- 1 Este estudo foi conduzido no Centro de Investigação em Ciência Política (UID/CPO/00758/2020), Uni (...)
- 2 O presente artigo está escrito essencialmente sob a ótica europeia ou dos Estudos Europeus, por s (...)
- 3 Para uma visão ampla das relações UE-África ver, por exemplo, Adebajo & Whiteman (2012), Carbone (...)
1As relações entre a União Europeia (UE) e África têm raízes profundas e complexas, apoiando-se em parte nos laços bilaterais, coloniais e pós-coloniais, que diferentes países europeus foram desenvolvendo com o continente africano ao longo dos tempos.2 Tal relacionamento inter-regional foi sendo construído gradualmente, a vários níveis, abrangendo um número crescente de matérias e com base numa grande institucionalização. Com efeito, trata-se dos mais antigos, abrangentes e densamente institucionalizados relacionamentos da UE com países terceiros. Essas relações têm mesmo servido de “laboratório” ou representado a génese do desenvolvimento de novas políticas que, de forma conjunta com outras iniciativas, têm contribuído para a afirmação da UE enquanto ator internacional.3
2Impulsionadas por ligações históricas, proximidade geográfica e, em certa medida, cultural, bem como laços importantes de interdependência em diversas áreas (economia, segurança, ambiente, saúde, etc.), as relações UE-África oferecem um potencial de cooperação em diferentes planos que, até à presente data, está longe de ter sido aproveitado da melhor maneira. Além de problemas decorrentes de um empenhamento variável por parte de certos países africanos e europeus, interesses e perspetivas divergentes que por vezes dão azo a tensões diplomáticas, bem como desafios sistémicos que não deixam de influenciar a relação entre os dois lados, de um ponto de vista mais institucional os progressos nessa cooperação têm sido igualmente afetados por alguma complexidade, burocracia, fragmentação ou sobreposição de mecanismos, programas e políticas, que conduzem a falhas de implementação.
3Um bom exemplo desta complexidade nas relações UE-África tem sido a coexistência durante as últimas duas décadas de dois importantes instrumentos de cooperação: o Acordo de Cotonou e a chamada Parceria UE-África, ambos lançados em 2000. Enquanto o Acordo de Cotonou se inspira em grande medida em instrumentos anteriores, com origem já nos anos 1950, focados na África subsariana e em matérias económicas segundo uma lógica “doador-beneficiário”, a Parceria UE-África procurou, sobretudo a partir de 2007, marcar uma mudança no relacionamento entre as duas regiões ao adotar uma abordagem “continente-a-continente” de cariz mais político e segundo uma lógica “de igual para igual”. No entanto, existem áreas de sobreposição e tensão entre os dois instrumentos, além de que outros mecanismos foram entretanto proliferando, tornando o panorama do relacionamento ainda mais complexo. Face a isto, o fim da vigência do Acordo de Cotonou, previsto inicialmente para 2020, foi encarado como uma oportunidade para repensar a relação UE-África.
4O presente artigo aborda esta problemática focando-se no designado Acordo “pós-Cotonou” e nas suas possíveis implicações para a governança das relações UE-África. Este novo acordo, suposto substituir o Acordo de Cotonou, foi negociado pelo grupo de países de África, Caraíbas e Pacífico e a UE entre 2018 e 2021, mas à data da finalização deste artigo o acordo ainda não tinha entrado em vigor. Assim, tratando-se de uma temática recente e em desenvolvimento, os objetivos deste trabalho têm muito de exploratório. Mais do que elaborar em profundidade sobre tais implicações, visa-se antes descrever desafios centrais e começar a perspetivar possíveis resultados ou hipóteses de evolução. Simultaneamente, procura-se contribuir para colmatar a escassez de estudos sistemáticos em língua portuguesa neste domínio geral, o que poderá ajudar uma audiência mais ampla a alcançar um melhor conhecimento e compreensão destas matérias.
5Partindo da literatura existente, o artigo começa por providenciar algum contexto traçando um breve retrato longitudinal e comparativo da evolução dos principais quadros de cooperação específicos às relações UE-África. De seguida, aborda-se de maneira sucinta o processo de negociação do Acordo pós-Cotonou, bem como as suas principais inovações. Num terceiro passo são analisados alguns dos desafios centrais que o novo acordo enfrenta, bem como as suas possíveis implicações para a governança das relações UE-África.
