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Movimentos Sociais Urbanos em Moçambique.
O radicalismo político depois da morte de Azagaia

Urban social movements in Mozambique. Political radicalism after Azagaia’s death
Luca Bussotti
p. 93-119

Resumos

No Moçambique urbano os protestos violentos de 2008 e 2010 constituíram a derradeira manifestação pública contra o governo liderado pela Frelimo. Entretanto, novos movimentos sociais foram formados depois e a partir da morte do rapper Azagaia, acontecida a 9 de março de 2023. O movimento novo, “Povo no Poder”, propôs uma visão e uma organização diferente, reticular, e que se ligou a algumas figuras dos partidos da oposição, por ocasião das eleições autárquicas de 11 de outubro de 2023. Mediante a análise política dos movimentos em questão, facilitada pela vivência no meio investigado por parte do pesquisador e por entrevistas e discussões informais, chegou-se à conclusão de que a integração do ativismo nas redes sociais com a ocupação física dos espaços urbanos trouxe cenários políticos novos a nível nacional.

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Texto integral

1Em 2018 fui selecionado para levar a cabo um estudo sobre movimentos sociais “alternativos” em Moçambique, no meio rural e urbano. Quem financiava o estudo era a União Europeia, quem geria os fundos e avaliava o produto final era o MASC (Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil), uma fundação das mais destacadas em Moçambique no âmbito da implementação de projetos junto da sociedade civil. O estudo devia verificar em que medida os fundos da União Europeia destinados ao reforço da sociedade civil – através do MASC – foram bem-sucedidos no sentido de contribuírem para mostrar um “impacto” em termos de mudanças na sociedade moçambicana, em particular nos jovens.

2Em relação aos movimentos rurais o trabalho não foi difícil: já naquela altura se entreviam elementos concretos que apontavam para resultados significativos, com mudanças assinaláveis do quadro das relações sociais e económicas no campo. Por exemplo, foram alcançados resultados consideráveis contra as plantações de eucaliptos no centro do país, assim como contra o ProSavana no Corredor de Nacala (Bussotti, 2022). Um movimento organizado e reticular, politicamente radical, tinha enfatizado o aspeto coletivo da luta, tendo no controlo da terra pelas comunidades locais o seu elemento central (Bussotti & Nhaueleque, 2022).

3O quadro que encontrei no meio urbano foi diferente: havia – como se verá ao longo deste texto – movimentos sociais com grande impacto mediático, melhor dizendo, havia individualidades destacadas que, cada uma com a sua agenda, procuravam influenciar a sociedade local, e particularmente os jovens, quanto a atitudes de mudança. Um quadro muito mais fragmentado se comparado com o que se passava no meio rural, e de difícil leitura, tanto mais que – como se verá no ponto a seguir – o aparato repressivo do Estado concentrou-se particularmente nas cidades, monopolizando ruas e praças das principais urbes moçambicanas.

4Um elemento que imediatamente pareceu problemático prendeu-se com o conceito de “mudança”. Quer do lado da União Europeia, quer do MASC, este termo podia remeter para uma maior consciência do respeito pelos direitos dos cidadãos por parte do Estado, ou para uma orientação política diferente, privilegiando o voto nas oposições ao invés do voto no partido desde sempre hegemónico em Moçambique, a Frelimo, ou ainda para a constituição de movimentos sociais com uma agenda própria e internamente bem estruturados mesmo no meio urbano, tal como estava a acontecer no meio rural.

5Tais questões nunca chegaram a ser definidas, e o quadro que emergiu das pesquisas feitas em vários quadrantes da sociedade civil moçambicana que atuava principalmente no meio urbano foi de personagens de grande relevo e com bagagem cultural muito significativa (Adriano Nuvunga, Severino Ngoenha, Regina Charumar, os vários rappers do espetro musical sobretudo de Maputo, comunidades rasta espalhadas nos arredores da capital de Moçambique, organizações do movimento LGBT, defensores dos direitos humanos, entre outras), mas com fracas ou até nulas conexões entre si. Ademais, faltava uma agenda comum aglutinadora, como, pelo contrário, tinha acontecido no meio rural com a questão da posse e do controlo da terra.

6O que parecia conseguir juntar mais a camada juvenil era o rap, a partir do rapper-mor, Azagaia, e terminando com jovens como André Cardoso, Rage e outros, todos eles com músicas de forte intervenção social e política (Bussotti & Chinguai, 2020; Cossa, 2019; Sitoe & Guerra, 2019). O estudo concluiu-se analisando o que tais figuras defendiam, assim como as modalidades em que elas veiculavam suas mensagens. Em suma, a pesquisa foi levada a cabo ficando do lado do emissor, mas sem poder verificar o impacto concreto das mensagens junto da audiência.

7Ao longo dos últimos anos tem havido sinais de que alguma mudança estava a acontecer, principalmente a respeito dos processos eleitorais. Por exemplo, na fase de auge do MDM (Movimento Democrático de Moçambique), entre 2013 e 2014, ficou claro que os jovens que supostamente acompanhavam os rappers mais engajados, e que também eram os mais escolarizados – residentes nos centros nevrálgicos das principais cidades do país, a partir de Maputo – tinham propensão para votar contra a Frelimo (De Brito, 2019). Entretanto, apesar de tais sinais, não se vislumbrava nenhum movimento organizado capaz de mudar o quadro social e político do país. E o radicalismo a que alguns rappers apelavam não conseguia formar movimentos sociais explícitos, de protesto e que se pautassem por uma mudança política significativa.

8O radicalismo político manteve-se pouco visível de 2010 até a morte de Azagaia, a 9 de março de 2023. Foi a partir deste infortúnio lutuoso que se conseguiu responder à questão que tanto afligia a União Europeia e o MASC: afinal, as mensagens que este rapper lançava nas suas músicas tiveram um impacto inimaginável, conseguindo fazer com que aqueles jovens que pareciam enfrentar a vida de forma dispersa, aparentemente individualista, se juntassem num movimento ainda incipiente, mas com uma filosofia diferente daquela típica do contexto urbano moçambicano, uma mudança radical, em que os indivíduos (pela primeira vez depois de muito tempo) desempenham um papel secundário em relação ao coletivo.

9Dito incidentalmente, a figura que despoletou este movimento tipicamente urbano e novo, para as latitudes de Moçambique, foi Azagaia post-mortem, ou seja, alguém que não costumava receber os financiamentos chorudos da União Europeia ou do MASC, facto que deveria despoletar uma reflexão sobre os mecanismos de financiamento destas grandes entidades junto da sociedade civil e a sua eficácia... Mas este seria um assunto que levaria longe demais, uma vez que não é esse o foco do estudo aqui apresentado.

