Texto Introdutório ao número temático “Vírus, algoritmos e o Estado”
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1No último dia de 2019 o escritório em Pequim da Organização Mundial da Saúde foi informado pelas autoridades chinesas da existência de uma pneumonia de etiologia desconhecida que afetava residentes em Wuhan. Rapidamente se percebeu que estávamos perante um vírus que, propagando-se à velocidade dos aviões que cruzam os céus do planeta, se transformaria numa nova pandemia. Por causa de um agente patogénico, fomos confrontados com uma ameaça que se generalizou e foi ceifando vidas, entretanto de modo menos intenso, à medida que se transformava em mais uma infeção viral cuja letalidade está agora largamente controlada pela vacinação. Embora não sendo o vírus um mensageiro de algum castigo imposto à humanidade (De Sousa Filho, 2020), a epidemia confronta as nossas sociedades hipertecnológicas com o facto, sistematicamente obnubilado, de não estarmos fora da natureza. Assim, as nossas vidas são condicionadas e até eliminadas por ela; logo, não podem ser pensadas ignorando‑a, nem tão‑pouco as respostas dadas pelas políticas públicas a devem menosprezar.
- 1 O artigo de Manuel Carlos Silva no presente número temático traz ao debate o caso do golpe político (...)
2A pandemia alertou-nos para a força do poder do Estado e dos seus dispositivos. Expondo a imensa fragilidade da tese da debilitação progressiva do Estado produzida pelas dinâmicas da globalização e das inovações tecnocientíficas, tão do agrado dos liberais, a pandemia revelou que em situações de crise, sejam elas de emergência sanitária, guerra ou catástrofe ambiental, é o Estado que detém os recursos para mobilizar e implementar os meios necessários para as enfrentar. Daqui decorre que não existe qualquer fatalismo nas escolhas políticas que se fazem; quer dizer, se tudo é construído, tudo pode ser revogado (De Sousa Filho, 2017). No campo económico, como demonstrou Polanyi (1944) no seu texto seminal sobre as origens do capitalismo, foi o Estado que organizou e protege o mercado, isto é, a instituição que aos olhos do senso comum e dos economistas liberais lhe parece mais exterior. Sendo o Estado também o responsável pela sua própria retirada do campo económico, ele continua a manter e até a ampliar recursos e instrumentos de controlo que convocam Giorgio Agamben e o seu conhecido conceito de estado de exceção, conceito aliás discutido por Walter Benjamin em Zur Kritik der Gewalt, de 1921. Referência incontornável do marxismo weberiano (cf. Löwy, 2014), Benjamin (1921), discutindo a capacidade do Estado de decidir sobre a vida e a morte dos indivíduos, sublinha que tal só é possível devido à prerrogativa, nunca alienada, de suspender as leis em situações de emergência, pelo que o estado de exceção só pode ser entendido como uma expressão da violência estatal que se materializa através da suspensão da lei em nome da manutenção da ordem. Sendo questão que interessou a muitos intelectuais europeus nos anos 20 e 30 do século passado, então marcados pela ascensão dos fascismos, fracassadas as tentativas revolucionárias socialistas, nomeadamente na Alemanha e na Hungria, entre os conservadores destaca-se Schmitt (2013 [1932]). Figura maior da intelectualidade nazi, argumenta que a soberania do Estado se manifesta na capacidade de decidir sobre a exceção, ou seja, sobre a suspensão das leis em situações de emergência. Recusando a submissão à moral e ao jurídico, o jurista nazi destaca que a decisão sobre a exceção é uma decisão política do poder soberano. Quer isto dizer que, como justamente destacou Poulantzas, em 1970, o fascismo deve ser entendido como uma forma radical de estado de exceção, situado no limite extremo do Estado capitalista, não devendo ser entendido como uma manifestação patológica deste mas antes como consequência das lutas sociais concretas num dado momento histórico. Os exemplos recentes do Brasil e dos Estados Unidos da América (EUA) mostram o acerto da análise do teórico grego1.
