- 1 Enumerados no Apêndice 1.
1A igualdade de género é garantida pela Constituição da Guiné-Bissau. A implementação dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau depende dos sucessivos governos que reconheceram e ratificaram os principais tratados internacionais.1 Contudo, num país de baixo rendimento e onde prevalecem as tradições locais, o género constitui uma condição definidora de desigualdade. As mulheres estão sujeitas a fatores de discriminação interseccional, incluindo o género, a pobreza, a iliteracia, a idade e os valores sociais. As mulheres e as raparigas estão em desvantagem em muitas áreas e não gozam das mesmas oportunidades e direitos que os seus homólogos masculinos em quase todos os sectores, desde o acesso desigual aos direitos legais e aos serviços sociais básicos, incluindo cuidados de saúde e educação, direitos de propriedade desiguais, disparidades persistentes de género no mercado de trabalho (formal e informal), disparidades de género na administração pública e na tomada de decisões.
2Os fatores socioculturais desempenham um papel crucial na formação de atitudes em relação à saúde sexual e reprodutiva. Normas e tradições culturais profundamente enraizadas limitam discussões abertas sobre saúde e direitos sexuais e conduzem à confrontação entre os direitos internacionais e a visão modernista do Estado e das organizações da sociedade civil, e a visão de muitos dos grupos populacionais tradicionais, desde as famílias aos grupos religiosos.
3A questão da igualdade de género e da luta contra a violência estrutural que se abate, em primeiro lugar, sobre as mulheres, são uma prioridade da sociedade civil, das ONG e dos atores internacionais presentes no país. Multiplicam-se as políticas de intervenção que incluem uma componente de género, a diferentes níveis: programas económicos, como microcrédito e apoio a mulheres empreendedoras; iniciativas sociais, incluindo apoio à educação de meninas e associações de mulheres (World Bank, 2023); medidas políticas, como quotas de género e esforços legislativos (Carvalho, 2019); projetos específicos contra a violência de género (Roque, 2011); políticas de saúde sexual e reprodutiva, um tema central devido ao seu papel crítico na desigualdade de género e na violência social (UNFPA, 2022). De entre estas várias atividades, realce-se que os direitos e a saúde sexual e reprodutiva continuam a ser uma prioridade nas agendas nacionais e internacionais por constituir a forma mais insidiosa de desigualdade verificada na Guiné-Bissau e uma das principais fontes de violência social.
- 2 Este trabalho foi realizado no quadro do projeto Sexual and reproductive rights and cultural resi (...)
4O presente artigo2 debruça-se sobre os principais problemas que se levantam à implementação dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau e aborda o papel das instituições impulsionadoras dos direitos sexuais e reprodutivos no país, focando os seus objetivos e atividades. Procurámos conhecer os principais ativistas e as organizações da sociedade civil que operam nesta área, identificando a sua atuação, obstáculos enfrentados, estratégias e realizações. Debruçámo-nos sobre a questão da violência de género, em particular a violência baseada em práticas tradicionais como a mutilação genital feminina e o casamento forçado. As questões que pretendemos abordar conduzem-nos a considerar como é que normas reprodutivas, valores e direitos são negociados e construídos.
5O artigo encontra-se dividido em cinco partes. Inicialmente, é apresentado um breve panorama da questão da violência de género na Guiné-Bissau, seguido pela estratégia metodológica. Depois, abordamos as agendas internacionais de implementação de direitos sexuais e reprodutivos. De seguida, é referido o panorama específico da Guiné-Bissau na área da saúde e direitos sexuais e reprodutivos, apresentando o historial destas agendas no país. O último ponto consiste na análise das entrevistas realizadas.
- 3 A lista dos entrevistados é apresentada no Anexo 2.
6A metodologia seguida foi de tipo qualitativo, com uma abordagem interpretativa. Focando-se no levantamento dos obstáculos à implementação dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau, e no papel dos atores da sociedade civil que intervêm neste processo, o artigo baseou-se numa pesquisa documental, em entrevistas semiestruturadas, grupos focais, e observação de encontros sobre violência de género. A investigação de terreno decorreu na Guiné-Bissau entre 8 de fevereiro e 12 de março de 2019. As entrevistas dividiram-se em quatro grupos, o primeiro abarcando as organizações da sociedade civil que atuam no país na área dos direitos sexuais e reprodutivos (22, das quais 9 são nacionais e 13 são internacionais), o segundo constituído por alguns membros das agências das Nações Unidas no país (4), investigadores nacionais (3), médicos e outros responsáveis pela implementação de políticas sexuais e reprodutivas ao nível das instituições públicas (5).3 Foram ainda efetuadas duas entrevistas em grupo a responsáveis religiosos islâmicos. Realizaram-se três grupos focais, dois com os agentes comunitários de saúde da ONGD VIDA e um com raparigas de Pitche, no leste do país. No total, efetuaram-se 36 entrevistas, de duração variável, e três grupos focais. Procurou-se recensear a atividade das principais organizações da sociedade civil a atuar no país na área dos direitos sexuais e reprodutivos, os problemas encontrados e as atividades consideradas emblemáticas. Consideramos que estas entrevistas focaram sobretudo o carácter ético destas atividades, pois os entrevistados posicionam-se como implementadores e ativistas, e não como recetores das políticas de saúde e direitos sexuais e reprodutivos. A perspetiva émica foi abordada nas entrevistas aos líderes religiosos que abordaram a sua reação à imposição de regulamentos de combate à mutilação genital feminina (MGF).
7Este artigo procura delinear o retrato das políticas e atores na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau focando os atores da intervenção e não os visados da mesma. Este enviesamento foi necessário para se perceber o papel da sociedade civil face a um problema reconhecido internacionalmente como sendo, sobretudo, da área dos direitos humanos, mais que da saúde reprodutiva.
8Finalmente, ressalvamos que todos os entrevistados confirmaram oralmente o seu consentimento informado. Algumas entrevistas foram gravadas e transcritas (5), mas a maioria foram anotadas e depois analisadas pela introdução de variáveis em Excel.