- 4 Esta secção baseia-se, em parte, em Raimundo (2020).
6As relações UE-África têm sido regulamentadas por uma série de mecanismos institucionais, cujas dimensões formais e informais, materiais e ideacionais, têm formatado de maneira importante tal relacionamento inter-regional.4 Ao longo do tempo, esses mecanismos foram evoluindo de maneira incremental, sob efeito de influências várias, tanto exógenas como endógenas às relações UE-África, sendo que o lado europeu tem sido, em regra, mais influente e determinante na definição dos contornos gerais do relacionamento.
7Os textos fundadores da UE, nos anos 1950, previam já alguns dispositivos em matéria comercial e de ajuda ao desenvolvimento para lidar com os laços históricos e coloniais de alguns Estados-membros, essencialmente na África francófona. Na década seguinte, a vaga de descolonização em grande parte do continente africano levou à negociação da Convenção de Yaoundé, que criou um quadro contratual de cooperação multilateral reconhecendo a paridade formal entre o lado africano e o lado europeu, mas mantendo as características principais dos mecanismos preexistentes de cooperação económica, focados na África subsariana.
8Na década de 1970, a adesão do Reino Unido à então Comunidade Económica Europeia propiciou, em grande medida, a celebração da Convenção de Lomé, alargando o âmbito geográfico do relacionamento inter-regional a ex-colónias britânicas em África, mas também nas Caraíbas e Pacífico, que, em conjunto, viriam a formar parte do chamado Grupo de Estados de África, Caraíbas e Pacífico (ACP). Os acordos de Lomé, tendo vigorado durante 25 anos, procuravam originalmente estabelecer um novo modelo de relacionamento entre países do Norte e do Sul, incorporando mecanismos comerciais inovadores e aumentando os montantes de ajuda ao desenvolvimento, mas com o passar do tempo os seus termos foram-se tornando menos “progressistas” ou especiais.
- 5 Ver, por exemplo, Schumacher et al. (2018), Youngs (2016).
- 6 Ver, entre outros, Bertelsmann-Scott (2021), Bertelsmann-Scott et al. (2000), Bezuidenhout & Claa (...)
9As relações da UE com o Norte de África desenvolveram-se de forma separada, a partir de meados dos anos 1990, nomeadamente no âmbito do Processo de Barcelona, que mais tarde viria a dar lugar à União para o Mediterrâneo, por sua vez parte da mais ampla Política Europeia de Vizinhança.5 Também o relacionamento europeu com a África do Sul se desenvolveu de maneira diferenciada, a partir de finais dos anos 1990, com a celebração de acordos específicos de âmbito económico e, mais tarde, também político.6
10Em 2000, a Convenção de Lomé foi substituída pelo Acordo de Cotonou, assinado pelos então 15 Estados-membros da UE e por 77 países do Grupo ACP, por um período de 20 anos e com base jurídica. Ainda que muito focado em aspetos económicos e de desenvolvimento, este novo acordo reforçou a dimensão política do relacionamento UE-ACP, abarcando novas áreas de cooperação, tais como paz e segurança, migrações e boa governança. Outra novidade importante foi a introdução de um princípio de liberalização comercial recíproca, a ser negociada entre a UE e seis regiões ou subgrupos do bloco ACP de maneira separada. Esta diferenciação e regionalização da relação económica rompeu com o regime uniforme anteriormente existente, aplicado a todo o Grupo ACP.
- 7 A partir de 2017 a designação parceria UE-UA começa a ser mais utilizada devido à readmissão ness (...)
- 8 Ver, por exemplo, Kell & Vines (2021), Mangala (2013), Sheriff & Kotsopoulos (2014).
