1Podendo o desenvolvimento ser analisado a diferentes escalas, o livro organizado por Jordi Estivill e Casimiro Balsa opta por escrutiná-lo a partir de baixo, do chão onde a vida quotidiana enfrenta os problemas da produção das condições materiais de existência. Trata-se, pois, de pensar o desenvolvimento na sua dimensão mais local, em estreita articulação com as formas mais solidárias da economia, sem ignorar onde aquele se insere, isto é, em territórios mais amplos, como o do Estado, e suas articulações globais. Aliás, Estivill, que assina a introdução deste livro, confronta o leitor com o emaranhado de conceitos e ligações quando pergunta: “Onde começam e onde terminam a comunidade e o local? Quem ousa definir as suas fronteiras, num mundo globalizado onde os laços territoriais e as identidades coletivas tendem a ser diluídos ou reduzidos e muitas vezes tornam-se defensivos?” (p. 13).

2Com quase quatro centenas de páginas, o livro está organizado em três partes, com, respetivamente, dois, três e seis capítulos. Assinados por doze autores da Europa e da América Latina, todos eles vinculados pela “matriz latina” (p. 3), Estivill é responsável por dois textos, a introdução e um capítulo na terceira parte.

3O livro começa por situar o debate sobre o desenvolvimento, tendo como referência as dimensões locais, comunitárias e solidárias da economia. Alertando-nos para as disparidades produzidas pelo que se pode simples mas expressivamente designar por “desenvolvimento em ação”, Guy Bajoit oferece ao leitor uma síntese sobre as diferentes conceções modernas sobre o desenvolvimento. Porém, não se limita, sublinhe-se, a fazer um ensaio histórico, antes procura situar este no presente para nos propor outros caminhos para o desenvolvimento, ancorados nas dimensões éticas e sustentáveis. Considerando tratar-se da sua “utopia pessoal realista” (p. 35), tópico com o qual se ocupou Eric Olin Wright – cf., entre outros textos, Envisioning real utopias (2010) –, para o sociólogo belga, com um trajeto intelectual e de vida que o situa num combate decisivamente anticapitalista, é necessário combinar bem-estar material com o respeito pela paz, pelo ambiente, pela democracia e pela coesão social. Implicando mudanças impactantes na vida social, reclamando a mobilização através dos partidos políticos, o autor refere a social‑democracia sueca como exemplo de uma experiência virtuosa de mudança e avanços positivos, ainda que sem pôr em causa o capitalismo e fixando 2006 como o ano terminal.

4Por sua vez, Luis Razeto Migliaro reflete sobre a economia solidária, colocando no horizonte o “bom viver”, conceito proposto, entre outros, por Alberto Acosta (“El buen vivir como alternativa al desarrollo. Algunas reflexiones económicas y no tan económicas”, 2015), baseado no modo de vida dos povos originários da América Latina. Razeto Migliaro argumenta que, estando nós “a viver o fim de uma época histórica, o fim de um modelo económico” (p. 49), é necessária uma mudança radical nos padrões de consumo e não apenas na mudança nos modos de produzir, no qual destaca a moderação, que não deve ser confundida com “austeridade ou privação e sacrifício” (p. 62). Tal convoca o decrescimento, assumindo este um lugar central na discussão empreendida por Razeto Migliaro. Esta centralidade é absolutamente pertinente, quando sabemos que existe uma contradição insanável entre o carácter finito dos recursos e o crescimento perpétuo proposto pelas teorias económicas liberais praticadas pelos governos com manifesta obstinação, apesar de estarmos perante um sistema maduro, em abrandamento, como lembra Razeto Migliaro, em linha aliás com os argumentos de Thomas Piketty em O capital no século XXI (2013). Resta saber se estamos perante o fim de uma era histórica, como argumenta Razeto Migliaro, a do capitalismo, ou somente, mas não é coisa pouca, a recomposição do sistema mundial capitalista, com a transferência de poder e conhecimento para o Oriente, com o centro na China, depois de quinhentos anos de dádivas do Ocidente, como ironicamente assinalou Giovanni Arrighi (A ilusão do desenvolvimento, 1997) no final do século passado.