9O direito à saúde sexual e reprodutiva, ou seja, a ter uma vida sexual e reprodutiva responsável, segura e satisfatória é, sobretudo, o direito a controlar e decidir a sua vida sexual e reprodutiva. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos (SRHR) são fundamentais para a saúde e sobrevivência das pessoas, para o desenvolvimento económico e para o bem-estar da humanidade (Starrs et al., 2018). Contudo, apesar de reconhecermos a sua importância individual e social, ética e política, os direitos sexuais e reprodutivos são um campo controverso localizado entre a reivindicação da autodeterminação individual e as normas coletivas de uma sociedade ou comunidade. São contestados porque visam a mudança social e desafiam práticas, crenças e normas tradicionais. Nas décadas passadas, as questões mais sensíveis e controversas sobre direitos reprodutivos e escolha foram, por razões éticas: o aborto; os direitos das pessoas com orientações sexuais não normativas; a educação sexual para jovens; as tecnologias reprodutivas assistidas (RMA). A reivindicação da liberdade face à violência e da autonomia em relação à gravidez também desafiavam políticas demográficas e eugénicas autoritárias e coercivas.
10A essência crítica dos direitos humanos é o seu potencial para articular e politizar a injustiça, a subjugação e a opressão. Os direitos sexuais e reprodutivos estão incluídos nos direitos das mulheres e surgem na agenda política nos anos oitenta do século XX, na sequência das reivindicações de grupos feministas, incidindo particularmente no controlo da fertilidade e no planeamento familiar (Johnson, 2023). A inserção dos direitos sexuais e reprodutivos nas agendas mundiais foi uma reação aos movimentos de mulheres ao redor do mundo que lutavam pelo controlo sobre a sexualidade e pela recusa da violência masculina contra o corpo das mulheres, incluindo violações, violência sexual na guerra, assassinatos de “honra”, mutilação genital feminina, seleção pré-natal de sexo e femicídio (Turshen, 2007). Atualmente, definem-se como o direito à saúde sexual e reprodutiva, ou seja, a ter e controlar uma vida sexual e reprodutiva responsável, segura e satisfatória. A reivindicação específica dos direitos sexuais e reprodutivos parte da constatação de que muitas das liberdades e direitos das mulheres são limitados por questões políticas, sociais e culturais, e têm expressão na pior qualidade da saúde das mulheres.
- 4 https://www.un.org/en/conferences/women/nairobi1985
- 5 https://web.archive.org/web/20090825232556/http://www2.ohchr.org/english/law/cedaw.htm
- 6 A CEDAW não incluía diversas formas de violência sobre as mulheres como violência doméstica ou ín (...)
- 7 https://www.ohchr.org/en/about-us/history/vienna-declaration
- 8 https://www.unfpa.org/icpd
- 9 https://www.un.org/en/conferences/women/beijing1995
11O paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos está enraizado nos discursos políticos internacionais sobre problemas globais, que assume particular relevo após o fim da ordem mundial bipolar. Esta definição surge inicialmente ligada aos movimentos de mulheres pelos direitos à contraceção e aborto (Berer, 1997), tendo sido introduzida na Conferência Internacional sobre Mulher e Saúde em Amesterdão (1984) no quadro da “década da mulher” (1975-1985). A terceira Conferência da Mulher (Nairobi, 1985)4 marcou uma nova fase no diálogo internacional sobre feminismos, dando visibilidade aos debates feministas pós-coloniais e promovendo um espírito de "sororidade global" caracterizado por experiências compartilhadas de discriminação de género (Gomes, 2015). Nesta conferência, que fechou a “década da mulher”, foi incluída a questão da violência contra mulheres que culminaria na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (DEVAW), atualizando a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (CEDAW),5 de 1979, que não incluía a violência doméstica contra as mulheres, acrescentada pelas recomendações n.º 19 (1992) e n.º 35 (2017) (Chinkin, 2017; Vijeyarasa, 2020).6 Na década de 1990, também conhecida como “a década das cimeiras” que culminou com o lançamento da primeira agenda global (Objetivos de Desenvolvimento do Milénio 2000), sucederam-se as cimeiras sob o auspício das Nações Unidas. As conferências internacionais incidiram sobre: direitos humanos em Viena em 1993,7 que incluiu a questão da violência sobre as mulheres e os direitos das crianças; População e Desenvolvimento no Cairo em 1994, onde foi incorporado o conceito de saúde sexual e reprodutiva8; e a quarta Conferência da Mulher em Pequim em 1995.9 Estas conferências foram cruciais para a introdução de uma agenda global dos direitos das mulheres e da igualdade de género. Após a inclusão da saúde e direitos sexuais e reprodutivos no Programa de Ação do Cairo, o paradigma foi celebrado como um consenso internacional que deveria ser implementado por todos os governos. Este consenso foi formulado no espírito da governação global, e os princípios normativos que articulou pretendiam orientar as políticas nacionais em relação à população e aos direitos e saúde sexual e reprodutiva.
12Desde as conferências históricas do Cairo e Pequim, a implementação real dos direitos sexuais e reprodutivos tem sido impulsionada por muitos fatores e dinâmicas. Entre estes contam-se, em primeiro lugar, o jogo de poder político e a política populacional e biopolítica (Johnson, 2023). Questões como o direito de escolha face à utilização de contracetivos e à interrupção voluntária da gravidez são contestadas por numerosos grupos e podem ter influência direta nas escolhas políticas e votações, em múltiplos contextos nacionais. Depois, as questões das ciências médicas e da vida, tecnologias reprodutivas e a sua comercialização, implicando negócios transnacionais, dos movimentos e programas cívicos que medeiam interesses individuais e coletivos (Turshen, 2007).
