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Negociação da sucessão intergeracional nas “mãos da família”: testemunhos de empresas familiares portuguesas e brasileiras

Negotiation of intergenerational succession in the “hands of the family”: Evidences from Portuguese and Brazilian family businesses
Négociation de succession intergénérationnelle aux “mains de la famille”: Témoignages d’entreprises familiales portugaises et brésiliennes
ANA PAULA MARQUES e LEANDRO ALVES DA SILVA
p. 69-90

Resumos

O processo de sucessão intergeracional constitui-se numa das etapas mais desafiadoras na vida de uma empresa familiar tanto na competitividade do negócio, quanto na superação de conflitos intra/interfamiliares. Dada a insuficiência do conhecimento sobre a influência familiar nos negócios, pretende-se ampliar os resultados do projeto “Roadmap para Empresas Familiares Portuguesas”, tomando como referência empresas familiares portuguesas e brasileiras. A partir de um desenho de pesquisa qualitativo, analisam-se as estratégias de negociação de (potenciais) conflitos no processo de sucessão e respetivas perceções de empresários/gestores, aprofundando o conhecimento sobre os principais desafios na passagem do “legado” empresarial.

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Introdução

1As empresas familiares enfrentam complexidades e singularidades que as colocam num patamar de análise distinto das suas congéneres não familiares, sendo a sucessão do negócio familiar um dos tópicos que carecem de maior aprofundamento e investigação, priorizando a interação empresa-família e as dinâmicas de negociação de conflitos que caracterizam este processo.

  • 1 O projeto “Roadmap para Empresas Familiares Portuguesas” foi financiando por fundos comunitários (N (...)

2Sabe-se que são múltiplas as causas dos conflitos em empresas familiares por todo o mundo. Segundo os resultados de uma consultora alemã (EZI, 2011: 32), essas situam-se ao nível de: i) competências dos familiares que trabalham na empresa face às funções exercidas; ii) desacordos sobre a visão e estratégia do negócio; iii) divergências entre sócios e gestores não familiares; iv) sucessão empresarial; v) decisão de alocação do capital; vi) rivalidade entre irmãos; vii) decisão de emprego de familiares, entre outros. Para o European Family Business Barometer (KPMG, 2017), haverá, nos próximos cinco anos, a maior transferência de poder e riqueza intergeracional dos tempos modernos. Neste contexto, a passagem do testemunho da primeira geração para a(s) subsequente(s) constitui uma fase crítica e desafiante na continuidade e longevidade do negócio, dado o elevado número de empresas familiares que não sobrevive a este processo (Cid et al., 2022; Magrelli et al., 2022; Miller et al., 2013). Em Portugal (AEP, 2011), 50% das empresas familiares não passam para a segunda geração e apenas 20% chegam à terceira geração; os resultados do estudo desenvolvido na região Norte de Portugal (Marques, 2018)1 destacam que apenas uma minoria das empresas considerou muito importante a preparação da sua sucessão empresarial no quadro do planeamento estratégico a médio e longo prazo.

  • 2 Este argumento sustenta-se num desenho de pesquisa com três estudos de caso de empresas familiares (...)
  • 3 Os autores inspiraram-se na perspetiva de Dyer (2009) que, face à idade e/ou sucessão da propriedad (...)

3Destes estudos predominantemente extensivos, pouco se avançou no conhecimento da dinâmica dos conflitos associados ao processo de sucessão empresarial. De forma surpreendente, assiste-se a uma ocultação ou naturalização dos conflitos decorrentes da relação família-negócio, na perspetiva dos proprietários das empresas familiares (Howorth e Ali, 2001: 242). Como potencial interpretação, os autores avançam com o efeito da “cultura familiar” sobre a sucessão (tradições, socialização, educação, preferências pessoais e “enviesamento” cognitivo) que caracteriza cada setor económico, região e país, permitindo atenuar ou absorver os conflitos decorrentes deste processo2. Mais recentemente, a identificação de padrões culturais na passagem da primeira para a segunda geração de pequenas empresas familiares portuguesas (Casimiro e Chambel, 2014)3 e o investimento na educação das gerações seguintes na região Norte de Portugal, sobretudo quando o fundador tem “coragem” de escolher as filhas ou netas como suas sucessoras (Marques, 2021), reiteram a importância de desenvolver, igualmente, estudos qualitativos para a compreensão das especificidades das empresas familiares e suas dinâmicas de negociação da sucessão.

4Neste artigo, privilegia-se um desenho de pesquisa qualitativo, utilizando entrevistas aprofundadas sobre a temática da sucessão empresarial e respetivas perceções dos entrevistados/as portugueses (N 23) e brasileiros (N 9). Espera-se contribuir para a sinalização dos principais desafios de preparação da sucessão intergeracional e o papel da família na socialização da segunda (terceira ou subsequente) geração, fazendo da negociação do “legado” uma estratégia de continuidade do negócio nas “mãos da família”. Além da introdução e da conclusão, o artigo organiza-se em torno de três secções fundamentais. A primeira remete-nos para a exposição, ainda que necessariamente breve, das singularidades das empresas familiares, do processo de sucessão, condicionantes e aspetos críticos, em interação família-empresa e saúde socioemocional. Em seguida, justificam-se as opções metodológicas seguidas. Na terceira secção, apresentam-se o perfil sociodemográfico dos entrevistados e as estratégias de absorção (potencial) de conflitos no processo de sucessão, tomando em conta as especificidades dos contextos económicos e socioculturais das empresas familiares portuguesas e brasileiras.