3A questão que se coloca é se o estado de exceção se aplica ao presente, em especial às democracias do Norte global. Voltemos a Agamben: o estado de exceção não é uma exceção à regra, mas sim a própria forma de governo no presente. Sempre que o poder assim o entende, a lei é suspensa, de modo a que o Estado possa implementar, se necessário sem qualquer forma de deliberação democrática, medidas em prol do que define ser a segurança nacional ou a proteção da ordem pública. Ou mesmo, não suspendendo o direito instituído, pode criar lugares ou zonas onde não é respeitado, colocando os seus agentes e práticas literalmente fora da lei. Como exemplos expressivos, podemos assinalar as prisões de Abu Ghraib, no Iraque, e de Guantánamo, em Cuba, onde as práticas como a detenção sem culpa formal e a tortura, proibidas pelo direito norte‑americano, foram repetidamente aplicadas. Não podendo ser designado por fascismo, o Estado pode assumir formas externas de fascismo. Seguindo o argumento de Poulantzas (1978 [1975]), tomando como referência o imperialismo norte‑americano, o Estado pode articular formas de representação democrática interna, ainda que limitadas, com práticas fascistas a nível externo, incluindo assassinatos seletivos, golpes de estado e guerras ilegais.
- 2 Cf. www.consilium.europa.eu/pt/infographics/european-peace-facility/.
4Aqui chegados, coloca-se a velha mas sempre atual interpelação: como compreender e explicar o que leva cidadãos livres, incluindo progressistas, a consentir a dominação, a manipulação e até a censura, elementos sem as quais as regras do estado de exceção nada valem? Foucault (1975) lembra-nos que o poder não se exerce apenas através da repressão, mas também (e sobretudo) por meio da disciplina e do controlo dos corpos e da vontade. Ou seja, não estamos perante apenas a simples suspensão das leis – que ocorre sempre que tal se justifica –, mas também perante a aplicação de modos complexos e disfarçados de controlo, vigilância e disciplinamento das populações e dos indivíduos. Daí a mobilização de agentes públicos muito diversos, como os jornalistas e comentadores, e a utilização transfigurada de conceitos e palavras. A atual guerra na Ucrânia, para lá da tragédia já produzida e da que nos promete sob a forma do holocausto nuclear, é muito ilustrativa do acerto da análise de Foucault. Comecemos pela linguagem: à “operação militar especial”, como é designada pela Rússia desde o primeiro momento da invasão do país vizinho, responde a União Europeia (UE) com o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP)2, instrumento para mobilizar armas e outros recursos militares para garantir que a guerra continua, indiferente às perdas humanas e à destruição material. Tal obriga a convocar Orwell (2007 [1949]) e o seu famoso 1984. Lendo a realidade presente utilizando como lentes o seu livro, percebemos que a linguagem funciona como um instrumento de controlo social que conduz, se não formos capazes de nos opor, à opressão e à destruição da liberdade. O escritor anarquista britânico percebeu também o papel cúmplice que o jornalismo pode desempenhar, por exemplo, aceitando utilizar eufemismos e outro jargão que mais não fazem do que ocultar a verdade factual e distorcer a realidade. Entre os casos recentes mais deploráveis temos as expressões “guerra humanitária” e “danos colaterais”.
- 3 A expressão “contra-ataque” foi utilizada por Borrell no seu discurso ao Parlamento Europeu, no dia (...)
- 4 Referimo-nos, entre outros, aos majores-generais Raul da Cunha e Agostinho Costa e ao coronel Carlo (...)