10O que pode ser dito nesta altura é que, por vezes, os processos sociais demoram e seguem vias subterrâneas, mas depois eventos pontuais e imprevisíveis têm o poder de desencadear toda a energia reprimida que parecia estar escondida, ou até ausente. Foi assim na Europa descrita por Bauer e Marx, quando estes autores – falando da sociedade moderna, pós-feudal – realçaram que a revolução política é a revolução da sociedade civil (Bauer & Marx, 2004), indicando com isso a necessidade de mudar um inteiro paradigma civilizacional, e foi assim com a morte de Azagaia e a formação do movimento conhecido como “Povo no Poder”.

11No contexto africano já se viveu, em anos recentes, um caso parecido, o das “Primaveras Árabes”. Após décadas de aparente passividade, países como a Tunísia e o Egipto em poucos meses e graças às enormes manifestações de rua conseguiram livrar-se de déspotas que há anos governavam os respetivos Estados, ao passo que em outros casos, como Senegal e Malawi, tais movimentos evitaram a manipulação eleitoral por políticos corruptos e dispostos a tudo (Protest Democracy, 2021).

12Este texto é a história e a análise de como um evento como a morte de um rapper famoso e celebrado por milhões de jovens moçambicanos (mas também por outros seguidores em toda a lusofonia) conseguiu mudar o rumo dos movimentos sociais politicamente engajados no Moçambique urbano, espalhando, com palavras de ordem simples e diretas, a ideia da mudança do sistema como única arma de luta para reverter a situação do país. Tratou-se de uma prática de ação que se traduziu em cenários políticos relativamente novos, por ocasião das eleições autárquicas de 11 de outubro de 2023. A pesquisa foi levada a cabo graças à constante convivência do autor com os principais membros envolvidos na formação do novo movimento denominado “Povo no Poder”, na observação do cenário político moçambicano, assim como em entrevistas e encontros informais que corroboraram o quadro que já se tinha delineado. As entrevistas formais realizadas com dois dos principais ativistas do movimento (um homem e uma mulher) foram feitas sob condição de anonimato, por duas razões: a primeira, usual no espaço público moçambicano, diz respeito ao medo de represálias por parte das autoridades; a segunda, ainda mais interessante e, segundo as fontes, muito importante, foi determinada pelo facto de o movimento não ter porta-vozes oficiais; portanto, ninguém se sentiu em condições de falar em nome de todos os outros ativistas, mas apenas como alguém que está a ter uma experiência pessoal dentro do movimento, sem qualquer pretensão de representação coletiva. Este elemento é revelador da mudança de abordagem do “Povo no Poder”, em comparação com todos os outros movimentos e organizações da sociedade civil moçambicana que atuam no contexto urbano.

Os novos movimentos sociais urbanos no contexto africano e moçambicano: breve enquadramento teórico

13Os movimentos sociais que estão a atuar nas principais cidades de Moçambique depois da morte de Azagaia – e que assumiram a denominação de “Povo no Poder” – têm três características fundamentais: remetem para a tradição que assenta na obra clássica de Lefebvre (1967), e que se pauta pelo direito à cidade. Um direito que não se configuraria apenas como um espaço para usufruir de liberdade e direitos humanos, mas sim um lugar para entrelaçar relações sociais, compartilhar princípios e valores e encetar lutas para a mudança (Harvey, 2012). Ao longo da história de Moçambique, e ainda mais durante este último período, movimentos coletivos desta natureza têm sido insignificantes ou, quando muito, pretendendo satisfazer lutas pontuais deste ou daquele grupo de munícipes, esgotando-se repentinamente. Por exemplo, no seio de uma urbe de conformação dualista, com uma nítida distinção entre a cidade de cimento e o que está fora dela (visível nas três principais cidades moçambicanas, Maputo, Beira e Nampula) (Maloa, 2019), alguma tensão tem surgido entre os vendedores informais, de rua, e as autoridades municipais. Foi assim em Nampula, quando o presidente do município daquela cidade, Paulo Vahanle, resolveu desistir do seu propósito de livrar os passeios da ocupação supostamente ilegal dos ambulantes, alegando falta de instrumentos legais para o efeito (Município, 2021). E também em Maputo, onde os confrontos entre vendedores informais e polícia municipal foram mais violentos do que em Nampula, mas levando, depois de pouco tempo, à mesma situação (Mapote, 2020). Casos, estes, muito frequentes nas cidades africanas, como relata Gillespie para Acra, capital do Gana (Gillespie, 2017).

14No período pós-pandemia, o caso do “mercado do peixe” na capital moçambicana suscitou várias tensões entre os vendedores ali instalados e as autoridades públicas locais, por razões ligadas ao pagamento de impostos e ao afastamento do antigo local para um novo (Borges, 2022). As lutas ora recordadas são típicas de situações locais, contingentes e “imediatistas”, não tendo elas objetivos de carácter geral, além da satisfação pontual dos assuntos de interesse direto dos manifestantes. Pelo contrário, o “Povo no Poder” assumiu o espaço físico urbano como seu âmbito privilegiado de luta, fazendo dele, tal como já Lefebvre tinha teorizado, o teatro principal das suas reivindicações, e disputando-o continuamente com as forças policiais.

15Um segundo elemento é a matriz “revolucionária” do movimento, numa disputa aberta com o governo central. É necessário explicar o que se entende por “revolucionário” aplicado à realidade moçambicana contemporânea. A literatura clássica sobre os movimentos sociais aponta tradicionalmente para o elemento conflito como o aspeto central das lutas para a mudança. Tarrow, por exemplo, já tinha destacado nas suas pesquisas a “contention” como o momento central das estratégias dos movimentos sociais urbanos na idade contemporânea (Tarrow, 1998). Tilly tinha avançado para uma configuração mais complexa da atuação dos movimentos sociais urbanos, contemplando não apenas o conflito, mas também outras formas de luta, como campanhas públicas, manifestações de rua, etc. (Tilly et al., 2020). Finalmente, a “co-production” – traduzível como “comparticipação” – seria um dos elementos distintivos de movimentos sociais urbanos mais recentes (Joshi & Moore, 2004), que procurariam dialogar com as autoridades para melhorar a disponibilização de serviços públicos básicos. Mitlin vai muito além dessas formulações: esta investigadora – abordando especificamente a perspetiva dos movimentos sociais urbanos no Sul global, em particular no Quénia e na África do Sul – enfatiza o elemento da colaboração como estratégia fundamental das lutas urbanas, que iria complementar as formas mais contundentes e até violentas de engajamento (Mitlin, 2018). Na mesma linha interpretativa se colocam Ballard, Habib e Valodia, defendendo que os movimentos sociais urbanos oscilam, hoje, entre uma “in-system collaboration” e uma “out-of-the-system adversarial relation” com as autoridades públicas (Ballard et al., 2006).

