernambucano Badarós chegou a expor suas pinturas em 2018, na Oficina Cultural Oswald de Andrade e no Memorial da Resistência (Okuma 2019; Nogueira 2021).

  • 6 O Teatro de Contêiner Mungunzá foi construído pela Cia. Mungunzá de Teatro em uma área municipal (...)
  • 7 A Boca do Lixo é uma região do centro da cidade de São Paulo localizada no bairro da Luz, em um q (...)

6Átila Fragozo, um dos dois membros dos Paulestinos, também participou, durante o DBA, da Casa Rodante (Okuma 2019) e, desde aquela época, tem atividades na Cracolândia. Hoje em dia, o container em que os Paulestinos estão instalados tem sua parte externa decorada com lambe-lambes e se localiza no terreno municipal ocupado pelo Teatro Mungunzá,6 que também abriga o Coletivo Tem Sentimento (doravante, CTS), este sendo um programa dedicado ao trabalho com geração de renda para mulheres e travestis em situação de vulnerabilidade. O Mungunzá fica situado na região conhecida como Boca do Lixo7 – e o chamado “fluxo”, aglomeração mais concentrada de usuários de crack na Cracolândia, passou a localizar-se, por vezes, em frente ao teatro (Godoy 2022). Oliveira (2022: 16) observa que o edifício do teatro, feito de containers, se relaciona mais com o tipo de construção em bairros privilegiados que na Cracolândia; e que “poderia ser mais um dos dispositivos urbanos de gentrificação e branqueamento da região”. Para evitar tal contradição o teatro incluiu um playground, um duomo geodésico, para abrigar reuniões de moradores do bairro, e uma horta comunitária.

7Na página da dupla na internet, os Paulestinos se definem como um “colaborativo”, com trabalhos que “ocupam o tecido urbano com intervenções que dialogam com a imagem e poesia escrita e questionam o passante sobre seu cotidiano” (Paulestinos s.d.). Os artistas possuem obras expostas em galerias de arte, uma delas é a Lar Galeria. Nesse caso, trata-se de uma escultura com 3 kg de peso e dimensões de 70 × 0,90 × 48 cm, que traz um lambe-lambe ao centro com outras colagens laterais questionando a ideia de arte. Os artistas também se dedicam à produção de grandes painéis, como os dois instalados na área externa da Estação Vila Prudente do Metrô, intitulado “São Paulo: O cúmulo do Samba”, de Átila Fragozo (Desenvolveleste 2022). A realização de oficinas é outra atividade a que a dupla se dedica, como a “#lambeemcasa: colagem de lambes com Paulestinos (SP)”. Nessa ocasião, durante a pandemia de Covid-19, Átila Fragozo falou virtualmente sobre a produção e colagem dos lambe-lambes (Sesc Brasil 2020).

  • 8 O Coletivo Birico foi criado por artistas de diversas áreas para arrecadar fundos para ações de s (...)

8Os Paulestinos se somaram a dezenas de artistas, no que passaram a chamar de Coletivo Birico,8 para arrecadar fundos emergenciais no enfrentamento dos efeitos da Covid-19 sobre a Cracolândia (Alves & Pereira 2022). Através do Birico, buscaram comercializar obras de arte pela internet, em que metade do valor angariado era dividido entre os artistas e a outra metade financiava a moradia de seis pessoas, além da compra do container que abrigou a dupla – um de seus membros ficou inclusive responsável por efetuar pagamentos dos aluguéis dos quartos de hotel e pensões. Ainda durante a pandemia da Covid-19, os Paulestinos, em parceria com o Mundaréu da Luz, produziram um lambe-lambe que servia como “ferramenta para que a população das ruas do centro de São Paulo pudesse localizar as ‘bocas de rango’” (Marino, Lima & Mateo 2023), como são conhecidos os locais que oferecem refeição gratuita para essas pessoas.

  • 9 Não é nossa intenção analisar mais demoradamente o trabalho de Gell, até pela economia de espaço, (...)

9Como no lambe sobre bocas de rango, a arte dos Paulestinos nos fala algo sobre agência, sobre objetos e pessoas que atuam no contexto de crack no centro de São Paulo. Tais dimensões acabaram nos conduzindo à obra de Alfred Gell e às suas reflexões da arte como um nexo de intencionalidades complexas. Esse autor, em diversas obras (1993, 1995, 1996, 1998, 2001), propõe uma sofisticada teoria, com destaque para os processos de agência, intenção, causação, resultado e transformação.9

  • 10 Para uma revisão em detalhe de Art and Agency, ver Morphy (2009).

10Em seu mais conhecido livro sobre o tema, Art and Agency, Gell argumenta que obras de arte podem ser vistas como pessoas sociais, que não estão presentes apenas em seus corpos, mas em tudo à sua volta que presta testemunho de sua existência, seus atributos e sua agência.10 As obras de arte seriam, então, algumas das objetivações mais bem-sucedidas da agência humana e podem abarcar muitas agências distintas, como a do artista e a da pessoa representada (Menezes & Hupsel 2015).

11É importante, para Gell, a noção de pessoa distribuída: estamos presentes não apenas em nosso corpo, mas nos objetos que vêm de nós ou que recebemos como presentes. A proposta é olhar para todas as obras de arte como índices de agenciamento e que não apenas indexam a agência do artista, mas de todos que foram “encurralados” (Gell 1998: 17) pela obra de arte, que passa a conter sua pessoa distribuída. Além disso, entendemos, com o autor, que uma instância de agência se apresenta sempre que se acredita que um evento acontece por causa de uma intenção alojada na pessoa ou coisa que inicia certa sequência causal.

