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Comptes rendus

José Marcelo Marques Ferreira Filho, Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século xx)

Recife, Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2020, 392 p.
Caio Augusto Amorim Maciel
p. 223-226
Référence(s) :

José Marcelo Marques Ferreira Filho, Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século xx), Recife, Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2020, 392 p.

Texte intégral

1A publicação da pesquisa de José Marcelo Marques Ferreira Filho revela as múltiplas conexões, na academia brasileira, entre os trabalhos do antropólogo Sidney W. Mintz, inspirador fundamental dos estudos sobre plantação e poder, a obra seminal da historiadora Christine R. Dabat acerca dos moradores de engenho e os mais recentes aportes da história ambiental inspirados por Thomas D. Rogers. Dabat, que orientou a tese e prefaciou o livro, aponta afinidades de Ferreira Filho com Manuel Correia de Andrade e Fernand Braudel, destacando a importância do lançamento no combate à falácia de que tudo já fora dito e escrito sobre cana-de-açúcar na região Nordeste do Brasil.

2Tanto Braudel quanto Correia são essenciais ao esboço geral de uma geografia do espaço-tempo, porém a inspiração mais flagrante do livro repousa no geógrafo Milton Santos, como explicitado já na epígrafe (p. 17): «a história não se escreve fora do espaço e não há sociedade a-espacial». Para leitores oriundos da geografia, a reflexão é plenamente geográfica, assim como deve ser tomada enquanto contribuição à reflexão histórica por (e para) historiadores. De fato, Ferreira Filho demonstra maestria em concatenar contribuições transdisciplinares, trazendo um conjunto de questões e perspectivas que reacendem os debates em torno da formação sócio-­espacial do mundo dos engenhos.

3O autor transcende as contribuições individuais de cada uma dessas influências-mestras e áreas do saber. Assim, nos oferece uma interpretação original e ousada da região de plantation como um território-cativeiro para a massa de trabalhadores rurais, o que acabou por constituir o segredo interno –expressão cunhada por Stuart B. Schwartz (1999)– da longevidade histórica do sistema. A tese traz uma aposta: para acentuar a inextricável relação entre história e geografia na compreensão do mundo do açúcar, o autor cria uma expressão –integrada ao próprio título– arquitetura espacial da plantation, definindo-a como tentativa de apresentar uma história não fragmentada dessa região agrossocial, desde a escravidão legal até meados do século xx, englobando tempo e espaço num sistema coerente e único. Ferreira Filho constrói sua meticulosa argumentação ao logo de quase 400 páginas divididas em 8 partes, dentre as quais dobra a aposta no fundamental capítulo¿ VI, ao definir o sistema de plantação como um espaço concentracionário.

4A geografia é evocada em minúcias e alçada a fio condutor, mediante os conceitos de espaço, território e paisagem, de modo a construir o argumento da obra: as relações socioterritoriais na zona da cana-de-açúcar resultaram na relativa imobilização de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que ali tiveram suas existências submersas pela lei do engenho, não apenas em uma monótona, isolada e opressiva paisagem verdejante, como também em condições miseráveis, sujeitos permanentemente à força ordenadora da violência e do medo. Para o autor, os engenhos constituíam um pedaço do território brasileiro situado fora da ordem jurídica normal, onde a liberdade era contingente. Um espaço-tempo de exceção: “a arquitetura espacial da plantation não era simplesmente o resultado de suas próprias condições no passado, senão fruto de um longo processo de produção e reprodução de um sistema (ela mesma) –herdeiro do tempo escravista e colonial– arquitetado para funcionar com base na exploração de força de trabalho coagida” (p. 27).

5Torna-se evidente que a noção de arquitetar remete a uma simbiose entre espaço, tempo e potência –que os geógrafos costumam abordar através do conceito de território: expressão espacial de relações assimétricas de poder (Raffestin, 1993; Santos, 2005). O próprio território açucareiro, portanto, seria a prisão que os senhores de engenho construíram para empatar a mão-de-obra nos canaviais, moradas e vargens, em analogia à clássica definição de Raffestin.