11Também em 2000, no contexto da primeira cimeira de líderes europeus e africanos no Cairo, foi lançada a designada Parceria UE-África, um quadro político geral que, a partir de 2007, passou a ser guiada pela Estratégia Conjunta UE-África e executada através de planos de ação plurianuais, revistos durante cimeiras regulares. A institucionalização da Parceria, embora sem base jurídica, representou a criação de um instrumento ambicioso, com uma abordagem integrada, de longo prazo e intercontinental, ou seja, abarcando pela primeira vez toda a África (tanto o Norte de África como a África subsariana) e em que a UE passou a ter como interlocutor a União Africana (UA).7 Procurando marcar uma viragem no relacionamento entre os dois continentes, este mecanismo a nível continental teve como propósito ir além de questões de desenvolvimento, visando ainda reforçar o diálogo político e alcançar uma cooperação mais estratégica em matérias de interesse comum.8
12Se um dos objetivos da Parceria UE-África era ultrapassar a fragmentação existente entre os quadros de relacionamento neste domínio, a verdade é que desde então continuaram a proliferar os mecanismos e instrumentos de cooperação. Por exemplo, a nível bilateral, além dos acordos com a África do Sul já aludidos acima, a UE viria a reforçar, de maneira formal e separada, o seu diálogo político e cooperação com a Nigéria, em 2009, e com Angola, em 2012. A nível regional, Bruxelas adotou estratégias específicas para o Sahel e Corno de África, em 2011, e para o Golfo da Guiné, em 2014. Além dos quadros de cooperação e estratégias aplicáveis especificamente às relações UE-África, esta multiplicação também se tem verificado a nível de outros programas temáticos, mecanismos institucionais e instrumentos financeiros, algo que não cabe abordar aqui.
- 9 Ver, por exemplo, European Commission, “Africa-EU Partnership”. https://ec.europa.eu/internationa (...)
13Se as atuais relações UE-África têm raízes antigas e beneficiam de uma grande institucionalização, a vários níveis, que se acelerou a partir dos anos 1990, verificando-se um progressivo alargamento e diversificação do seu âmbito geográfico e temático, esta densidade do relacionamento inter-regional tem, porém, sido acompanhada de um importante grau de complexidade, resultante, em grande parte, do “mosaico” de mecanismos que estruturam a sua governança. De um ponto de vista oficial, esta complexidade tem sido apresentada como necessária para lidar com a diversidade de situações e a emergência de novos desafios, sendo que existiria uma complementaridade entre os diferentes quadros de cooperação.9 Outras visões, mais críticas, têm apontado para as dificuldades que isso tem criado, especialmente em termos da implementação desses mesmos quadros ou estratégias. Assim, enquanto alguns autores falam de uma fragmentação, sobreposição ou duplicação de quadros de relacionamento (Kell & Vines, 2021, p. 107), outros referem mesmo a presença de objetivos contraditórios (Fargion & Gazibo, 2021, p. 6). Face a este panorama, o termo da vigência do Acordo de Cotonou, previsto inicialmente para 2020, foi encarado como uma oportunidade para repensar o relacionamento entre a Europa e África.
- 10 Ver Adebajo & Whiteman (2012), Bossuyt et al. (2016), Carbone (2013a).
14Na verdade, o fim previsto do Acordo de Cotonou fez emergir um velho debate sobre se o quadro UE-ACP ainda seria relevante ou se representaria uma mera relíquia do passado. As dúvidas crescentes refletiam mudanças de prioridades dos dois lados da parceria, com um menor empenho ou desinteresse de vários Estados-membros da UE e o ceticismo de alguns países africanos quanto ao desempenho do Grupo ACP. Simultaneamente, a intensificação de dinâmicas de regionalização dentro do próprio Grupo ACP e a emergência de outros quadros políticos paralelos (como descrito acima), contribuíram para intensificar as incertezas quanto ao futuro da parceria UE-ACP.10
15As negociações entre a UE e o Grupo ACP para um novo acordo que sucedesse ao Acordo de Cotonou tiveram início em setembro de 2018, revelando-se demoradas e intensas, fruto de divisões e tensões, tanto entre cada lado das negociações como, principalmente, dentro de cada bloco. Nas discussões preparatórias que antecederam as negociações, do lado europeu a tradicional clivagem entre “regionalistas” (defendendo a preservação da parceria UE-ACP enquanto quadro abrangente e único de cooperação internacional) e “globalistas” (opostos ao estatuto especial dos países ACP ou, noutra versão, a favor de uma abordagem conjunta para África) foi agravada pela posição de alguns Estados-membros, tais como a Hungria e a Polónia, no que toca à questão das migrações. Por sua vez, o Grupo ACP apareceu dividido, com a UA a defender inicialmente a celebração de um acordo UE-África, separado do quadro UE-ACP. Nas negociações propriamente ditas entre a UE e os países ACP alguns dos principais pontos de tensão e dificuldade tiveram a ver com questões relacionadas com direitos sexuais e migrações (ver Carbone, 2021, pp. 244-252; Ishmael, 2021).
- 11 Em abril de 2020, o Grupo de Estados ACP passou a designar-se Organização dos Estados de África, (...)