5Ao mesmo tempo assistimos ao regresso triunfal do Ocidente, proclamado pelos seus defensores como a referência moral e farol para o mundo. Arrastando os povos para a guerra entre the West and the Rest, convocando o subtítulo do discutido livro de Ferguson (2011), tal justifica a defesa implacável do que chamam “valores ocidentais”, indiferente à herança colonial e ao imperialismo, empreendida também por intelectuais e jornalistas “fardados” (cf., entre muitos outros artigos, Applebaum, 2022). Como nos revelam os textos pioneiros de denúncia da colonização da América e da África escritos por Bartolomé de Las Casas (1991 [1552] e 1996 [1553]), trata‑se de mobilizar argumentos simplistas e manipuladores, a ideologia na sua mais grotesca expressão, para a defesa da pretensa superioridade dos valores ocidentais, a bem dizer, da sua imaginada universalidade. É esta ideologia que justifica o “contra-ataque” do Ocidente à Rússia, como designou Josef Borrell – atual Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança da União Europeia –, e tenta conquistar a adesão dos povos europeus, cujo contraponto económico é uma crise desastrosa3. Tal merece o apoio da larga maioria dos media europeus. “Vanguarda do partido da guerra”, Halimi e Rimbert (2023, p. 26) mostram-nos que os seus agentes, perigosamente mais belicistas do que alguns militares em Portugal4, recusam não só qualquer discussão crítica acerca das causas da guerra, como são parte ativa e muito empenhada na sua justificação e continuação, bem como na desqualificação de todos os que se opõem a esta visão unilateral, truncada e perigosa, alimentando um belicismo que pode conduzir ao desastre atómico. Parafraseando Bourdieu, tentando que as suas ideias-força de uma visão do mundo se convertam na visão do mundo, mais não fazem do que nos conduzir no caminho recusado em 1914 por Karl Kraus, o jornalista e escritor satírico austríaco: “Sempre em frente, rumo à glória, marchamos!” (cf. Bouveresse, 2020).
- 5 Podendo surpreender os menos atentos, no Parlamento Europeu a censura foi aprovada ou consentida, a (...)
6Tal empurra-nos para outras disposições sempre presentes nas guerras. Uma delas, a mentira, é analisada nalguns dos artigos deste número temático, a outra é a censura. Comecemos por esta. Contraditando princípios fundamentais do que chamam “estado de direito” e da liberdade dos indivíduos, em nome dos princípios que dizem defender – a democracia e a liberdade – mais a defesa da sociedade de pretensas manipulações, a Comissão Europeia, com o apoio dos governos e do Parlamento Europeu, aplicou a censura à livre circulação de informação, impedindo o acesso a canais de notícias russos, bem como a sítios de internet. São exemplos o canal de televisão Russia Today e o sítio de internet de notícias Sputnik5. Suscitando interpelações sobre o modo como se exerce o controlo legal, ideológico e sanitário das populações, a censura não é apenas uma restrição inaceitável à liberdade de expressão, é também um mecanismo de controlo ideológico para garantir a aceitação do estado de exceção, suprimindo informações que podem ser consideradas ameaçadoras para o statu quo, ainda que realizadas sempre por “bons motivos”, sejam eles a segurança nacional, a defesa da privacidade ou a prevenção da desinformação. Irremediavelmente, a censura indica o pendor crescente do Estado para fazer da exceção a regra, dando assim inquietante pertinência aos argumentos de Agamben (1998 e 2010). Repetindo, o estado de exceção é forma permanente de governo, produzindo a erosão dos direitos civis, em primeiro lugar e antes de tudo, a erosão da liberdade.
- 6 Assange está atualmente preso numa cadeia de alta segurança inglesa, em condições de detenção deplo (...)
- 7 Os factos são bem conhecidos: o governo norte-americano, com a cumplicidade dos media, inventou uma (...)
- 8 O mensageiro é o conhecido jornalista de investigação Seymour Hersh (cf. https://seymourhersh.subst (...)
7Para censurar é necessário instituir um gigantesco sistema de vigilância, suportado por algoritmos sofisticados e servidores potentes, como revelaram Edward Snowden, Julian Assange e Glenn Greenwald. Ou seja, ao contrário do que defendeu Arendt (1951), a manipulação e a censura, bem como a perseguição daqueles que as denunciam, pagando um alto preço, não são exclusivos dos Estados totalitários, estando também presentes nas democracias6. Nem tão-pouco o é a mentira. Sendo esta, bem como a censura, duas disposições a que os Estados recorrem, estando presente na diplomacia (cf. Kornblush, 2023), a mentira é parte indispensável do estado de exceção, funcionando como arma política. Quer dizer, como recurso de manipulação pública para justificar escolhas políticas, disseminando informações falsas ou ocultando factos. Depois das “armas de destruição em massa no Iraque”7, mentira que justificou a guerra, agora é a destruição dos gasodutos North Stream. Neste caso, a responsabilidade foi prontamente atribuída aos russos, sem provas ou indícios que o pudessem justificar. Logo que se foi percebendo quem foi o responsável pelo ato terrorista, os media ocidentais foram perdendo o interesse no assunto, empenhando-se antes em desqualificar o “mensageiro”8.