6O livro atualiza a problematização de uma ruralidade própria da zona canavieira, já apontada no livro Nordeste de Freyre (1936). Ferreira Filho reflete acerca da natureza das relações que se estabelecem entre as pessoas e uma paisagem agrária marcadamente esvaziada de vida, submetida ao domínio hierárquico e acachapante dos proprietários de terra. As relações entre as pessoas e as coisas são precedidas da coisificação da força de trabalho enquanto elementos da paisagem, da mesma natureza que a vegetação, o relevo e os animais, tal como apontado por Rogers (2009).

7Mister reconhecer, ainda, que esse conceito, ao contrário de espaço e território, não merece o mesmo aprofundamento no texto, aproximando-se ora de um quadro mental, ora de uma configuração territorial de distâncias, relevos e formas. Tal dualismo é enfrentado com a profissão de fé da geografia cultural crítica, mediante adoção de dois corolários propostos por Mitchel (1996), citados nas p. 33 e 42: a) « devemos explorar não apenas a morfologia da paisagem ou a representação da paisagem, mas a interdependência entre as duas »; b) « a relação entre forma material e representação ideológica deve ser o centro de nossas análises ».

8A paisagem há muito tem atraído atenção de vários cientistas sociais, como o próprio Freyre, tributário de uma abordagem culturalista afinada com Carl Sauer (1925). Recorrendo aos aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem regional, o mestre de Apipucos atestara que a violência ecológica e militar (diríamos hoje: miliciana) da implantação da monocultura gerou na franja úmida do Nordeste um espaço agrícola, porém não rural, no sentido do estabelecimento de tênues relações afetivas (e ideológicas) entre as pessoas e a natureza. Relações tão mais evanescentes quanto mais próximos os sujeitos da casta de proprietários de terra, restando apenas aos caboclos alguma vivência e apego aos elementos naturais, via hibridização da cultura ameríndia e africana. Afinidade não bucólica, mas decorrente das necessidades de sobrevivência nas terras marginais à plantation, e de onde os moradores deveriam tirar o próprio alimento.

9Tal horizonte relacional, mostra Ferreira Filho, teria persistido na região da cana, a despeito de mudanças na base técnica ao longo do século xx. Há aqui uma clara afinidade não com Freyre, mas com o sentido de paisagens-que-trabalham (laboring landscapes), proposto por Rogers (2009), autor que destrincha de modo contundente o ethos e o páthos da geografia do engenho, ao invés de lhe tecer loas. Por conseguinte, a arquitetura agora desenhada compõe –complementarmente ao cenário de trabalho coercitivo– o que se poderia alcunhar de paisagens-que-aprisionam.

10Daí aventar-se que os aspectos subjugantes da paisagem do açúcar marcam profundamente o “gênio do lugar” e as relações entre as pessoas e os engenhos –principalmente dentre aqueles sujeitos encarcerados pelas morfologias e significações atinentes ao universo dos trabalhos braçais. Na visão do autor, o arranjo dos campos, moradas, estradas, matas e fábricas, os sentimentos de temor correlatos a cada uma dessas formas, a gestão violenta dos corpos no mundo interno e adjacente dos latifúndios, tudo isso configuraria uma condição sine qua non para a conservação da liberdade contingente da massa trabalhadora, retroalimentando a própria organização paisagística fechada da plantation ao longo dos séculos.

