SILVA, Manuel Carlos; RODRIGUES, Fernando Matos; LOPES, João Teixeira; FONTES, António Cerejeira; MORA, Teresa - Por uma habitação básica – cidadania, democracia associativa e metodologias participativas. Porto: Edições Afrontamento, 2020. ISBN 9789723618464.
Texto integral
1O livro Por uma habitação básica – Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas é uma obra muito atual, rica e profunda sobre a questão urbana nas metrópoles dos países capitalistas avançados. Toma como objeto de análise Portugal nas últimas quatro décadas, abordando as transformações das suas principais metrópoles-cidades (Lisboa, Porto e Braga), as principais políticas públicas urbanas ocorridas e algumas das mais exemplares intervenções sócio-urbanas com populações das classes populares no âmbito da reabilitação da habitação e dos espaços públicos em bairros urbanos.
2A riqueza e profundidade deste livro deve-se à grande diversidade de autores e de problemas abordados, orientados sempre por uma perspetiva interdisciplinar que reúne contribuições da sociologia, da arquitetura, da ciência política e das metodologias das Ciências Sociais e ainda alguns tópicos onde se pode identificar a antropologia fenomenológica, o trabalho social e a economia política. Assim, e apesar desta diversidade, os vários capítulos estão bem articulados, pois todos eles partilham um mesmo diagnóstico sobre as transformações mais recentes das metrópoles-cidades: (i) a cada vez maior gentrificação, turistificação e patrimonialização das zonas mais nobres e prestigiadas das cidades (como são exemplo os centros históricos), (ii) fenómenos que se desenvolvem sob os ditames do capital financeiro global, servido pela aparente ausência de políticas públicas urbanas ou pelo assistencialismo das mesmas; (iii) aumento das desigualdades sociais nas formas de produzir e viver a cidade, atingindo tanto as classes populares, como outros setores da populações com rendimentos económicos insuficientes para viver em espaços urbanos objeto de especulação imobiliária, incluindo frações das classes médias.
3Na minha leitura, este diagnóstico negativo sobre o caminho que as cidades estão a seguir faz com que todos os capítulos do livro sejam atravessados, explícita ou implicitamente, por um lema: precisamos de uma cidade-cidadã. Ter este lema supõe que estamos perante uma obra que contém um propósito de implicação com a vida urbana dos cidadãos – especialmente os mais pobres e mais excluídos – e uma intencionalidade de transformação do quotidiano da cidade, procurando saber pensar e saber fazer, sempre melhor, uma cidade em que os movimentos sociais e associativos urbanos (ao lado dos conhecimentos e metodologias protagonizados pelos profissionais) têm uma voz e uma participação plena na produção, construção e apropriação dos espaços. Deste modo, podemos afirmar que, sem quaisquer preconceitos epistémico-metodológicos, este livro desenvolve os seus conteúdos a partir de uma dupla matriz de conhecimento, sendo uma obra científica, simultaneamente, teórico-ideológica e empírico-interventiva.
4Atendendo a esta dupla matriz, podemos afirmar que os três primeiros capítulos são aqueles que têm uma orientação mais abstrata, com um maior cunho teórico-ideológico: o primeiro é mais sociológico, o segundo é mais político e o terceiro é mais metodológico-participativo. Os três, no entanto, estão apostados em conceptualizar e refletir sobre os processos, as formas, as mediações, as escalas, as dimensões, etc., que melhor podem servir para transformar a insatisfação com o “mau viver quotidiano citadino” em mobilização, associativismo e participação dos moradores-cidadãos nas decisões sobre os destinos das cidades.
5Os capítulos 5, 7, 8 e 9 são aqueles que estão mais comprometidos com a matriz empírico-interventiva do livro, especialmente os últimos três, onde se dá especial destaque às interações sociais de terreno entre investigadores, profissionais e moradores-cidadãos, com uso de múltiplos métodos, técnicas e procedimentos, potenciadores da mudança nos bairros e nos espaços públicos das cidades em análise.
