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Vária | DEZ 2023

Entrelugar dos policiais músicos no âmbito da Sociologia das Profissões

The inter-place of police musicians in the context of the Sociology of Professions
L’entre-deux des policiers musiciens dans le contexte de la Sociologie des Professions
MARCO AURÉLIO DA CRUZ CORREA e LUCIANA TEIXEIRA DE ANDRADE
p. 103-126

Resumos

O campo da Sociologia das Profissões é bastante consolidado nas Ciências Sociais, mas algumas profissões receberam maior atenção do que outras. Os policiais militares, assim como os músicos, já foram contemplados, mas os músicos militares ainda carecem de mais estudos. O objetivo deste artigo é introduzir uma reflexão quanto ao lugar do profissional músico militar dentro dessa perspectiva teórica, especialmente no que se refere à questão identitária, por meio de revisão da literatura pertinente. Ser policial militar músico, como profissão, propicia reflexões que dizem respeito à constituição do sujeito dentro de dois universos profissionais e às peculiaridades da formação da sua identidade frente a esses dois mundos.

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Texto integral

Introdução

1Diversos estudos constataram que as profissões, como se delineiam hoje em dia, tiveram origem em um processo histórico relacionado às formas de organização do trabalho e às demandas sociais. Conforme as ocupações produtivas foram se especializando e manifestando identidades cada vez mais específicas, o conceito de profissão foi gradualmente se definindo. Nessa conjuntura, vem se desenvolvendo a abordagem de estudos da Sociologia das Profissões, que tem enfatizado, por meio da criação e remodelação de diferentes abordagens teórico-empíricas, a importância dos fatores de estruturação da sociedade vinculados à profissão.

2Ao longo do desenvolvimento do campo de estudos da Sociologia das Profissões, houve muito debate, inclusive, sobre os conceitos mais básicos envoltos no tema, como o conceito de profissão. Segundo Dubar e Tripier (1998), a profissão é formada por quatro perspectivas complementares: identidade profissional, especialização profissional, classificação profissional e posição profissional em uma organização. Ainda segundo os autores, a análise sociológica das profissões pode partir de três perspectivas: as formas históricas de organização social das atividades de trabalho; as formas históricas de identificação e de expressão de valores éticos; e as formas históricas de estruturação dos mercados de trabalho (Dubar e Tripier, 1998).

3Sobre a perspectiva da identidade profissional, muitos estudos têm se dedicado a explorar teórica e empiricamente tais implicações, sob a ótica de diversas profissões. Conforme Sainsanlieu (1995), as organizações podem moldar as atitudes e os comportamentos a ponto de compor a identidade profissional e social do indivíduo. Assim, o reconhecimento da identidade profissional do indivíduo depende do espaço em que ele atua, da natureza de suas relações de poder nesse espaço, do seu grupo e lugar de pertencimento. Com isso, os espaços de reconhecimento das identidades e de legitimação dos saberes e competências são inseparáveis (Dubar, 2005).

4Através do exercício profissional, os indivíduos constroem ativamente suas identidades. A identidade profissional, contudo, é o resultado de um jogo duplo em constante construção, que contempla o sujeito por si mesmo, o modo pelo qual ele se mostra aos outros e como ele é percebido pelos outros (Dubar, 2005). Considera-se, portanto, que a identidade é elemento constitutivo da realidade subjetiva e encontra-se em relação dialética com a sociedade (Berger e Luckmann, 2010). A carreira profissional se apresenta, nesse contexto, intrinsecamente relacionada às expectativas da sociedade no que se refere aos papéis sociais atribuídos aos sujeitos.

5Nessa conjuntura, percebe-se que alguns estudiosos têm buscado refletir sobre a identidade profissional dos policiais e dos militares em geral (Santos, 2016; Nascimento, Torres e Castro, 2015), assim como a identidade profissional dos músicos (Becker, 2009, 2010; Bartz, 2020; Campos, 2007). Ao revisar os trabalhos que tratam de ambos os grupos, percebe-se que tais profissões possuem expectativas quanto à identidade profissional quase que antagônicas, sendo o profissional militar amplamente avaliado quanto a todos os rígidos princípios norteadores de sua profissão, sua representação frente ao público e a mídia e o respeito quanto à sua atuação na sociedade, enquanto os músicos – quando inseridos no quesito de profissão e não de ocupação – sempre relatam a informalidade de sua atuação, a incerteza que rodeia o cotidiano do trabalho, além da invisibilidade da profissão como tal. Esta diferenciação se vê até mesmo quando comparamos o quantitativo de estudos disponíveis sobre as duas profissões.