12As obras de arte são vistas por Gell não apenas como algo que simboliza ou representa alguma mensagem, que só pode ser compreendida por aqueles que participam da cultura, aqueles que compartilham o código, mas como coisas em si mesmas. Portanto, para esse autor, o sentido da arte não é algo que acontece fora do próprio objeto que aparece diante do público – como se fosse necessária uma opinião especializada que explicasse seu sentido. Pelo contrário, obras de arte podem ser vistas como trabalhos que não estão dando respostas, mas fazendo perguntas, pedindo ao público para rastrear as conexões que levaram certas coisas a um contexto; são provocações – pretendem gerar reação do público. Uma obra de arte, como sustenta Gell, tem, além de significado, utilidade e uso; assim, arte e artefato não se opõem, mas são a mesma coisa, com o significado de uma obra de arte correspondendo ao seu uso.

  • 11 DJ seria a abreviação de disc jóquei, responsáveis pelo controle dos toca-discos nas festas; MC é (...)

13Além das concepções próprias a visão de Gell sobre a obra de arte, algumas definições, como arte urbana, street art, graffiti, grafite, intervenções artísticas urbanas e lambe-lambe são importantes para contextualização das práticas criativas que estamos falando. Também localizados nas ruas, as tags, assinaturas ou pixo (Diógenes 2017) são muitas vezes feitos com tinta spray, bidimensionais, geralmente pequenas em tamanho e com linhas mais finas, refletindo a necessidade de execução rápida devido à natureza muitas vezes ilegal da marcação (Snyder 2017). As tags seriam “códigos visuais de difícil entendimento para quem não participa desse contexto cultural” (Abalos Júnior 2019: 20); e uma das formas básicas de graffiti. Esses teriam surgido na cidade de São Paulo, para Leal (2017), como um dos quatro elementos do movimento hip hop, juntamente com o DJ, o MC e o B-boy;11 a prática do graffiti, segundo a autora: “refere-se a uma maneira de ser e estar no mundo e a uma atitude diante do espaço urbano, que possui uma dimensão estética importante, mas um fazer que é igualmente relevante” (Leal 2017: 33); os termos em português “grafite” e “grafiteiro” seriam utilizados pelos meios de comunicação de massa, fora do circuito das pessoas que pintam nas ruas. Abalos Junior (2019: 20) observa que o graffiti “desenrolou-se em manifestações pictóricas, ligadas à criação de personagens, com maior necessidade de tempo e técnica para a produção, e maior aceitabilidade pessoal”. E foi justamente esse desenvolvimento que fez surgir os conceitos de street art e arte urbana.

14Ao tratar do contexto lisboeta dos anos 2008-2014, Soares Neves (2015) observa que associada ao conceito de graffiti e street art, a urban art surge para lidar com a street art no ambiente dos museus, carregando forte conotação comercial. O autor também destaca o caráter efêmero dessas produções e observa a importância na street art dos aspectos relacionados com a ação em detrimento da forma. As intervenções artísticas urbanas requerem ação e gestualidade; são, porém, previamente imaginadas, a partir de espaços de formação artística que transcendem o ato da produção. Abalos Júnior (2018) ainda observa que essa formação inicial pode compreender manifestações como o pixo e o grafite, como “projetos estéticos diferenciados” (Abalos Júnior 2018: 157). São atividades que demandam socialização, parcerias, busca por financiamento, escolha de itinerários e de formas de trabalho. Em Padovani (2019) temos que o uso da linguagem no lambe-lambe, para a autora uma forma de arte urbana, procura atrair os olhares dos transeuntes, em meio a cartazes publicitários, faixas e outdoors. Pallamin (2000: 13) considera arte urbana como sendo um “modo de construção social dos espaços públicos, uma via de produção simbólica da cidade, expondo e mediando suas conflitantes relações sociais”. No tipo de intervenção artística urbana de que tratamos nesse artigo a ideia de que os “lambes são uma maneira de permanecer sempre em trânsito, coexistindo com os lugares em uma troca constante” (Mathias & Miguel 2018: 41) é a que melhor expressa nossa visão dessa prática marcada pela efemeridade (Abalos Júnior 2019).

15Pretendemos então descrever e analisar a arte e agência na Cracolândia, especialmente o trabalho dos Paulestinos, que produzem uma arte exposta em um território de degredo e que atua naquele local. A ação ocorre em forma de lambe-lambes produzidos que chegam à Cracolândia alterando a paisagem, mudando formas de percepção e possibilitando reflexões. Assim, almejamos uma análise etnográfica que vá além da interpretação das estéticas finais das expressões.

16Na próxima seção, buscaremos abordar algumas dimensões de uma etnografia na Cracolândia.

Etnografia na Cracolândia

17Em nossa pesquisa, nos valemos da etnografia, definida por Goldman (2006: 167) como “o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal”. Rocha e Eckert (2008: 2) vêm a pesquisa etnográfica constituída “no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir)”, o que impõe ao pesquisador deslocar-se de sua cultura por meio da participação “efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.” Foi o que procuramos realizar depois de mais de dez anos de pesquisas na Cracolândia, abordando temas como: a dinâmica do uso do crack (Alves 2017); as práticas de resistência durante a pandemia da Covid-19 (Alves, Pereira & Rosângela 2020); e os efeitos da exploração midiática sobre a região (Alves & Pereira 2021), quando percebemos que algo novo se apresentava.