16As linhas teóricas acima ilustradas pecam num ponto fundamental, pelo menos no que diz respeito a movimentos sociais recentes desenvolvidos em países como Moçambique ou Angola: os estudos acima mencionados referem-se a realidades que podem ser consideradas democráticas, incluindo os casos africanos relatados (Quénia e África do Sul, mas também Senegal). No caso em estudo neste artigo, como se verá ao longo da análise, os novos movimentos radicais julgam difícil, se não impossível, colaborar e cooperar com as autoridades públicas. A característica central do “Povo no Poder”, por exemplo, é a sua total indisponibilidade em dialogar com as instituições, consideradas autoritárias e antidemocráticas, além de corruptas e ineficientes.

17Finalmente, a última característica destes novos movimentos tem a ver com a sua dimensão: se a mudança deve ser radical e total, ela deve ocorrer a nível nacional.

18O ponto a seguir vai dar um enquadramento geral dos movimentos sociais urbanos de protesto em Moçambique entre 2008 e 2010, procurando pontos de continuidade e de rutura com o movimento “Povo no Poder”, formado depois da morte de Azagaia.

Os movimentos sociais urbanos de protesto em Moçambique: uma breve análise histórica

19Segundo Larmer, os movimentos sociais africanos atravessaram várias etapas históricas: as duas últimas seriam a que vai de 1990 a 2010, e a que se abre em 2010 e continua até hoje (Larmer, 2010). Na fase que se iniciou internacionalmente com a queda do Muro de Berlim e, em África, na transição do monopartidarismo para o multipartidarismo na maioria dos países, os movimentos sociais – em larga medida financiados por doadores ocidentais – pautaram-se pela consolidação dos processos eleitorais, o respeito pela liberdade de imprensa e de expressão e, em geral, pelos direitos humanos. Tratava-se de movimentos e organizações sociais que, marginalizados na altura do monopartidarismo, viam na transição para a democracia uma forma de inserção no sistema político e até institucional dos vários países. Entretanto, no fim desta fase, os regimes formalmente democráticos voltaram a assumir uma configuração mais autoritária. Salvo exceções significativas (nos PALOP Cabo Verde e, em parte, São Tomé e Príncipe), o continente africano procurou reagir – por intermédio dos seus movimentos – a esta nova tentativa de limitar a esfera pública. Foi assim no caso angolano, entre 2010 e 2011 (Pessoa, 2011), e ainda mais com as “Primaveras Árabes”, que derrubaram déspotas tais como Mubarak no Egito e Ben Ali na Tunísia. Num sentido amplo é possível ler tais movimentos como a derradeira tentativa, mediante enormes protestos de rua, de impor formas mais democráticas e inclusivas de gestão da coisa pública.

20A seguir, ainda segundo Larmer (2010), inicia-se um período muito conturbado, centrado na reação aos processos de globalização e extroversão das economias mundiais, com impacto direto nos países africanos, principalmente naqueles ricos em matérias-primas.

21As lutas assumem configurações diferentes: os Estados africanos tornam-se referentes essenciais das potências ocidentais e asiáticas, garantindo a “estabilidade” de que investimentos externos de grande vulto precisam. Assim sendo, assiste-se a uma “depoliticisation of social conflict as a result” (Larmer, 2010, p. 257), com a presença de poucos movimentos antissistema, como é o caso do Centre for Civil Society da Universidade sul-africana de KwaZulu Natal.

22O caminho do radicalismo político em Moçambique segue, grosso modo, esta agenda e esta cronologia. Com efeito, até aproximadamente 2004 (o fim da presidência de Joaquim Chissano) Moçambique assinala passos relevantes em termos de abertura ao pluralismo na informação, educação, expressão e associação. Com a subida ao poder de Armando Emílio Guebuza, a situação muda: assiste-se a uma viragem para um Estado cada vez menos tolerante e democrático, em paralelo com os primeiros descobrimentos de grandes jazidas de gás e rubis na província nortenha de Cabo Delgado. A sociedade moçambicana, pelo menos nos grandes centros urbanos, já não estava habituada a este tipo de limitações, e procurou reagir paralelamente ao agravar da situação económica geral, derivante da crise alimentar de 2008-2009.

23As tentativas de restabelecer uma vida pública mais democrática conduziram a uma série de episódios e de radicalizações, quer no meio político-institucional, quer fora dele.

24Um primeiro momento deu-se entre 2008 e 2013, e pode ser definido como “a grande repressão”. Esta fase pode ser considerada como o canto do cisne das tentativas de contribuir para o avanço do processo de democratização por movimentos de natureza vária, formais e informais. Em primeiro lugar, movimentos de protesto anónimos conseguiram organizar duas manifestações que levaram a mortes, ferimentos e destruição de várias lojas e exercícios comerciais, primeiro a 5 de fevereiro de 2008, depois a 1 e 2 de setembro de 2010. As duas manifestações eclodiram na cidade de Maputo e na cidade da Matola, mas com uma expansão parcial para outros centros menores do país.

25Tais movimentos podem ser definidos como “revoltas do pão”, associados a uma crítica explícita à postura autoritária do governo Guebuza. Com efeito, tiveram as suas raízes no aumento dos preços, primeiro dos géneros alimentícios, depois dos combustíveis, com impacto direto no preço do transporte semicoletivo, dito “chapa” (Bussotti, 2010; Hernández, 2014). As suas consequências foram consideráveis: acima de tudo, o governo mostrou-se incapaz de fazer face a uma organização reticular e aparentemente anónima como a que deu origem às revoltas; apesar do seu poderoso aparato de vigilância e de repressão, a situação fugiu das mãos das forças policiais, que foram apanhadas de surpresa mesmo na cidade mais controlada, a capital Maputo. Em segundo lugar, a parte política mostrou uma distância enorme em relação aos seus cidadãos, que, em Maputo e na Matola, sempre foram eleitoralmente fiéis ao partido no poder, a Frelimo. As reações de vários ministros, entre os quais o do Interior, Pacheco – que falou à imprensa de manifestações organizadas por “aventureiros, desocupados e bandidos” (Frelimo reúne-se, 2010) –, demonstraram que o governo não estava à espera de que um povo tradicionalmente passivo e com escassa propensão para manifestações de rua conseguisse levar a cabo revoltas daquela envergadura. Nas duas circunstâncias, depois de ter tentado a via da “linha dura”, o governo recuou nos seus propósitos, quer em 2008, quer em 2010 (Ricardo, 2011), garantindo o bloqueio do preço do chapa, subsídios às panificadoras para não aumentar o preço do pão e outras medidas menores (De Brito et al., 2015).

26A nível político, o governo liderado por Guebuza direcionou a sua reação para o controlo e a repressão, muito mais do que para o diálogo: se em 2008 foi difícil implementar tal abordagem, devido ao aproximar-se das eleições (primeiro as autárquicas, depois as gerais, em 2009), em 2010 foram tomadas medidas drásticas, que diminuíram consideravelmente a capacidade de a população protagonizar manifestações como as acima recordadas. Em paralelo, os serviços de segurança (SISE) aumentaram o raio da sua intervenção, enquanto, depois da eleição do novo Presidente, Nyusi, uma tal política levou à instalação de câmaras nas duas cidades julgadas mais “perigosas”, Maputo e Matola (Bussotti & Nhaueleque, 2023; Tsandzana, 2016). Outras medidas económicas foram tomadas logo após a realização das manifestações, sobretudo as de 2010 (De Brito et al., 2015).