1. Empresa familiar e sucessão intergeracional

1.1. Singularidades das empresas familiares

  • 4 Para um levantamento exaustivo de definições através da revisão sistemática de artigos, cf. Daspit (...)

5Na verdade, muito se avançou na sistematização do conhecimento sobre empresas familiares, ainda que possam ser identificados persistentes problemas e alguns vazios ou insuficiências ao nível da investigação. A procura das características específicas das empresas familiares, distinguindo-as das empresas não familiares, constitui um dos principais desafios associados a esta área de conhecimento nos diversos países do mundo (Ferramosca e Ghio, 2018; Botero et al., 2015)4.

  • 5 A União Europeia partilha as seguintes características de uma empresa familiar: 1) a maior parte da (...)

6A literatura especializada ressalta a diversidade de critérios (por exemplo, percentagem de capital social detido, controlo estratégico, envolvimento de múltiplas gerações, intenção de manter o negócio na família) e reforça a dificuldade de operacionalização da definição da empresa familiar e consequente comparabilidade em termos nacionais e internacionais. Não obstante, a maioria das definições da empresa familiar converge para a importância de se contemplarem três eixos, designadamente propriedade, gestão e sucessão. No contexto deste artigo, entendemos por empresa familiar aquela em que a família detém o controlo, em termos de nomeação da gestão, e alguns dos seus membros participam e trabalham na empresa, tendo passado, ou não, por um processo de sucessão5.

  • 6 Não se vincula a ocorrência de pelo menos uma geração como condição sine qua non para se definir a (...)

7Trata-se de uma proposta “não restritiva”6, com ênfase na “influência” da família na vida empresarial como fator que confere singularidade à empresa familiar e simultaneamente a distingue de uma não familiar. Como tal, assumem-se as convergências estabilizadas na literatura da especialidade a partir da sinalização de três elementos-chave: família, empresa e propriedade, designada como modelo de “três círculos” (Gemu, 2022; Tagiuri e Davis, 1996, 1992). Ora, um dos vazios ou insuficiência na literatura sobre as empresas familiares prende-se com a necessidade de aprofundar o conhecimento da superação dos conflitos que podem ocorrer num processo de sucessão da gestão executiva da empresa, passando o “legado” do fundador para a geração seguinte. De forma mais específica, pouco se conhece sobre o processo de sucessão, suas condicionantes e aspetos críticos, em articulação com a família, a empresa e a saúde socioemocional. Ou seja, a análise destas dimensões permite-nos avançar no estado da arte sobre “culturas familiares” que moldam as empresas familiares portuguesas e brasileiras.

1.2. Sucessão intergeracional, condicionantes e fatores críticos

  • 7 Por si só, o protocolo familiar é um código de conduta sem imposição legal e sem uma estrutura form (...)

8Como se sabe, a sucessão assume particular importância pela sua implicação nas esferas quer económica e social, quer empresarial, familiar e pessoal. Segundo Steier (2001), é possível identificar quatros modelos de sucessão familiar: não planeada, apressada, por imersão natural e sucessão planeada. Apenas neste último modelo de sucessão, a planeada, o protocolo familiar (Costa et al., 2011)7 e a priorização de perfis mais adequados de gestores familiares tendem a apresentar-se como estratégias indispensáveis à sobrevivência deste tipo de empresas. Por sua vez, o processo de sucessão engloba vários passos, entre eles, a preparação do sucessor para o papel de líder, a integração do sucessor (formato e momento da sua entrada) e, finalmente, a transferência de poder para este. A fase de incubação inicia-se quando o sucessor contacta com a empresa durante o seu crescimento. É comum nas empresas familiares que, desde muito pequeno, o sucessor tenha proximidade com o contexto familiar empresarial, o que facilita a aquisição de conhecimento tácito. Em encontros familiares, promove-se o espírito de empreendedorismo e a curiosidade no sucessor pelo desafio da empresa.

9A socialização precoce dos membros da família e a escolha do sucessor (Marques, 2022; Chrisman et al., 2007) constituem, por isso, dimensões críticas e delicadas para a continuidade do negócio e bem-estar familiar. É razoável pensar que esta seleção envolve uma avaliação objetiva de todos os potenciais candidatos, considerando as capacidades de cada um para liderar o negócio da família. Mas também é um processo de transferência do controlo de emoções, valores e comportamentos individuais, pelo que se pode tornar num processo difícil para o fundador. Muitas vezes, o próprio fundador apresenta um conjunto de características pessoais e traços de empreendedor que não são transferíveis facilmente para o sucessor, tal como acontece com o processo de transferência legal e financeira da propriedade e gestão do negócio. Pelo contrário, são necessários anos ou mesmo décadas de treino para que a próxima geração possa adquirir experiência e conhecimento tácito, pelo que muitas vezes se encontram presentes os fundadores e os sucessores em fases temporais dilatadas no tempo de vida da organização.

  • 8 Em muitos casos, a opção para minimizar o risco de conflito, por via da dificuldade de escolha entr (...)
  • 9 Em muitas situações, uma das formas de atenuar a coexistência do fundador e sucessor passa pela con (...)