6Do conjunto do livro destacaria também o capítulo 4, por ser aquele que torna mais claro e explícito o diagnóstico negativo sobre a atualidade e o histórico das cidades, a saber: permite fazer a articulação da ideologia socioarquitetónica, do direito à cidade e da justiça espacial, com a contextualização sócio-histórica do desenvolvimento de uma metrópole urbana, com a denúncia crítica dos efeitos de desigualdade social das políticas públicas de habitação dos últimos anos; permite ainda articular a análise com o exemplo de uma proposta de política de participação cidadã e de metodologias de investigação-ação para a mudança urbana num bairro popular (“ilha”) do Porto.
7Os restantes capítulos, 6, 10, 11 e 12, têm conteúdos que complementam ou que potencialmente se podem articular com os principais conteúdos dos capítulos a que me referi atrás, misturando, na sua maioria, conteúdos tanto teórico-ideológicos como empírico-interventivos.
8Na tentativa de melhor debater as articulações entre as várias contribuições teóricas, é possível colocar algumas questões para reflexão futura. Vejamos a primeira: (i) A grande maioria dos capítulos que descrevem as intervenções sócio-urbanas com populações das classes populares refere-se a elas como sendo comunidades; no entanto, no capítulo 1, assinala-se com bastante ênfase que há atualmente muitas dificuldades na construção de identidade socioculturais nas classes populares. (ii) Não haverá aqui um paradoxo: como é que se pode, aparentemente, dar como óbvio e garantido, na intervenção sócio-urbana, que estamos perante comunidades e ao mesmo admitir (no capítulo 1) que o não desenvolvimento da partilha generalizada de experiências e vivências comuns que potenciem a construção de uma identidade sociocultural própria nas classes populares é frágil e pouco consistente? (iii) Pergunto: quais são os conceitos de comunidade e de identidade sociocultural que estão a ser considerados pelos vários autores? (iv) O uso diversificado destes conceitos não ganharia com alguma reflexão sobre o desenvolvimento sociocultural do capitalismo avançado, não circunscrevendo, portanto, a caracterização do capitalismo atual apenas à dimensão socioeconómica?
9O mesmo tipo de problema pode ser colocado através de uma segunda questão. Vejamos: (i) No capítulo 11 postula-se que o uso de ferramentas digitais de comunicação, rastreamento e mapeamento da vida citadina (geradoras de fenómenos de liquidificação do espaço urbano) pode ser fundamental para potenciar, consolidar e promover a participação cidadã e associativa nos destinos da cidade. (ii) Pergunto: os processos de liquidificação e de digitação não envolvem também potenciais riscos e efeitos negativos? Porque é que não são referidos? (iii) Julgo que também aqui, para no futuro se desenvolver uma reflexão mais profunda sobre a digitação da vida social e citadina, talvez se justificasse alguma reflexão sobre o desenvolvimento sociocultural do capitalismo avançado, incluindo todos os outros fenómenos de liquidificação da vida social. Será?
10Vejamos uma terceira questão para reflexão futura: (i) O capítulo 10 lembra o projeto SAAL e o contexto histórico de intercâmbio com o Brasil que esteve na sua origem, e com base neste ponto de partida faz uma análise crítica sobre um programa nacional estatal de reabilitações urbanas localizadas que se desenvolveu a partir de 2005 em Portugal. (ii) A partir desta análise crítica conclui-se que a ação dos profissionais, que atuam no espaço urbano enquadrados por organismos estatais, pode conter algumas virtualidades que deverão ser valorizadas. (iii) Pergunto: este virtuosismo, que se pretende “descobrir” nas intervenções estatais urbanas, não estará em contradição com os principais postulados do capítulo 2, onde se desvaloriza quase totalmente a ação estatal em benefício da democracia associativa? Fica a pergunta.