6Este artigo pretende introduzir uma reflexão quanto ao profissional músico militar e como ele se insere na perspectiva da Sociologia das Profissões, especialmente quanto à questão identitária. Entende-se que ser policial militar músico, como profissão, propicia reflexões que, em uma análise sociológica, dizem respeito à constituição do sujeito dentro de dois universos profissionais e às peculiaridades da formação da sua identidade frente a esses dois mundos. Para tanto, realiza uma revisão bibliográfica sobre o campo de estudos da Sociologia das Profissões, bem como dos estudos clássicos e mais recentes que buscaram tratar dos aspectos identitários dos policiais e dos militares em geral, além dos músicos. A partir disso, analisa criticamente tal literatura com o objetivo de introduzir a problemática do lugar da profissão do policial músico. Essa problemática se baseia, para além da literatura em questão, na experiência pessoal do primeiro autor como analista na seção de Marketing e Cultura da Diretoria de Comunicação Organizacional, músico (violinista) e regente titular da Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais há 25 anos.

7Dessa forma, o artigo traz, inicialmente, um breve apanhado acerca do desenvolvimento da perspectiva da Sociologia das Profissões. Posteriormente, empreende uma revisão da literatura acerca da identidade profissional dos militares e dos músicos, para, enfim, trazer a concepção da atuação profissional do policial militar músico e apresentar questionamentos quanto à possibilidade de análise da identidade desse profissional.

1. O desenvolvimento da perspectiva da Sociologia das Profissões e suas controvérsias internas

8A literatura na área da Sociologia das Profissões tem procurado, desde os anos trinta do século XX, enfatizar a importância dos fatores de estruturação da sociedade vinculados à profissão. A ideia central tem sido desenvolver quadros teórico-metodológicos que permitam a análise dos processos pelos quais grupos sociais específicos se constituem como agentes de formação e formatação de determinados padrões de sociabilidade no mundo do trabalho (Barbosa, 1993).

9Esse campo de estudo teve uma evolução histórica que acompanhou as mudanças econômicas e sociais. Alguns autores (Macdonald, 1995; Dubar e Tripier, 1998; Gonçalves, 2007) apontam a possibilidade de se dividir esse percurso histórico em quatro fases ou períodos de análise: a primeira compreende as definições iniciais do campo de análise, entre meados de 1930 e 1960, especialmente por meio de estudos de cunho funcionalistas e interacionistas simbólicos; a segunda, desenvolvida até o final dos anos 1970, ocorreu como crítica às teses funcionalistas com a emergência de teorias revisionistas; nos anos 1980, deu-se a terceira fase, a partir da ampliação das perspectivas desenvolvidas na década anterior, com o auxílio de uma diversidade cada vez maior de quadros teórico-metodológicos. Essas novas perspectivas possibilitaram análises mais sistêmicas das profissões. A considerada quarta fase desenvolve-se desde os anos 1990, com o incremento da produção sociológica, dando ênfase às abordagens comparativas em meio aos fenômenos profissionais.

10Os britânicos Carr-Saunders e Wilson (1933) escreveram a obra apontada como fundadora da abordagem sociológica das profissões. Nela, os autores definem características particulares das profissões – em contraste com as ocupações – e defendem a ideia do profissionalismo como um sistema de valores fundamental para o funcionamento das sociedades capitalistas. Nessa perspectiva, a abordagem funcionalista produziu um complexo de esquemas classificatórios que separam as profissões do restante das ocupações, por meio de atributos específicos, como orientação vocacional, conhecimentos científicos e técnicos especializados, orientação das práticas profissionais por princípios éticos, dentre outros.