10Em suma, a menor atenção e/ou preparação das empresas familiares para o planeamento da sucessão pode constituir-se num momento de tensão e conflito familiar com a empresa e nas relações entre os membros da família. A maior parte das empresas não integra a sucessão empresarial no seu planeamento estratégico, ou seja, não contempla procedimentos formalizados de passagem do legado do fundador para as gerações seguintes. Ou, quando muito, assume uma estratégia de naturalização e/ou adiamento desta questão estrutural no ciclo de vida da empresa (Marques, 2018). Para esta situação, em muito contribui o carácter do fundador, a sua resistência à sucessão pela expectativa da longevidade à frente do negócio, as dificuldades na preparação e escolha do “herdeiro/a”, sendo patente, em muitos casos, um enviesamento cognitivo, seja pela predominância de modelos socioculturais assentes nas lógicas de primogenitura e masculinidade (Chaudhuri et al., 2022; Wang, 2010), seja pela prevalência de emoções e avaliações da “disponibilidade” ou “competência/formação académica” do sucessor/a (Marques, 2021). Por isso, nem sempre o fundador consegue proteger a empresa e a família do conflito, sobretudo quando há vários filhos e o processo de escolha se focaliza num filho em detrimento de outro. O risco de conflito tende a emergir por via da luta dos irmãos pela liderança, o que poderá conduzir a conflitos emocionais e afetivos, que prejudicam quer a gestão da empresa, quer a harmonia familiar8. Igualmente, o conflito pode emergir quando a sucessão ocorre com o fundador presente na empresa, potenciando eventuais conflitos geracionais quanto a estilos e visões estratégicas do negócio9.

1.3. Família e saúde socioemocional: recursos intangíveis de suporte à continuidade

  • 10 O sistema familiar enfrenta desafios internos relevantes no que diz respeito às atribuições e conte (...)

11Como se sabe, a família constitui um sistema social aprovado por leis e costumes para cuidar das necessidades dos seus membros, assente em vínculos (que a conciliam ao longo do seu ciclo de vida) e complexas relações interpessoais formadas pelas emoções e laços afetivos que ali se desenvolvem, trazendo o sentido de responsabilidade e lealdade à família enquanto sistema (Franco e Piceti, 2020: 16). Em especial, a família visa responder a necessidades emocionais e sociais das suas partes, nomeadamente: o sentimento de pertença a um grupo e a autovalorização da pessoa; a intimidade proporcionada pela família, acompanhada pela valorização e a estima por cada um dos membros; e a identidade e o desenvolvimento da autonomia através da diferenciação de papéis sociais atribuídos (normas e expectativas associadas)10.

12Tradicionalmente, a organização da família envolve três subsistemas: o do casal, o dos pais e o dos filhos. O casal visa atender às necessidades e expectativas na relação entre ambos e sustenta o sistema familiar como um todo, atuando nas decisões da família e liderando ações de simetria, complementaridade e reciprocidade (Franco e Piceti, 2020: 31). Os pais, ao educarem e criarem os filhos, influenciam diretamente o modo como os conflitos entre eles serão geridos. Os filhos apresentam-se como um grupo em formação segundo regras sociais que os pais comunicam. Entre eles, podem agir como amigos e/ou competir pela atenção e aprovação dos pais. Assim, experienciam momentos com expectativas (umas alcançadas, outras frustradas) e disputas por espaço e reconhecimento.

13Sendo a família uma das estruturas sociais mais confiáveis ​​na transmissão de valores e regras através das gerações (Gersick et al., 1997), ela constitui um dos três círculos de sistemas de empresas familiares, de acordo com literatura já referenciada. Os sistemas autorreguladores de princípios implícitos e explícitos da ação, em regra com forte pendor emocional, assumem uma dimensão crucial tanto na vida intrafamiliar e empresarial, como nas relações entre família, empresa e sociedade em geral. Tendem a configurar estratégias de preservação do património material (posição assumida na estrutura social de classes) e imaterial, relacionadas com os recursos económicos (e de propriedade) e o investimento em credenciais escolares. Incluem também estratégias de transmissão do ethos familiar, suas tradições e valores, para além da manutenção do “segredo” do negócio na família e a ligação privilegiada à comunidade envolvente.

14Como tal, reforça-se a importância da família enquanto contexto de socialização privilegiado e detentor de saúde socioemocional, conferindo recursos intrínsecos e intangíveis na relação família-negócio. No essencial, destacam-se os seguintes fatores: controlo e influência da família (Smajić et al., 2022; Berrone et al., 2012), identificação dos membros da família com a empresa (Newbert e Craig, 2017), orgulho e apego emocional (Moyano, 2007). Estes aspetos permitem aferir a “cultura familiar” no sentido de familiness (Letonja et al., 2022; Frank et al., 2016; Zellweger et al. 2010), por via da ênfase nos recursos “não económicos” (Marques e Silva, 2020; Marques, 2018) de que a empresa familiar dispõe na interação com a família como um todo e que podem ser decisivos no suporte (atenuação ou absorção de conflitos) e continuidade do equilíbrio entre empresa e família. Não obstante, como referido, são muitas as empresas que não sobrevivem à passagem de uma geração a outra. Certamente que na base deste processo de sucessão intergeracional se encontram razões tangíveis portadoras de uma explicação para a não sobrevivência de uma empresa familiar (por exemplo, finanças, competitividade, recursos humanos competentes, inovação). Mas é indiscutível que a passagem do “legado” empresarial constitui um momento de exposição de conflitos e tensão intra/interfamília e empresa, ou mesmo de rutura das relações entre os membros familiares, sobretudo tendo em conta as razões que subjazem à escolha do sucessor/a.

2. Opções metodológicas

  • 11 Este estudo integrou um roteiro metodológico com diversas etapas (extensiva, qualitativa e particip (...)