13As organizações da sociedade civil em todo o mundo, em geral, receberam bem os princípios normativos que consagraram particularmente como uma mudança política do controlo populacional para o empoderamento das mulheres e como um grande passo em frente em termos do reconhecimento dos direitos humanos das mulheres (Bracke, 2021). Contudo, levantaram-se algumas vozes críticas, vindas inclusive de movimentos e intelectuais femininas, que consideram terem estes sido desenhados segundo as agendas dos movimentos feministas ocidentais que não universais. Os movimentos de mulheres no Sul Global estão frequentemente enraizados nas dinâmicas de partidos nacionalistas, que lutaram pela liberdade coletiva e independência. Como nota a investigadora pós-colonial Gayatri Spivak, as práticas de responsabilidade social são muito mais relevantes para as mulheres nas culturas do Sul do que os direitos humanos individuais das mulheres presentes nas agendas dos movimentos ocidentais (Spivak, 2004). Finalmente, assiste-se à reivindicação da legitimação de práticas tradicionais violentas incluindo a mutilação genital feminina, e a uma linguagem abertamente sexista e hétero-normativa, por grupos e movimentos amplos de população em alguns países africanos (Garrido, 2019). Na África Ocidental é reconhecido que, apesar dos avanços recentes, os direitos e saúde sexual e reprodutiva continuam a enfrentar os desafios relacionados com as infraestruturas de saúde, as normas tradicionais e a discriminação baseada na idade, género, orientação sexual e identidade (Durojaye et al., 2021).
14Não se podem analisar os direitos sexuais e reprodutivos como uma variável independente. As questões da igualdade de género impactam todos os níveis sociais, económicos e políticos. Como reconhece a economista Naila Kabeer, o género não é apenas “outra desigualdade”, mas um aspeto fundamental das estruturas sociais e económicas que se cruza com outras formas de diferenciação e desigualdade. A perspetiva interseccional e a análise detalhada são essenciais para considerar os vários aspetos na sua inter-relação: a desigualdade de género entrelaça-se com diferenças sociais e económicas e acentua o seu efeito sobre os grupos dominados ou reprimidos (Kabeer, 2015). A violência de género social expressa-se tanto ao nível pessoal como pelas normas sociais, e impacta nas desigualdades políticas e económicas. A abordagem da desigualdade de género requer uma abordagem abrangente e interseccional que considere o contexto socioeconómico e político mais amplo (Kabeer, 2015).
15Na desigualdade de género, o que é pessoal é também político, uma afirmação que remete para a célebre frase feminista cunhada por Carol Hanisch em 1969 e posteriormente reafirmada por diversas autoras, incluindo Meredeth Turshen (2007). Essa perspetiva ressalta que a violência e a discriminação enfrentadas pelas mulheres não são meros problemas individuais, mas sim reflexos de estruturas sociopolíticas mais amplas que perpetuam a desigualdade de género. Nesse sentido, Sally E. Merry (2007) chamou a atenção para a forma como os direitos humanos são historizados e como a sua evocação local pode ser incoerente com as definições estabelecidas pelas Nações Unidas. Para Merry, os direitos humanos, longe de serem universais e neutros, são interpretados e reconfigurados de acordo com os contextos culturais e políticos em que são mobilizados. Como sublinha a autora, “human rights law is a cultural process that is indigenized, vernacularized, and reinterpreted as it moves from global to local arenas” (Merry, 2007, p. 1). Isso é particularmente relevante no que se refere à violência de género, pois a sua compreensão e resposta variam significativamente entre diferentes sociedades. A imposição de modelos ocidentais de direitos humanos pode encontrar resistência em determinados contextos, onde normas tradicionais e valores culturais influenciam a perceção da violência contra as mulheres. Merry alerta para a necessidade de se considerar a violência de género dentro dos seus contextos sociais e culturais, uma abordagem partilhada por Shell-Duncan (2008). No seu estudo sobre mutilação genital feminina, Shell-Duncan argumenta que “strategies to eliminate FGM must take into account the socio-cultural structures that sustain the practice, rather than simply imposing Western human rights models” (Shell-Duncan, 2008, p. 226). Essa perspetiva é fundamental para compreender que a violência de género ocorre em contextos baseados em sistemas de crenças, valores e dinâmicas de poder que influenciam a sua perpetuação ou contestação.
16Nos últimos anos, as discussões sobre violência de género e os seus efeitos na saúde das mulheres deslocaram-se de uma abordagem estritamente biomédica para um enquadramento que privilegia os direitos humanos e a interseccionalidade. Como argumenta Shell-Duncan, “the impacts of gender-based violence are not limited to physical health but extend to economic, social, and political well-being, requiring a response that goes beyond the health sector” (Shell-Duncan, 2008, p. 228). Essa mudança de paradigma tem levado à adoção de políticas mais integradas, que reconhecem a violência de género como uma violação dos direitos humanos e não apenas como uma questão de saúde pública. Dessa forma, a violência de género deve ser entendida numa perspetiva multidimensional, que considera os seus efeitos estruturais e as resistências locais à sua problematização. A articulação entre saúde, direitos e justiça social tem sido central para que as políticas de combate à violência de género sejam mais eficazes e culturalmente sensíveis, evitando imposições externas que possam gerar resistência e reforçar desigualdades. Neste artigo debruçamo-nos sobre a sua operacionalização na Guiné-Bissau.
- 10 O último recenseamento oficial foi realizado em 2009. Os números atuais baseiam-se em estimativa (...)