27O aumento do controlo e da repressão, associado a subsídios criados para manter suportável o custo de vida, fez com que manifestações semelhantes às de 2008 e de 2010 nunca mais se verificassem em Moçambique, pelo menos nos meios urbanos da grande conurbação, Maputo-Matola. Assim sendo, os movimentos sociais urbanos silenciados e controlados enveredaram por outras formas de expressar o seu descontentamento em relação às políticas governamentais e, em geral, à situação cada vez mais crítica do país.

28O segundo e último momento no interior da “grande repressão” viu como protagonista uma fatia importante da sociedade civil moçambicana. Este momento culminou numa manifestação pública de protesto, com cerca de 30.000 participantes, denominada “Marcha pela Paz”, ocorrida em outubro de 2013, tendo sido organizada por Alice Mabota, durante mais de vinte anos presidente da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos e falecida a 12 de outubro de 2023 (Fonseca, 2013). A manifestação teve um sucesso além das previsões. A manifestação tinha como pano de fundo a questão dos frequentes raptos que estavam a assolar várias cidades do país naquela altura; a este propósito, as palavras de ordem e o discurso de Alice Mabote naquela ocasião não deixaram dúvidas sobre o posicionamento do movimento. Os manifestantes acusaram abertamente o governo e as forças policiais moçambicanas de terem um papel ativo na organização dos raptos, exigindo a demissão das lideranças do Ministério do Interior e acusando de cumplicidade também os bancos e as operadoras de telefonia móvel (Mapote, 2013).

29A “Marcha pela Paz” apelava também à resolução do conflito entre o Governo-Frelimo e a Renamo: a situação de extrema tensão entre as duas maiores forças políticas do país levou, em pouco tempo, a uma segunda guerra que assolou o centro de Moçambique durante cerca de quatro anos. Finalmente, nos bastidores, as vozes que queriam Alice Mabota candidata independente às eleições de 2014 eram insistentes, principalmente depois da manifestação de outubro de 2013, e isso podia constituir um perigo para o sistema representado pelo binómio Frelimo-Renamo. Assim, quase do nada, começaram a suceder-se vozes de má gestão de Alice Mabota em relação à Liga. Consequentemente, a fundadora e líder da mais importante organização de defesa dos direitos humanos em Moçambique foi primeiro afastada da Liga, depois processada devido a uma série de supostos crimes administrativos, que cortaram de uma vez por todas a sua possível parábola política, embora tenha tentado, ainda em 2019, candidatar-se à Presidência da República. Sem querer entrar em questões judiciárias, resulta pelo menos curioso que Alice Mabote tenha sido acusada, justamente entre 2013 e 2014 (dois anos eleitorais), de crimes administrativos, que alegadamente teriam delapidado um valor correspondente a 14.400 dólares da Liga (Lutxeque, 2018).

30Foi provavelmente esta a mais extrema tentativa de desafiar o governo mediante uma postura política organizada de tipo radical, frontal e propondo uma alternativa ao sistema vigente. No caso de Alice Mabota, a “grande repressão” encontrou mecanismos menos violentos para a afastar da vida pública moçambicana. Não obstante, os resultados foram os mesmos da repressão das manifestações de 2008 e 2010.

31Em 2013 abre-se, assim, uma nova fase, que Larmer tem chamado de “globalização e extraversão” (Larmer, 2010), e que em Moçambique é introduzida mediante uma importante transição. Nesta fase, os movimentos sociais perdem a sua natureza política, segundo Larmer, e é isso que acontece em Moçambique também, pelo menos fora do meio rural. Dois elementos contribuem para que tal mudança aconteça: por um lado, inicia-se a exploração de gás em Cabo Delgado, paralelamente à de rubis em Montepuez (Gás natural, 2013); e, por outro, a Renamo (graças também à política repressiva de Guebuza) volta a usar a sua antiga arma de defesa – a guerra – para conseguir resultados tangíveis diante do governo da Frelimo. Dhlakama, que tinha levado a Renamo a resultados eleitorais muito modestos em 2009, conseguindo apenas 16% dos votos válidos, ressuscitou o tradicional bipolarismo político moçambicano, substituindo-se, em termos de radicalismo, aos movimentos de protesto de que se deu conta acima, e aniquilando a força de mudança e inovação do MDM, que deixou de constituir um perigo. No meio de um novo conflito, Dhlakama soube interpretar as instâncias de radicalismo de uma boa parte da população moçambicana, transformando-as em proposta política revolucionária: primeiro, apelando à possível divisão do país a norte do Rio Save, depois insistindo na implementação do federalismo, que inclusive custou a vida ao Professor Cistac (RFI, 2015).

32A morte de Dhlakama, em maio de 2018, e a assinatura do acordo definitivo de paz entre o Governo e a Renamo, em 2019, assinalam o fim ideal desta fase conturbada da vida política moçambicana. Porém, outras formas de radicalismo começam a manifestar-se no país, em resposta às políticas não inclusivas do governo: em primeiro lugar, o extremismo de matriz étnica, económica, política e religiosa no norte de Moçambique, que se iniciou com um ataque a um posto policial em Mocímboa da Praia em 5 de outubro de 2017 e continuou com vários outros episódios até hoje (Chongo & Chone, 2022; Van Rentergem, 2022). Em segundo lugar, o retorno mais recente do radicalismo de tipo urbano representado pelo movimento “Povo no Poder”, que se seguiu à morte do rapper Azagaia, de que se tratará no ponto seguinte.

Rumo a um novo radicalismo político de tipo urbano:
o “Povo no Poder”

33Assim como acontece com todos os movimentos organizados, o movimento “Povo no Poder” também não surge do nada, embora a morte do rapper Azagaia represente aquele acontecimento imprevisto e imprevisível que desencadeou uma dinâmica que ninguém tinha imaginado ver no contexto urbano de Moçambique.

34O vazio deixado por Alice Mabota e a sua Liga foi em parte preenchido por algumas individualidades que voltaram a propor soluções radicais (ou a fazer críticas radicais) para Moçambique. As individualidades mais contundentes e de tendências radicais provinham, nesta fase, da sociedade civil. Com efeito, a Renamo, principalmente depois da morte de Dhlakama, deixou de expressar posicionamentos radicais, ao passo que o MDM nunca o tinha feito. O palco da luta das individualidades da sociedade civil foi o espaço físico, assim como o virtual. Se, na dimensão virtual, eles tiveram sucesso, na dimensão física o aparato repressivo do governo moçambicano conseguiu fazer com que as manifestações de rua, de 2010 até a morte de Azagaia, fossem em número muito limitado, e com impacto modesto junto da opinião pública. A rua deixou de constituir um espaço de disputa, tornando-se politicamente vazia.