  • 12 Também estivemos em contato com o Coletivo Tem Sentimento (CTS); Coletivo Birico, do qual faz par (...)

18Durante a pandemia, no entanto, passou a surgir diante de nós uma produção artística que nos interpelava a refletir. Daí, impôs-se a necessidade de nos dedicarmos a uma pesquisa que fosse capaz de captar a produção artística na Cracolândia. Em determinado momento, consistiu em um mergulho de um mês, pelo primeiro autor deste artigo, na vida cotidiana em torno do Teatro de Contêiner Mungunzá, localizado na Rua dos Gusmões, em Santa Ifigênia, São Paulo. Durante todo mês de junho de 2021, convivemos diariamente com pessoas das diversas entidades e coletivos que se instalaram nos contêineres dispostos pelo terreno, entre eles os Paulestinos.12

19Precederam ao trabalho de campo alguns entendimentos com a assistente social Carmen Lopes, criadora e dirigente do Coletivo Tem Sentimento, com quem mantínhamos contato desde o ano de 2013, e que nos possibilitou a convivência como trabalhador auxiliar na entidade que coordena. Assim, pudemos passar junho de 2021, de domingo a domingo, durante o horário de funcionamento do CTS, períodos matutino e vespertino, carregando caixas, distribuindo marmitas para a população de rua – o CTS, em convênio do Teatro Mungunzá com a prefeitura, ficou responsável pela distribuição diária de 400 marmitas – e acompanhando as mulheres do coletivo nas compras de aviamentos pelos bairros do Brás e Bom Retiro.

20Evidentemente, antes de iniciarmos a pesquisa de campo que resultou na elaboração deste artigo, aproximamo-nos da literatura acadêmica disponível sobre a produção artística na Cracolândia (Nogueira 2021; Okuma 2019; Alves & Pereira 2020), assim como alguns trabalhos jornalísticos, como o de Nicolau (2020).

21Nossa pesquisa no ambiente criado em torno do Teatro Mungunzá foi facilitada por conhecermos previamente a coordenadora do CTS – a assistente social Carmen Lopes. No cotidiano, acompanhamos a rotina de trabalho do CTS e buscamos, também, dialogar com as pessoas que não eram do coletivo, o que inclui os artistas Átila Fragozo e Renoir Santos, sendo que o primeiro foi nosso entrevistado. No entanto, gozávamos de liberdade suficiente para nos afastarmos em conversas um pouco mais reservadas.

22Em nossa pesquisa, procuramos criar condições em que uma conversa pudesse se entabular. No caso específico da dupla Paulestinos, aproveitávamos as ocasiões em que seus membros estavam produzindo material artístico, principalmente lambe-lambes, em frente ou no interior do container que os abrigava, ou fazendo colagens nas paredes ao lado desse espaço, ou, ainda, desenvolvendo algum trabalho de produção de gravuras no interior do Teatro Mungunzá.

23A parte digital da pesquisa consistiu no acesso a duas páginas de internet: a dos Paulestinos e a do Coletivo Birico; a conta no Instagram dos Paulestinos; e no uso do aplicativo Artivive. A página da dupla na internet foi acessada após procura no buscador Google, o mesmo se passou com a página do Birico. No primeiro caso, foi possível obter informações iniciais sobre o colaborativo, que orientaram nossas primeiras conversas. Como observa Ferraz (2019: 48): “Na Antropologia clássica, os livros, informantes e percursos terrestres eram tidos como a condição para os contatos preliminares no início pesquisa […]”. Porém, como decidimos fazer nessa pesquisa, “é a partir da entrada nos sites de busca e nas redes sociais onde se encontram as referências preliminares das diferentes temáticas do estudo, correspondendo ao lugar onde se inicia o emprego da etnografia”.

24A página do Birico, embora citada nesse artigo, foi objeto de análise em outro texto. A conta no Instagram também foi acessada após recorrermos ao buscador Google, porém decidimos fazê-lo, novamente, após uma de nossas conversas com Átila Fragoso, no intuito de podermos descrever a experiência de aquisição de arquivos de lambes, por esse aplicativo. Algo parecido ocorre com o aplicativo Artivive, que primeiro nos foi mostrado na Cracolândia pelo próprio Átila, para que, num segundo momento, o baixássemos no celular e fizéssemos dele uso na pesquisa, como veremos a frente.

25Quanto aos aspectos éticos de nossa pesquisa, é importante informar que não consideramos apropriado solicitar a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), por tratar-se de um momento delicado no campo, em que alguns ativistas vêm sofrendo acusações no plano judiciário. A Resolução Nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde passou a considerar “formas diversificadas para comunicação do Consentimento Livre e Esclarecido” (Lordello & Silva 2017: 11), que pode ser feita oralmente, por escrito ou mesmo por gesto; e ainda esclarece que “devem ser consideradas características individuais, sociais, econômicas e culturais dos participantes e das abordagens metodológicas” (Lordello & Silva 2017: 11). Neste artigo, como nossos interlocutores principais são pessoas públicas, com matérias de revistas publicadas sobre a dupla, Átila e Renoir terão seus nomes artísticos citados.

26O contexto da pandemia gerou uma reação na Cracolândia que mobilizou os atores em torno do Teatro Mungunzá que, além de distribuírem marmitas, passaram a produzir máscaras na oficina do CTS (Alves & Pereira 2022). Nosso uso dessas máscaras para prevenção do contágio pelo vírus da Covid-19 foi constante durante o trabalho de campo. Mesmo assim não pudemos acompanhar a interação entre os Paulestinos e os frequentadores do teatro, que se encontrava fechado; no mais, não tivemos notícia ou percebemos limitações a presença dos nossos interlocutores naquele ambiente.