17A Guiné-Bissau é um país de baixo rendimento, com uma população estimada de dois milhões e duzentos mil habitantes, 43% dos quais com menos de 15 anos. A idade média é de 19 anos e o índice de fertilidade de 3,8 filhos por mulher. Os principais indicadores de saúde continuam a ser muito baixos, embora tendo evoluído positivamente nas últimas décadas, sendo a esperança de vida de 64 anos e o índice de mortalidade infantil de 48/1000 no primeiro ano de vida (World Bank, 2023).10
- 11 https://genderdata.worldbank.org/en/economies/guinea-bissau
18As políticas de igualdade de género na Guiné-Bissau dirigem-se especificamente à igualdade de oportunidades e realização entre mulheres e homens (UNDP, 2021). No entanto, os principais indicadores oficiais retratam uma realidade onde os fatores interseccionais continuam a penalizar as mulheres. Os dados sobre trabalho, educação e saúde mostram uma situação profundamente desigual entre mulheres e homens. O trabalho das mulheres é sobretudo informal, sem proteção social, e as mulheres e as raparigas são desproporcionalmente sobrecarregadas com cuidados não remunerados e trabalho doméstico (UNDP, 2021). O emprego vulnerável entre as mulheres era de 77,5% e entre os homens de 61,5% em 2022.11 As mulheres representam a maioria da população analfabeta do país (51,3% contra 36,8% dos homens). Mesmo que, atualmente, as raparigas ingressem na escola primária juntamente com os rapazes, apenas 43,4% completam esse ciclo. Somente 4,4% concluíram o ensino secundário e 0,9% concluíram a universidade (INE, 2023). Os indicadores de saúde materna e adolescente ressaltam os desafios persistentes na saúde reprodutiva. A taxa de natalidade entre adolescentes permanece alta, com 84 nascimentos por 1.000 mulheres entre 15 e 19 anos (2017), uma redução em relação aos 106,4 por 1.000 registrados em 2012 (UNFPA, 2022). No entanto, a mortalidade materna continua elevada, com 667 mortes por 100.000 nascidos vivos (World Bank, 2023).
- 12 O crescimento populacional tem-se verificado, sobretudo, no meio urbano e a população rural rela (...)
19A desigualdade entre homens e mulheres assenta em três fatores determinantes, o papel tradicional da mulher na família, as práticas tradicionais consideradas nefastas e o modelo gerontocrático das sociedades tradicionais. Apesar das alterações observadas nas últimas décadas, no universo rural predomina um quadro onde o papel da mulher é determinado pela sua integração na sua família de origem e de aliança. As sociedades tradicionais na Guiné-Bissau baseavam-se em modelos coletivos de controlo da propriedade e dos bens de produção, do estatuto social e do papel ritual e político (Carvalho, 2000). Embora este modelo esteja em rápida transformação, o peso da família de origem ou de aliança continua a ser determinante para definir o estatuto individual, sobretudo no universo rural. A mulher tem direitos enquanto filha, mulher ou mãe de alguém, não enquanto um ser autónomo. Este quadro configura uma situação de sujeição das mulheres às ordens dos pais, nomeadamente no que respeita ao casamento e à educação, e dos maridos, que exercem direitos sobre a propriedade e mesmo a saúde sexual e reprodutiva das esposas. Neste país, onde a maioria da população reside em meio rural,12 as relações entre mulheres e homens são muitas vezes caracterizadas por traços de violência estrutural assentes em práticas tradicionais, na profunda desigualdade económica, na desestruturação social e política. Os estudos sobre violência baseada no género acentuam que “a violência física, psicológica, sexual e económica contra as mulheres tem origem sobretudo na família, quer na original, quer na de acolhimento/casamento” (Roque, 2011, p. 3). Os principais agressores são os maridos, namorados ou companheiros e, na família de origem, os pais ou outros membros do núcleo familiar (Roque, 2011, p. 85).
20Estes costumes estão relacionados com modelos de feminilidade obediente e masculinidade proactiva e de “ronco” (crioulo: exposição pública, vaidade) que incluem a quantidade de bens, de filhos e de mulheres que um homem possui. Estes valores são mantidos através de mecanismos que variam entre a violência, a perseguição e mesmo a sanção social difusa. Temos ainda de considerar o modelo gerontocrático das sociedades tradicionais, onde o poder é apanágio dos homens mais velhos o qual, embora sendo questionado na atualidade, continua a marcar as relações familiares.
21Além dos fatores culturais, as vulnerabilidades económicas aprofundam as desigualdades de género. A pobreza generalizada afeta desproporcionalmente as mulheres, forçando muitas a entrar no setor informal, no trabalho sexual transacional ou na prostituição velada como estratégias de sobrevivência (World Bank, 2023). Além disso, o apoio legal, económico e social para vítimas de VBG é limitado, perpetuando ciclos de vulnerabilidade e violência. O sistema político é frágil, caracterizado pelo clientelismo e pela predominância masculina na liderança (Moreira, 2017), com quotas de género tendo impacto limitado – apesar de uma legislação que exige 36% de representação feminina nas listas eleitorais, as mulheres representam apenas 12% da Assembleia Nacional (Té & Candé Monteiro, 2024).
- 13 Existem poucos trabalhos sobre o papel das mulheres no período colonial, sendo de assinalar a te (...)