11A partir de tais esquemas classificatórios, surgiu, em meio à teoria funcionalista, a compreensão das profissões “como instrumentos de resposta às necessidades sociais que concorrem para a integração e coesão social nas sociedades capitalistas” (Gonçalves, 2007, p. 179). Essas teses objetivaram delimitar o campo de análise das profissões e definir a ideia de que a posse de conhecimentos científicos e técnicos e o ideal de serviço à coletividade são as principais fontes de legitimidade social das profissões e uma garantia da sua imprescindibilidade para as sociedades (Reader, 1966; Merton, 1982).

12A centralidade de estudos empiristas e a definição de atributos específicos das perspectivas funcionalistas geraram críticas face às dinâmicas globais do capitalismo. Os primeiros esforços de ruptura com o quadro funcionalista foram realizados pelos interacionistas simbólicos, com base na ideia de que as problemáticas sociológicas devem partir da análise de uma pluralidade de situações, resultantes de diferentes contextos sociais em que são exercidas as atividades laborais, e não de uma definição de profissão que parta de fatores individuais (Gonçalves, 2007).

13Para além dos interacionistas, a aqui considerada segunda fase no desenvolvimento da análise sociológica das profissões partiu de críticas neoweberianas e neomarxistas à perspectiva funcionalista. Tais críticas apontavam a desvalorização, por parte dos funcionalistas, dos contextos históricos e sociais que institucionalizam as profissões, bem como as relações e processos sociais que formam e transformam o fenômeno profissional nas sociedades capitalistas. Com a crise econômica dos anos 1970, essas teses ganharam ainda mais vigor. Sobre esta fase, destacam-se os trabalhos de Johnson (1972), de Larson (1977) e de Freidson (1978).

14Para Johnson (1972), as análises sobre as profissões devem se focar nas relações de poder entre o produtor de serviços profissionais e o cliente, de modo a compreender como o primeiro controla as relações com o segundo em seu benefício próprio. Isso porque o autor acreditava que o domínio dos conhecimentos especializados pelo profissional gera uma distância e uma relação de dependência do cliente perante o profissional, predominando o controle social em tais relações. As formas como o profissional exerce esses controles são determinadas pelos contextos históricos, em meio à evolução do capitalismo que, por sua vez, está atrelada aos processos de profissionalização.

15Larson (1977) argumentou que, nesse processo, as profissões chegaram a criar um monopólio legal sobre certos serviços, de modo a excluir os não profissionais. Esse monopólio era garantido pelo Estado, por meio da proteção jurídica das atividades, e se estendia a uma série de características específicas desses profissionais, como a exclusividade de formação em uma determinada área do conhecimento ou qualificação técnica. Junto com o fechamento cultural dos profissionais, tal monopólio gera o fechamento social da profissão, que seria o objetivo das profissões.

16Freidson (1978), por sua vez, viu a profissão como uma forma de organização do mercado de trabalho sustentada por três elementos fundamentais: a autonomia técnica, por meio do controle da natureza e da forma como é executado o trabalho; o monopólio de uma área de conhecimento especializado que sustenta essa autonomia; e o credencialismo, que limita o acesso à profissão apenas para aqueles que detêm credenciais ocupacionais ou institucionais.

17A terceira fase do desenvolvimento da análise da Sociologia das Profissões, durante os anos 1980, caracterizou-se pelo aprofundamento das teses sobre o poder e os monopólios profissionais vistas anteriormente e por uma nova perspectiva sistêmica sobre o fenômeno profissional. Destaca-se, nesse sentido, o trabalho de Abbott (1988), que quebra a tendência anterior de olhar para a estrutura das profissões e focaliza sua análise na natureza do trabalho dos profissionais com a intenção de perceber as práticas desses indivíduos, os modos como são mobilizados os conhecimentos produzidos nos espaços acadêmicos e as relações de conflito com outras profissões a partir das jurisdições específicas. Com isso, o autor formula uma abordagem ecológica sistêmica das dinâmicas profissionais, observando os conflitos entre profissões e, também, os procedimentos sociais para a resolução desses conflitos que atravessam o mundo profissional e seus aspectos históricos, sociais e culturais.