- 12 À data da redação do presente artigo, o novo acordo ainda carecia de ser ratificado pelas partes, (...)
- 13 Ver Partnership Agreement between [the European Union/The European Union and its Member States], (...)
16Após mais de dois anos de negociações, a UE e a Organização dos Estados de África, Caraíbas e Pacífico (OEACP) chegaram a um entendimento político geral sobre um novo acordo de parceria em finais de 2020.11 Concluído por um período inicial de 20 anos, este acordo “pós-Cotonou” foi rubricado pelas partes em abril de 2021, marcando este passo o fim oficial das negociações.12 O novo Acordo de Parceria UE-OEACP tem muitos traços comuns com anteriores quadros de cooperação neste domínio, mas também comporta importantes inovações.13 De seguida abordam-se resumidamente algumas dessas principais inovações, quer em termos de forma quer de conteúdo.
17O novo acordo introduz uma estrutura híbrida “1 + 3”, articulando uma base comum com três protocolos regionais distintos para África, as Caraíbas e o Pacífico. Enquanto a base comum se aplica a todos os países, definindo os valores e as prioridades que norteiam a parceria, os protocolos regionais procuram reforçar as relações entre cada região e a UE, comportando prioridades e mecanismos de governança específicos, inclusive assembleias parlamentares regionais. Estas mudanças foram mais um contributo para as dinâmicas de regionalização da parceria, suscitando apreensão junto da OEACP devido ao risco de propiciarem a sua fragmentação ou diluição (Boidin, 2020, p. 3; Ishmael, 2021, p. 12; Medinilla, 2021, p. 4).
18O novo acordo UE-OEACP inclui seis grandes áreas temáticas (direitos humanos, segurança, desenvolvimento humano, ambiente, crescimento sustentável e migrações), igualmente importantes, indo assim além do foco em questões de desenvolvimento ainda bastante presente no Acordo de Cotonou. No olhar crítico de Lecompte e Vircoulon (2021) sobre esta questão, o acordo pós-Cotonou “confirma a proliferação desordenada de objetivos e o desaparecimento do desenvolvimento como objetivo dominante”, passando este a ser apenas “um entre vários outros domínios prioritários” (pp. 40-41). Acresce que ao procurar construir “uma parceria política reforçada” que produza “resultados mutuamente benéficos”, o novo acordo também se afasta do foco de anteriores acordos no desenvolvimento económico, cultural e social dos países ACP. A dimensão política da parceria tornou-se mais importante, o que resulta visível quer nas suas temáticas, quer na atribuição de uma maior ênfase à cooperação internacional e à criação de alianças na cena mundial (Boidin, 2020, p. 4; Carbone, 2021, pp. 244, 255-261, 263).
- 14 O atual instrumento de financiamento da ação externa da UE é o Instrumento de Vizinhança, de Coop (...)
19Outra inovação importante é a ausência de um instrumento financeiro específico pois o Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED), que desde o início tinha sido a principal fonte de financiamento desta relação velha de décadas, foi integrado no orçamento da UE (Carbone, 2021, pp. 255-256). Enquanto no quadro do Acordo de Cotonou se tinha procurado alcançar uma gestão conjunta das operações financiadas pelo FED, pautada por princípios como a parceria, participação ou apropriação, sob o novo acordo UE-OEACP o financiamento passou a ser decidido pelo lado europeu, no quadro do seu instrumento de ação externa e seguindo os seus mecanismos internos de gestão, à semelhança do que sucede face a outras áreas do globo (Ferreira & Oliveira, 2021, pp. 27-28, 46).14 Esta mudança significa que os meios da parceria deixaram de formar parte da negociação entre as partes e que a cooperação financeira perdeu o seu carácter contratual (Boidin, 2020, p. 5; Medinilla, 2021, p. 5).
20De acordo com Carbone (2021), “as perspetivas do Acordo UE-OEACP dependem, em última análise, do compromisso das duas partes em implementá-lo” (p. 263). Na verdade, são múltiplos os fatores que poderão complicar a cabal implementação do acordo, com implicações mais amplas para as relações UE-África. De seguida destacam-se alguns desses principais fatores ou desafios, centrando-nos naqueles que têm mais diretamente a ver com a governança deste domínio. De forma relacionada, examinam-se também as possíveis implicações do novo acordo para a governança das relações UE-África.