22A questão dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau surge ligada às agendas pela igualdade de género que despontam durante a luta pela independência. Durante o período colonial, as mulheres eram quase invisíveis. Nos centros urbanos, entre a população categorizada como “assimilada” ou “civilizada”, algumas tinham acesso limitado ao ensino. No meio rural procedeu-se ostensivamente à manutenção da imagem de um paraíso intocado e fértil, protagonizado pelos retratos de mulheres jovens que se destinavam ao consumo interno do país colonizador, numa tentativa de encenar uma normalidade que ocultava a guerra da independência que se travou entre 1963 e 1974 (Carvalho, 2008). O PAIGC, enquanto movimento e partido de carácter modernista (Chabal, 2002), possuía uma agenda ideológica de cariz socialista que abarcava princípios de igualdade de género, sobretudo aos níveis educativo e político. O seu líder histórico, Amílcar Cabral, tinha uma visão para a integração das mulheres na educação, na política e na guerra, sobre a qual deixou vários escritos (Silá, 2023). Em 1961 foi criada uma organização própria ligada às mulheres, a União Democrática das Mulheres da Guiné-Bissau (UDEMU).13 No Congresso de Cassacá, realizado em 1964, onde se definiram as principais linhas ideológicas que viriam a delinear toda a atuação política futura, as mulheres foram, pela primeira vez, incluídas na direção (Barros & Semedo, 2013). A ideia da mulher militante e guerrilheira, e da mulher política, consubstancia-se nas figuras de duas “combatentes pela liberdade” e militantes do PAIGC, Titina Silá (1943-1973) e Carmen Pereira (1936-2016), esta última conhecida por ter sido a única mulher presidente na Guiné-Bissau e a primeira mulher presidente no continente africano, por uns escassos três dias, em 1984 (Gomes, 2015). Os direitos das mulheres foram largamente evocados em dois momentos-chave liderados pelo PAIGC, o primeiro congresso da UDEMU em 1982 e a Conferência Internacional sobre a Contribuição das Mulheres para a Libertação Nacional (Gomes, 2015). O posicionamento do PAIGC, enquanto um movimento líder na construção de um Estado moderno, ou seja, um Estado-nação independente das diferenças étnicas e das tradições locais (Carvalho, 2000), conduziu os sucessivos governos a aderirem plenamente a todos os acordos internacionais sobre mulheres e igualdade de género. Foram assinados, ou assinados e ratificados, os principais tratados sobre direitos humanos, incluindo sobre igualdade de género e de oposição à violência de género (Anexo 1). Estes direitos estão plenamente consagrados na Constituição da Guiné-Bissau, e nas leis aprovadas na Assembleia Nacional Popular. Enquanto partido único modernista o PAIGC promoveu igualmente a participação política das mulheres (do partido), expressa na representação de mulheres na Assembleia Nacional Popular, que decaiu de 20% no período do regime de partido único (1974-1998), para uma média de 10% até 2019, e de 8% em 2022 (Té & Candé Monteiro, 2024).
- 14 https://data.unicef.org/country/gnb/
23Embora a igualdade de género seja reconhecida pela Constituição, a desigualdade está enraizada na violência estrutural que relega as mulheres à marginalidade e à dependência económica, enquanto têm mais responsabilidades familiares e suportam a subordinação doméstica. Isto é observado em diferentes tipos de educação formal (a taxa de abandono escolar das raparigas é de 54% no ensino básico e secundário em 2021, contra 46% de taxa de abandono dos rapazes),14 no estatuto económico e no acesso a empregos remunerados, e na sub-representação das mulheres em instituições de alto nível, como o Parlamento e o Governo. Esta situação também reflete as posições das mulheres noutras partes do continente e tem sido abordada por organizações internacionais, principalmente a ONU e a CEDEAO, que normalmente apoiam OSC semelhantes na abordagem de tais questões (Carvalho, 2019, 2021). As estruturas tradicionais incluem componentes de subordinação e desigualdade que não são compagináveis com as agendas internacionais às quais a Guiné-Bissau aderiu. As principais agendas internacionais respeitam ao direito da família, ao direito de herança e aos direitos sexuais e reprodutivos. No primeiro caso, as mulheres dificilmente têm direitos iguais sobre as decisões realizadas no seio da família, incluindo sobre a sua capacidade de serem economicamente independentes ou poderem frequentar o espaço público livremente. O seu direito à herança é contestado, sobretudo desde que a produção de caju se tornou a principal atividade económica do país, trazendo consigo um interesse acrescentado sobre as terras que se podem direcionar para a plantação de cajueiros. Embora, de acordo com a lei, as mulheres tenham direitos iguais sobre a terra em caso de herança ou divórcio, na prática este acesso é-lhes sempre negado (Interpeace & Voz de Paz, 2018).
- 15 https://guinea-bissau.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/unfpa_-_relatorio_anual_-_2023_-_fin (...)
- 16 https://www.dw.com/pt-002/guiné-bissau-proíbe-mutilação-genital-feminina/a-6544658
- 17 https://www.fgmcri.org/media/uploads/Country%20Research%20and%20Resources/Guinea%20Bissau/guinea_ (...)
- 18 https://www.unfpa.org/data/fgm/GW
- 19 https://data.unicef.org/country/gnb/
24O governo da Guiné-Bissau tomou várias medidas para melhorar os direitos sexuais e reprodutivos, onde se incluem o alargamento dos serviços de planeamento familiar, oferecidos em 114 centros de saúde, num programa apoiado pelo FNUAP15; a aprovação da legislação contra a mutilação/corte genital feminino (C/MGF). Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que visa acabar com a MGF/C16 e a não criminalização de indivíduos LGBTQ+ (Garrido, 2019). O quadro legal do país criminaliza a violência baseada no género, incluindo a mutilação genital feminina (2011), o tráfico de seres humanos (2010) e a violência doméstica (2014). Apesar do esforço legislativo, as práticas tradicionais nocivas continuam em largas zonas do país. Incluem a excisão ou mutilação genital feminina (MGF),17 sobretudo na região leste.18 Na Guiné-Bissau, a prática da MGF, segundo o Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS6/2020), atinge cerca de 52,1% de mulheres de 15-49 anos de idade e 29,7% de crianças de 0-14 anos e chega a atingir os 96 % nas zonas de maior prevalência da prática (Oio, Bafatá e Gabú). Outras práticas, como o casamento polígamo e as tradições de herança da mulher (levirato, sororato), e o casamento precoce que caracteriza as uniões de cerca de um quarto das mulheres do país,19 fazem parte do quotidiano das comunidades locais. O governo da Guiné-Bissau atua contra estas práticas através do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, dirigido durante longos anos por Fatumata Djau Baldé, o rosto mais conhecido da luta contra a MGF no país, e a pessoa central na promulgação da lei da criminalização da MGF em 2011 (E1) (Baldé, 2018).