15No âmbito do projeto “Roadmap para Empresas Familiares Portuguesas”11 foram identificadas três condições estratégicas para o sucesso da empresa familiar, nomeadamente a capacidade de separar interesses familiares e empresariais, a existência de planeamento estratégico a médio e longo prazo e a preparação do sucessor antes do efetivo início das suas funções. Todavia, apenas 11% das empresas inquiridas apresentavam a formalização do processo de sucessão, por via de um protocolo, integrado no seu planeamento estratégico. As restantes apresentavam os seguintes traços: i) menor atenção/preparação do planeamento sucessório/liderança empresarial; ii) adiamento ou “naturalização” da sucessão, como contraponto à negação da retirada do fundador (exceto por força maior como, por exemplo, morte ou doença); iii) dificuldades de equilíbrio entre família, propriedade e negócios, evitando conversas de trabalho em “almoços de família”; recrutamento de familiares não preparados para cargos de gestão; criação de cargos de direção apenas no “papel” pela participação no capital social da empresa pelos membros familiares; iv) dificuldade em atrair e, sobretudo, reter profissionais qualificados, em parte devido à “má imagem” associada a carreiras e práticas de nepotismo ou paternalismo em determinadas empresas familiares.

  • 12 Tal foi possível no quadro de uma colaboração com um investigador oriundo do Brasil a realizar um p (...)

16A opção por uma abordagem de investigação qualitativa justifica-se tendo em conta o referencial teórico mobilizado, que, por um lado, enfatiza a história familiar, a identidade e as estruturas motivacionais dos empresários/fundadores, e, por outro, assume a família como contexto de socialização privilegiado e detentora de um conjunto de recursos socioemocionais. Igualmente, esta metodologia permitiu ampliar os resultados obtidos em Portugal e no Brasil12, pela triangulação de instrumentos de investigação, nomeadamente a entrevista aprofundada e o respetivo tratamento de conteúdo.

17A partir de um guião com questões transversais sobre a temática da sucessão empresarial, foram entrevistados fundadores/gerentes/proprietários portugueses (N 23) e brasileiros (N 9). No início do processo de recolha da informação, o acesso às empresas foi negociado com os líderes ou proprietários da família. Em cada país, o investigador forneceu informações sobre o objetivo do estudo por meio de uma conversa inicial e apresentou o respetivo protocolo de entrevista e consentimento de informação (com especificidades de acordo com o contexto nacional). A entrevista teve um formato aberto e foi orientada para diversos temas como, por exemplo, história da empresa, características do negócio, estratégias de governação, internacionalização e desafio da economia digital, perfis dos trabalhadores, entre outros aspetos. Com recurso ao software MAXQDA (versão 12), mobilizaram-se as categorias que emergiram dos testemunhos, experiências e representações dos entrevistados/as, tendo sido organizadas a partir das palavras-chave mais relevantes e orientadas pela literatura selecionada para a análise e discussão dos resultados.

18Apesar desta diversidade, para efeito dos objetivos delineados para este artigo, será dada especial atenção aos aspetos da relação família-empresa no que diz respeito ao processo de sucessão e às mudanças percebidas no negócio ao longo de sua história e no futuro. Como referido, o principal objetivo deste estudo é destacar as estratégias de absorção (potencial) de conflitos no processo de sucessão. Como tal, importa analisar de que forma o processo de sucessão foi/é (ou não) planeado e o modo como a família interage tendo presente a socialização da segunda ou subsequentes gerações.

3. Estratégias de absorção (potencial) de conflitos em empresas portuguesas e brasileiras13

3.1. Perfil dos fundadores/CEO familiares de Portugal e Brasil

19Em Portugal, dos 23 entrevistados, dois terços são do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 30 e os 60 anos (a faixa etária dos 40 aos 50 anos é a mais significativa), e a esmagadora maioria possui ensino superior (licenciatura, incluindo mestrado e doutoramento). São fundadores ou empresários tanto de primeira geração, como de segunda geração, incluindo alguns de terceira ou mais gerações, que assumem predominantemente o estatuto de sócio-gerente ou CEO e estão à frente dos destinos da empresa há mais de 20 anos (Tabela 1).

  • 14 Na verdade, o trabalho de campo realizado permitiu que fossem entrevistados vários membros da famíl (...)

20No Brasil, das 9 pessoas entrevistadas, apenas uma é do sexo feminino14, dois terços estão na faixa etária de 40 a 60 anos e a grande maioria possui ensino superior (licenciatura, mestrado e doutoramento). Do grupo-alvo entrevistado da realidade brasileira foi possível identificar fundadores de várias gerações, que assumem predominantemente o status de sócio ou CEO, encontrando-se à frente dos destinos da empresa há mais de 30 anos (Tabela 2).

21Em comum do lado português e brasileiro, registe-se o facto de terem sido contemplados diversos setores económicos da empresa familiar, como também a formação académica de nível superior da esmagadora maioria dos entrevistados/as. Com as cautelas que se impõem neste exercício comparativo, nomeadamente por não se pretender expressar tendências ou generalizações, observa-se a predominância de médias e grandes empresas no contexto económico brasileiro, por oposição ao português, onde, como referido, sobressaem as micro e pequenas empresas. Adicionalmente, regista-se uma maior longevidade das empresas familiares brasileiras, quando comparada com as congéneres portuguesas.

