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Violência contra profissionais de saúde: Dos discursos às práticas

Violence against health professionals: From discourses to practices
Violences envers les professionnels de santé: Des discours aux pratiques
CARLA BARROS, ANA SANI y RUTE F. MENESES
p. 33-46

Resúmenes

A complexidade e a especificidade do trabalho dos profissionais de saúde potenciam situações de conflito interpessoal, intergrupal e organizacional. Neste sentido, o objetivo deste texto é o de elaborar uma revisão teórica sobre o tema da violência contra profissionais de saúde. A análise das várias dimensões associadas a situações de conflito e violência reforça a necessidade de avaliação de fatores de risco como medida preventiva, assim como dos seus efeitos na saúde e no bem-estar destes profissionais. A avaliação das causas e consequências relacionadas com a exposição a comportamentos violentos permite às instituições de saúde desenhar estratégias eficazes de modo a minimizar situações de conflito potenciadoras de violência.

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Introdução

1A Organização Mundial de Saúde define a violência como o uso intencional (mediante ameaça ou concretização) de força física ou poder dirigido a si mesmo, outra pessoa, grupo ou comunidade, que resulta numa probabilidade elevada de causar sofrimento, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado, privação ou morte (Anderson e Bushman, 2002; Dahlberg et al., 2006; Krug et al., 2002).

2A abordagem da saúde pública à violência é cada vez mais predominante nas respostas globais à violência (Mitton, 2019). A violência e o assédio no local de trabalho constituem uma ameaça à saúde e segurança dos trabalhadores, bem como à própria produtividade e eficácia organizacionais. Em junho de 2019, na Conferência Centenária da OIT, foram adotadas a Convenção sobre Violência e Assédio (n.º 190) e a sua Recomendação (n.º 206), apelando à proibição e prevenção da violência e do assédio no mundo do trabalho (ILO, 2020).

3De facto, a violência é considerada um dos mais graves problemas no contexto laboral e refere-se a qualquer ato e ameaça de violência física, assédio, intimidação ou outros comportamentos perturbadores e ameaçadores que ocorram no local de trabalho, desde ameaças e abusos verbais a agressões físicas e até mesmo homicídio (OHSA, 2016).

4Os comportamentos agressivos e violentos podem ter diversas formas, duração e intensidade (incluindo agressões menos visíveis), que se traduzem em comportamentos desumanos e antiéticos deliberados que atingem a dignidade e a saúde mental e psicológica do trabalhador; mais concretamente, estamos a falar de uma atitude de intimidação ou de agressão psicológica, de assédio ou abuso, como é o caso dos abusos verbais que se caracterizam por “insultos”, “ameaças”, “discurso violento”, “palavras e gestos obscenos” (Pai et al., 2018; Rahm et al., 2019).

5A exposição sistemática a qualquer atitude de intimidação ou humilhação, comportamentos hostis, violentos e agressivos ou outra ameaça, que coloquem direta ou indiretamente em perigo a segurança, bem-estar e saúde de uma pessoa, e que ocorram em circunstâncias de trabalho (Antão et al., 2020; Kowalczut e Krajewska-Kulak, 2017), constitui um problema crescente, sendo os profissionais de saúde um dos grupos profissionais atingidos.

6Neste sentido, o objetivo deste artigo é o de elaborar uma revisão teórica sobre o tema da violência contra profissionais de saúde. Mais concretamente, pretende-se fazer uma reflexão dos discursos atuais sobre a temática, articulando alguns dados e números das práticas existentes a fim de repensar as estratégias para a prevenção da violência no trabalho.

1. Prevalência de violência contra profissionais de saúde

7A complexidade e a especificidade do trabalho dos profissionais de saúde e o enfoque no cuidado aos pacientes potenciam situações de conflito interpessoal, intergrupal e organizacional (Corradi, Zgoda e Paul, 2008; Cunha et al., 2018; Sureda, Mancho e Sesé, 2019), o que sinaliza as instituições de saúde locais para uma gestão e prevenção de conflitos (Barros et al., 2021; Claro e Cunha, 2017; Cunha e Monteiro, 2021; Sun et al., 2017). De facto, os profissionais de saúde exercem a sua atividade profissional em contextos de trabalho caracterizados por condições extremamente complexas, que aumentam o risco de violência no local de trabalho e podem conduzir ao aparecimento de problemas psicológicos (Barzilay et al., 2020).