18Durante a quarta fase do desenvolvimento da Sociologia das Profissões, predomina a perspectiva comparativa em meio ao incremento da produção sociológica em geral. A reflexão sobre as profissões vem ganhando densidade conceitual e empírica a partir de uma diversidade de temáticas, de objetos empíricos, de abordagens teórico-metodológicas e com fortes diferenças conforme o país de estudo. As novas investigações admitem uma diversidade de conceitos de profissão que, contudo, concordam em alguns fatores orientadores como “referência a um domínio científico e correspondente posse de conhecimentos científicos e técnicos, obtidos após uma longa formação académica, autonomia profissional, identidade própria e associações de pares” (Gonçalves, 2007, p. 190).

19Dubar e Tripier (1998) forneceram uma definição de profissão formada por quatro perspectivas complementares: profissão como declaração (identidade profissional); profissão como métier (especialização profissional); profissão como emprego (classificação profissional); e profissão como função (posição profissional em uma organização). Ademais, os autores defendem a análise sociológica das profissões a partir de três perspectivas: as formas históricas de organização social das atividades de trabalho; as formas históricas de identificação e de expressão de valores éticos; e as formas históricas de estruturação dos mercados de trabalho (Dubar e Tripier, 1998). Apesar de muito amplas, tais perspectivas sintetizam as teses sócio-históricas sobre as profissões abordadas anteriormente; a partir da abordagem de Dubar e Tripier (1998), é possível fazer uma leitura sociológica consistente e fundamentada, focalizada na compreensão das dinâmicas profissionais.

2. A perspectiva identitária profissional dos militares

20A partir das quatro perspectivas propostas por Dubar e Tripier (1998), muitos estudiosos vêm focando seus trabalhos na investigação da profissão policial e militar em geral, analisando, especialmente, as nuances da construção da sua identidade profissional. Conforme Castro (1990) afirmou, ao estudar o fenômeno da construção da identidade militar, o desafio do pesquisador não é perceber “o que é”, mas sim, “como” se constitui.

21Ainda segundo Celso Castro (1990, p. 13), a bibliografia na área das Ciências Sociais sobre militares é enorme; contudo, “a maioria aborda antes o papel dos militares na política brasileira, principalmente nos momentos de intervenções armadas. Haveria, desse modo, uma tendência a se ‘politizar’ a instituição militar”. Conforme o autor, poucas pesquisas tratam a instituição militar como um objeto legítimo de análise por si mesmo (Castro, 1990). Nos últimos vinte anos, no entanto, com a expansão dos cursos nas áreas das Ciências Humanas e Sociais (e do acesso a eles), houve também um aumento no número de trabalhos que tratam, não somente da instituição militar, mas também dos seus possíveis impactos nas identidades dos sujeitos que a compõem.

22Celso Castro e Piero Leirner (2009) organizaram a primeira coletânea sobre estudos antropológicos dos militares no Brasil, que reúne artigos de pesquisadores de várias áreas das Ciências Humanas acerca de experiências de pesquisa etnográfica em instituições militares. A leitura dos artigos permite constatar um ponto comum entre os autores que colaboraram com a coletânea: a desconfiança dos militares com os pesquisadores acadêmicos. Ao destrincharem os motivos de tal desconfiança, os autores a interpretaram como resultado de diferentes fatores. Alguns se basearam em uma perspectiva política, que tinha como referência as experiências ditatoriais do Brasil e da Argentina, que implicariam em um conflito entre os acadêmicos, hipotéticos representantes da “esquerda”, e os militares, supostos sucessores da tradição “anticomunista”. Dessa forma, a presença dos pesquisadores era vista como perigosa pelos militares, uma vez que eles acreditavam que, provavelmente, as pesquisas partiriam de um viés subversivo. Outro motivo de desconfiança apontado foi uma tendência dos militares em tentar manter os assuntos da instituição como somente de interesse interno. Isso foi identificado como um reflexo do que os autores denominam “espírito militar” – o ethos de disciplina que acompanha uma maior formalidade e um sentimento de maior proximidade com aqueles que estão inseridos na corporação, em detrimento daqueles que são “externos”.