3.2. Negociação nas “mãos da família”: desafios estratégicos à sucessão

22Nesta secção, o objetivo é discutir os principais desafios de gestão de uma empresa familiar, em especial a resistência à sucessão, a relação fundador-sucessor, o planeamento sucessório e o papel da família na socialização da segunda (terceira ou subsequente) geração. À medida que os membros da família aumentam, e embora haja mais opções para a escolha do sucessor, pode haver um número maior de membros da família que não deseje trabalhar na empresa familiar, ainda que espere obter proventos dela. Essas atitudes podem, por um lado, gerar tensão na família, nomeadamente entre os membros que trabalham na empresa e os que não trabalham, e, por outro, agravar os conflitos existentes. Assim, é fundamental estabelecer regras de conduta que definam o modo como a família interage na gestão, por meio da definição de estruturas de governação para promover a continuidade da empresa familiar e protegê-la de possíveis conflitos e divergências. Daí a relevância do protocolo familiar e da formalização do processo de sucessão alinhados com o planeamento estratégico da empresa, como atrás argumentado.

  • 15 Esta linha de argumentação assenta numa leitura exploratória e provisória resultante dos limites do (...)

23No entanto, quando se analisa a sucessão intergeracional, três estratégias podem ser destacadas, de acordo com os nossos resultados: 1) adiamento da sucessão, acompanhada da naturalização do “futuro” sucessor, principalmente nas empresas de primeira geração; 2) não preparação do processo de sucessão, por falecimento do fundador ou por a opção recair na sucessora mulher, que detém competências académicas, e na ausência de descendentes homens; 3) e reconhecimento da preparação da sucessão como forma de garantir a continuidade da empresa. Estas três estratégias têm permitido a absorção de potenciais fontes de conflito15, alguns explícitos e outros latentes, por mobilizar a importância da “cultura familiar”, ou seja, os recursos “não económicos” das empresas familiares vertidos na literatura de referência nos conceitos de familiness (Letonja et al., 2022; Frank et al., 2016; Zellweger et al. 2010) e de saúde socioemocional (Smajić et al., 2022; Berrone et al., 2012, 2010).

24Considerando a primeira estratégia, a ausência de regras estabelecidas enfatiza o adiamento na formalização da sucessão, assumido como um processo pacífico ocorrido dentro da descendência familiar. Dos depoimentos recolhidos, a questão da sucessão ainda não surgiu e, a ser considerada, é vista como uma passagem “natural” por descendentes diretos ou indiretos. Em algumas circunstâncias, nomeadamente numa empresa brasileira, a sucessão parece estar “apalavrada” no sentido de quem será o herdeiro, embora nenhum tipo de instrumento formal tenha sido usado para garantir isso.

“Não [pensei na sucessão]! Tenho dois filhos e, portanto, eles também gostam muito deste espaço. A sucessão naturalmente será deles[…], mas vamos fazer um ponto de situação ao fim de dois anos. Vamos aguardar!” (E4PT_1.ª Geração)

“Para já [os filhos] ainda estão a estudar e são pequeninos, apesar de o mais velho já nos dar algum apoio ao fim de semana. Já foi fazer connosco algumas incidências em termos de algumas máquinas e ajudou-nos. […] No fundo, para lhes incutir também a responsabilidade de ganhar o seu próprio dinheirinho para as coisinhas dele, ter a parte com remuneração, também acaba por ser aliciante para eles.” (E20PT_1.ª Geração)

“A estrutura de poder está mantida para a próxima geração: o escolhido foi o filho mais velho do atual presidente. Hoje a sucessão está apalavrada.” (E3B_ 1.ª Geração)

25Na segunda estratégia identificada, a não preparação da sucessão pode manifestar-se de diversas formas. Uma das mais expressivas é a ausência de regras estabelecidas, colocando pressão na família, que enfrenta incertezas e dificuldades acrescidas em assegurar a continuidade dos negócios.

“A comunicação é distante entre colaborador, gerência e direção. Meus tios pouco se falam e isto chega aos subordinados deles que ficam com poucas diretrizes daquilo que deve ser feito. De manhã é uma diretriz e à tarde é outra.” (E3B_1.ª Geração)

“Eu e o meu irmão nos comunicamos de forma diferente com os funcionários. Falamos de formas diferentes e isto não me faz bem. Como faço para cuidar das minhas emoções durante o trabalho?” (E4B_1.ª Geração)

26Em situações de falecimento ou doença do fundador, refiram-se os fatores que potenciam esse clima, nomeadamente a falta de comunicação adequada entre os descendentes diretos ou indiretos e a falta de capacitação e treino específico para gerir a empresa.

“Nunca houve o diálogo. Após o avô enfartar e ter ordem médica para se afastar, tentou-se a gestão compartilhada, que não funcionou entre os dois irmãos. As chefias foram definidas sem olhar às competências […]. A sucessão não foi trabalhada, o poder não estava transparente e o negócio iria sucumbir até perceberem que o buraco financeiro estava muito grande.” (E5B_2.ª Geração)

27Neste contexto, segundo a literatura referenciada, a saúde socioemocional da família é afetada, e a capacidade de renovação dos laços familiares com a empresa após um processo de sucessão pode ser posta em causa. Os vínculos emocionais entre irmãos, a atribuição de funções e responsabilidade entre os elementos da família, a gestão de expectativas e dividendos constituem momentos críticos para a manutenção do negócio familiar.