8Com efeito, no sector da saúde, a violência no local de trabalho é um dos maiores problemas, e os seus profissionais estão mais vulneráveis a sofrerem qualquer tipo de violência. Estima-se que, em todo mundo, 25% destes profissionais estejam expostos à violência no trabalho – pelo menos um em cada quatro profissionais da saúde relata sofrer ou já ter sofrido violência no local de trabalho (Lelapi et al., 2021; Pai et al., 2018; Rahm et al., 2019).

9Há uma prevalência da agressão externa verbal (ameaças e insultos), seguida da agressão psicológica e física (Aristidou et al., 2020). As vítimas mais frequentes da violência no contexto de saúde, particularmente de agressão verbal, são os enfermeiros, sobretudo mulheres, sendo os seus agressores doentes e acompanhantes (Kowalczut e Krajewska-Kulak, 2017; Lelapi et al., 2021). Além disso, são os profissionais de saúde mais novos a experienciar mais atos agressivos, mesmo relativamente à agressão física (López-García et al., 2018; Viottini et al., 2020).

10Mais especificamente, as formas mais frequentes de violência são o assédio moral, o abuso verbal, a pressão moral, a violência física e o assédio sexual; os principais agressores são, como referido, os acompanhantes ou familiares dos pacientes, seguidos pelos próprios pacientes e por colegas mais velhos (Ghareeb, El Shafei e Eladl, 2021; Liu et al., 2019; Sun et al., 2017). Outros dados apontam que 35,4% dos agressores a profissionais de saúde são pacientes, 25,3% são colegas de trabalho, 21,7% são chefias, 15,5% acompanhantes dos doentes e 2,1% outros agentes (Pai et al., 2018). De notar que, ainda que a ordem dos grupos possa variar entre estudos, há alguma convergência relativamente às formas e aos agressores principais.

11Em Portugal (DGS, 2019), os dados mais recentes refletem esta tendência (Figura 1).

12Entre os profissionais de saúde, são os enfermeiros (50%) as maiores vítimas, seguindo-se médicos (28%), assistentes técnicos (12%), assistentes operacionais (5%) e outros profissionais (5%). Relativamente aos agressores, 56% são doentes/utentes, 21% familiares do doente/utente e 19% profissionais da mesma área de trabalho (Figura 2) (DGS, 2019).

2. Fatores de risco associados à violência no trabalho

13A violência é um problema complexo e multifacetado, existindo várias perspetivas teóricas sobre as suas causas. Numa abordagem mais global, identificamos fatores psicológicos, interpessoais e estruturais, determinados por fatores internos e externos (Nunes e Sani, 2021).

14O impacto da violência no local de trabalho na saúde mental dos enfermeiros altera em função de variáveis externas, nomeadamente as condições de ambiente hospitalar e o tipo de apoio social. Diversas causas podem levar à violência e agressão no local de trabalho. Algumas dizem respeito a relações conflituosas que podem ser entre colegas do mesmo nível hierárquico, ou entre os trabalhadores e os seus superiores hierárquicos. Insegurança ao nível do emprego, sobrecarga e ritmo de trabalho intenso, horários por turnos, multitasking, conflitos no trabalho de equipa, atualização tecnológica constante e relação com utentes e seus familiares constituem fatores de risco (Duan et al., 2019; Havaei et al., 2020; Li et al., 2020).