25Verificamos que ao nível dos direitos sexuais e reprodutivos, na Guiné-Bissau sobressaem diversos marcadores de desigualdade. Existem desafios significativos a ultrapassar, incluindo questões da violência baseada no género, casamento precoce e elevadas taxas de natalidade entre adolescentes, encabeçados pela prática alargada a todos os grupos muçulmanos da mutilação genital feminina, pelo casamento precoce entre diversas populações rurais, e pela dificuldade de acesso a contracetivos nos meios urbanos e rurais. Além dos esforços governativos mencionados, é do maior relevo o papel das organizações da sociedade civil, incluindo ONG e associações, das agências especializadas das Nações Unidas, e dos ativistas (Barros, 2014). Estes têm sido essenciais para a promoção e alargamento dos direitos sexuais e reprodutivos no país. Salienta-se o papel assumido pelas associações de mulheres na Guiné-Bissau, que atuam a todos os níveis, desde as comunidades de base até ao Parlamento nacional. Através do envolvimento político, da observação eleitoral e da mediação de conflitos, as mulheres ativistas guineenses conquistaram um papel proeminente. Estas associações estão presentes em todo o país, servindo como plataformas vitais para o empoderamento e a mudança social (Carvalho, 2019).
26Para melhor conhecer estes diferentes atores, recorremos a um alargado número de entrevistas às principais partes interessadas.
27Este trabalho baseou-se numa ampla consulta aos elementos de diversas organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, a atuarem na Guiné-Bissau, acrescentada por entrevistas realizadas a elementos do sistema das Nações Unidas no país (FNUAP, UNICEF, UNIOGBIS), membros da academia e do Estado. A maioria das entrevistas foi realizada a corpos dirigentes e expõe a leitura das organizações, mas também a vasta experiência dos entrevistados. Foram ainda realizadas duas entrevistas a líderes religiosos muçulmanos, e foram realizados dois grupos focais com agentes comunitários de saúde em Bissau.
28Na Guiné-Bissau podemos identificar três momentos da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos. A primeira é a intervenção das OSC pelos direitos ao planeamento familiar, à interrupção voluntária da gravidez e, em particular, à criminalização da mutilação genital feminina, que passou na Assembleia Popular em 2011. Uma segunda ação, de longa duração, prende-se com a implementação de melhores condições de saúde materno-infantil em termos nacionais, para a qual contribuem o Governo, o UNICEF e diversas ONG, com realce para o trabalho do IMVF e da VIDA. A terceira ação é protagonizada pelo sistema das Nações Unidas, que tem investido no apoio e empoderamento dos grupos de mulheres ativistas e políticas, através de formações e trabalho em rede. A descrição da atuação dos diversos elementos que operam na Guiné-Bissau sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos e desigualdade de género segue a ordem de intervenção referida.
291. A violência de género está enraizada nas práticas culturais e é expressa através do controlo masculino sobre as mulheres, a proibição de, nos meios rurais e tradicionais, as mulheres acederem ao planeamento familiar, o casamento precoce e forçado, e a mutilação genital feminina, práticas tradicionais em comunidades fula e mandinga. A longa tradição de violência de género tem repercussões que ultrapassam as práticas tradicionais, e que continuam nas relações entre rapazes e raparigas em meio urbano. Um exemplo são os numerosos casos de indicação de paternidade que chegam à procuradoria de menores do Tribunal de Família. Raparigas muito jovens engravidam “porque os rapazes acham que é uma forma de exercerem sobre elas uma forma de dominação”, mas as responsabilidades parentais não são assumidas, geralmente por os pais evocarem pobreza (E10).
- 20 De acordo com a Convenção de Palermo, as crianças talibé são incluídas no tráfico humano. No ent (...)
30Tendo dificuldade em atuar em termos de alteração de costumes, as OSC focam no apoio a raparigas que se recusam a casar, ou fogem do casamento forçado. Note-se que tanto o casamento forçado como precoce são fenómenos alargados em todo o país, motivados por razões culturais (Temudo, 2019) e também sociais e económicas, pois para os pais de localidades recônditas é considerado a única alternativa viável para as suas filhas (E38). A este nível atuam diversas ONG e associações, cuja atividade é focada na formação nas comunidades e no direcionamento dos casos mais problemáticos para centros de apoio tais como a Casa Bambaram e outras organizações da sociedade civil apoiadas por igrejas evangélicas, tais como o Centro Betel e a Casa Emanuel (E6 e E13). Realce-se o trabalho da AMIC, que tem duas casas de apoio, no Gabú e em Bissau, para rapazes talibé repatriados, para raparigas em fuga do casamento forçado e crianças vítimas de tráfico humano20 (E32). A maioria dos casos seguidos por esta ONG são raparigas de etnia Balanta, seguidas de raparigas Fula. As raparigas que chegam a estas instituições são encaminhadas por diferentes instituições, tais como o Instituto da Mulher e da Criança, a Polícia Judiciária, as igrejas evangélicas, organizações no terreno ou mesmo denunciadas por vizinhos. Além de manter casas de acolhimento de crianças e jovens, a AMIC procura incentivar junto destas jovens a frequência da escola e, em particular, do ensino profissional. Por outro lado, atuam junto das famílias pela sensibilização para o fim do envio dos rapazes para o ensino corânico no Senegal (talibés) e das raparigas para o casamento forçado. Em casos de repetição da atuação, optam pela denúncia às autoridades (E32).
31Note-se que a implementação dos Centros de Acesso à Justiça, um programa apoiado pelo PNUD e implementado pelo Ministério da Justiça, pretende facilitar as queixas sobre estas atividades, embora com uma eficácia limitada (E6). Por outro lado, é reconhecido que a prática do levirato (casamento da viúva com um dos irmãos do falecido marido) está a diminuir.
32A heterogeneidade do país é marcada pela diversidade étnica, rural/urbana e nacional/estrangeira. As OSC entrevistadas coincidem na dificuldade de atuação na região leste do país (Bafatá e Gabú), onde a maioria da população se identifica como sendo das etnias Fula ou Mandinga. A população originária da vizinha República da Guiné, que se concentra nos sectores de Tombali e Gabú, além de Bissau (SAB), é descrita como aquela que mais pratica a MGF e tem uma maior desconfiança em relação às intervenções externas, nomeadamente em saúde, recusando-se a ir ao centro de saúde ou a vacinar os filhos (E16). A definição da personalidade social da mulher passa pelo casamento e pela obediência ao homem (E16).