A produção e a distribuição dos lambe-lambes

27Ao iniciarmos nossa etnografia, tínhamos informação sobre a origem do nome Paulestinos como junção dos termos paulista e nordestino, mas, anos antes, nas primeiras vezes que tomamos contato com seus trabalhos nas ruas da Cracolândia, pensávamos tratar-se o nome de uma relação entre São Paulo e Palestina. Em uma das conversas que tivemos com os integrantes da dupla, lembramos esse fato e ainda revelamos ter o primeiro autor deste artigo passado parte da infância residindo na chamada Boca do Lixo, como filho de imigrante peruano. Nossos interlocutores, então, esclareceram que Paulestinos “também tem a referência a palestino, o rolê do refugiado, o lance do imigrante”.

28Poucos dias após esse diálogo, no início de uma de nossas conversas com Átila Fragozo, ao apontar para um carro puxado à mão que se encontrava estacionado a poucos metros de onde estávamos, surgiu naturalmente a pergunta: “Esse carrinho aqui é o carrinho dos Paulestinos?”. Átila, nesse momento, passou a nos falar a respeito do Biricar, que pode ser descrito como uma pequena carroça, semelhante às usadas por alguns vendedores ambulantes na cidade de São Paulo, cuidadosamente pintada de azul e vermelho, e decorada com os lambe-lambes dos Paulestinos. Segundo Átila, o objetivo era “fazer um veículo que tem a cara do território” como “carrinho do doce ou do milho”. O Biricar poderia ser tanto puxado quanto empurrado, mas, por essa aparente intenção de se adequar à Cracolândia, puxar a pequena carroça era, ainda segundo nosso interlocutor, a opção mais utilizada naquele momento. O carrinho costuma circular pelo fluxo com água para os usuários de crack, além de máscaras, na época da Covid, livros, absorventes íntimos e, é claro, lambes e material para colagem. Por carregar livros é chamado de “o menor centro cultural do mundo”.

29Os Paulestinos estavam instalados em um container decorado com lambe-lambes produzidos pela dupla, que, por uma questão de praticidade, deixaram de ser impressos em silk screen, ou serigrafia, técnica de impressão à tela. Por essa técnica, para cada novo cartaz impresso, uma tela diferente teria de ser confeccionada e armazenada para caso se pretendesse repetir a impressão, o que é o mais corriqueiro. Por esse motivo, os cartazes passaram a ser encomendados em uma gráfica das proximidades, onde são produzidos em impressora a laser. Para alguns cartazes maiores, a dupla havia adquirido uma máquina Plotter, que foi acomodada nos fundos do container.

30A inspiração para os cartazes da dupla parece vir dos eventos e observações cotidianas que fazem pela Cracolândia e outros locais que venham a frequentar. Em uma conversa qualquer pode surgir uma observação capaz de ser aproveitada num “lambe”, como geralmente se referem aos cartazes. Segundo um de nossos interlocutores, a inspiração parte “do que eu escuto aqui no território”. As frases ouvidas no cotidiano são primeiro anotadas para depois serem “diagramadas” no computador, com o uso do programa Photoshop. Portanto, antes de o cartaz ser impresso, há um arquivo guardado no computador, que posteriormente será enviado para a gráfica. Na ocasião de nossa etnografia, em junho de 2021, a dupla possuía arquivos de mais de 300 lambes.

31A importância do arquivo é que pode ser distribuído como Creative Commons, ou seja, por meio de uma licença que permite cópia e compartilhamento. Como observou um membro da dupla, “até pelo Instagram eu mando o link, a galera imprime como quiser, colabora. Também não precisa colaborar”. Então resolvemos testar esse processo, acessamos a conta da dupla nessa rede social e enviamos mensagem em 06 de junho de 2021 requisitando o arquivo com os lambes. Fomos respondidos em dois dias e recebemos o link para a pasta LAMBES_EMAIL no Google Drive. Ao clicar na pasta, tem-se acesso direto aos arquivos que possuem, geralmente, menos de 2 megabites. Em seguida a esse link, recebemos os dados para depósito por transferência bancária ou PIX de Átila Fragozo. Para esse artista, além da contribuição financeira de quem baixa os arquivos dos lambes ser voluntária, existe a ideia de que as pessoas produzam seu próprio material: “estimula a galera a fazer o deles também. Vai, roda o meu, mas faz o seu também”.

  • 13 Aqui fazemos uma breve alusão a Benjamin (1994), para quem […] “no tempo das técnicas de reproduç (...)

32Outra oportunidade encontrada pelos Paulestinos para incentivar a criação de lambe-lambes são as oficinas ofertadas pela dupla: eventos em que os participantes são convidados a produzir suas próprias obras, a partir de cartazes do acervo de Átila e Renoir. Para se constituírem em material para produção artística alheia, os lambes são rasgados, proporcionando letras e palavras que dão origem a novas frases. Assim, novos autores surgem a partir da destruição das obras e de sua “aura” (Benjamin 1994):13 “É bem louco, que já rola uma quebra da galera rasgar o trampo, e desse processo, tipo, criar a sua”.