5A segunda parte abre com um texto de Casimiro Balsa. Tendo como objeto projetos de intervenção-ação em que participou, o autor discute com pertinência as capacidades deste tipo de iniciativas em induzir mudanças positivas, de modo a qualificar os grupos sociais mais marginalizados. Mobilizando um acervo bibliográfico significativo e pertinente, ancorado na discussão teórica sobre tópicos centrais do desenvolvimento, como os sugeridos por Samir Amin sobre o desenvolvimento desigual e suas propostas para o desenvolvimento autocentrado, necessariamente nacional-desenvolvimentista (e nacional-popular nas suas expressões mais avançadas), Balsa releva as possibilidades, ainda que limitadas, da ação pública e da sociedade civil organizada na luta contra a pobreza.

6No capítulo seguinte José Raimundo Oliveira Lima apresenta um caso concreto de economia popular solidária, localizado em Feira de Santana (Brasil). O autor analisa o papel e contributos da incubadora universitária desta cidade brasileira para o desenvolvimento local solidário, mostrando que no capitalismo, apesar dos múltiplos constrangimentos e da sujeição que ele produz, existe espaço para ações económicas não guiadas pela procura do lucro.

7A encerrar esta parte temos um texto de Maria José Menezes Lourega Belli e Lindomar Wessler Boneti sobre as práticas de uma associação de moradores em Curitiba (Brasil), considerando também um problema, a bem dizer uma tragédia recente e ainda atual, a infeção por covid-19. Destaca-se a relevância da ação coletiva organizada e a densificação de redes de solidariedade e de entreajuda para os grupos mais pobres e marginalizados enfrentarem e minimizarem os efeitos produzidos pelas desigualdades e por eventos extraordinários, como é o caso da pandemia.

8Por fim, a terceira parte leva o leitor à discussão de experiências nacionais, regionais e urbanas de economia local, solidária e comunitária. Sendo a parte mais longa, com quase duzentas páginas, Rogério Roque Amaro, Antônio Dimas Cardoso, Laurindo Mekie Pereira, Jordi Estivill, Ivan Miró e Michel Messu analisam casos em Portugal, no Brasil, na Catalunha, incluindo Barcelona, e França. Roque Amaro oferece-nos uma longa reflexão sobre a história do desenvolvimento local em Portugal, desde o seu arranque nos anos 1960, sendo o seu texto atravessado por uma inquietação: saber se é possível implementar agendas de desenvolvimento local na cidade. Em contraponto à posição e argumentos de Camilo Mortágua, uma das figuras históricas do desenvolvimento local em Portugal, Roque Amaro demonstra que aquelas agendas são possíveis, convocando casos concretos (v.g., grupos comunitários da área metropolitana de Lisboa).

9Prosseguindo com a análise histórica do desenvolvimento comunitário, agora no Brasil, Dimas Cardoso releva o papel do Estado e das instituições internacionais, com destaque para a Cepal (Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas). A democratização brasileira não impede a consolidação do neoliberalismo no país, emergindo uma tensão entre as suas lógicas específicas no campo do desenvolvimento e a ação dos movimentos sociais.

10Igualmente ensaiando uma reflexão histórica, Mekie Pereira examina “a narrativa contra‑hegemónica” (p. 252), elaborada por intelectuais e movimentos sociais, sobre o tempo imaginado como idílico, anterior à modernização, no norte de Minas Gerais (Brasil). Alegadamente entendido como de abundância e bem-estar, este tempo traz assim à colação a questão do “progresso” no capitalismo.

11Já na Península Ibérica, tendo como objeto a Catalunha, Estivill coloca, como faz Roque Amaro para o caso português, a origem do desenvolvimento comunitário nesta comunidade autónoma (e também em Espanha) na década de sessenta do século XX. Não ignorando o capitalismo, Estivill mostra-nos as possibilidades do desenvolvimento comunitário na resolução de problemas sociais candentes, sem que daqui se possa obliterar as suas limitações e contradições.

12Já Miró discute a auto-organização económica local e comunitária na área metropolitana de Barcelona. Procurando atuar como contraponto e mesmo fora das lógicas capitalistas, convoca a nossa atenção para a ação de movimentos sociais e cooperativos que procuram outro caminho para o desenvolvimento local e comunitário, vinculado aos princípios da democratização solidária de uma economia fundada no território e na produção local.