11Regressando à análise dos capítulos empírico-interventivos, julgo que se deverá destacar o contraste que existe entre os capítulos 7 e 9 e o capítulo 8. Nos dois primeiros são apresentados dois processos de intervenção sócio-urbana em que foi preservada e dinamizada a participação pública dos residentes de dois bairros, um do Porto e outro de Lisboa, ainda que com objetos de intervenção diferenciados. Neste contexto, o processo de conhecimento da cultura quotidiana urbana através da interação social com os moradores é sempre associado aos processos de transformação urbana, havendo por isso uma coexistência, total ou parcial, do uso da metodologia etnográfica, da investigação-ação e de outros procedimentos técnico-metodológicos, como inquéritos e histórias de vida. Pelas descrições e análises apresentadas nestes dois capítulos, estes dois processos micro de intervenção sócio-urbana evidenciam ter sido formas coletivas de ação bem ajustadas ao desenvolvimento de uma democracia associativa, dado nestes processos ter sido aparentemente determinante a existência de associações de cidadãos voluntários que, munidos de conhecimento e competências profissionais e científico-ideológicas, foram capazes de recontextualizar formulações gerais, abstratas e formais em ações comuns com os moradores de cocolaboração, cocriação e codecisão, todas promotoras de uma cidade-cidadã.
12Em contraste, o capítulo 8, circunscrito a um bairro social de Braga, pretende apenas conhecer as culturas quotidianas da vida social coletiva, ainda sem pensar especificamente em algum tipo de intervenção sócio-urbana. Dá-se, portanto, prioridade ao conhecimento antes de se querer agir, e para esse efeito é decisiva a metodologia de investigação etnográfica que nos é descrita e interpretada. A grande virtude deste capítulo é a de conter uma reflexão metodológica etnográfica, que julgo exemplar, para que se perceba que as condições de acesso, as condições de permanência e as condições de associativismo e ação coletiva nos bairros populares não são simples, nem óbvias. E, portanto, estão muito longe de apenas dependerem das boas intenções (bons modelos de ação e boas ideologias) dos profissionais e voluntários que se propõem melhor entender que necessidades, prioridades e parcerias se poderão (ou não!) no futuro vir a criar para sustentar uma intervenção urbana democrática, associativa e participada.
13A virtude que podemos apontar ao contraste que descrevemos existir entre estes três capítulos empírico-interventivos está numa nova questão, esta de natureza metodológica: (i) Compreende-se que no conteúdo dos capítulos 7 e 9, ao tornar públicas, através deste livro, duas intervenções urbanas com sucesso participativo, haja a tendência para descrever e interpretar (quase apenas) o que de melhor se fez e conseguiu. (ii) Mas pergunto: não haverá aqui o risco de os leitores terem uma visão sobre a agência social na mudança urbana demasiado simplificada e otimista? (iii) Não seria útil, no futuro, a escrita deste tipo de textos, como os capítulos 7 e 9, incluir heterorreflexões metodológicas e etnográficas sobre as intervenções sócio-urbanas participativas, nos mesmos termos em que atrás referi ter sido conseguido no capítulo 8?
14Em conclusão, pela minha parte diria que, para termos processos associativos e intervenções sócio-urbanas plenamente participativas, não basta, como faz o capítulo 12, discutir e reformar os conteúdos da educação dos profissionais (incluindo os arquitetos). É preciso que haja uma heterorreflexão metodológica sobre a interação social no terreno, capaz de questionar e relativizar as relações de poder entre a autoridade científica e ideológica, legítimas, dos profissionais e dos voluntários e a cultura de alteridade que, potencialmente, exista nos quotidianos de vida dos bairros populares.
15- Receção: 12.07.2022
16- Aprovação: 05.09.2022
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TELMO HUMBERTO CARIA, «SILVA, Manuel Carlos; RODRIGUES, Fernando Matos; LOPES, João Teixeira; FONTES, António Cerejeira; MORA, Teresa - Por uma habitação básica – cidadania, democracia associativa e metodologias participativas. Porto: Edições Afrontamento, 2020. ISBN 9789723618464.», Configurações, 30 | -1, 153-158.
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TELMO HUMBERTO CARIA, «SILVA, Manuel Carlos; RODRIGUES, Fernando Matos; LOPES, João Teixeira; FONTES, António Cerejeira; MORA, Teresa - Por uma habitação básica – cidadania, democracia associativa e metodologias participativas. Porto: Edições Afrontamento, 2020. ISBN 9789723618464.», Configurações [Online], 30 | 2022, posto online no dia 02 janeiro 2023, consultado o 30 maio 2023. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/16525; DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.16525
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