“Meu irmão centralizou o poder depois que nosso pai morreu e com isto o diálogo diminuiu. […] Meu outro irmão fica realizando pagamentos sem a minha autorização. Isto me desautoriza frente aos meus funcionários.” (E1B_2.ª Geração)

“Meu primo foi colocado na empresa sem seguir os caminhos que o conselho familiar propôs. Isto está causando um conflito quando os funcionários ficam confusos a quem responder.” (E5B_2.ª Geração)

28Igualmente, esta dinâmica de conflitos poderá ser alimentada tendo presente preconceitos de género ou assentando em preferências pessoais, ilustrativos de um certo “enviesamento” cognitivo por parte do fundador. Com efeito, a questão dos papéis sociais atribuídos aos diferentes membros da família em função do sexo tem suportado tanto a (ainda) persistência de padrões culturais baseados no machismo (Chaudhuri et al., 2022), como a rutura desses padrões, projetando a transferência da sucessão da empresa para a filha por razões de maior qualificação académica e profissionalização (Marques, 2021). Esta última situação é particularmente enfatizada no caso das empresas familiares analisadas em Portugal.

“É factual que as mulheres têm tido menos oportunidades que os homens, têm salários mais baixos que os homens! Isso é evidente que tem acontecido, mas eu pessoalmente gosto de olhar para as pessoas, ou seja, saber se é um profissional, quer seja masculino ou feminino! Se desempenhar o seu papel bem feito, terá as suas oportunidades e terá o seu espaço.” (E6PT_4.ª Geração)

“O meu pai disse: ‘Ó filhota, eu estava aqui a pensar se tu querias ir trabalhar para a fábrica?’ Eu fiquei assim a olhar para ele: para a fábrica? É que eu não estou a ver as tuas irmãs! Se não fores tu, não estou a ver qual delas se adapta à realidade.” (E9PT_5.ª Geração)

“A experiência é positiva! Para além de ser uma mulher que está numa empresa – e tenho tido algumas propostas de trabalho fora –, faço parte de algumas associações precisamente por ser uma mulher ligada à gestão de uma empresa. Isso de certa forma abre algumas portas e ao nível do reconhecimento. É bom ver que as pessoas reconhecem e veem como a empresa evoluiu nestes poucos anos que tem.” (E1PT_1.ª Geração)

29Por fim, a terceira estratégia identificada refere-se à preparação da sucessão, com a definição dos instrumentos formais de transferência de poder e a composição dos conselhos de administração. Esta estratégia encontra-se menos presente nas empresas analisadas em Portugal, por comparação às do Brasil. A acontecer a sucessão, não isenta de conflitos como se percebe pelos testemunhos recolhidos, a sua preparação foi decisiva para a superação dos riscos de continuidade do negócio.

“Em 2001, o meu pai e o meu tio perceberam que esta empresa, para ter continuidade, dependia de nós e que o capital que eles tinham aqui investido, se o vendessem, nunca o conseguiam vender pelo valor, um valor interessante para eles! Então, eles entenderam que, se nos fizessem a doação ou nos dessem a oportunidade de dar continuidade, eles podiam ter um rendimento fixo, constante até à sua morte. E foi isso que aconteceu, houve acordos, houve reuniões e eles perceberam que nós [eu e a minha irmã] seríamos os continuadores. Foi preparada [a sucessão] por ele por nossa decisão. […]. Houve conflitos como é óbvio, houve divergências de opinião, houve momentos que parecia que isto não ia dar em nada. Andou-se para a frente, andou-se para trás, mas deu certo!” (E23PT_3.ª Geração).

“Meu primo de 38 anos concorreu à presidência da empresa. Ele alcançou todos os requisitos formalizados pelo protocolo familiar e aceites pelos conselhos: administrativo, societário e familiar. Faltava apenas o conselho administrativo acolher a sua candidatura. Dois conselheiros externos negaram o acolhimento da candidatura por reconhecerem a pouca maturidade profissional do candidato. Outros dois conselheiros internos/familiares – de um total de cinco conselheiros – seguiram a negação. Meu primo se afastou imediatamente da linha sucessória e hoje permanece apenas como acionista e reside em outro país. Embora ele tivesse todos os requisitos preenchidos à presidência: não havia ficado clara a experiência profissional necessária aos familiares que concorreriam à sucessão.” (E2B_2.ª Geração)

“Foi trazido um outro familiar que gerou diferenças nas estratégias do negócio: faltava a competência humana; assim a profissionalização teve o seu caminho aberto. Foi criado um conselho familiar, e um sobrinho foi trazido para a função alinhada à gestão do negócio. Ali ocorreu uma brecha para a profissionalização com a seleção de um gestor empresarial. […] Foi preciso mapear processos e criar departamentos à profissionalização. Agora há uma pessoa que presta contas aos quatro sócios. Também foi contratado um sistema de gestão empresarial à autonomia financeira da empresa.” (E9B_2.ª Geração)

30Por vezes, combina-se o recurso a um gestor externo não familiar como forma de procurar assegurar a sucessão do negócio, em especial quando há necessidade de melhorar o desempenho financeiro e a sustentabilidade da empresa, na linha da profissionalização da mesma, e quando emergem conflitos entre os sócios herdeiros.