15Na realidade, subjacentes à violência em contextos de saúde podem estar diversos motivos de natureza organizacional, entre eles: longos períodos de tempo de espera por parte dos pacientes; insatisfação com a qualidade do atendimento; reduzidas competências de comunicação; ambiente sobrelotado; mudanças inesperadas nas condições de atendimento/consulta dos pacientes; atitudes dos profissionais face aos pacientes; insuficiência de pessoal (Li et al. 2021; Morphet et al., 2019). De facto, estruturas hierárquicas rígidas e autoritárias, condições precárias dos contratos de trabalho, tarefas ambíguas, conflitos de papéis, comunicação ineficaz e ausência de uma gestão de conflitos eficaz podem contribuir para comportamentos de violência (Barros et al., 2022; Barzilay et al. 2020).

3. Consequências da violência no trabalho na saúde e no bem-estar

16A Organização Internacional do Trabalho considera a violência no local de trabalho um dos riscos ocupacionais mais graves, sendo também um problema de saúde global, com impactos imediatos a nível da saúde física e psicológica nos profissionais, e com consequências sociais e económicas (Han et al., 2021; Hsieh et al., 2016; ILO, 2020; Pai et al., 2018).

17As consequências da violência refletem-se quer no estado físico quer no estado mental dos profissionais de saúde, quer ainda no nível de satisfação no trabalho (Kowalczut e Krajewska-Kulak, 2017). Situações de elevado stress, esgotamento, depressão, instabilidade emocional (vulnerabilidades e desequilíbrios), diminuição da autoestima e problemas de saúde, que se podem manifestar sob a forma de sintomas físicos, mentais ou psicossomáticos, estão associados à exposição a comportamentos violentos (Yagar e Dokme, 2019).

18Neste sentido, quanto maior for a regularidade da exposição do profissional de saúde a situações de violência, maior será a acumulação de emoções negativas, levando a sentimentos de medo, insegurança, angústia, assim como a frustração e a um aumento significativo de sintomas de ansiedade (Antão et al., 2020; Han et al., 2021; Maran et al., 2018).

19De facto, a violência no trabalho é um fator de risco relevante, com impacto negativo na saúde dos trabalhadores. O agravamento da situação pode ter como consequência desinteresse profissional, baixa produtividade, abuso de drogas e álcool, depressão grave e pensamentos suicidas (Lelapi et al., 2021). Além das consequências na saúde mental dos profissionais, existem igualmente consequências para os pacientes, uma vez que ficam comprometidos o atendimento, bem como a qualidade e a segurança dos cuidados que lhes são prestados (Fan et al., 2021; Van Leeuwen e Harte, 2017).

20Se a saúde e a segurança no trabalho forem comprometidas (Antão et al., 2020; Schulte, e Vainio, 2010) e se se verificarem perturbações graves na saúde física e mental dos profissionais envolvidos, também as instituições de saúde e a sociedade em geral (ILO, 2020; Marques e Silva, 2017; Teixeira et al., 2016) ficam seriamente em risco.

4. Estratégias para a prevenção da violência

21A violência no trabalho contra os profissionais de saúde tem-se tornado um problema global (Wang et al., 2021). Mas, apesar de este fenómeno ter uma visibilidade cada vez maior e de o número de estudos ter vindo a aumentar significativamente, é ainda necessário delinear estratégias de prevenção mais eficazes.

22Estamos a falar de múltiplas consequências quer para os profissionais, quer para as próprias instituições de saúde. Uma das preocupações maiores reside no facto de ainda não existir uma política adequada de denúncia – a maioria dos incidentes violentos não é denunciada pelos próprios profissionais de saúde (Gacki-Smith et al., 2009; Gates, 2004) –, ainda que se observe uma tendência crescente das notificações de situações de violência contra profissionais da saúde.

23E se, por um lado, o aumento da violência nos cuidados de saúde acentua a necessidade de estudar e compreender este fenómeno, identificando os agressores e as origens da violência (ILO, 2020; Pai et al., 2018), por outro lado, é necessário conceber estratégias mais eficazes do ponto vista do profissional, mas também do ponto de vista da organização.