8Mentira e media produzem uma imensa agitação social e política, que tem nas redes sociais um dos principais palcos. Conhecidas pela expressão fake news, os primeiros quatro artigos deste número da revista Configurações, três deles sobre o contexto brasileiro, dão particular relevância ao assunto. Numa tradução simples, fake news são notícias falsas, quer dizer, notícias que, não cumprindo com a verificação dos factos, são divulgadas com o intuito de manipular os cidadãos. É consensual admitir que a expressão se tornou corrente aquando das eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos da América. Segundo alguns autores (cf. Allcott e Gentzkow, 2019; Bovet e Make, 2019), nessa eleição a quantidade de notícias falsas partilhadas nas redes sociais foi muito elevada, tendo desempenhado um papel relevante na formação da escolha dos eleitores. É importante sublinhar que não estamos perante um fenómeno novo, mas apenas facilitado e ampliado pelas redes sociais. De facto, a fabricação e propagação de notícias falsas tem séculos, senão mesmo milénios. Na Europa medieval os judeus foram repetidamente acusados de envenenar poços de água, já nos anos cinquenta do século XX, nos EUA, os comunistas foram objeto de uma conspiração político-mediática movida por Joseph McCarthy, senador do Partido Republicano.
9Mentira, manipulação, biopolítica, Estado e dispositivos de controlo social são tópicos que atravessam os artigos deste número temático, refletindo assim interesses de pesquisa que são também inquietações da cidadania. O primeiro artigo é de Antónia do Carmo Barriga. Focado na literacia mediática e digital, começa por uma análise do desenvolvimento tecnológico na área da comunicação a partir da década de 1970, na qual mostra os impactos produzidos na sociedade, destacando o carácter ambivalente das inovações tecnológicas. Embora tenha produzidos avanços, a tecnologia desencadeou novos problemas, nomeadamente os relacionados com as ameaças à democracia, a erosão dos direitos individuais e a possibilidade de “soluções” distópicas. Para a autora, são diversos os impactos da tecnologia nos modos de vida dos utilizadores dos media digitais, convocando perspetivas relacionadas com o determinismo tecnológico e com os discursos morais. Esta análise permite a Carmo Barriga convocar a nossa atenção para a relevância da literacia mediática e digital num contexto histórico marcado pela chamada pós-verdade, destacando a sua função como recurso para se escrutinar a manipulação da informação e, assim, permitir escolhas mais informadas. Quer isto dizer que a literacia para os media é essencial, especialmente para estudantes universitários, sugerindo a adaptação de atividades transversais aos programas universitários e de natureza extracurricular. O artigo, portanto, enfatiza a importância de uma educação crítica para os meios de comunicação social digitais e tradicionais para ajudar a enfrentar os desafios apresentados pela era digital, tendo como horizonte a capacitação para a cidadania e a participação política, fundamentais para comprometer os jovens com a vida pública.
10Os três artigos seguintes partilham o mesmo contexto geopolítico: o Brasil. Começando por contextualizar a pandemia da Covid-19 na geografia e nas suas consequências sanitárias, Manuel Carlos Silva sublinha que ela não atingiu por igual todos os indivíduos, exacerbando as desigualdades existentes por pertença de classe, género, etnia, raça e nacionalidade. Observando a situação concreta do Brasil, destaca o impacto negativo das circunstâncias políticas decorrentes da ação do governo de Bolsonaro, que adotou uma postura de negação da gravidade da doença e promoveu a disseminação de informações falsas sobre tratamentos e vacinas. O texto ressalta a falta de empatia e compaixão do governo pelos doentes, além da ausência de políticas públicas efetivas para combater a pandemia, especialmente em comunidades vulneráveis como as que vivem em favelas. Nesta crise, a degradação das políticas públicas na saúde e na ciência concorreu para amplificar as suas consequências, constituindo-se assim a pandemia como um exemplo expressivo do abandono do Estado e da necropolítica no Brasil. Obviamente mas com total pertinência, M. C. Silva procura compreender o fenómeno bolsonarista, considerando a história do Brasil, nomeadamente a das últimas décadas, convocando à discussão as suas desigualdades sociais, o colonialismo, a escravatura e o racismo. Enfatiza que a opção pela necropolítica na pandemia por parte de Bolsonaro tem de ser compreendida atendendo também à diminuição do investimento público, à precariedade e à promoção da violência policial e das armas.