23Ainda na mesma coletânea, outra situação que a maioria dos pesquisadores encontrou em campo, conforme relatos, foi referente à preocupação que a corporação militar tem com sua imagem – o que gerou algumas tentativas de “dissuasão” em meio ao processo de pesquisa. Souza (2009) relatou que, na fase em que tentava conseguir autorização para a realização de pesquisa, sentiu que os militares tentavam “despistá-lo”. Albertini (2009) narrou a mesma sensação, em mais de uma instituição militar. Chinelli (2009, p. 85), por sua vez, percebeu que não teve as mesmas dificuldades, pois conseguiu ser vista como um “canal para dar voz à Força como parte da construção de uma nova e boa imagem do Exército”, segundo um oficial do Centro de Comunicação Social do Exército. Essa autora, contudo, não desenvolveu sua pesquisa na caserna, mas nas casas de militares, tendo como referência as esposas deles. Chinelli (2009) concluiu que o espírito militar se estendia para as famílias dos sujeitos e, por isso, as esposas se comprometiam com a carreira dos maridos e com a imagem externa do Exército. Por meio desse resultado, é possível perceber que os traços dessa identidade profissional repercutem não só dentro da organização, como em outros campos sociais, como o familiar.

24Outra característica invariável notada pelos autores do livro foi a existência de pelo menos duas modulações antagônicas operando como estruturantes do universo dos militares: as noções de “civil/militar” e de “inimigo/amigo”. O primeiro caso, observado por Chinelli (2009) e por Castro (2009), indicou que a identidade militar é totalizante, de modo que se tornar militar é deixar de ser civil e, depois de militar, não se volta a ser civil, no máximo, transita-se à paisana nesse mundo. Foi observado ainda que a lógica do “tornar-se militar” é fortemente implementada nas instituições de formação de oficiais. Em suma, as experiências apresentadas na coletânea de Castro e Leirner (2009) indicam que os militares, na condição de interlocutores de pesquisa, sempre classificam os pesquisadores em uma das posições apontadas (civil ou militar).

25Santos (2016) analisou como as lógicas institucionais orientam a construção da identidade profissional do policial militar, por meio de entrevistas com integrantes da Polícia Militar do Paraná (PMPR). Além disso, realizou análise de conteúdo de documentos internos do Comando-Geral da PMPR e concluiu que a construção da identidade profissional dos sujeitos passava por uma orientação institucional, corporificada em práticas, atributos de identidade e objetos, e compreendeu que a historicidade é um fator importante nesse processo de incorporação das lógicas institucionais pelos sujeitos (Santos, 2016).

26Em meio à pesquisa de campo, Santos (2016) notou que, mesmo antes de adentrar à Corporação, os indivíduos já possuíam traços de “veneração” pela carreira militar advindos de alguma experiência pessoal anterior. Além disso, ainda no processo de formação policial, o indivíduo tem seu cotidiano e suas relações sociais alterados para se adequar à rotina rígida demandada. Uma das consequências desse intenso processo é a construção de uma nova identidade, que se ajusta ao que o ambiente exige, por meio das novas relações sociais que ali são estabelecidas. Identificou-se, em síntese, que as lógicas organizacionais da corporação são as que impactam mais fortemente no processo de construção da identidade profissional do policial militar, especialmente aquelas ligadas à estrutura hierárquica militar e às questões que envolvem o princípio da disciplina na corporação (Santos, 2016).

27Takahashi (2002) analisou em sua tese de doutorado o processo de construção da identidade social de cadetes da Academia da Força Aérea Brasileira, a partir de um acompanhamento longitudinal da formação de oficiais durante cinco anos. A autora percebeu que os processos de socialização no contexto da Academia da Força Aérea eram afetados por realidades objetivas e subjetivas, que tinham implicações no controle da conduta exercido pela instituição por meio do estabelecimento de padrões previamente definidos – no caso da academia,

principalmente a disciplina, retidão de caráter e força moral, condicionamento físico, apresentação pessoal, camaradagem, firmeza de atitudes, estabilidade emocional, tenacidade, capacidade de liderança, de organização e comunicação. Tais padrões de conduta são reforçados por mecanismos de sanções como as punições em suas diferentes graduações, os corretivos, as fichas de observação, e as fichas de conceito horizontal e vertical. (Takahashi, 2002, p. 241)

28É interessante perceber ainda que os cadetes no 4.º ano de curso relataram que acabam assimilando a disciplina inconscientemente. Takahashi (2002) notou que, durante todo o processo de formação na Academia, os cadetes assumem uma multiplicidade de papéis, moldados especialmente pelos princípios da hierarquia e da disciplina:

Os cadetes podem vivenciar uma multiplicidade de papéis no decorrer de sua formação na Academia, de acordo com o sentimento de pertença a determinados grupos – esquadrão, Quadros, equipes esportivas, mulheres, Estado Maior, Cadeia de Comando, Conselho de Honra, SCAer, grupo de teatro, de voo a vela, bandas, etc., com as características próprias – filhos de militares, religião, gênero, classe social, etc., através de um processo que implica em comparações e diferenciações sociais. (Takahashi, 2002, p. 250)

29A mesma autora concebeu que, uma vez que a tipificação das ações de um indivíduo e de outros implica em padrões de conduta, os papéis assumidos pelos cadetes, por meio de um processo de comparação entre semelhanças e diferenças, são o resultado da institucionalização da conduta e geram uma espécie de categorização social. A autora conclui que todos esses papéis vivenciados pelos cadetes – por meio da comparação ou contraste no interior dos próprios grupos e entre grupos – formam as múltiplas identidades que aqueles vivenciam no processo de formação na Academia. Todavia, a comparação e diferenciação fundamental a todos emerge da identidade militar, embasada na oposição entre militares e civis (Takahashi, 2002).

30Em concordância com os estudos de Takahashi, está a teoria da hierarquia militar de Leirner (1997), a qual afirma que é possível perceber que os pilares da organização militar – disciplina e hierarquia – funcionam como categorizações sociais que refletem em uma série de atributos constituídos pelas práticas que definem o militarismo a partir de obrigações, direitos e deveres. Com isso, o autor considera a disciplina como o instrumento de sobreposição de uma “vontade coletiva” à vontade individual em instituições militares, de forma que ela seria o eixo de ligação e de união entre os militares.

31Conforme Leirner (1997), a hierarquia seria o elemento que possibilitaria o conhecimento das diferenças, pois, ao mesmo tempo em que une, também legitima as desigualdades entre os “iguais”. Contudo, o autor afirma que a hierarquia militar não é apenas um princípio de segmentação escalonada que determina as possibilidades e limitações de cada um de acordo com seu posto, mas é também um fator de complexidade, uma vez que permeia as relações e configura várias dimensões correspondentes a esta segmentação.

32A partir desta revisão de literatura, nota-se que a identidade profissional dos militares, em geral, tem recebido grande atenção dos pesquisadores, ao ponto de incitar uma ciência própria. Como visto, nessas profissões, parece que os princípios aprendidos em meio ao seu processo de formação são fundamentalmente norteadores da identidade dos profissionais. Além disso, a própria organização estrutural das instituições militares é refletida nos papéis assumidos por esses profissionais e tomados como um importante condicionador de suas identidades, de forma que os indivíduos moldam sua identidade conforme o papel assumido em cada posto hierárquico militar.

3. A perspectiva identitária profissional dos músicos

33Observando as questões em voga no campo de estudos da Sociologia das Profissões, nota-se que tratar do profissional músico pode representar uma tarefa mais complexa. Teóricos como Freidson (1986) não reconhecem os músicos como profissão, devido às questões envoltas na proletarização desse trabalho. Segundo essa perspectiva, tal trabalho se aproximaria mais de uma ‘ocupação’. Similarmente, Bain e Mclean (2013) entendem que a profissão do músico não é formada por um conjunto de requisitos, mas sim por um processo de produção contínua que pode, incialmente, ser entendido como ocupação e, apenas posteriormente, ganhar status de profissão.

34A Sociologia das Profissões é sustentada por modelos analíticos com concepções distintas sobre o processo de profissionalização. Ela se baseia, no entanto, em dois eixos principais: “(i) a coesão ou unicidade interna das profissões e (ii) a delimitação e posicionamento dos grupos de profissões” (Barbosa, 1993, p. 32). Compreendendo as diferentes normativas segundo os países, no contexto brasileiro, a Lei 3.857, de 22 de dezembro de 1960, estabelece no seu artigo 29 quem é considerado músico para fins da lei:

Artigo 29. Os músicos profissionais, para os efeitos desta lei, se classificam em:

a) compositores de música erudita ou popular;

b) regentes de Orquestras Sinfônicas, óperas, bailados, operetas, orquestras mistas, de salão, ciganas, jazz, jazz-sinfônico, conjunto corais e bandas de música;

c) diretores de orquestras ou conjuntos populares;

d) instrumentistas de todos os gêneros e especialidades;

e) cantores de todos os gêneros e especialidades;

f) professores particulares de música;

g) diretores das cenas líricas;

h) arranjadores e orquestradores;

i) copistas de música.