21Um primeiro desafio prende-se com a natureza jurídica do acordo no seio da UE, pelas implicações que isso pode ter, precisamente, em termos da sua implementação e do empenho dos Estados-membros. À data da redação do presente artigo estava ainda por decidir se a implementação do acordo é competência exclusiva da Comissão Europeia (CE) ou se a “natureza mista” de Cotonou se mantinha, hipótese em que também os Estados-membros são chamados a desempenhar um papel importante nessa execução. Se, por um lado, uma competência legal exclusiva da CE poderá favorecer uma implementação mais simples e rápida do acordo, por outro lado, o sinal político dado pela parte europeia sobre a importância da parceria é entendido como sendo mais fraco. Além disso, uma maior presença e envolvimento na implementação do acordo por parte dos países europeus com os quais os países OEACP têm relações bilaterais é algo que é valorizado por estes últimos Estados. No mínimo, esta questão é suscetível de dar azo a atrasos nos procedimentos formais de aprovação e ratificação do acordo (Ferreira & Oliveira, 2021, p. 46; Medinilla, 2021, p. 1).
22Um segundo aspeto, muito importante, prende-se com o desaparecimento de um instrumento financeiro especificamente dedicado ao relacionamento UE-OEACP. Esta mudança foi em parte justificada como um possível contributo para uma maior coordenação, flexibilidade, coerência, eficiência e transparência dos instrumentos financeiros da UE, mas, por outro lado, também foi vista como podendo concorrer para menos previsibilidade, estabilidade e parceria na relação da UE com os países ACP. Estes últimos efeitos decorreriam do fim de um sistema de ajuda contratualizada ou institucionalizada, suscetível de conduzir a um maior controlo por parte da UE, de forma mais unilateral ou menos conjunta do que anteriormente (Boidin, 2020, pp. 5-6; Ferreira & Oliveira, 2021, p. 46; Lecompte & Vircoulon, 2021, p. 41). Outros autores têm uma perspetiva menos desfavorável destes efeitos, falando de uma rutura face a um legado de práticas de “clientelismo coletivo” (Medinilla, 2021, p. 5).
23A arquitetura institucional que resulta do Acordo UE-OEACP é fonte de um terceiro desafio que importa destacar aqui. Com efeito, ao combinar uma base comum com três protocolos regionais, o acordo introduz uma estrutura institucional mais complexa e pesada do que aquela que existia sob Cotonou, já que replica instituições conjuntas a nível regional. Esta duplicação de instituições, a nível transversal e regional, é suscetível de complicar a implementação do acordo, levantando desde logo questões de composição ou representação nestes órgãos, bem como de articulação e eficácia. Tais dificuldades são particularmente prementes no caso de África, onde há mais dúvidas quanto à organização da representação africana nos órgãos de implementação do protocolo de África (Ferreira & Oliveira, 2021, p. 46; Medinilla, 2021, pp. 4-5, 7).
24Destaca-se ainda um quarto e último desafio, mais amplo, atinente à articulação prática entre os quadros que regulam as relações UE-África. A relação ou coerência entre o Acordo UE-OEACP e a parceria UE-UA, em particular, levanta muitas dúvidas. O protocolo regional de África, no seio do novo Acordo UE-OEACP, reconhece o papel de orientação política da parceria UE-UA, que segue uma lógica continente-a-continente. Porém, o Acordo UE-OEACP, que tem uma lógica mais bilateral com cada país ACP, só vincula a África subsariana, não tendo, pois, um âmbito continental visto que não se aplica ao Norte de África. Assim sendo, poderá não existir uma coerência entre o disposto no Acordo e o que é acordado coletivamente no diálogo intercontinental UE-UA. Esta abordagem “de duas vias” para as relações UE-África exige, pois, um importante esforço de coordenação (Boidin, 2020, pp. 6-7; Ferreira & Oliveira, 2021, p. 47). Caso contrário, existe um risco grande de duplicação ou de uma cisão entre os objetivos políticos e estratégicos da parceria intercontinental UE-UA e a cooperação feita através do Acordo UE-OEACP (Medinilla, 2021, p. 1).
- 15 Ver Comissão Europeia, “Conclusão das negociações pós-Cotonu sobre um novo Acordo de Parceria ent (...)