24Desta forma, sugere-se a implementação de dois tipos de estratégias de prevenção no contexto da saúde (Antão et al., 2020; Norton et al., 2017). O primeiro tipo de estratégia é designado como pré-incidente, e foca-se num maior conhecimento e consciencialização em relação ao fenómeno da violência, nomeadamente legislação clara e objetiva, gestão da estrutura organizacional e ações de sensibilização e formação. O segundo tipo de estratégia é classificada como pós-incidente, e inclui relatórios dos incidentes com uma caracterização de toda a situação de violência (natureza, contexto, situação de trabalho, pessoas envolvidas), assim como ações de intervenção psicológica junto dos profissionais de saúde afetados. Estas estratégias têm como objetivo avaliar e controlar o risco, sinalizar potenciais agressores e sensibilizar a população para a violência contra todos os grupos de profissionais de saúde.

25Neste sentido, as estratégias de prevenção integram uma abordagem multinível: indivíduo, grupo e organização; no indivíduo, avaliar os fatores de risco e definir medidas para modificar as condições de trabalho; no grupo, promover apoio profissional e promover comportamentos individuais de prevenção; na organização, monitorizar os locais de trabalho e intervir para evitar situações de conflito que possam levar à violência.

26De facto, de modo a promover uma melhor qualidade de vida no trabalho e a eficiência na prestação de cuidados de saúde primários, é crucial: explorar as necessidades psicossociais dos profissionais de saúde com vista a reduzir os conflitos interpessoais e organizacionais (Asante et al., 2019; Sureda et al., 2019); desenvolver junto destes profissionais capacidades e competências de gestão e prevenção de conflitos de para evitar situações de violência no local de trabalho (Hollywood e Phillips, 2020); promover nas instituições de saúde políticas eficazes de tolerância zero a todos os comportamentos violentos (Han et al., 2021).

Conclusões

27A violência no trabalho é um risco profissional que tem impacto significativo na saúde e bem-estar dos trabalhadores de uma forma bastante nociva. Além disso, a violência contra os profissionais de saúde é de grande preocupação nas atividades diárias de cuidados da saúde. A violência psicológica, fundamentalmente a verbal, é a mais experienciada, sendo também a mais denunciada por grande parte dos enfermeiros e médicos; apesar de ser menos expressiva, a violência física não deixa de estar presente, constituindo uma ameaça grave à integridade física.

28Em suma, neste artigo, os fundamentos apresentados salientaram que a violência experienciada no setor da saúde é preocupante, pelo que é necessário conceber planos de avaliação/intervenção nestas áreas. De facto, é premente assegurar melhores condições de trabalho, de modo a minimizar situações de conflito potenciadoras de violência e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida dos profissionais de saúde. No entanto, ressalvamos que a violência no trabalho é comum a todos os setores de atividade e que os esforços para a diminuir devem integrar políticas globais contra toda e qualquer forma de violência em contexto laboral.

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81- Receção: 03.07.2022

82- Aprovação: 21.10.2022

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Para citar este artículo

Referencia en papel

CARLA BARROS, ANA SANI y RUTE F. MENESES, «Violência contra profissionais de saúde: Dos discursos às práticas»Configurações, 30 | -1, 33-46.

Referencia electrónica

CARLA BARROS, ANA SANI y RUTE F. MENESES, «Violência contra profissionais de saúde: Dos discursos às práticas»Configurações [En línea], 30 | 2022, Publicado el 02 enero 2023, consultado el 18 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/15742; DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.15742

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Autores

CARLA BARROS

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, Portugal; FP-I3ID, Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, Portugal.

cbarros@ufp.edu.pt

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-2236-4553

ANA SANI

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, Portugal; Observatório Permanente Violência e Crime (OPVC), UFP, Porto, Portugal; Research Center on Child Studies (CIEC), University of Minho (UM), Braga, Portugal.

anasani@ufp.edu.pt

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-1776-2442

Artículos del mismo autor

RUTE F. MENESES

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, Portugal; FP-I3ID, Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, Portugal.

rmeneses@ufp.edu.pt

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-7189-3139

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