35Como sempre acontece, houve exceções entre os expoentes principais do radicalismo político moçambicano dos últimos dez anos que procuraram reocupar as ruas. É possível recordar aqui Adriano Nuvunga e Venâncio Mondlane. O primeiro continua a ser um expoente de ponta da sociedade civil, como veremos em seguida, ao passo que o segundo iniciou a sua presença na esfera pública como colunista televisivo de emissoras privadas, para passar à política ativa, primeiro no MDM, depois na Renamo; com o VII Congresso desta formação política, em maio de 2024, Mondlane saiu da Renamo, para se tornar um político independente. Outros representantes da corrente radical deste período foram os rappers engajados, acima de tudo Azagaia. Juntamente com estas figuras vale a pena recordar também os Madjermanes, trabalhadores moçambicanos contratados e que trabalharam na ex-República Democrática Alemã, que até hoje reclamam as suas pensões ao governo moçambicano, desfilando todas as quartas-feiras nas ruas de Maputo, incansáveis e com bandeiras alemãs, até agora com resultados modestos.

36Adriano Nuvunga, professor universitário, durante muito tempo diretor-geral do CIP (Centro de Integridade Pública), é hoje fundador e diretor executivo do CDD (Centro para a Democracia e o Desenvolvimento) e coordenador da RMDDH (Rede Moçambicana dos Defensores dos Direitos Humanos). A organização atual que lidera configura-se como uma ONG das mais destacadas em Moçambique. Tendo financiadores como a USAID e a cooperação bilateral de países como Finlândia, Reino Unido, Suíça, Países Baixos, e da União Europeia e a Fundação Ford, entre outras (https://cddmoz.org/​), Nuvunga consegue levantar críticas extremamente duras contra o governo, de que é um dos mais acérrimos inimigos. A sua luta não é apenas contra as práticas de corrupção institucionalizadas, as injustiças da política moçambicana, a incapacidade do governo para resolver os problemas mais prementes do país, mas concentra-se sobretudo na necessidade de uma mudança radical do sistema. Por causa desta postura, que Nuvunga expressa tanto nos canais de Facebook e YouTube do CDD, como em várias entrevistas à imprensa e canais televisivos nacionais e internacionais, este ativista foi alvo de inúmeras ameaças de morte por parte de, supostamente, forças ligadas ao governo da Frelimo, que ainda assim não o conseguiram fazer desistir do seu propósito de mudança (Lisboa, 2022).

37Apesar de ser um ativista individual, Nuvunga conseguiu – principalmente através da RMDDH – aglutinar várias figuras proeminentes do novo radicalismo moçambicano do “Povo no Poder”, inclusivamente procurando dar-lhes um mínimo de proteção contra as ameaças de forças ligadas ao governo.

38O espaço de atuação de Nuvunga concentra-se principalmente nos media (digitais e tradicionais), mas de vez em quando procura ocupar espaços físicos urbanos. Por exemplo, o aumento das regalias para ex-presidentes da república, parlamentares em funções, e depois funcionários da própria Assembleia da República, sempre foram questões que Nuvunga criticou de forma aberta: primeiro, em 2014, quando ainda exercia as funções de diretor-geral do CIP e quando o parlamento moçambicano já no fim do mandato aprovou uma lei para aumentar essas regalias (Andrade, 2014); depois, em 2021, quando o parlamento aprovou uma segunda lei, e Nuvunga – já como diretor executivo do CDD – tentou organizar uma marcha de jovens em frente ao parlamento, que porém foi reprimida pela polícia, e dispersada, prendendo um dos manifestantes (MP, 2021).

39Venâncio Mondlane tem um historial pessoal diferente do de Nuvunga: de família frelimista, Mondlane é engenheiro de formação. Começou por se fazer notar como comentador político na STV, a mais importante estação de televisão privada de Moçambique; daí, passou à vida política ativa, juntando-se primeiro ao MDM, e sendo derrotado (com claros sinais de fraude) nas eleições autárquicas de 2013 para o município de Maputo. Já parlamentar do MDM, passou para a Renamo sob solicitação do então líder, Afonso Dhlakama, tornando-se uma das figuras de relevo desta formação política e ponto de referência no círculo eleitoral de Maputo. Mondlane, apesar de se juntar a partidos políticos da oposição, sempre manteve uma postura de ativista social, com um diálogo constante com as forças mais vivas da sociedade civil moçambicana, procurando ocupar um espaço – o do radicalismo político – que desaparecera com Dhlakama, e que a nova liderança de Ossufo Momade não quis ou não foi capaz de ocupar. A sua performance considerável por ocasião das eleições autárquicas de 2013, como cabeça de lista para o município de Maputo, testemunha a sua capacidade política e a sua ligação aos novos movimentos do “Povo no Poder”.

40Mondlane tem canal Facebook, YouTube e Instagram muito ativos, com milhares de visualizações e de seguidores (mais de 50.000 inscritos no canal Facebook). Sempre esteve presente tanto no espaço virtual como no físico. Com efeito, em várias circunstâncias procurou ocupar praças e ruas de Maputo, consoante a sua agenda política. Por exemplo, encabeçou as manifestações dos vendedores e vendedeiras do Mercado do Peixe na capital moçambicana, impedidas pela polícia (Maputo, 2022); foi um dos protagonistas da concorrida homenagem ao rapper Azagaia no dia 14 de março de 2023 (Lisboa, 2023), assim como da marcha pacífica do dia 18 do mesmo mês, que levou a uma violenta repressão por parte da polícia, com 22 detidos e um ferido grave em Maputo e 10 detidos na Beira, apesar das autorizações da marcha concedidas pelos respetivos conselhos municipais (Silva & Loureiro, 2023). Poucos dias depois foi o organizador de uma “marcha super-pacífica”, de que falaremos mais adiante, sem contar com as inúmeras manifestações durante e depois das eleições municipais de 2023, que Mondlane provavelmente teria ganho na cidade de Maputo, não fossem os mecanismos fraudulentos, em parte aclarados pelo próprio Conselho Constitucional! (Mondlane, 2023).

41A este quadro deveriam acrescentar-se outros momentos e outros intervenientes do radicalismo político moçambicano entre 2010 e a morte de Azagaia: por exemplo, o protagonismo do Parlamento Juvenil liderado por Salomão Muchanga, hoje fundador e presidente de uma nova formação política, a Nova Democracia. Um parlamento juvenil que em 2016, juntamente com a Liga dos Direitos Humanos, já enfraquecida, procurou organizar uma manifestação pacífica de protesto contra a guerra em curso e de indignação pelo escândalo das dívidas ocultas (em 18 de junho e 27 de agosto de 2016), também reprimida pela polícia (Kumenya, 2016). Ou como também, em 2018 na cidade de Pemba, quando se registou a intervenção da polícia contra manifestantes que tinham montado barricadas nas principais ruas da capital de Cabo Delgado por causa de um suposto mecanismo de usurpação de terras devido à instalação de uma base logística, usando gás lacrimogéneo e disparando balas reais (Lisboa, 2018).