11Interessando-se pela mesma questão, Patrick Santos procede a uma análise crítica da resposta do Estado à pandemia, enfatizando as divergências políticas que surgiram em relação à biopolítica, à necropolítica e ao estado de exceção. O autor discute como diferentes países enfrentaram a pandemia, com alguns adotando medidas mais rigorosas e outros negando a gravidade do vírus, evidenciando a posição do governo brasileiro, claramente em contramão às normas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pela comunidade científica. O artigo permite confrontar o leitor com a relevância da comunicação na política, tornando patente a força do discurso de Bolsonaro na produção de uma fratura política e de uma crise social e até de regime, argumentando o autor que a estratégia do governo brasileiro se ancorou numa governamentalidade neoliberal que favorece a sobrevivência dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, expressa em mortes evitáveis. Em linha com os argumentos mobilizados por M. C. Silva, P. Santos considera que a estratégia bolsonarista ampliou a lógica de exclusão presente na biopolítica, sendo a capacidade de superação do vírus atribuída ao indivíduo, logo promovendo o racismo, normalizando e banalizando a morte pelo vírus e, enfim, produzindo uma política de extermínio. Em síntese, P. Santos faz uma crítica severa à posição de Bolsonaro em relação à pandemia, considerando que é incompatível com uma política de preservação da vida e da saúde da população.
12No último artigo sobre o Brasil, Clayton Rodrigues e Cleildes Santana refletem sobre a dualidade social existente neste país, aliás à semelhança do que se verifica na generalidade dos países latino americanos, com uma burguesia dominante, cujo contraponto é uma população pobre e periférica. Para os autores, o Estado sempre deteve o poder de decidir sobre a vida e a morte dos mais pobres, seja ele produzido pela escravatura, pelo coronelismo ou pelas ações contemporâneas dos grileiros, madeireiros, mineradoras e polícias civis e militares. Explorando dados empíricos acerca da situação dos trabalhadores durante e após a pandemia, os autores destacam a carga horária excessiva e a falta de recursos para suportar o novo modelo de trabalho remoto. Tal leva-os à crítica à exploração capitalista, relevando que esta não se importa com a saúde e o bem estar dos trabalhadores, mas apenas com a produção de mais valias. Além disso, lembram que o trabalho remoto facilita a internacionalização do trabalho, acrescentando dificuldades à organização e ação coletiva dos trabalhadores, o que pode levar à concorrência global e à redução dos custos da mão-de-obra. Por outras palavras, fazendo a síntese, C. Rodrigues e C. Santana destapam as práticas da burguesia e do Estado para produzir um dispositivo disciplinar, com o objetivo de manter a hegemonia e pacificar as relações de trabalho e exploração. As aparentes contradições do sistema económico são transformadas em oportunidades, sendo um caso paradigmático a privatização das tecnologias para produção de vacinas.
13Por fim, o derradeiro artigo deste número temático é de Ivonaldo Leite. Escrutinando a relação entre sociedade, desvio e Estado, I. Leite mobiliza um vasto acervo teórico, incluindo os grandes clássicos da sociologia (Marx, Weber, Durkheim e Simmel), para identificar os dispositivos de controlo social utilizados pelo Estado e compreender os modos como condicionam o comportamento individual através de sanções, premiando aqueles que se inserem na norma e penalizando os desviantes. Sendo que norma e desvio são realidades históricas, a sua análise deve considerar as desigualdades estruturais e os compromissos existentes na sociedade em relação a valores que interferem na definição do comportamento desviado e na fixação das sanções. Inquieto com o efeito do poder político no cerceamento da liberdade, I. Leite argumenta justamente que é importante reconhecer a autonomia relativa do Estado e suas especificidades, incluindo não apenas os dispositivos coercivos, administrativos e simbólicos, mas também o território, a população e os discursos e imaginários políticos estatais. Ler o Estado deste modo permite evitar a armadilha das conceções dicotómicas e deterministas, entendendo-o como uma entidade monolítica sob o comando de uma burguesia homogénea. Em suma, fechando bem o número temático, o texto oferece ao leitor uma análise crítica acerca da relação entre Estado e sociedade, sublinhando a relevância de se olhar de modo concreto para cada realidade sociopolítica, de modo a ter uma compreensão densa das implicações sociais, políticas e culturais que envolvem esta relação.