“Foi contratado um hunting: ele trouxe um executivo vindo do mercado para tentar reverter o resultado da empresa. Foram também contratados consultores de empresas familiares. […]. Em virtude dos resultados financeiros muito ruins, ferramentas de governança foram utilizadas para ajudar nas divergências de valores pessoais entre os dois irmãos que tomavam decisões pela empresa. Esses cenários de conflitos eram expostos e declarados a parceiros e colaboradores. Um consultor de empresa familiar sugeriu as condições: que os dois irmãos que estavam à frente do negócio assinassem um acordo de acionistas e instalassem um conselho consultivo familiar. Em três meses conseguiram assinar o acordo de acionistas, porém os sócios viram diminuir o poder e a autoria na operação do negócio, gerando as dúvidas nos gerentes sobre a quem deveriam responder: a eles ou ao novo diretor executivo. Foi proposto pelo novo executivo e aceite pelos sócios um limite de alçada aos executivos: tentando limitar os maus relacionamentos existentes entre eles. O conselho proposto foi criado para compreender como os novos familiares iriam continuar na empresa.” (E7B_4.ª Geração)

Notas finais

31Este artigo visa ampliar o conhecimento obtido sobre empresas portuguesas e brasileiras, tomando como referência as estratégias de negociação de (potenciais) conflitos no processo de sucessão. Vale a pena realçar que o foco da análise realizada não teve como objetivo a construção e utilização de métodos de negociação, mas sim a identificação das especificidades dos contextos económicos e socioculturais apresentados. Os nossos resultados apontam para a importância da preparação precoce de potenciais herdeiros no seio da família e a mobiliação dos recursos idiossincráticos baseados nos valores dos fundadores como reputação, confiança, espírito empreendedor, responsabilidade local, entre outros, que permitem absorver muitas das dificuldades, tensões e conflitos decorrentes de um processo de sucessão intergeracional.

32Ao comparar as empresas familiares portuguesas com as suas congéneres do Brasil, foi possível destacar quer aspetos comuns, quer especificidades associadas às estratégias de sucessão. Todos os entrevistados reconheceram a importância da sucessão na longevidade do negócio. A legitimidade de quem “herda” perpassa a estrutura de poder, exprimindo um profundo conhecimento sobre o património e respeito pelos “limites” de geração de riqueza e cadeias de valor.

33Essa legitimidade também é atestada por via da missão e do legado da “cultura familiar” transmitida às gerações e sua envolvente. Das especificidades, assinale-se o facto de, para as empresas portuguesas de primeira geração, por exemplo, essa questão se apresentar “natural” por força dos laços de parentesco estabelecidos, adiando a sua preparação. São sobretudo micro e pequenas empresas e com uma antiguidade abaixo dos 20 anos.

34Já no caso das grandes e médias empresas brasileiras, com uma longevidade assinável, ficou patente a importância de se preparar a sucessão através de protocolos, conselhos de família e outros instrumentos para dirimir conflitos decorrentes da divisão de rendimentos, atribuição de papéis e responsabilidades por membros familiares, contratação, ou não, de membros familiares e não familiares na empresa, entre outros aspetos.

35Igualmente, a persistência de conflitos no processo de sucessão torna urgente a necessidade de repensar os mecanismos de comunicação internos na empresa e na relação com a família, muito em particular quanto à identificação de problemas de foro emocional. Tal está presente com particular destaque nas empresas brasileiras analisadas.

36A renovação dos vínculos familiares com a empresa constitui um importante momento de reafirmação das dimensões de familiness e saúde socioemocional, com ênfase para os recursos cognitivos e afetivos (reputação, confiança, lealdade, etc.), mas também organizacionais (formação, treino e tomada de decisão) e transgeracionais, no sentido de garantir a continuidade do negócio (comunicação, planeamento e profissionalização).

37Importa, por isso, conferir visibilidade à cultura e às relações de poder (e.g. conciliação, conflito), mas também às relações de cumplicidade, respeito, confiança dos membros familiares (executivos e não executivos) envolvidos na vida destas empresas e conciliação com a família.

38Por fim, destaque-se a importância da reputação familiar e da resiliência, associadas à preocupação em manter a liderança familiar perante a envolvente económica externa. Ao assegurar uma “marca” pela sua reputação e credibilidade, as empresas familiares visam acrescentar os meios ou os recursos intangíveis para a sustentabilidade da sua atividade económica, tornando-se competitivas em mercados cada vez mais globalizados.

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81- Receção: 02.09.2022

82- Aprovação: 10.11.2022

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Notas

1 O projeto “Roadmap para Empresas Familiares Portuguesas” foi financiando por fundos comunitários (NORTE-02-0853-FEDER-000018) e promovido pelo Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Polo da Universidade do Minho, em copromoção com a Associação Empresarial de Portugal (AEP).

2 Este argumento sustenta-se num desenho de pesquisa com três estudos de caso de empresas familiares do setor da madeira em Portugal, deixando antever a necessidade de futuras investigações.

3 Os autores inspiraram-se na perspetiva de Dyer (2009) que, face à idade e/ou sucessão da propriedade/gestão, identificou quatro padrões culturais nas empresas familiares: cultura paternalista, cultura laissez-faire, cultura participativa e cultura profissional. Numa perspetiva operacional, passa-se de uma liderança informal, subjetiva e paternalista (característica do estilo de gestão dos fundadores em fases iniciais do negócio) para uma liderança mais formal, objetiva e profissional nas gerações subsequentes. Os resultados de Casimiro e Chambel (2014) reforçam, todavia, a coexistência de padrões culturais numa mesma geração e ao longo do seu ciclo de vida, pelo que importa atender às especificidades de cada país e do sistema económico, social, político e cultural.

4 Para um levantamento exaustivo de definições através da revisão sistemática de artigos, cf. Daspit et al. (2017).

5 A União Europeia partilha as seguintes características de uma empresa familiar: 1) a maior parte das decisões é tomada pelo fundador da empresa, ou por aquele que recebeu o legado da empresa enquanto herdeiro natural, ou familiar indireto; 2) a maioria da tomada de decisões pode ser indireta ou direta; 3) pelo menos um ou mais familiares estão envolvidos no controlo da empresa; 4) as empresas registadas são consideradas familiares quando a pessoa que a criou ou os seus familiares e descendentes possuem 25% de ações (capital da mesma) (EC, 2009).