42Do lado feminino, personagens como Quitéria Guirengane e Milda Quaria representam algumas das principais individualidades do radicalismo político mais recente. A primeira, antigamente coordenadora da Rede de Mulheres Jovens Líderes em Moçambique, hoje coordenadora do Observatório das Mulheres, tem uma longa experiência no ativismo feminino moçambicano. Membro do partido Nova Democracia, Quitéria tem procurado ocupar espaços físicos no meio urbano, além dos virtuais e da comunicação social, com iniciativas que desafiaram a polícia e as autoridades governamentais. Por exemplo, anunciou que iria apelar à União Africana e às Nações Unidas para denunciar os abusos policiais por ocasião da manifestação pacífica de 18 de março de 2023, de que foi uma das promotoras (Falcão, 2023). Alguns meses antes tentou organizar uma manifestação de rua na capital Maputo, denunciando a violência contra as mulheres, no seio da campanha internacional “Pinte o Mundo de Laranja”, apoiada pelas embaixadas de Espanha e dos Países Baixos. A manifestação pacífica foi pontualmente reprimida pela polícia, que prendeu 17 manifestantes (Silva, 2021).

  • 1 É possível ver as denúncias de Milda na sua página de Facebook, assim como no site quarianews.co

43A outra expoente de ponta do radicalismo político moçambicano, Milda Quaria, é jornalista de profissão, tendo-se dedicado, nos últimos anos, à investigação da insurgência em Cabo Delgado, de onde é originária, mediante um site de notícias muito conceituado (quarianews.com). Juntou-se, nos últimos meses, ao movimento “Povo no Poder”, do qual se tornou uma das referências principais para a cidade de Maputo, promovendo campanhas de vária natureza, principalmente a respeito da libertação de ativistas presos em diversos cantos do país pela sua adesão ao movimento, como no caso de Joaquim Pachoneia em Nampula, engajado na denúncia de fraudes ao longo do processo de recenseamento para as eleições autárquicas de outubro de 2023.1

44Finalmente, quem ocupou espaços físicos, além dos virtuais, embora de forma episódica e isolada, foi um grupo de rappers jovens e engajados, os quais, provavelmente, foram os que mais eficazmente expressaram o radicalismo político durante vários anos em Moçambique (Bussotti & Chinguai, 2020). Juntamente com a palavra de ordem de Azagaia, referência principal entre estes artistas de “Povo no Poder”, ou das “Mentiras da Verdade”, André Cardoso também tem lançado mensagens de crítica radical ao sistema, como é evidente, por exemplo, na sua faixa intitulada “Chamboco” (Cardoso, 2018), o que lhe custou vários constrangimentos, mesmo durante as suas viagens dentro de Moçambique (Voos da LAM, 2023). A tradição do rap como momento central dos protestos dos jovens não é típica apenas de Moçambique; em todos os PALOP registou-se esta tendência (Barros & Lima, 2012; Lima, 2012), mais ou menos bem-sucedida, com semelhanças mais próximas com o caso angolano, em que rappers destacados, como Filhos da Ala Leste, MCK ou Ikonoklasta veicularam mensagens de dura crítica ao regime, posicionando-se explicitamente do ponto de vista político (Lázaro & Silva, 2016; Mendonça Júnior, 2021).

45O quadro que emerge depois das manifestações de protesto de 2008 e de 2010, reprimidas pela polícia, foi de um radicalismo antigovernamental que deixa de se manifestar nos espaços físicos, procurando lugares virtuais e comunicacionais para expressar o seu descontentamento e os seus protestos. As raras vezes em que houve tentativas de reocupar os espaços físicos das principais cidades do país por parte dos manifestantes, elas foram objeto de repressão, empurrando os protestos para espaços virtuais, também parcialmente controlados. Entretanto, depois da morte de Azagaia, o cenário parece ter sofrido algumas alterações, que serão abordadas a seguir.

O “Povo no Poder”: o radicalismo político à reconquista dos espaços físicos no meio urbano

  • 2 Entrevista realizada em Maputo, 27/06/2023.
  • 3 Várias conversas foram realizadas com personagens de destaque da oposição moçambicana, tais como (...)

46A morte de Azagaia despoletou o surgimento de um movimento que se autodefiniu como “Povo no Poder”, e que desde o seu primeiro dia procurou disputar as ruas com as forças policiais de Moçambique. De acordo com as afirmações de um dos membros mais influentes do movimento, que quis falar sob anonimato,2 o movimento teve sim origem depois da morte do famoso rapper, mas já tinha desenvolvido as suas bases anteriormente, com Azagaia em vida. A palavra de ordem “Povo no Poder” tinha sido proposta por Samora Machel aquando das suas campanhas contra a corrupção dos funcionários do Estado, e, portanto, a primeira fonte de inspiração foi o antigo presidente de Moçambique, que Azagaia reelaborou. O entrevistado quis sublinhar a espontaneidade de muitos jovens na formação do movimento por ocasião da morte de Azagaia, realçando também alguns aspetos que puderam ser verificados mediante o contacto com outras fontes, mais viradas para o cenário propriamente político.3 O primeiro elemento a ser realçado tem a ver com a composição dos membros do movimento: de acordo com o entrevistado, são jovens ligados à música de Azagaia, pertencentes a vários partidos ou sem pertença política específica, o que tem criado, desde o início, uma certa confusão em termos de posicionamento ideológico, embora o viés anti-frelimista resulte evidente em todas as manifestações e pronunciamentos públicos dos seus protagonistas. Com efeito, os novos “revolucionários” não se dizem de esquerda nem de direita, pautando-se pela libertação de Moçambique do regime atual, considerado neocolonial.

47Depois da celebração do funeral de Azagaia, o momento central na primeira fase da formação do movimento foi o dia 18 de março, aquando da marcha pacífica em homenagem ao falecido rapper, de que já se falou anteriormente (Silva, 2023). É importante recordar a dinâmica desta marcha, pois ela assinala a primeira fase do movimento: acima de tudo, quem a encabeçou foi Venâncio Mondlane, na época deputado da Renamo, entoando a palavra de ordem, “Povo no Poder”, assim como tinha feito por ocasião do funeral do rapper diante do edifício do município de Maputo. Em segundo lugar, o movimento desafiou a polícia moçambicana no que diz respeito ao controlo e utilização de uma das ruas centrais de Maputo, a Avenida Eduardo Mondlane. O governo respondeu de forma duríssima, enviando a UIR (Unidade de Intervenção Rápida), que impediu que o evento sequer tivesse início.

  • 4 Ver também a página de Facebook deste movimento, “Geração 18 de Março”, que indica como data de (...)

