Chamada de artigos

Dossiê Antártica como reflexo da América Latina: identidade e multiplicidade

Coordenação: Ignacio Javier Cardone (PUCP, Peru)

icardone@pucp.edu.pe

David Dumoulin (IHEAL-Creda, França)

david.dumoulin@sorbonne-nouvelle.fr

Em 1º de dezembro de 1959, em Washington D.C., após um longo processo de negociação, os doze países participantes do programa antártico do Ano Geofísico Internacional (AGI) (1957-1958) chegaram a um acordo histórico visando consagrar o continente à paz e à ciência. Este acordo concretizou-se mediante a assinatura do Tratado da Antártica, que encerrou (ou ao menos suspendeu) uma era de disputas e conflitos na região. Entre seus doze signatários, figuram dois países latino-americanos, Argentina e Chile, ambos com uma longa história no “continente branco” e no centro do principal conflito territorial em oposição às reivindicações britânicas.

Desde sua entrada em vigor, em 1961, o tratado internacional evoluiu significativamente com a ampliação de suas áreas de aplicação e de seu quadro regulamentar, o desenvolvimento de um cunho cada vez mais ambiental e a incorporação de novos adeptos e membros ativos. Atualmente, ele conta com 56 países membros, 29 dos quais têm um estatuto consultivo, ou seja, possuem direito a voto nas decisões relativas ao continente. A América Latina participou desta evolução, incluindo nove membros ao conjunto anterior, quatro dos quais obtiveram estatuto consultivo: Brasil, Uruguai, Peru e Equador; outros dois países com importantes atividades no continente, Colômbia e Venezuela, ainda não alcançaram reconhecimento suficiente para obter um estatuto similar. A América Latina afirma-se, portanto, como uma das regiões mais envolvidas e presentes no regime antártico, o que se justifica não somente por sua proximidade geográfica, mas sobretudo pelo que se percebe como um sentido de conexão e pertencimento ao continente branco (geológico, histórico e ambiental).

Embora a Antártica seja um lugar dedicado à paz e à ciência, relativamente livre de conflitos, de exploração econômica e de contaminação, algumas questões permanecem controversas, como a bioprospecção, a pesca e o turismo, enquanto outras podem vir a ser fonte de conflitos intensos no futuro, como a questão não resolvida da soberania territorial, vinculada, por sua vez, ao suposto potencial de exploração mineral. Sendo assim, o continente afirma-se ao mesmo tempo como um lugar de utopia e de grandes expectativas geopolíticas.

Apesar de os estudos sociais tradicionais sobre a Antártica privilegiarem aproximações ancoradas na história, nos interesses econômicos, no direito e na política, uma abordagem mais ampla e interdisciplinar tem ganhado espaço nos dias de hoje, analisando os aspectos sociais do continente, o que inclui os estudos culturais sobre imaginários, etnografias, estudos de gênero e socioecológicos, entre outros. Assim, vários estudos estão sendo realizados no campo dos estudos sociais de ciência e tecnologia, especialmente sobre as estações científicas e a presença física de cientistas no continente. Estes esforços revelam-se pertinentes para documentar aspectos culturais, sociais e ambientais e enriquecer as abordagens históricas, políticas e econômicas da Antártica e os desafios futuros cujos contornos já podem ser vislumbrados.

Em um contexto de crise ambiental global, de multiplicação de conflitos militares e de rupturas da ordem institucional internacional, é crucial estudar e refletir sobre o papel que a Antártica desempenhará no futuro. Para tanto, precisamos entender seu passado, avaliar seu presente e analisar os possíveis cenários num futuro próximo. A América Latina tem desempenhado um papel importante neste contexto, razão pela qual é fundamental entender sua relação com o continente austral.

Algumas vezes considerada como uma mera extensão da América Latina, a Antártica parece refletir uma ampla pluralidade de identidades e percepções latino-americanas que revelam um sentimento de conexão enraizado em realidades geológicas, mas também societárias. Deste modo, parece ter integrado os traços divergentes e unificadores das identidades regionais. A fim de analisar e dar conta deste fenômeno, esperamos que este dossiê reflita as diferentes abordagens da Antártica a partir da América Latina e permita uma releitura da imaginação geopolítica latino-americana, bem como dos laços políticos e emocionais existentes com o continente branco.

Nesse sentido, convidamos os pesquisadores de ciências humanas e sociais a contribuir com este dossiê sobre a América Latina e a Antártica em uma perspectiva disciplinar ou interdisciplinar. Receberemos contribuições focadas nas relações entre essas duas regiões em abordagens disciplinares diversas: antropologia, arqueologia, estudos culturais, economia, humanidades ambientais, história, relações internacionais, direito internacional, ciência política, literatura, estudos sociais das ciências e tecnologias e ecologia política.