33A MGF é uma prática tradicional profundamente implementada entre as populações muçulmanas (Fula e Mandinga). Considera-se que a mulher que não foi submetida à MGF está impura (“solima”, designação de origem mandinga) (E16). A excisão é necessária tanto para a mulher como para a sua família serem respeitadas (E16). As ONG Target e Tostan baseiam a sua estratégia de combate à MGF na discussão com os homens e os líderes religiosos e na sensibilização para o facto de a excisão não fazer parte dos cinco pilares do Corão, reconhecendo que o argumento sobre os danos físicos e sanitários é muito contestado, considerando os intervenientes que nunca houve problemas de saúde com as crianças e mulheres excisadas (E16).
342. A atividade das OSC é particularmente visível em termos do apoio à saúde materno-infantil e ao planeamento familiar. Os principais financiadores são a União Europeia e o Banco Mundial (E11). Destaca-se o trabalho do principal programa de intervenção, financiado pela União Europeia, o Programa Integrado para a Redução da Mortalidade Materno-Infantil (PIMI), que pretende contribuir para reduzir a mortalidade materna e infantil, assegurar melhores cuidados para as mulheres grávidas e no pós-parto e para as crianças até aos cinco anos. Os seus principais implementadores são Entraide Médicale Internationale (EMI), Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) e UNICEF. Ativo desde 2013, este programa pretende garantir cuidados de saúde materno-infantil de qualidade e gratuitos, promovendo os serviços de qualidade, a gestão dos serviços de saúde e a saúde comunitária. A este nível atuam diversas ONGD, nomeadamente PLAN International, Assistência Médica Internacional (AMI), AIFO e VIDA. De entre estas organizações foram entrevistadas o IMVF (E1), a VIDA (E07, E14) e a AIFO.
35A VIDA atua na Guiné-Bissau desde os anos 1990 com apoio aos agentes comunitários de saúde, aos refugiados, e às matronas (parteiras). Com implementação no norte do país, em particular no sector de Suzana, alargou posteriormente as suas atividades a Canchungo e Bissau. Reconhecem a fraca adesão das mulheres, em particular das grávidas, aos centros de saúde, e a necessidade de intervir nos locais a mais de cinco quilómetros de um centro de saúde. Promovem o apoio durante a gravidez e o puerpério, o planeamento familiar para jovens e adultos, e deparam-se com numerosas restrições culturais, como o impedimento das puérperas no norte do país serem vistas pelos homens na semana depois do parto – que os conduziu a criar e gerir uma casa de apoio para grávidas e puérperas –, ou das mulheres casadas terem acesso ao planeamento familiar no mesmo contexto. Trabalham com os agentes comunitários de saúde que desempenham um papel essencial na divulgação da saúde sexual e reprodutiva (GF1 e 2).
36O combate às doenças sexualmente transmissíveis (DST) tem sido encabeçado pelo FNUAP, com o apoio de uma marca de preservativos que, regularmente, são anunciados por todo o país. Por parte do Ministério da Saúde são realizadas campanhas de formação dos profissionais de saúde, geralmente vocacionadas para os enfermeiros (E15).
37A principal ONG que trabalha em planeamento familiar é a AGUIBEF, criada com o apoio da UDEMU, a organização feminina do PAIGC. Possuem diversas clínicas no país (Bissau, Canchungo, Bafatá e Catió) e ainda uma clínica móvel. Fazem planeamento familiar, aconselhamento, rastreio do VIH, consultas pré-natais, de ginecologia, despiste do cancro do colo do útero e exames complementares de diagnóstico (E34). Ao nível da sensibilização, operam através das parteiras, líderes religiosos, ativistas, professores, procurando incentivar a mobilização comunitária. Em Bissau possuem uma clínica móvel que levam às escolas secundárias. Os hospitais regionais podem distribuir diversos métodos anticoncecionais, tais como implantes, injetáveis, pílula, dispositivo intrauterino (DIU) e preservativo, embora este último seja pouco aceite pelas mulheres, que o consideram doloroso (E18). Note-se que os contracetivos mais solicitados são os injetáveis e os implantes, por não serem detetáveis pelos maridos e parceiros sexuais, uma vez implantados (E33). Todas as organizações entrevistadas referiram ainda a dificuldade em tratar as interrupções voluntárias da gravidez. A oposição dos pais, maridos e parceiros a todas as formas de planeamento familiar e à IVG foi reconhecida por todos os entrevistados.
38Algumas ONG trabalham com grupos de risco e grupos minoritários. As que o fazem com minorias sexuais têm uma atuação discreta, e focam-se nas questões de saúde e doenças sexualmente transmitidas (DST). A ENDA-Santé dá apoio a grupos de MSM (homens que têm sexo com homens), sobretudo consumidores de droga e trabalhadores de sexo (E20). Sobre os direitos de grupos homossexuais a atuação das ONG é menor. Embora a homossexualidade não seja criminalizada, também não é normalizada no espaço público, e as associações LGBTQ+ formam-se na diáspora (E20).
39Entre as ONG que trabalham sobre DST, destacam-se as que se focam nos casos de infetados com VIH-SIDA, sendo a mais efetiva a ALTERNAG, com um projeto dedicado especificamente a estes pacientes (E29), centralizado em Bissau.