6 Não se vincula a ocorrência de pelo menos uma geração como condição sine qua non para se definir a empresa familiar, até porque é possível incluir empresas familiares com idades distintas, preparadas ou não para a sucessão, e empresas com mais do que uma geração ativa em simultâneo (Nuno e Marques, 2018; Marques, 2018).

7 Por si só, o protocolo familiar é um código de conduta sem imposição legal e sem uma estrutura formal e uniforme; contudo, uma grande parte das vontades alcançadas pode ser alvo de vinculatividade via recurso a instrumentos jurídicos, como pacto social, acordos parassociais, testamentos, doações e regulamentos ou procedimentos internos à empresa.

8 Em muitos casos, a opção para minimizar o risco de conflito, por via da dificuldade de escolha entre dois irmãos, passa por nomear um gestor (geralmente externo) que não seja membro da família. Todavia, esta solução também não se encontra isenta de controvérsia na literatura especializada, dado que não são conclusivos os estudos que associam o elevado desempenho a gestores não familiares.

9 Em muitas situações, uma das formas de atenuar a coexistência do fundador e sucessor passa pela constituição de um grupo empresarial, com atribuição da titularidade e gestão de cada uma das empresas aos membros familiares potencialmente “herdeiros” (Marques, 2018).

10 O sistema familiar enfrenta desafios internos relevantes no que diz respeito às atribuições e conteúdos dos papéis dos respetivos membros que a integram, com impactos significativos na dimensão potencial dos conflitos e estratégias complexas a mobilizar para os atenuar ou suprimir. Como tal, é indiscutível considerar os contributos de uma vasta sociologia da família (Wall, 2005; Torres, 2002; Leandro, 2001), na discussão das empresas familiares e seus desafios ou dilemas face à crescente complexidade que aquela tem vindo a conhecer nos países ocidentais. Todavia, essa discussão, pela amplitude e complexidade que convoca, extravasa os propósitos do presente capítulo, remetendo o seu desenvolvimento para futuros estudos e/ou publicações.

11 Este estudo integrou um roteiro metodológico com diversas etapas (extensiva, qualitativa e participativa) e intervenientes (empresário/as familiares, associações empresariais, entidades bancárias, câmaras locais, investigadores e consultores/especialistas, entre outros). A etapa extensiva resultou na constituição de uma base de dados com o registo de mais de 41 000 empresas familiares da região Norte de Portugal, tendo sido aplicado um questionário online a uma amostra de 1148 entidades representativa por NUT III e dimensão empresarial. Com este instrumento foi possível obter informação sobre: i) estrutura de governação da empresa familiar; ii) profissionalização das famílias empresárias; iii) caracterização sociobiográfica do respondente ao questionário (próprio fundador ou gestor com conhecimento geral da empresa familiar). A etapa qualitativa, a qual é privilegiada neste artigo, consistiu na realização de entrevistas aprofundadas a empresário(a)s/gerentes de empresas familiares que se disponibilizaram para participar neste estudo, tendo igualmente estado envolvidos ativamente nos oito workshops realizados pela equipa do projeto. Para um maior aprofundamento da informação metodológica e dos resultados obtidos em cada uma das etapas previstas, consulte-se Marques (2018).

12 Tal foi possível no quadro de uma colaboração com um investigador oriundo do Brasil a realizar um pós-doutoramento no departamento de Sociologia da Universidade do Minho (Silva, 2018), de que resultou uma publicação conjunta mobilizada neste estudo (Marques e Silva, 2020).

13 Esta secção apresenta-se melhorada e revista, integrando parte de um estudo já publicado (Marques e Silva, 2020).

14 Na verdade, o trabalho de campo realizado permitiu que fossem entrevistados vários membros da família com cargos na empresa, inclusive mulheres que tinham funções de direção (Silva, 2018). Todavia, por uma questão de comparabilidade e pertinência face ao processo de sucessão intergeracional, apenas considerámos os fundadores/sócios e/ou CEO com poder de decisão. Já no caso português, essa situação não se colocou porque apenas se entrevistaram fundadores ou gestores. Por essa razão se justifica que as entrevistas tenham decorrido mais no contexto português do que no brasileiro. De qualquer modo, a não mobilização da totalidade da informação decorrente das relações no seio da própria família, que foi possível obter no caso do Brasil, constitui uma limitação do esforço de triangulação que se reconhece no presente estudo.

15 Esta linha de argumentação assenta numa leitura exploratória e provisória resultante dos limites do presente estudo.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

ANA PAULA MARQUES e LEANDRO ALVES DA SILVA, «Negociação da sucessão intergeracional nas “mãos da família”: testemunhos de empresas familiares portuguesas e brasileiras»Configurações, 30 | -1, 69-90.

Referência eletrónica

ANA PAULA MARQUES e LEANDRO ALVES DA SILVA, «Negociação da sucessão intergeracional nas “mãos da família”: testemunhos de empresas familiares portuguesas e brasileiras»Configurações [Online], 30 | 2022, posto online no dia 02 janeiro 2023, consultado o 03 novembro 2024. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/16172; DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.16172

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Autores

ANA PAULA MARQUES

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

amarques@ics.uminho.pt

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-9458-2915

Artigos do mesmo autor

LEANDRO ALVES DA SILVA

Pós-doutorado pela Universidade do Minho.

leandromacstp@gmail.com

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-8600-4648

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