Propomos aos autores que elaborem propostas que abordem uma ou mais das seguintes questões:

1- Plural ou singular? Quais são os "mundos" dessas Antárticas latino-americanas? Trata-se de revisitar a problemática da Antártica como entidade única e uniforme, já colocada em questão pelas ciências sociais. Em primeiro lugar, atualmente há um consenso sobre o fato de o continente ser constituído por diferentes sub-regiões que podem ser individualizadas em termos geológicos, ecossistêmicos, políticos, nacionais ou econômicos. Contudo, a diversidade desses mundos antárticos também se deve ao fato de que muitos países latino-americanos estão investindo na Antártica, o que implica uma série de iniciativas e, portanto, mundos antárticos muito diferentes. A Antártica chilena, por exemplo, tem uma história, uma importância no imaginário nacional, um lugar na ação diplomática que remete a recursos humanos e tecnológicos e a uma intervenção direta no território antártico que são muito distintos, digamos, das dinâmicas correspondentes no Brasil ou na Costa Rica. No entanto, há ao mesmo tempo uma abordagem e uma identidade comuns com o continente que singularizam esta relação entre a América Latina e a Antártica. Esta tensão entre plural e singular aplica-se à Antártica, mas também à própria maneira como a América Latina se insere nos assuntos internacionais.

2- Onde se situam as Antárticas latino-americanas nos estudos de ciências humanas e sociais? Para as ciências humanas e sociais, a Antártica latino-americana constitui mundos amplamente desterritorializados, um conjunto de atividades desenvolvidas SOBRE a Antártica e não apenas NA Antártica? São mundos existentes nas políticas públicas, nos imaginários, nos textos, nas sociabilidades? Quais são os mundos sociais da Antártica latino-americana? Qual é o lugar dos próprios territórios antárticos na vida social dos grupos que trabalham no/com o continente antártico? Quais são as relações entre esses grupos (políticos, diplomáticos, científicos, econômicos, populações nacionais em geral etc.) que vivem longe da Antártica e aqueles que lá residem, ainda que temporariamente? De acordo com a famosa pergunta do historiador ambiental Adrian Howkins: “É preciso ir à Antártica para trabalhar sobre a Antártica latino-americana?” E metodologicamente, de que modo as ciências humanas e sociais analisam a Antártica latino-americana? Com arquivos, entrevistas, etnografia das reuniões e dos corredores burocráticos e diplomáticos, e/ou trabalho de campo no próprio continente?

3- A Antártica como espelho/reflexo ds países latino-americanos. De que modo a posição dos diferentes países latino-americanos em relação à Antártica revela aspectos da vida política de cada nação e da região como um todo, incluindo processos de integração, cooperação e competição entre eles? De que modo isto nos informa sobre as transformações do lugar ocupado por estes países na ordem internacional? É possível utilizar o conhecimento sobre estes países e a Antártica como um recurso para analisar as transformações mais amplas da geopolítica latino-americana?

4- Apresentar uma variedade de perspectivas disciplinares sobre a Antártida. Qual é a contribuição de cada disciplina das ciências humanas e sociais para a análise do continente antártico? Um dos objetivos deste dossiê é também o de evidenciar a rica contribuição de cada disciplina para os estudos emergentes em ciências humanas e sociais sobre a Antártica. Incentivamos, portanto, propostas que ofereçam uma visão abrangente dos avanços e desafios impostos por abordagens disciplinares específicas: em relações internacionais, sociologia da ação pública, arqueologia, antropologia, ciências humanas, entre outras.

Todas as propostas selecionadas passarão pelo processo de avaliação por pares (duplo cego), e os autores serão posteriormente convidados a participar de um workshop virtual para discutir melhorias e possíveis conexões entre as diferentes contribuições.

O dossiê será coordenado por Ignacio Javier Cardone, professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) e especialista da Antártica, com ênfase no papel da ciência e nas políticas antárticas latino-americanas. Ele é autor de vários artigos e capítulos de livros sobre o assunto, bem como do livro The Antarctic Politics of Brazil (Palgrave, 2022). Ele também é membro ativo do Comitê Permanente de Ciências Humanas e Sociais do Comitê Científico de Pesquisa Antártica (SC-HASS/SCAR).

O coeditor deste dossiê, David Dumoulin Kervran (IHEAL-CREDA), se interessa pela Antártica há vários anos e, em particular, pelas estações científicas que se multiplicam por lá. No projeto de pesquisa coletiva que coordena (ANR SciOUTPOST), as estações antárticas francesas são comparadas com outros postos científicos isolados por meio da categoria "postos avançados da ciência". Ele também supervisiona a tese de doutorado em antropologia de Sophie Houdart sobre a estação antártica francesa.

Envio de artigos: https://ojs.openedition.org/index.php/cal

Data limite para submissão de artigos: 15 de janeiro de 2025

Os Cahiers des Amériques latines também recebem contribuições espontâneas para a seção “Études” ao longo de todo o ano.