48A partir destes dois elementos, o movimento começou a posicionar-se no cenário público. Inicialmente, Venâncio Mondlane, em parte junto com Salomão Muchanga, foram as referências políticas principais. Entretanto, o movimento sempre foi “sem cara” – como recorda o entrevistado – pois um dos aspetos essenciais foi a sua organização reticular e horizontal, acentuando o coletivo em detrimento do individual. Desde esta primeira fase de incubação, o movimento autodefiniu-se também como “Geração 18 de Março”. Esta denominação contrapõe-se à “Geração 8 de Março”. Tal geração deve o seu nome ao momento em que Samora Machel, a 8 de março de 1977, chamou um grupo de jovens moçambicanos para substituir, na administração pública do novo Estado, os portugueses que acabavam de deixar o país. A partir desta chamada, a “Geração 8 de Março” foi eternizada, passando a representar, dentro da Frelimo, a ideia de um grupo de jovens que não tinham participado na luta de libertação, mas que se engajaram na mudança e no desenvolvimento do país (Menete, 2020). A “Geração 18 de Março” pautar-se-ia por uma mudança efetiva, radical e imediata da situação, por oposição a uma suposta “Geração 8 de Março” que não conseguiu levar a nenhuma melhoria – segundo o pensamento coletivo do movimento – adequando-se ao statu quo caracterizado pelas desigualdades sociais e territoriais, pela corrupção e pela violência institucionalizada.4

49A segunda manifestação – uma marcha “super-pacífica”, como foi definida – teve lugar no dia 10 de abril de 2023, consistindo em acender uma vela ou as lâmpadas dos telemóveis pelas 20.00 horas nas próprias varandas, janelas ou quintais das residências, como sinal de protesto contra as políticas governamentais (Mondlane, 2023). Tratou-se de uma nova forma de manifestação em Moçambique e que revelou dois aspetos muito importantes: em primeiro lugar, deu a conhecer formas inovadoras e não violentas de manifestação da dissidência; em segundo lugar – ou pelo menos assim foi lida por um segmento significativo do movimento – representou um recuo, se comparada com as manifestações de rua que tinham sido organizadas depois da morte de Azagaia. Como o próprio Mondlane declarou, a manifestação não correu mal, mas não foi totalmente satisfatória em termos de adesão. A partir deste momento, o movimento “Povo no Poder” procurou verificar previamente se existiam condições para empreender outras formas de manifestação, mas sempre tendo a rua como referência essencial, além das redes sociais e de entrevistas de vários dos seus membros nas televisões privadas e em jornais independentes. As manifestações que se deram ao longo e depois das eleições autárquicas de outubro de 2023 demonstraram que o movimento – juntamente com lideranças locais, como Mondlane, Araújo e outros – passou por um período de reflexão e de reorganização, que lhe permitiu desenvolver formas mais maduras, contínuas e eficazes de demonstrações públicas no momento eleitoral.

50Segundo o entrevistado, além de uma opção diferente relativamente às formas de luta, a figura de Venâncio Mondlane estava a criar problemas dentro do movimento. Com efeito, a sua filiação política era, para alguns dos membros, problemática. A Renamo – segundo a fonte – não seria um partido confiável, principalmente com a atual liderança. Entretanto, o movimento apostou em Venâncio Mondlane para as eleições locais em Maputo, assim como noutras figuras da oposição noutros municípios, com resultados muito satisfatórios.

  • 5 Entrevistada que concedeu ao autor duas entrevistas na cidade de Maputo, uma em março, a outra e (...)

51A opção inicial foi, portanto, a de tentar uma via autónoma em termos políticos, sem uma estratégia definida e olhando mais para o dia a dia. O rumo da agenda do movimento dirigiu-se para duas novas vertentes: por um lado, a rua não podia ser abandonada, portanto iniciou-se um processo de repensar em como ocupar este espaço físico, mas limitando o risco de represálias e violências por parte da polícia. Começou assim a campanha do Artigo 51.º: este artigo da Constituição diz respeito ao direito de manifestação, que em Moçambique foi há muito tempo silenciado como se viu no ponto anterior, e sobretudo depois da morte de Azagaia. De acordo com uma segunda fonte que também se disponibilizou a falar sob anonimato,5 a ideia era surpreender as forças policiais com manifestações levadas a cabo por grupos de 3-4 membros, em partes diferentes da cidade, e por pouco tempo, expondo cartazes reclamando o direito à manifestação e o respeito dos princípios constitucionais (Figura 1).

Figura 1

Manifestante na Avenida Eduardo Mondlane, Maputo

Fonte: Twitter de David Xavier Fardo

52Esta forma de reocupação das ruas incomodou as forças policiais que, pelo menos na capital moçambicana, passaram a ter uma presença enorme nas ruas da cidade de Maputo para o controlo do espaço urbano, tornando extremamente difíceis estes raids por parte do movimento. Entretanto, o movimento continuou a apoiar qualquer tipo de protesto contra o governo da Frelimo, como aconteceu com os enfermeiros, médicos, funcionários do município de Maputo e outras categorias de trabalhadores da função pública (Figura 2), postando e viralizando fotos relativas a tais momentos.

Figura 2

Médicos e enfermeiros em greve na cidade de Maputo

Fonte: Carta de Moçambique, 16/12/2022

53O momento final deste período conturbado e conflituoso do relacionamento entre o movimento e as autoridades policiais foi assinalado pela iniciativa de outro expoente político da oposição, Salomão Muchanga, desde sempre em diálogo com os membros do “Povo no Poder”, inclusivamente graças à sua colega de partido, Quitéria Gueringuane, ativista feminista e também uma referência do movimento. Muchanga conseguiu realizar, depois de muito tempo, uma marcha pacífica na cidade de Maputo sem a intervenção repressiva do aparato policial. Como revelou numa breve conversa com o autor, e como também declarou publicamente, o sucesso da sua iniciativa deveu-se ao conhecimento profundo do contexto político local, das regras inerentes ao direito à manifestação e, finalmente, do bon ton que utilizou, atuando em climas incandescentes como os que se vivem em Moçambique desde a morte de Azagaia. Com efeito, Muchanga convocou uma marcha para o dia 24 de junho, alusiva à independência do país (que se celebra a 25 de junho), chamada “Marcha da Liberdade”.

54Muchanga sensibilizou o Presidente da República acerca da necessidade de parar com a repressão violenta de manifestações pacíficas, contactou a procuradora-geral da República e a ministra do Interior para que essas figuras também estivessem informadas da natureza pacífica (e nacionalista) da marcha, apresentou ao município de Maputo os requerimentos necessários para a obtenção das autorizações necessárias, conseguindo que a polícia estivesse presente, mas só para acompanhar os manifestantes e não para os reprimir.