25O exposto acima ajuda a enquadrar a questão do significado mais amplo do Acordo pós-Cotonou, nomeadamente as suas possíveis implicações para a governança das relações UE-África. Será que o novo acordo poderá contribuir de maneira positiva para uma maior coerência entre os principais mecanismos de regulação do relacionamento entre África e a Europa ou, pelo contrário, irá concorrer para manter ou mesmo agravar a fragmentação e as incoerências que têm existido neste domínio? O tom geral das narrativas oficiais tende a ser otimista, referindo-se ao novo acordo como apresentando “uma parceria política ambiciosa e reforçada” entre os membros da OEACP e a UE.15
26Observadores independentes tendem, porém, a ser bem mais moderados ou céticos quanto ao significado do acordo UE-OEACP. Carbone (2021) fala de “mais um passo, talvez o último, no sentido da total normalização” das relações entre a UE e os países ACP (p. 261). Depois do fim do regime de comércio preferencial sob Cotonou, a extinção do FED representaria mais um contributo para esvaziar a parceria UE-ACP da sua substância, circunscrita desta forma a essencialmente regular as relações da UE com cada um dos países ACP (Carbone, 2021, pp. 261-263; Medinilla, 2021, p. 7). Tal seria tanto mais assim visto que a possibilidade de a OEACP e a UE formarem uma aliança efetiva relevante no plano global seria pouco provável (Medinilla, 2021, p. 3). A isto acrescem as dúvidas sobre o próprio papel e viabilidade futura da OEACP, em flagrante contraste com o dinamismo da UA (Carbone, 2020; Haastrup, 2021; Ishmael, 2021, pp. 13, 19).
27Que consequências poderão trazer estes desenvolvimentos e tendências cruzadas para a governança do relacionamento UE-África? Será que favorecem e reforçam um predomínio da abordagem intercontinental e inter-regional UE-UA sobre o quadro transregional UE-OEACP, que aparece cada vez mais diluído, podendo desse modo contribuir a prazo para menos fragmentação e complexidade nesse relacionamento? Ou será que existe um risco plausível de as sobreposições persistentes agravarem incoerências e tensões que, por sua vez, poderão enfraquecer ambos os quadros, afetando o relacionamento geral entre os dois continentes num contexto internacional de grande volatilidade, onde novos atores, tais como a China, têm assumido um protagonismo crescente?
28O presente artigo procurou abordar de maneira exploratória as implicações do novo acordo pós-Cotonou para a governança das relações UE-África. Para tal, começou por apresentar uma panorâmica geral da evolução dos principais quadros de cooperação específicos às relações UE-África, sublinhando algumas das suas características centrais, dificuldades ou tensões. Uma dessas dificuldades tem a ver com um certo grau de fragmentação e incoerência existente entre alguns dos mais relevantes quadros de relacionamento neste domínio, nomeadamente entre o Acordo de Cotonou e a Parceria UE-África. Numa segunda etapa abordou-se brevemente o processo de negociação do Acordo pós-Cotonou, realçando as suas principais inovações em termos da estrutura, objetivos e meios de financiamento da parceria UE-ACP.
29Seguidamente, foram analisados alguns dos desafios que o novo acordo UE-OEACP enfrenta em termos da sua efetiva implementação relacionados, concretamente, com os níveis de empenho do lado europeu, a extinção do FED, a complexidade da estrutura institucional do novo acordo, bem como com a articulação entre os diferentes quadros que regulam as relações entre África e a UE. Por fim, examinaram-se as possíveis implicações do acordo UE-OEACP para a governança das relações UE-África, considerando, de maneira preliminar, em que medida poderá contribuir para mais complementaridade entre os principais mecanismos de regulação do relacionamento entre os dois continentes ou se, ao invés, poderá agravar a fragmentação existente neste campo.
30Após a entrada em vigor e o início da implementação do acordo (algo que não estava garantido à data de finalização deste artigo) estaremos certamente melhor posicionados para aferir quais das hipóteses acima enunciadas reúne mais sustentação. Entretanto, espera-se que esta visão simultaneamente panorâmica e sintética, contextualizando e relacionando temáticas centrais e atuais das relações UE-África, sob o ponto de vista da sua governança e das políticas públicas em geral, possa ajudar a trazer mais clareza e melhor compreensão num domínio marcado por alguma complexidade, opacidade e ilegibilidade. Adicionalmente, o artigo deixa várias pistas de investigação que poderão ser retomadas e aprofundadas em investigações futuras, sobretudo provindas das áreas dos Estudos Africanos, Estudos Europeus e Relações Internacionais.
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