13Por fim, a encerrar o livro, temos o texto de Michel Messu. Situando as comunidades no contexto da história de França, desde a Idade Média, destacando o papel exercido pela ação centralizadora do Estado e, em especial, pela Revolução francesa, Messu opta por valorizar a laicidade em contraponto à comunidade como princípio político e social decisivo para a organização da via pública.

14Não deixando o livro dúvidas acerca das possibilidades positivas proporcionadas pelo desenvolvimento local e comunitário, nomeadamente às camadas populares mais vulneráveis e excluídas, a questão que se coloca é a de saber até onde pode chegar no capitalismo. Será que estas expressões desenvolvimentistas nos conduzem, como argumenta Miró, a “um desenvolvimento económico transformador, focado na relocalização, na democratização e na transição ecossocial da economia” (p. 307)? Refreando imediatamente a sua convicção, o autor questiona: “como tornar possível, a partir de parcerias entre o setor público e as novas redes comunitárias de apoio mútuo, […] a construção transformadora de outro modelo económico?” (p. 307). Sendo esta a questão fundamental, ela foi objeto de uma apreciação aprofundada, nomeadamente no capítulo assinado por Razeto Migliaro, incentivando-nos a procurar as relações entre modos de produção e de consumo e as iniciativas de economia local, comunitária e solidária, para assim compreender os fracassos e as causas que explicam a resiliência da economia realmente existente, isto é, a economia de mercado produzida pelo capitalismo.

15Se o capitalismo está presente no livro, sendo referido quase três dezenas de vezes, o socialismo praticamente não foi convocado, não obstante o lugar relevante ocupado pelas utopias realistas no texto assinado por Bajoit. Tal é particularmente pertinente, se considerarmos que, como compreendeu Erich Unger, lembrado quase um século mais tarde por Michael Löwy, nada de substancial será realizado se não soubermos também agir fora do capitalismo para o superar. Deste modo, para “realizar alguma coisa contra o capitalismo é indispensável, antes de tudo, deixar [heraustreten] sua esfera de eficácia [Wirkungsbereich], porque, no interior dela, ele é capaz de absorver toda a ação contrária” (Unger apud Michael Löwy A jaula de aço: Max Weber e marxismo weberiano, 2014, p. 106). Obviamente, as alternativas locais, comunitárias e solidárias que percorrem todo o livro não se opõem ao socialismo.

16Não se trata aqui de encontrar uma qualquer terceira via entre a forma liberal‑capitalista e a forma social-estatista, como parece apontar Razeto Migliaro, mas sim de incorporar numa agenda política e social ecossocialista o firme compromisso com o decrescimento, quer dizer, uma orientação radical para a redução do consumo e de todas as atividades fundadas na utilização de combustíveis fósseis, fundamental para nos libertarmos das compulsões consumistas. Este decrescimento não implica viver pior mas antes viver de outro modo, a bem dizer, consumir menos para viver de modo mais convivial e solidário, enfim, feliz. Importa sublinhar que o socialismo, desde os textos fundadores de Marx e Engels, não se opõe a uma perspetiva radicalmente ecológica. Muito pelo contrário: não se confundindo com o que veio depois, nomeadamente as experiências do socialismo real da União Soviética e do Leste europeu, os contributos de Marx e Engels foram também pioneiros para a compreensão daquilo que os marxistas ecológicos designam como a segunda contradição do capitalismo, precisamente a contradição entre o carácter finito do planeta e a degradação ambiental contínua produzida pelo capitalismo.

17Apesar desta nota crítica, que deverá ser entendida principalmente como uma sugestão para os organizadores pensarem numa nova proposta editorial, estamos perante um livro indiscutivelmente oportuno. Como foi acima dito, o desenvolvimento é analisado a partir de baixo, do local, com uma leitura histórica muito detalhada e rigorosa, proporcionando ao leitor o acesso a casos concretos em diferentes geografias e trazendo ao debate experiências que procuram responder a urgências sociais através de soluções que recusam as lógicas mercantis e o próprio capitalismo.

18- Receção: 05.03.2023

19- Aprovação: 14.03.2023