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Editorial Note

Introdução:
Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva na África Ocidental – Contextos, Desafios e Transformações no Senegal, Guiné-Bissau e Cabo Verde

Clara Carvalho, Ricardo Miguel Falcão e Isaiete Augusto Jabula
p. 7-11

Texto integral

1Este número especial aborda diferentes aspetos dos direitos e a saúde sexual e reprodutiva (DSSR) na África Ocidental. A investigação aqui apresentada foi, em parte, realizada no quadro de um projeto homónimo financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Sexual and reproductive rights and cultural resistances based on gender in Western Africa: Inequality, violence and ilegitimacy. PTDC/SOC-ANT/31675/2017 (2018-2021). A esta investigação inicial vieram-se juntar outras, que ajudaram a completar a perspetiva apresentada e mesmo a introduzir um olhar sobre a situação dos DSSR em Cabo Verde, além da Guiné-Bissau e do Senegal, os países em foco no projeto.

2Os direitos sexuais e reprodutivos são componentes fundamentais dos direitos humanos, da igualdade de género e da saúde pública. Na África Ocidental, estes direitos continuam a ser fortemente contestados, moldados por dinâmicas históricas, políticas e socioculturais que influenciam o acesso aos cuidados de saúde, a autonomia e as normas de género. Os instrumentos legais e institucionais que regulam os DSSR evoluíram significativamente nas últimas décadas, particularmente desde os anos 1990, quando estes direitos foram explicitamente integrados nos tratados internacionais de direitos humanos. Se inicialmente foram enquadrados no âmbito da saúde materna e dos direitos reprodutivos (especialmente no que diz respeito à contraceção e ao planeamento familiar), o seu alcance foi alargado para incluir temas como identidade de género, orientação sexual, educação sexual abrangente, direito ao aborto e proteção contra a violência baseada no género (VBG). Contudo, esta expansão tem gerado forte resistência, particularmente em contextos onde o conservadorismo religioso, as normas patriarcais e a fraca aplicação das leis continuam a determinar o discurso político e o acesso a estes direitos.

3No Senegal e na Guiné-Bissau, dois países da África Ocidental com histórias coloniais distintas, mas dinâmicas socioculturais sobrepostas, as políticas e práticas de DSSR refletem a interação complexa entre normas internacionais, legislação nacional e estruturas sociais locais. Ambos os países ratificaram tratados internacionais chave, como o Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África, mais conhecido como Protocolo de Maputo (2003), que garante às mulheres o direito ao aborto seguro, a proteção contra práticas tradicionais nefastas e a autonomia reprodutiva. No entanto, as legislações nacionais e as perceções culturais nem sempre estão alinhadas com estes compromissos.

4Neste número, propomos uma análise dos DSSR no Senegal e na Guiné-Bissau, organizada em torno de quatro grandes questões. Em primeiro lugar, questionamos como as crenças patriarcais influenciam as escolhas de vida? As normas patriarcais são determinantes quando as pessoas tomam decisões sobre as suas vidas? As crenças nos direitos individuais, como os representados pelos direitos sexuais e reprodutivos, são traduzidas em ações concretas quando ocorrem momentos de “crise individual” ou ruturas éticas (Zigon, 2007)? Por exemplo, quando uma filha engravida fora do casamento, quando um filho é considerado homossexual ou quando se decide cumprir a prática da mutilação genital feminina (MGF)?

5Depois, abordamos a questão de como os ativistas equilibram compromisso e rutura nas suas estratégias? Partindo do pressuposto de que a politização da intimidade não é linear na África Ocidental (o pessoal nem sempre é político [Crossouard & Dunne, 2015]), de que forma os ativistas encontram um equilíbrio entre o compromisso e a rutura com crenças amplamente partilhadas? Como utilizam a linguagem para lidar com a tensão entre direitos individuais e direitos culturais, sobretudo em relação a práticas culturalmente legitimadas como a poligamia, o casamento infantil, os casamentos arranjados, a “herança” da viúva e a violência conjugal (Wangila, 2010), bem como a mutilação genital feminina?

6Estas questões e reflexões conduzem-nos a questionarmos sobre se é mais útil considerar “direitos sexuais” e “direitos reprodutivos” como campos distintos. Apesar de historicamente terem sido integrados nos anos 1990, faz sentido, em termos de legitimidade cultural na África Ocidental, diferenciar a promoção dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos? Considerando as pressões sociais tangíveis (económicas, domésticas, relacionais) que moldam a sexualidade, perguntamos se existem diferenças na forma como estas duas dimensões dos DSSR são percecionadas e promovidas.

7Finalmente, procuramos saber de que forma a desigualdade de género está correlacionada com os direitos sexuais e reprodutivos. Há, por exemplo, uma correlação entre frequência escolar e uma maior consciência dos direitos sexuais e reprodutivos? De que forma a educação pode desempenhar um papel na transformação das normas sociais e de género?

8Estas questões orientaram as colaborações de Falcão sobre a ética social da sutura, onde o investigador aborda este conceito senegalês, por vezes traduzido como discrição, que é considerado um valor positivo no país. O autor questiona as múltiplas consequências deste comportamento social, nomeadamente em termos de comunicação, manutenção da desigualdade de género, e as suas consequências em termos da dificuldade dos indivíduos em afirmarem publicamente ações consideradas privadas, vendo-se assim destituídos da sua expressão pública. Esta norma de ética social é aqui interpretada como uma forma atuante de manutenção de dominação patriarcal. Ainda sobre o Senegal, Sell Fernández traz-nos um olhar sobre a homofobia num país onde o preconceito, a discriminação e a violência contra as minorias sexuais estão a aumentar. Nesse artigo, a autora aborda as experiências de mulheres queer e não conformes com o género biológico no Senegal, e a forma como recorrem a ferramentas culturais (sutura e terànga) para se afirmarem sem serem perseguidas.