14A revista encerra com duas recensões. A primeira, de Josimar de Aparecido Vieira, analisa a obra Friedrich Engels: o burguês que inventou o marxismo, de Michael Krätke, cuja edição em português tem tradução de Manuel Carlos Silva e Fernando Bessa Ribeiro. Krätke revela informações pouco conhecidas sobre a vida e as contribuições do teórico alemão para o pensamento marxista. Antecedido de um prefácio assinado pelos tradutores, o livro é dividido em seis partes, sendo atravessado por uma preocupação: destacar e compreender a relevância de Engels na criação do marxismo.
15A outra recensão é da autoria de Fernando Bessa Ribeiro, tendo por objeto o livro organizado por Jordi Estivill e Casimiro Balsa, com o título Economia local, comunitária e solidária: o desenvolvimento visto de baixo. Examinando o processo de desenvolvimento a partir do “chão”, ou seja, do nível onde a vida diária lida com os desafios da produção das condições materiais de existência, o livro é composto por três partes, cada uma com, respetivamente, dois, três e seis capítulos, escritos por doze autores da Europa e da América Latina. Abordando o desenvolvimento nos seus múltiplos significados e dimensões, esta obra propõe repensar o desenvolvimento à escala local, em estreita articulação com as formas mais solidárias da economia.
16Referências bibliográficas e sítios de internet
17AGAMBEN, Giorgio – Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Lisboa: Presença, 1998. ISBN 9789722322713.
18AGAMBEN, Giorgio – Estado de excepção. Lisboa: Edições 70, 2010 [2003]. ISBN 9789724416106.
19ALLCOTT, Hunt; GENTZKOW, Matthew – Social media and fake news in the 2016 election. Journal of Economic Perspectives. EUA. ISSN 0895-3309. 31:2 (2017) 211-236.
20APPLEBAUM, Anne – Ukraine must win [Em linha]. Boston: The Atlantic, 2022, atual. 22 mar. Disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/03/how-democracy-can-win-ukraine/627125/
21ARENDT, Hannah – Origens do totalitarismo. Lisboa: Dom Quixote, 2010 [1951]. ISBN 9789722029094.
22BENJAMIN, Walter – Zur kritik der gewalt. In TIEDEMANN, Rolf; SCHWEPPENHÄUSER, Hermann – Gesammelte schriften – II. Francoforte: Suhrkamp, 1974 [1921]. ISBN 9783518285329. p. 179‑203.
23BOUVERESSE, Jacques – O que significa tratar os animais com humanidade? Karl Kraus, Rosa Luxemburgo e o desastre da ‘Grande Guerra’ [Em linha]. Lisboa: Le Monde diplomatique – Edição portuguesa, 2020, atual. 01 out. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-que-significa-tratar-os-animais-com-humanidade/.
24BOVET, Alexandre; MAKSE Hérnan – Influence of fake news in Twitter during the 2016 US presidential election. Nature Communications. Reino Unido. ISSN 2041-1723. 10:7 (2019) 1-14.
25FERGUSON, Niall – Civilization: the West and the rest. Londres: Allen Lane, 2011. ISBN 9780143122067.
26FOUCAULT, Michel – Vigiar e Punir. Lisboa: Edições 70, 2013 [1975]. ISBN 9789724417660.
27GOMES, Carlos Matos – Somos Bielorussos! [Em linha]. Lisboa: Convergência, 2022, atual. 03 mar. Disponível em: https://convergenciabloco.com/2022/03/03/somos-bielorussos/.
28GREENWALD, Glenn – No place to hide: Edward Snowden, the NSA and the U.S. surveillance State. Nova Iorque: Metropolitan Books, 2014. ISBN 9781627790734.
