1O número da revista Cadernos de Estudos Africanos que aqui se apresenta insere-se no contexto do projeto de investigação científica Pluralism – Democratization and Electoral Integrity in Angola and Mozambique - P-DEIAM (www.deiam.com), que articulou três instituições académicas principais – ISCTE-IUL, Universidade Católica de Angola e Universidade Eduardo Mondlane —, tendo decorrido entre 2018 e 2023, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (FCT-MCTES) e pela Aga Khan Development Network, no âmbito do programa Knowledge for Development Initiative.

2Este projeto específico integra a quarta fase de investigação de um projeto de âmbito mais alargado, iniciado em 2004 por Nuno de Fragoso Vidal e Justino Pinto de Andrade, intitulado “Processos de Democratização e Desenvolvimento em Angola e na África Austral”, e que procura ser uma ampla arena de discussão participativa e inclusiva, promovendo a articulação em rede de academias africanas, europeias e norte-americanas e toda a panóplia de organizações que, na área da sociedade civil e afins, trabalham com as temáticas centrais do projeto – democratização e desenvolvimento.

3De 2004 até à atualidade, em todas e cada uma das fases e temáticas programáticas, o projeto produziu inúmeros outputs, com sete livros publicados, vários artigos em revistas indexadas, mais de uma dezena de conferências internacionais (incluindo Luanda, Maputo, Londres, Lisboa, Wageningen, Bruxelas – ONU e UE), sponsored pannels da Luso African Studies Organization em várias conferências da African Studies Association nos EUA), conferências nacionais e provinciais (Huambo, Benguela, Lubango), para além de vários workshops, exposições, discussões públicas de livros do projeto, exposições fotográficas sobre as eleições, ciclos de cinema, etc.

4Os textos aqui publicados contribuem para uma análise, de forma mais específica ou transversal, dos mais recentes desenvolvimentos políticos em contexto eleitoral e legal/constitucional em Angola (eleições gerais de 2022; David Boio, Sérgio Dundão, Paula Roque, Florita Telo, Imaculada Melo) e Moçambique (eleições gerais de 2019; Luca Bussoti), enquadrando-os do ponto de vista histórico (Jean-Michel Mabeko-Tali), teórico-conceptual e articulados na sua atualmente ativa interação com as novas tendências internacionais de iliberalismo e populismo (Nuno Vidal e Bruno Ferreira da Costa).

5Em Angola e Moçambique, como em outros pontos do continente e do globo, os processos de transição para o multipartidarismo da década de 1990 ficaram aquém das expetativas em termos de efetivação de aspetos fundamentais da democratização para a qual deveriam supostamente contribuir. As eleições reconduziram ao poder os anteriores partidos únicos, re-legitimando o seu poder num contexto multipartidário. As antigas lógicas de funcionamento reciclaram-se, modernizaram-se e procuraram subjugar os processos eleitorais à lógica de reprodução e manutenção de um poder com pretensões hegemónicas, utilizando-os em seu benefício.

6Ironicamente e de forma perversa, as eleições e o multipartidarismo dos últimos trinta anos tornaram-se estruturais e centrais para os sistemas políticos destes países, tanto para os partidos no poder (que buscam a distorção eleitoral), quanto para as várias forças da oposição — partidos, indivíduos, sociedade civil, algumas organizações internacionais (que buscam a preservação da integridade eleitoral).

7Após mais de trinta anos de batalhas em torno da integridade eleitoral, ficam explícitas as expetativas subjacentes e as assunções dos principais atores acerca das correlações entre integridade eleitoral e democratização liberal ou entre a distorção de integridade eleitoral e a chamada “democratização iliberal”, ou fake democratization.

8Como podemos perceber pelos textos aqui apresentados, a balança de forças pendeu claramente a favor das forças pró-hegemónicas da democratização iliberal, que conseguiram desvirtuar e instrumentalizar os processos eleitorais multipartidários, colocando-os ao serviço dos propósitos de re-legitimação política internacional (eventualmente nacional) de regimes autocráticos, autoritários e com sempre-renovadas e relativamente bem-sucedidas (até ao momento) pretensões hegemónicas.

9A caminho dos 50 anos de independência, o MPLA e a FRELIMO e as suas velhas elites no poder governam de forma autocrática e autoritária os seus respetivos países, re-legitimando e reforçando o seu poder hegemónico por via de eleições multipartidárias desde a década de 1990.

10A questão está, dizem os partidários da democratização, nas consequências em termos de pobreza, falta de desenvolvimento, corrupção estrutural, apontando para a correlação entre estas consequências e a falta de democratização, conforme o velho ideário democrático liberal.

11Contra esta velha correlação, chega a nova onda de iliberalismo internacional e populismo autoritário que começa obviamente a penetrar no continente, com crescente atratividade para os poderes autoritários pró-hegemónicos estabelecidos. A atração é pela legitimação de um novo discurso internacional (com proponentes de força internacional) para vários procedimentos que muitos dos sistemas políticos africanos, reciclados nas supostas transições para a democracia multipartidária, têm tentado camuflar sob instituições de fachada democrática desde a década de 1990, no centro das quais tem estado a distorção dos diversos componentes da integridade eleitoral. A atração é por um discurso internacional legitimador de ofensivas (mais ou menos violentas) para legalmente limitar a independência do poder judicial, a liberdade de expressão, de associação, dos media, dos direitos e liberdades individuais, incluindo a privacidade e a proteção de dados, tão características dos novos modelos internacionais de iliberalismo, com consequências objetivas na distorção da integridade eleitoral, nos resultados eleitorais e na manutenção dos poderes hegemónicos, eleitoralmente re-re-legitimados num novo ideário/modelo de prometido desenvolvimento económico “democrático” iliberal.

12São várias destas questões e discussões que atravessam, de forma mais ou menos explícita, e sobressaem, dos textos aqui apresentados, deixando vários pontos de reflexão para o futuro político, económico e social dos países aqui analisados.