11Ferreira Filho retoma Dabat (2012) quanto à identificação do traço predominante da história desta zona canavieira: a longevidade plurissecular da permanência, destacando-se o monopólio das terras por algumas famílias, a monocultura e um cruel sistema de exploração e coerção da mão-de-obra. No entanto, aprofunda as estratégias de imobilização das pessoas no mundo dos engenhos a partir dos liames materiais (formas, distâncias, isolamento) e imateriais (medos, sentimentos de aprisionamento, desonra) de sua geograficidade. Revela um espaço de exclusão e violência historicamente sedimentadas, inclusive com a bestialização dos trabalhadores e trabalhadoras rurais

12Por que, então, o trabalho não assume a perspectiva de uma geografia histórica, pura e simplesmente? Como vimos, o contexto territorial do Nordeste canavieiro foi denominado por Ferreira Filho como uma complexa trama espacio-temporal. Tenta o autor uma geografia histórica e ambiental da cana-de-açúcar, onde ao conjunto delineado caberia perfeitamente a noção cenário (Gomes, 2017): reunião simultânea de acontecimentos e ambientação física de um quadro, propiciando uma análise espacial totalizante.

13Por outro lado, a seção Sobre fontes e métodos (p. 49-60) revela um firme compromisso historiográfico com a busca por arquivos amplos e de difícil acesso, reunidos seja em publicações patronais ou sindicais, registros em hospitais ou tribunais (Juntas de Conciliação e Justiça, Tribunal Regional do Trabalho), além de cartas e mapas diversos. Destaque para o esforço em levantar as informações sobre as localizações e características fisiográficas dos engenhos, donde os mapas e esquemas apresentados constroem o quadro geográfico essencial aos argumentos do livro: valiosas fontes que tornam possível escrever sobre a plantation de forma original.

14Como quer que seja, Ferreira Filho reafirma que o caráter da região canavieira nordestina, importante espaço agrário de selvagem hierarquia social, tranca os horizontes daqueles que, submetidos a trabalhos sob coerção nos campos, renovam o cativeiro moderno. O trabalho bruto, a falta de liberdade e sua baixa qualidade de vida em geral convertem-se em elementos da paisagem, lidos pela sociedade maior no contexto de «condições culturais derivadas do sistema de plantação», na terminologia de Sidney Mintz (2003): relações sociais em termos de conteúdo cultural específico, que permitem a operacionalidade desse sistema agrossocial. O ponto chave de Ferreira Filho é atentar para a organização do espaço (paisagem, território) como parte essencial para a continuada reprodução desses cativeiros abertos em que se transformaram engenhos, usinas e pontas de rua no século xx.

15A reinterpretação original da plantation realizada por Ferreira Filho, em suma, reúne as mais diversas matrizes do pensamento sobre a Zona da Mata pernambucana, para propor que, mesmo abolida a escravidão, as estruturas sócio-espaciais da região sustentaram longamente –senão pela lei, ao menos na prática– um território de liberdade contingente para os trabalhadores: extorquidos geração após geração por um sistema tão perfeitamente orquestrado que mesmo os assalariados “livres” (proletários) eram em tudo e por tudo assimilados a “cativos” –como a propósito se autodenominavam (Dabat, 2012). A pretensão teórica do livro consiste em ultrapassar a história ambiental e regional do açúcar para vislumbrar uma geopolítica da agroindústria, arriscando a denominação de espaços concentracionários para melhor caracterizar os campos tropicais de exploração de mão-de-obra. O debate sobre o tema é revigorado pelas páginas deste libelo inovador.

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Pour citer cet article

Référence papier

Caio Augusto Amorim Maciel, « José Marcelo Marques Ferreira Filho, Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século xx) »Caravelle, 117 | 2021, 223-226.

Référence électronique

Caio Augusto Amorim Maciel, « José Marcelo Marques Ferreira Filho, Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século xx) »Caravelle [En ligne], 117 | 2021, mis en ligne le 01 février 2022, consulté le 29 mars 2024. URL : http://journals.openedition.org/caravelle/11894 ; DOI : https://doi.org/10.4000/caravelle.11894

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Auteur

Caio Augusto Amorim Maciel

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

 

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Droits d’auteur

CC-BY-NC-ND-4.0

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