29HALIMI, Serge; RIMBERT Pierre – A comunicação social, vanguarda do partido da guerra. Lisboa: Le Monde diplomatique – Edição portuguesa. 2:197 (2023) 26-29.
30KORNBLUSH, Peter – Mísseis, mentiras e diplomacia. Lisboa: Le Monde diplomatique – Edição portuguesa. 2:195 (2023) 35-36.
31BARTOLOMÉ DE LAS CASAS – Brevíssima relação da destruição das Índias. Lisboa: Antígona, 1991 [1552]. ISBN 9789726080517.
32BARTOLOMÉ DE LAS CASAS – Brevíssima relação da destruição de África. Lisboa: Antígona, 1996 [1553]. ISBN 9789726080517.
33BRASIL 247 – Visão imperialista: maior parte do mundo é uma ‘selva’, diz Borrell, comparando Europa com ‘jardim’ [Em linha]. São Paulo: Brasil 247, 2022, atual. 24 fev. 2023. Disponível em: https://www.brasil247.com/mundo/visao-imperialista-maior-parte-do-mundo-e-uma-selva-diz-borrell-comparando-europa-com-jardim
34CONSELHO EUROPEU (CE) – Infografia – Mecanismo Europeu de Apoio à Paz [Em linha]. Bruxelas: Conselho Europeu, 2022, atual. 12 dez. Disponível em: www.consilium.europa.eu/pt/infographics/european-peace-facility/.
35DE SOUSA FILHO, Alipio – Tudo é construído! Tudo é revogável! A teoria construcionista crítica nas ciências humanas. São Paulo: Cortez, 2017. ISBN 9788524925740.
36DE SOUSA FILHO, Alipio – O vírus SARS-CoV-2 não é um mensageiro [Em linha]. Lisboa: Convergência, 2020, atual. 08 abr. Disponível em: https://convergenciabloco.com/2020/04/08/o-virus-sars-cov-2-nao-e-um-mensageiro-por-alipio-de-sousa-filho/
37EUROPEAN EXTERNAL ACTION SERVICE (EEAS) – Russian aggression against Ukraine: Speech by High Representative/Vice-President Josep Borrell at the EP plenary [Em linha]. Bruxelas: EEAS, 2022, atual. 01 mar. Disponível em: www.eeas.europa.eu/eeas/russian-aggression-against-ukraine-speech-high-representativevice-president-josep-borrell-ep_en
38HERSH, Seymour – How America Took Out the Nord Stream Pipeline [em linha]. Washington: Seymour Hersh Substack, 2023, atual. 08 fev. Disponível em: https://seymourhersh.substack.com/p/how-america-took-out-the-nord-stream?utm_source=substack&utm_campaign=post_embed&utm_medium=web
39LÖWY, Michael – A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo, 2014. ISBN 9788575594018.
40MEARSHEIMER, John – Playing with fire in Ukraine: the underappreciated risks of catastrophic escalation [Em linha]. Nova Iorque: Foreign Affairs, 2022, atual. 17 mar. Disponível em: www.foreignaffairs.com/ukraine/playing-fire-ukraine. ISSN 0015-7120.
41MELO, João – É o colonialismo, estúpidos [Em linha]. Lisboa: Diário de Notícias, 2022, atual. 22 out. Disponível em: https://www.dn.pt/opiniao/e-o-colonialismo-estupidos-15283020.html
42ORWELL, George – 1984. Lisboa: Antígona, 2007 [1949]. ISBN 9789726081890.
43POLANYI, Karl – The great transformation: the political and economical origins of our time. Boston: Beacon Press, 1944. ISBN 9780807056431.
44POULANTZAS, Nicos – Fascismo e ditadura. Florianópolis: Enunciado Publicações, 2023 [1970]. ISBN 9786599247613.
45POULANTZAS, Nicos – A crise das ditaduras: Portugal, Grécia, Espanha. São Paulo: Paz e Terra, 1978 [1975]. ISBN 9788521905790.
46SACHS, Jeffrey – Explosão do Nord Stream: quem teme a verdade? [em linha]. São Paulo: Outras Palavras, 2023, atual. 27 fev. Disponível em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/explosao-do-nord-stream-quem-teme-a-verdade/
47SCHMITT, Carl – O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2013 [1932]. ISBN 9789724418247.