55Um dos jornais privados que fez a cobertura do evento concluiu da seguinte forma o seu comentário sobre essa iniciativa: “Diante de tanta dificuldade em se exercer cidadania neste país, a Nova Democracia torna-se num movimento libertador” (Manifestar, 2023, p. 2). Com Muchanga estavam presentes muitos membros do “Povo no Poder”, assinalando assim uma possível transferência das suas simpatias políticas para um partido menos estruturado e aberto em relação à Renamo, e com uma liderança mais inclusiva e sem pretensões hegemónicas para com as ideias e a forma organizativa do movimento (Figura 3).

Figura 3

Marcha da Liberdade com Salomão Muchanga

Fonte: Jornal A Luz do Pensamento, 29/06/2023, p. 206

56Em paralelo à campanha relativa ao artigo 51.º, o movimento procurou penetrar no cenário político mediante outra iniciativa, que mobilizou muitos jovens e que deu resultados assinaláveis. Desfrutando da rede bastante capilar de artistas locais, jovens académicos engajados, jornalistas e ativistas sociais, o movimento conseguiu trazer à tona as enormes irregularidades no processo de recenseamento eleitoral alusivo às eleições municipais.

57Em todos os cantos do país, ativistas do movimento tiraram fotos e realizaram filmagens relativas à forma como membros do STAE (Secretariado Técnico da Administração Eleitoral, o braço operacional da CNE) levaram a cabo o recenseamento. De imediato, redes sociais, televisões privadas, jornais impressos e online partilharam tal material, forçando, nos casos mais evidentes de má conduta, o próprio STAE a tomar medidas contra esses funcionários. Os casos mais graves verificaram-se em Nampula, onde o Tribunal de Ribáuè emitiu um mandato de captura contra o diretor local do STAE (Lutxeque, 2023), na Beira (Sebastião, 2023), em Gaza, bastião da Frelimo, onde foram denunciados mais de 300.000 eleitores-fantasma (Lusa, 2023). Esta postura continuou durante e depois das eleições: o movimento resolveu apoiar figuras-chave da oposição para os vários municípios, entre as quais Venâncio Mondlane para Maputo. A escolha foi, portanto, apoiar não tanto o partido-Renamo, em relação ao qual permanece um sentimento de desconfiança até hoje, mas mais em relação a personagens políticas que tenham dado provas de serem fiéis ao movimento, encarnando os seus ideais populares e de superação da atual configuração do quadro político nacional. Renunciando a candidatar membros que sejam uma expressão direta do movimento, as suas simpatias foram em larga medida para expoentes da Renamo, mas também do MDM (na Beira, onde este partido ganhou de novo o município) e da Nova Democracia (no caso de Gurué).

Conclusões

58Depois da “grande repressão” entre 2008 e 2013, os movimentos sociais urbanos limitaram-se a uma presença esporádica nas ruas das principais cidades de Moçambique, preferindo enfrentar o governo nos domínios virtuais. Depois de 2013, o radicalismo político voltou às mãos do presidente da Renamo, Dhlakama, que viveu os últimos anos da sua vida agraciado por uma popularidade que nunca tinha experimentado em todo o seu percurso político anterior.

59Os resultados eleitorais da Renamo em 2014 são uma demonstração evidente da simpatia que Dhlakama granjeava entre os eleitores naquela altura. Entretanto, Dhlakama levou o conflito (armado) para zonas internas do país, deixando que as forças governamentais continuassem a tomar conta das principais cidades, com um controlo cada vez mais apertado dos movimentos de dissidência e de crítica. Salvo poucos momentos, o direito à manifestação ficou impedido, e o espaço físico das ruas urbanas ficou dominado pela polícia.

60Com o novo movimento “Povo no Poder” a situação, em parte, mudou: os revolucionários sem ideologia, a não ser a que Samora Machel passou para Azagaia, e sem rosto nem liderança reconhecida, voltaram a ocupar as ruas de Maputo e de outras cidades importantes, como Beira e Nampula. E a reação foi violenta, pelas mãos da polícia. Uma violência aparentemente desnecessária, mas que escondia o terror de uma nova “Primavera Árabe” a partir de Moçambique por parte do governo, que assim usou métodos repressivos excessivos. Depois de, nos primeiros momentos, o movimento gatinhar, associando-se principalmente a certos políticos da oposição, primeiro Venâncio Mondlane da Renamo, a escolha foi engajar-se em campanhas específicas, tais como a relativa ao artigo 51.º da Constituição, ou a inerente denúncia das fraudes no recenseamento em vista das eleições autárquicas de outubro de 2023, para depois, por ocasião das eleições autárquicas de 2023, apoiar expoentes das oposições em várias cidades, continuando a ocupar praças e ruas das principais urbes moçambicanas, tornando de facto impossível a repressão policial, devido ao número extremamente elevado de manifestantes por cada manifestação organizada.

61Provavelmente, a supramencionada marcha organizada por Salomão Muchanga abriu um caminho novo no relacionamento entre a frente das oposições radicais e o governo: usando todos os instrumentos diplomáticos e legais, foi possível voltar a disputar com o governo (e a Frelimo) o espaço físico das ruas urbanas, que outrora tinha sido impedido com o uso da força e da repressão. Trata-se de um espaço de luta muito relevante que os movimentos sociais mais radicalizados já voltaram a utilizar para projetar uma imagem negativa do governo, ganhando visibilidade para além das redes sociais e das críticas nos media.

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Notas

1 É possível ver as denúncias de Milda na sua página de Facebook, assim como no site quarianews.com

2 Entrevista realizada em Maputo, 27/06/2023.

3 Várias conversas foram realizadas com personagens de destaque da oposição moçambicana, tais como Salomão Muchanga, da Nova Democracia, e Venâncio Mondlane, em Maputo entre março e junho de 2023 acerca da postura do movimento “Povo no Poder”, seu posicionamento político e suas relações com as oposições, tendo em vista as eleições autárquicas de outubro de 2023.

4 Ver também a página de Facebook deste movimento, “Geração 18 de Março”, que indica como data de criação o dia 20 de março e que tem como capa uma foto de Azagaia, aparecendo em segundo plano os manifestantes pacificamente ajoelhados perante a perseguição de carros da polícia.

5 Entrevistada que concedeu ao autor duas entrevistas na cidade de Maputo, uma em março, a outra em abril de 2023.

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Índice das ilustrações

Créditos Fonte: Twitter de David Xavier Fardo
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Créditos Fonte: Carta de Moçambique, 16/12/2022
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Créditos Fonte: Jornal A Luz do Pensamento, 29/06/2023, p. 206
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Luca Bussotti, «Movimentos Sociais Urbanos em Moçambique.
O radicalismo político depois da morte de Azagaia
»
Cadernos de Estudos Africanos, 47 | 2024, 93-119.

Referência eletrónica

Luca Bussotti, «Movimentos Sociais Urbanos em Moçambique.
O radicalismo político depois da morte de Azagaia
»
Cadernos de Estudos Africanos [Online], 47 | 2024, posto online no dia 01 maio 2025, consultado o 15 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/cea/9014

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Luca Bussotti

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