9Os três artigos seguintes são complementares e debruçam-se sobre a implementação dos DSSR na Guiné-Bissau. O artigo de Carvalho apresenta o panorama deste país no que tange à implementação dos direitos e saúde sexual e reprodutiva, concluindo que muito embora a legislação siga as indicações sobre a implementação destes princípios, as normas sociais e culturais, aliadas a um contexto de pauperização, tornam a sua efetivação difícil para uma parte da população. O artigo foca no trabalho das organizações da sociedade civil sobre os DSSR e faz um levantamento detalhado dos principais atores no país. A questão mais visível da violência baseada no género neste país é a prevalência da mutilação genital feminina. Na Guiné-Bissau, passada mais de uma década após a criminalização da prática, o número de casos tem aumentado. As causas da resistência ao abandono da prática são abordadas no ensaio de Jabula, que insere o caso nacional no contexto sub-regional. Numa perspetiva mais focada, a autora introduz o debate em curso entre os direitos humanos, a religião e a cultura, para melhor compreender os argumentos levantados contra o abandono da MGF. O último artigo sobre a Guiné-Bissau, da autoria de Galvão e Carvalho, debruça-se sobre as dificuldades de implementação de apoio à saúde sexual e reprodutiva no país. Partindo de um inquérito realizado junto de mulheres da classe média com possibilidade de escolher onde obter serviços de saúde sexual e reprodutiva, retrata o quadro nacional de escassez de recursos eficazes, alargados e acessíveis.

10O último artigo deste dossier apresenta um estudo de caso sobre a maternidade adolescente em Cabo Verde. Partindo de um levantamento da legislação existente, Vieira debruça-se sobre as medidas tomadas pelas escolas secundárias para integrarem as adolescentes grávidas e jovens mães. Um conjunto alargado de entrevistas permite-lhe retratar uma situação que conduz ao abandono escolar de um elevado número de jovens raparigas que foram mães adolescentes.

11Neste dossier são assim abordados os ativismos pelos direitos sexuais e reprodutivos e identificadas as diferenças na resistência à promoção dos DSSR, considerando práticas específicas e os diferentes discursos de legitimação. Procuramos compreender a legitimidade social dos direitos sexuais e reprodutivos para os seus diferentes atores: ativistas, líderes comunitários, jovens envolvidos em formas de ativismo e estudantes. Finalmente, são considerados os meios para a escolarização promover mudanças sociais e comportamentais no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos.

12Os textos aqui apresentados contribuem para um entendimento crítico e contextualizado dos direitos sexuais e reprodutivos na África Ocidental, com enfoque no Senegal, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Ao explorar as dinâmicas entre a legislação, cultura, política e ativismo, propôs-se uma abordagem interdisciplinar, fundamentada na análise das práticas locais, dos discursos e das formas de resistência e adaptação social.

13Fora do dossier sobre os DSRR, é ainda incluída nesta publicação uma análise sobre os agrupamentos carnavalescos em Luanda entre o século XIX e XX, de Andrea Marzano. O número termina com as recensões das obras Youth and Popular Culture in Africa: Media, Music, and Politics de Paul Ugore, por Dércio Tzandana, de The Genesis of the Civil War in Somalia: The Impact of Foreign Military, de Muuse Yuusuf, por Helmi Ben Meriem, e de O Grande Brasil e os Pequenos Palop: Política Externa Brasileira para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe (1974-2010), de Kamila Rizzi, por Ricardino Teixeira.

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Bibliografia

Crossouard, B., & Dunne, M. (2015). Politics, gender and youth citizenship in Senegal: Youth policing of dissent and diversity. International Review of Education, 61(1), 43-60.

Wangila, M. N. (2010). Religion, the African concept of the individual, and human rights discourse: An analysis. Journal of Human Rights, 9(3), 326-343.

Zigon, J. (2007). Moral breakdown and the ethical demand: A theoretical framework for an anthropology of moralities. Anthropological Theory, 7(2), 131-150.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Clara Carvalho, Ricardo Miguel Falcão e Isaiete Augusto Jabula, «Introdução:
Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva na África Ocidental – Contextos, Desafios e Transformações no Senegal, Guiné-Bissau e Cabo Verde
»
Cadernos de Estudos Africanos, 46 | 2023, 7-11.

Referência eletrónica

Clara Carvalho, Ricardo Miguel Falcão e Isaiete Augusto Jabula, «Introdução:
Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva na África Ocidental – Contextos, Desafios e Transformações no Senegal, Guiné-Bissau e Cabo Verde
»
Cadernos de Estudos Africanos [Online], 46 | 2023, posto online no dia 01 maio 2025, consultado o 08 julho 2025. URL: http://journals.openedition.org/cea/8506

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Autores

Clara Carvalho

Centro de Estudos Internacionais do Iscte
Instituto Universitário de Lisboa (CEI-Iscte)
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ORCID: 0000-0002-5738-5322

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Ricardo Miguel Falcão

Centro de Estudos Internacionais do Iscte
Instituto Universitário de Lisboa (CEI-Iscte)
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Isaiete Augusto Jabula

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