33Apesar de a oficina ser de produção de lambe-lambes, não é integralmente acurado, segundo a opinião da dupla, designar os cartazes ali rasgados e os novos trabalhos criados como lambes, porque, para sê-lo, esse tipo de criação artística precisa ser lambido. O processo envolve, então, quatro momentos: 1) concepção a partir de ideias surgidas no cotidiano; 2) criação no programa Photoshop; 3) impressão em uma gráfica ou na máquina Plotter da dupla; e 4) colagem, a prática de lamber o cartaz. Nas palavras da própria dupla: “[…] é um cartaz até ser colado, e quando é colado vira o lambe-lambe, porque aí foi lambido mesmo”.

Foto 1 - Átila passa a cola na parede com um rolo de tinta. Fonte: Coleção particular dos autores.

34A prática da colagem, como podemos ver na foto 1, parece definir o lambe-lambe: “Lambe-lambe é só quando está colado. Se não colar, é sempre um cartaz. Lambe-lambe é essa forma de colar o bagulho em alguma superfície”. O lambe-lambe aparece tanto como uma técnica de exibição da obra quanto a obra em si. Antes de ser lambido, trata-se de um cartaz, uma diagramação impressa a partir de um arquivo produzido no Photoshop. A colagem abre outras possibilidades criativas, se considerarmos que os lambes podem ser arranjados em um mural.

35No mural que decora o container que abriga a dupla Paulestinos podemos ver os lambe-lambes arranjados em torno da imagem símbolo da dupla. A importância dada a essa imagem no mural, sugerida pela disposição do material colado, está ligada à história pessoal desses artistas de origem nordestina, migrantes em São Paulo. Também se relaciona com as dificuldades e preconceitos que tiveram que enfrentar. Nas palavras de Átila Fragozo: “Desde que eu cheguei aqui em São Paulo, eu sofria muito preconceito […] Que é tipo o rolê de ser chamado de baiano. Eu sou baiano, mas eu não sabia que eles chamavam pejorativamente os nordestinos tudo: aqui em São Paulo é tudo baiano”.

Foto 2 - Mural dos Paulestinos, na lateral do container que abriga a dupla, sob a oficina de costura do CTS. Fonte: Coleção particular dos autores.

36A imagem símbolo dos Paulestinos, exibida na foto 2, é uma guerreira que une em sua vestimenta elementos da indumentária do bando de Lampião com elementos do universo de Star Wars, como o sabre de luz duplo do vilão Darth Maul. Com referência a objetos do universo da ficção científica, a primeira versão dessa mulher aparecia montada sobre a icônica motocicleta do personagem Kaneda, protagonista do anime Akira. Tal escolha aponta para mais uma característica desses artistas: o uso da tecnologia. Os Paulestinos costumam colocar em suas obras um desenho que une o símbolo característico da conexão por Wi-Fi com o da entrada USB, que remete à transmissão de ideias. “[…] um símbolo de transmissão de dados e de conversão. Então aqui seria como se fosse a transmissão de ideias, que é a transmissão de Wi-Fi, o sinal de Wi-Fi […]. Os dois são de transmissão”.

37Com o recurso ao aplicativo Artivive, uma ferramenta de realidade aumentada (RA) que permite aos artistas criarem novas dimensões de arte, ligando a arte física à digital, a dupla pôde adicionar uma camada digital aos lambes. Com esse recurso, levam as pessoas numa viagem no tempo, podendo explicar o que está por trás, realçar o lambe-lambe com ilustrações ou mostrar como as obras foram feitas. O aplicativo pode ser baixado no celular pela Play Store e, ao abri-lo, há a possibilidade de apontar a câmera para certos lambes, inclusive na tela do computador, para ter acesso à RA. No caso do lambe VENDO SUA MEMÓRIA, iremos ver um filme com 9 segundos de duração, em que cenas do processo de colagem são destaque.

Foto 3 - Imagem retirada do vídeo de realidade aumentada VENDO SUA MEMÓRIA. Fonte: Coleção particular do autor.

38Ao assistirmos o vídeo do lambe VENDO SUA MEMÓRIA, no aplicativo Artivive, podemos acompanhar imagens sobre a prática de lamber os cartazes. Selecionamos quatro momentos do vídeo para podermos ter uma ideia de seu conteúdo. Em um primeiro momento, temos o lambe, ao centro, como que colado sobre uma parede, com duas mãos à esquerda posicionadas uma em sentido contrário da outra, e ao fundo o mesmo cartaz espelhado no sentido longitudinal sendo lambido por rolos amarelos. A seguir o vídeo traz o lambe desaparecendo, enquanto surgem mãos e antebraços lambendo o material. A imagem que vemos na foto 3 vem dividida em duas, contendo, na sua parte superior, o lambe-lambe, aparentemente sob a luz do sol, exposto sobre uma parede de blocos aparentes, pichada com a sigla “SP” à esquerda do lambe e as palavras “RESERVADO PIXO” à direita. Na parte inferior da imagem 3, pode-se ver parcela desfocada e aproximada da imagem superior, só que posicionada de modo invertido para a esquerda. Ambas as imagens têm a presença de um arbusto pouco abaixo do lambe-lambe. Ao final o vídeo expõe a mesma parte superior da imagem 3, com a inclusão de dois rolos amarelos deslisando sobre uma camada de cola.