403. A atividade das agências do sistema das Nações Unidas na Guiné-Bissau inclui a perspetiva dos direitos e empoderamento das mulheres. Todos os projetos são classificados segundo um marcador de género, que pode variar entre o reconhecimento do indicador (indicador 1) e projetos que promovem a igualdade de género (indicador 3). Na Guiné-Bissau atuou, entre janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2020, o Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS), mandatado para implementar os requisitos da Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (UNSCR) 1325, de 2000, e apoiar o respetivo Plano de Ação Nacional de Implementação (2010), onde é afirmada necessidade de representatividade efetiva das mulheres em todos os órgãos de soberania e indicado, como objetivo específico: “Assegurar a participação efetiva das mulheres nas negociações de paz e políticas de modo que o país retire os proveitos do ‘know-how’ das mulheres guineenses em matéria de prevenção e resolução não violenta dos conflitos”. No quadro da sua missão, o UNIOGBIS promoveu a inclusão de mulheres na resolução de conflitos e nos processos de paz. O gabinete da Unidade de Género promoveu a criação da rede de mulheres mediadoras (REMUME) em 2016, na sequência da implementação da UNSCR 1325, da Declaração de Canchungo (2014) e das formações em mediação que permitiram reunir e treinar um grupo de mulheres e homens com competências diversificadas. Depois do encerramento do UNIOGBIS, o PNUD assumiu o financiamento de algumas das intervenções. Esta agência atua na Guiné-Bissau segundo três eixos: Democracia e Participação Política, Desenvolvimento Sustentável, e Resiliência e Alterações Climáticas. Nestes eixos é dada uma atenção particular à participação das mulheres, particularmente na primeira intervenção, Democracia e Participação Política. Foram incentivadas as mulheres a terem uma maior participação política, através de diversas formações, e do apoio à criação e manutenção de associações e grupos de mulheres na política.
41A importância da participação política das mulheres é notória em grupos de mediação de conflitos (Carvalho, 2019). As organizações de mulheres estiveram particularmente ativas na última década com o apoio das Nações Unidas, bem como de organismos regionais, em particular a CEDEAO. Neste quadro foram apoiadas as organizações nacionais da Plataforma Política das Mulheres (PPM, criada em 2008), a Rede de Mulheres Mediadoras (2016), a WANEP e a REMPSECAO, entre outras (E36, E37). A maior visibilidade das mulheres, seja como políticas ou como mediadoras, contribui de forma efetiva para alterar a ideia de mulher como ser submisso ou como um ator político secundário. Em termos locais tem ajudado a empoderar as mulheres que participam nestas redes e têm uma voz ativa na resolução de conflitos, muitos dos quais gerados por situações de violência de género (E36, E37).
42A Guiné-Bissau enfrenta desafios significativos na implementação e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos. Apesar dos compromissos internacionais e de alguns esforços nacionais, várias barreiras socioculturais, económicas e políticas continuam a impedir o progresso. Este artigo explora o estado atual dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau, examinando os principais obstáculos e potenciais caminhos para a melhoria.
43Na Guiné-Bissau, os fatores socioculturais desempenham um papel crucial na formação de atitudes em relação à saúde sexual e reprodutiva. Normas e tradições culturais profundamente enraizadas limitam frequentemente discussões abertas sobre saúde e direitos sexuais. Esta reticência cultural contribui para a desinformação e os mitos generalizados sobre a contraceção, as infeções sexualmente transmissíveis e os serviços de saúde reprodutiva. A desigualdade de género é outro problema generalizado. As mulheres e as raparigas na Guiné-Bissau são frequentemente vítimas de discriminação e não têm autonomia sobre as suas escolhas reprodutivas. Práticas como o casamento precoce e forçado e a mutilação genital feminina (MGF) continuam a prevalecer. Estas práticas não só violam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e raparigas, como também têm implicações graves para a sua saúde e bem-estar.
44Os desafios económicos são um grande impedimento à realização dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau. O país é um dos mais pobres do mundo, com recursos limitados atribuídos ao sector da saúde. Este subfinanciamento resulta em infraestruturas de saúde inadequadas e na escassez de serviços essenciais de saúde reprodutiva. Muitas instalações de cuidados de saúde não dispõem dos materiais necessários nem de pessoal com formação para prestar cuidados completos, incluindo serviços pré-natais e pós-natais, contraceção e serviços de interrupção voluntária da gravidez seguros. A pobreza agrava estes problemas, uma vez que muitos indivíduos não podem suportar os custos associados aos serviços de saúde reprodutiva. O elevado preço dos contracetivos e de outros produtos de saúde essenciais torna-os inacessíveis a uma parte significativa da população. Esta disparidade económica leva a elevadas taxas de gravidezes indesejadas e abortos inseguros, que são uma das principais causas de mortalidade materna no país (WHO, 2018).
45A instabilidade política e governativa complica mais a situação na Guiné-Bissau. As frequentes mudanças de governo e a agitação política perturbam a continuidade e a eficácia das políticas e programas de saúde. Para além disso, existe frequentemente uma falta de vontade política para dar prioridade à saúde sexual e reprodutiva, devido a ideologias conservadoras e a interesses nacionais concorrentes.
46O quadro legal na Guiné-Bissau também coloca desafios. Embora o país tenha ratificado vários acordos internacionais sobre direitos reprodutivos, incluindo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a legislação nacional e a sua aplicação estão atrasadas. Por exemplo, apesar da proibição legal da MGF, a aplicação da lei é fraca e a prática continua a ser generalizada (UNFPA, 2017).
47Neste quadro, o papel das organizações da sociedade civil tem sido essencial para a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. Estas atuam ao nível da educação e sensibilização; da animação comunitária; da oferta de serviços de saúde, incluindo de planeamento familiar; do apoio às vítimas de violência doméstica e da oferta formativa; e do empoderamento das mulheres particularmente ao apoiarem a sua participação política e da advocacia pelos seus direitos.
48A implementação dos direitos sexuais e reprodutivos na Guiné-Bissau enfrenta desafios significativos que requerem esforços abrangentes e sustentados para serem ultrapassados. Ao abordar as barreiras socioculturais, económicas e políticas, e através de um maior investimento, educação e reformas legais, é possível fazer avançar a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos para todos os indivíduos no país. Garantir esses direitos não é apenas uma questão de saúde e bem-estar, mas também um aspeto fundamental da dignidade humana e da igualdade.
Principais tratados sobre Direitos Humanos
ratificados pelo governo da Guiné-Bissau
- 21 Traduzido pela autora.
Fonte: Quadro de Parceria entre a Guiné-Bissau e as Nações Unidas 2016-2020
(United Nations & Republic of Guinea-Bissau, 2016)21
Lista de entrevistas