Notas
1 O artigo de Manuel Carlos Silva no presente número temático traz ao debate o caso do golpe político-jurídico que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Expressão concreta do fascismo externo, a ação dos magistrados Sérgio Moro e Deltan Dallagnol foi amparada pelo governo norte-americano e suas agências, agindo no Brasil de um modo que não seria possível nos EUA.
2 Cf. www.consilium.europa.eu/pt/infographics/european-peace-facility/.
3 A expressão “contra-ataque” foi utilizada por Borrell no seu discurso ao Parlamento Europeu, no dia 1 de março de 2022, aquando da discussão e aprovação da resolução P9_TA(2022)0052 de condenação da invasão da Ucrânia. Pelo mesmo Borrell, num exercício da mais despudorada arrogância etnocêntrica, fazendo “tábua rasa” do deplorável passado colonial europeu, ficamos a saber que “a Europa é um jardim. Nós construímos um jardim. É a melhor combinação entre liberdade política, prosperidade económica e coesão social. A maioria do resto do mundo é uma selva. E a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros precisam de ter cuidado!” (cf. www.eeas.europa.eu/eeas/russian-aggression-against-ukraine-speech-high-representativevice-president-josep-borrell-ep_en, www.dn.pt/opiniao/e-o-colonialismo-estupidos-15283020.html e www.brasil247.com/mundo/visao-imperialista-maior-parte-do-mundo-e-uma-selva-diz-borrell-comparando-europa-com-jardim.
4 Referimo-nos, entre outros, aos majores-generais Raul da Cunha e Agostinho Costa e ao coronel Carlos Matos Gomes. Nos seus comentários nas televisões e nos jornais procuram esclarecer, evitando fazer a apologia da guerra e do Ocidente (cf. nomeadamente o artigo de Gomes em https://convergenciabloco.com/2022/03/03/somos-bielorussos/).
5 Podendo surpreender os menos atentos, no Parlamento Europeu a censura foi aprovada ou consentida, através da abstenção, por parte de alguns deputados da esquerda radical, incluindo os dois eleitos pelo Bloco de Esquerda, José Gusmão e Marisa Matias. Tal opção ficará para a história como um ato de rendição ideológica e moral, por configurar o consentimento em relação à ordem e à agenda do Ocidente. Fazendo tábua rasa do muito que já sabemos, aceitando o maniqueísmo dos “bons” e dos “maus”, estes dois deputados portugueses são objetivamente cúmplices do que foi justamente denunciado por Klaus Kraus nas vésperas da primeira grande carnificina do século XX, participando assim no caminho para a catástrofe geral, aliás já sinalizada de modo muito expressivo por Mearsheimer (2022).
6 Assange está atualmente preso numa cadeia de alta segurança inglesa, em condições de detenção deploráveis, por ação de uma lawfare, elemento fundamental do estado de exceção. Edward Snowden e Julian Assange são os exemplos expressivos do modo de atuação dos governos ocidentais, com a ostensiva colaboração de grande parte dos media.
7 Os factos são bem conhecidos: o governo norte-americano, com a cumplicidade dos media, inventou uma narrativa sobre a existência de armas deste tipo para justificar a guerra. Um dos textos mais relevantes para conhecer esta conspiração é o de Greenwald (2014).
8 O mensageiro é o conhecido jornalista de investigação Seymour Hersh (cf. https://seymourhersh.substack.com/p/how-america-took-out-the-nord-stream?utm_source=substack&utm_campaign=post_embed&utm_medium=web). Sobre a questão cf. também o testemunho Jeffrey D. Sachs ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/explosao-do-nord-stream-quem-teme-a-verdade/).
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Referencia en papel
Fernando Bessa Ribeiro y ALIPIO DE SOUSA FILHO, «Texto Introdutório ao número temático “Vírus, algoritmos e o Estado”», Configurações, 31 | -1, 7-18.
Referencia electrónica
Fernando Bessa Ribeiro y ALIPIO DE SOUSA FILHO, «Texto Introdutório ao número temático “Vírus, algoritmos e o Estado”», Configurações [En línea], 31 | 2023, Publicado el 05 junio 2023, consultado el 14 octubre 2024. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/17945; DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.17945
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