39O lambe pode ser colado isoladamente ou com outros, formando um mural. O momento da colagem pode ser oportunidade para interagir com as pessoas que param para admirar o trabalho. Átila Fragozo nos conta sobre um desses momentos em que estava colando um lambe, juntamente com o também artista Júlio Dojcsar, perto de uma praia, e foi abordado por uma passante. Ao admirar o mural sendo construído, a mulher questionou se a obra teria algum sentido religioso, ao que Átila respondeu com outra pergunta: “não sei, o que você acha?”. A pessoa respondeu: “eu estou fazendo uma busca espiritual”. E começou a contar para o artista sobre sua busca espiritual, algo que, para Átila, “jamais ela ia virar e falar isso para mim se eu não estivesse ali colando o lambe, que acho que era DESTINO À FRENTE, ATENÇÃO, DESTINO À FRENTE”.

Encurralar ideias em situação de degredo

40Um traço itinerante da arte dos Paulestinos se apresenta na maneira escolhida para produzir suas obras. O recurso ao arquivo digital e a impressão por um terceiro nos apontam, ao menos nos casos dos lambe-lambes de menor dimensão, o desejo de não ter um depósito, o primado da distribuição sobre o armazenamento. Seja pelo Biricar, Creative Commons ou nas oficinas ofertadas pela dupla, o propósito de compartilhar se impõe. Assim, os trabalhos que partem da dupla e contém sua pessoa distribuída (Gell 1998: 17) podem ser recolhidos no Biricar, baixados por uma conversa no Instagram ou mesmo rasgados para dar origem a outras obras em suas oficinas. Além disso, ao escolherem os muros e postes da região central de São Paulo, se tornam presentes para um público que não se encontrava, a priori, com a intenção de ser provocado por seus lambe-lambes e murais. O próprio simbolismo criado pelo grupo ao unir o sinal de Wi-Fi, uma tecnologia de rede sem fio que permite que computadores e outros equipamentos se conectem à Internet e troquem informações entre si, cunhando uma rede, ao símbolo da entrada USB, que também é um conector, mostra uma intenção em pedir ao público que rastreie as conexões que levaram as palavras diagramadas no lambe àquele contexto. O recurso à RA parece apontar nesse sentido.

41Se, para Alfred Gell, a obra de arte tem utilidade e uso, assemelhando-se ao artefato, nos Paulestinos, ela é levada à condição de material e insumo para outras criações artísticas, em suas oficinas. Ao tomarmos, ainda com Gell (1998), o significado de uma obra de arte como correspondendo ao seu uso, vemos que é na produção de novos artistas que o sentido dos lambes rasgados e remontados pode ser encontrado. Processo em que a “aura” (Benjamin 1994) da obra de arte é atacada duas vezes: a primeira na sua reprodução ilimitada; e a segunda na sua destruição física. Parece-nos razoável pensar que as obras produzidas pela dupla, a partir do momento em que passam a ser utilizadas para produção de novos cartazes, tragam em si, desde a concepção, mas também na sua diagramação e impressão, essa intencionalidade do cultivo de novos criadores.

42A Cracolândia é lugar degredado, mas também de degredo e, “por isso mesmo, em muitos aspectos, lugar de grande atração” (Rui 2014: 95). Talvez esteja aí um sentido para que a dupla de artistas migrantes, Paulestinos, tenha escolhido as ruas desse território. Possivelmente, ainda, devido à Cracolândia ser tão itinerante (Frúgoli Jr. & Cavalcanti 2013) quanto à arte que produz é que os Paulestinos podem ter escolhido a degredada cena aberta de uso de crack da região central de São Paulo como seu local privilegiado de inspiração e exposição. Ao pensarmos no degredo, vemos que pode corresponder à pena de desterro ou exílio, uma forma de banimento, mas também a um afastamento voluntário ou mesmo ao local onde vive o degredado. Átila e Renoir, dois nordestinos em São Paulo, que resolveram produzir arte na Cracolândia, não dissimulam sua ligação com o que denominam “rolê do refugiado”, pelo contrário, nela buscam inspiração para criar e expor seus lambe-lambes. Frúgoli Jr. e Spaggiari (2011) nos falam do quanto o termo noia pode ser estigmatizante nesse contexto. Pois foi justamente na terra dos noias que Átila descobriu e se insurgiu contra o preconceito em torno do baiano, que diz respeito a todo nordestino na cidade de São Paulo. Cidade em que o pejorativo noia é usado em uma série significativa de situações para identificar quem faz uso de crack, seja por moradores, lojistas, e outros que frequentam o bairro da Luz, mas não pelos Paulestinos.

43Átila Fragoso, ao tomar o momento da colagem como oportunidade de interação com as pessoas, insita diálogos que, para o artista, não aconteceriam sem que esse espaço fosse criado pelo seu trabalho. O que nos leva a recordar que, no sentido de pensar a vida social como rede de trocas em constante renovação e configuração, Rocha e Eckert (2009: 43) recorrem às ideias de criação destrutiva e destruição criativa, presentes em Harvey (1996), para “enfrentar o desafio de compreender as obras da cultura humana reunidas nas grandes metrópoles”. Deve-se levar em conta, portanto, a decomposição das paisagens urbanas, em que os laços sociais perseguem o fluxo da experiência vivida e em que as formas persistem para além dos seus conteúdos originários. No fluxo dessa experiência da colagem, e da pessoa que se detém frente a um cartaz, é que a mensagem presente na obra, “DESTINO À FRENTE, ATENÇÃO, DESTINO À FRENTE” pode se desdobrar na vida das pessoas envolvidas, e que se deixaram levar.

44No vídeo do lambe VENDO SUA MEMÓRIA, após exibirem imagens que demonstram técnicas para colagem, aparece a sigla “SP” e as palavras “RESERVADO PIXO”. Ao conectar, pela RA, pixo, esses códigos compreensíveis muitas vezes apenas dentro do contexto cultural dos pichadores, com lambe-lambe, os Paulestinos vinculam duas formas de intervenção artística urbana (Abalos Júnior 2019). Uma provocação que para gerar reação de quem assiste, o público, não exige mais o compartilhamento de um código (Gell 1998), como a tag originalmente exigiria, porque a reserva dos muros de São Paulo para os pichadores se materializa como imagem na palma da mão, no aparelho celular.

45Sinal do errantismo da arte paulestina, em um território por si só itinerante, o Biricar – cujo nome vem de birico, termo atribuído a cada fração da pedra de crack que é consumida e, por essa mesma razão, circula quando trocada ou comercializada na Cracolândia (Costa 2017) –, esse simpático carrinho procura se mesclar ao território por onde é levado. Se os biricos transitam às centenas, diariamente, pelo fluxo, o Biricar se desloca puxado pelos Paulestinos, levando suprimentos tão indispensáveis como água, absorventes íntimos, livros e a arte da dupla. Importante lembrar que a distribuição de absorventes e máscaras contra a Covid fez parte das atividades levadas à frente pelo CTS durante a pandemia (Alves & Pereira 2020) e, ainda, que algumas mulheres participantes desse coletivo são beneficiárias dos aluguéis pagos com o dinheiro levantado pelo coletivo Birico com a venda de obras de arte pela internet. O pagamento desses aluguéis fica sob responsabilidade do paulestino Átila Fragozo.

46Os lambe-lambes, ao encurralarem o que os artistas escutam “aqui no território”, podem ser compreendidos pelos passantes segundo seus interesses momentâneos, como a mulher em “busca espiritual”, que enxergou algum sentido religioso no trabalho que estava sendo lambido na rua. Mas podem também convidar à apreciação do processo de colagem, que está na ontologia do trabalho ali exposto: só é lambe-lambe o cartaz que foi lambido. Com a realidade aumentada, os lambes dos Paulestinos podem ser utilizados como gatilhos para conteúdo que traga ao público o processo de colagem por trás das obras expostas pelas ruas. Além disso, abrem a possibilidade de integrar ainda mais a obra ao espaço público, ao buscarem maneiras de conscientizar os visitantes ou transeuntes sobre o conteúdo de RA, garantindo que a história ali contada se some à história contada pela obra de arte física e pelo espaço em que ela é apresentada. (Young & Marshall 2023).

Considerações finais

47O trabalho que aqui apresentamos se propôs descrever e analisar a produção e colagem de lambe-lambes da dupla de artistas nordestinos Átila Fragozo e Renoir Santos, os Paulestinos, no sentido de vislumbrar o quanto uma etnografia, que vá além da interpretação das estéticas finais das expressões, pode nos dizer a respeito desses artistas. Para tanto nos debruçamos sobre o material etnográfico colhido em um mês de inserção no campo, acompanhando os Paulestinos em meio a outros artistas que frequentam o terreno em que se encontra o Teatro Mungunzá. O artigo procura inicialmente contextualizar nossos interlocutores no ambiente artístico mais amplo em torno do Coletivo Birico e na própria cena aberta de uso de crack, para em seguida esclarecer os desafios e oportunidades de uma etnografia na Cracolândia, em meio à Covid-19. Só então pudemos entrar na descrição da criação, produção, comercialização e colagem dos lambes, para finalmente podermos analisar esse material frente às ideias de Gell e de degredo, principalmente.

48Ao debruçarmo-nos sobre a prática do lambe-lambe exercida pelos Paulestinos, percebemos que a dupla se vale da condição de estar em um local de aparente degredo (Rui 2014), uma territorialidade urbana em que persistem modos de ocupação itinerante e estratégias de resistência, em que a produção do vulnerável se depara com uma resistência errante. Talvez esteja aí um sentido para que a dupla de artistas migrantes, Paulestinos, tenha escolhido as ruas desse território. A arte da dupla é errante, seja por lambes carregados e distribuídos pelo Biricar ou ainda pelo material colado nos postes e paredes do bairro, tão errante quanto são as pessoas que frequentam a cena aberta de uso de crack da região central de São Paulo; tudo somado torna esse atrativo território de degredo local privilegiado de inspiração e exposição desses artistas.

49Os Paulestinos acabam se valendo de sua presença na Cracolândia, para, ao conviver com as pessoas que ali residem ou por lá transitam, poderem encurralar (Gell 1998), em lambe-lambes, frases ouvidas em conversas e fatos observados no cotidiano. Essas obras artísticas acabam sendo coladas individualmente ou arranjadas em murais, não só pela Cracolândia, mas também fora dela – essas obras atuam, mudam a paisagem e se espalham pela Cracolândia. Desse modo, os Paulestinos fazem com que os passantes, frequentadores e moradores da Cracolândia leiam frases e ideias retiradas da convivência dos dois autores com outros indivíduos que compartilham o cotidiano do mesmo território, no fluxo da experiência vivida (Rocha; Eckert 2009). Ao promover esse encontro dos indivíduos com pensamentos retirados de seu entorno e até, possivelmente, oriundos da própria pessoa que admira o lambe, pensamentos grafados e expostos, por vezes, com outros em um mural, o que se cria é também uma proposta de reflexão conjunta.

50Dessa forma, seria como se a Cracolândia, por meio das pessoas que habitam aquele território, fosse convidada a refletir sobre si mesma, a partir dos assuntos oriundos do dia a dia, trazidos pela dupla e ali expostos. E todo o restante da cidade ou mesmo do país que venha conhecer a arte dos Paulestinos é também incitado a pensar a partir dessas ideias produzidas sob condições tão singulares de degredo.

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Vianna, Cristiano. 2019. “A experiência do projeto casa rodante nas ruas da luz: química dos encontros e o imaginário político das ruas”, em Matos, Lucília da Silva Matos, Larissa Gonçalves Medeiros, e Vitor Nina de Lima. Brinquedos da saúde: experiências de educação e cuidado na produção da vida. Belém: Pakatatu.

Young, T.; Marshall, M. T. 2023. An Investigation of the Use of Augmented Reality in Public Art. Multimodal Technologies and Interaction, 7(9): 89. Disponível em <https://doi.org/10.3390/mti7090089>.

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Notas

2 Buscaremos, em próximos artigos, analisar outras manifestações artísticas na Cracolândia, tais como: cachimbos para redução de danos em uma instalação de um alambique, do artista Raphael Escobar; quadros elaborados pelo artista e redutor de danos Cleiton Dentinho; um cocar feito de cachimbos de fumar crack de Júlio Dojcar. Todos se tornaram interlocutores em nossa pesquisa, foram entrevistados e acompanhamos de perto suas produções na Cracolândia.

3 A arte na Cracolândia é tema ainda pouco explorado, principalmente pela antropologia. Procuramos citar as referências que encontramos no decorrer do texto. Há ainda trabalhos como o de Calil (2016) e Rigoni Filho (2022), bem como teses que vêm contribuindo com a discussão.

4 O DBA foi um programa municipal que provia moradia, alimentação, trabalho e assistência integral a saúde para moradores da Cracolândia, durante o governo do prefeito Fernando Haddad (PT), com início em janeiro de 2014 até ser encerrado em 2017.

5 Instituto Adesaf (Articulação de Tecnologias Sociais e Ações Formativas)

6 O Teatro de Contêiner Mungunzá foi construído pela Cia. Mungunzá de Teatro em uma área municipal localizada na Rua dos Gusmões, número 43, no bairro da Santa Ifigênia/Luz. A inauguração oficial aconteceu em março de 2017, possui uma estrutura formada por 10 contêineres, com palco para as apresentações e plateia para 99 pessoas.

7 A Boca do Lixo é uma região do centro da cidade de São Paulo localizada no bairro da Luz, em um quadrilátero delimitado pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, Timbiras, São João e Protestantes. Abrigou um polo cinematográfico desde as décadas de 1920, quando empresas como a Paramount, a Fox e a MGM se instalaram na região. A partir dos anos 1960 começa a receber as prostitutas expulsas do bairro do Bom Retiro, abriga uma produção nacional de cinema e ganha fama de bairro boêmio.

8 O Coletivo Birico foi criado por artistas de diversas áreas para arrecadar fundos para ações de solidariedade na região da Cracolândia; surgiu durante a pandemia de Covid-19 e pôde custear a moradia de cinco pessoas em situação de vulnerabilidade social.

9 Não é nossa intenção analisar mais demoradamente o trabalho de Gell, até pela economia de espaço, nem pretendemos abordar as contribuições sobre o tema de Latour (2012) e Ingold (2006, 2012, 2015) – que podem ser acompanhadas, por exemplo, em trabalhos como o de Azevedo (2020).

10 Para uma revisão em detalhe de Art and Agency, ver Morphy (2009).

11 DJ seria a abreviação de disc jóquei, responsáveis pelo controle dos toca-discos nas festas; MC é a abreviação de master of cerimony, responsável por animar a festa; e os B-boys são os dançarinos.

12 Também estivemos em contato com o Coletivo Tem Sentimento (CTS); Coletivo Birico, do qual faz parte o artista Cleiton Ferreira (Dentinho); Pagode na Lata; e o próprio Mungunzá. Cada uma dessas organizações e outros artistas serão detidamente analisados em futuros artigos.

13 Aqui fazemos uma breve alusão a Benjamin (1994), para quem […] “no tempo das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é sua aura” (grifo no original).

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Índice das ilustrações

Legenda Foto 1 - Átila passa a cola na parede com um rolo de tinta. Fonte: Coleção particular dos autores.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5274/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 3,1M
Legenda Foto 2 - Mural dos Paulestinos, na lateral do container que abriga a dupla, sob a oficina de costura do CTS. Fonte: Coleção particular dos autores.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5274/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 1,1M
Legenda Foto 3 - Imagem retirada do vídeo de realidade aumentada VENDO SUA MEMÓRIA. Fonte: Coleção particular do autor.
URL http://journals.openedition.org/cadernosaa/docannexe/image/5274/img-3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 1,2M
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Ygor Diego Delgado Alves e Pedro Paulo Gomes Pereira, «A Arte dos Paulestinos: Lambe-lambes e Reflexões do Degredo»Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 13 | -1, 103-124.

Referência eletrónica

Ygor Diego Delgado Alves e Pedro Paulo Gomes Pereira, «A Arte dos Paulestinos: Lambe-lambes e Reflexões do Degredo»Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 13 | 2024, posto online no dia 01 agosto 2024, consultado o 02 novembro 2024. URL: http://journals.openedition.org/cadernosaa/5274; DOI: https://doi.org/10.4000/12bpr

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Autores

Ygor Diego Delgado Alves

UNIFESP, São Paulo, SP, Brasil
antropologiaygor@yahoo.com.br

Pedro Paulo Gomes Pereira

UNIFESP, São Paulo, SP, Brasil
pedropaulopereira@gmail.com

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Direitos de autor

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