35A Lei estabelece que, para o exercício da atividade musical, não é necessária uma formação universitária, mas é preciso possuir habilidades específicas e cumprir alguns requisitos de capacidade técnica, definidos no seu artigo 28: aos diplomados na Escola Nacional de Música; em conservatórios, escolas ou institutos estrangeiros de música; aos músicos de qualquer gênero que estejam em exercício de atividade comprovada na publicação da lei; dentre outros. Tendo em vista a não necessidade de uma formação universitária, mas a existência de habilidades específicas, tem-se o debate acerca da consideração do músico como uma profissão propriamente dita (atividade exercida por um profissional habilitado por um órgão competente) ou uma ocupação (desenvolvimento de habilidades específicas relativas ao trabalho do dia a dia e suas atribuições).

36Essa falta de consenso quanto à atividade do músico como profissão, dentre outras críticas, repercute nas poucas pesquisas sobre o tema na sociologia das ocupações e profissões ou mesmo na dimensão mais ampla de uma sociologia do trabalho. Um dos primeiros e mais conhecidos trabalhos foi realizado por Howard Becker (2009, 2010). O sociólogo, que também era pianista profissional, analisou o trabalho de músicos de jazz em casas noturnas de Chicago, nos anos 1940. O foco da pesquisa foi observar as interações entre os músicos e sua plateia para compreender as avaliações e juízos feitos pelos clientes com relação à performance dos músicos.

37Destaca-se, dentre as reflexões de Becker (2010), a questão da autoridade justificada por uma expertise do profissional, que geralmente é reconhecida e valorizada pelos clientes, bem como a importância de se analisar a rede de relações e convenções que envolve o trabalho dos músicos, tais como técnicos de som e iluminação, afinadores, proprietários de estabelecimentos, etc. Essa rede de convenções que articula o mundo da música é essencial em uma investigação sociológica acerca dos músicos e de sua linguagem de comunicação.

38Pierre-Michel Menger (2001 APUD Nunes e Mello, 2011) realizou esforço similar, olhando para os músicos eruditos na França. Assim como Becker, o autor identificou o aspecto marcante da rede de convenções nesse contexto; contudo, acrescentou ainda a importância da rede que interliga os trabalhadores que operam as diversas atividades relacionadas à produção musical, os consumidores e apreciadores e ainda o Estado, responsável pelos mecanismos de fomento.

39Menger (2002) relatou também muitos fatores de instabilidade da profissão do músico. Apontou as questões de um regime de emprego hiperflexível e os desafios de um trabalho, em sua maioria, não assalariado, em um contexto de incerteza econômica e alta competitividade no interior da própria categoria. Dentre os músicos de orquestra, Menger (2002) notou que há um grande percentual daqueles que combinam atividades profissionais por questão de sobrevivência, de modo que a maioria toca, não apenas em orquestras, mas também em bandas, apresentando-se em salas de concerto, bares e restaurantes, sendo ainda professores de música e empresários de si mesmos.

40Campos (2007) traz também a importante reflexão sobre como os músicos se tornam músicos, como se iniciam e se envolvem no meio musical. Trata-se de uma indagação relevante quando o que se investiga é o processo de construção de uma identidade profissional. No caso dos músicos, a aquisição de competências musicais é condição necessária, mas os espaços dessa aprendizagem podem ser muito diferenciados:

desde contextos informais, como o autodidactismo e os grupos de amigos, geralmente assentes numa transmissão oral de conhecimentos baseada nas competências do chamado ouvido, e mais ou menos complementada por manuais de iniciação, a contextos de aprendizagem fortemente formalizados, que permitem obter certificações diplomadas, e que não dispensam o conhecimento teórico dos códigos musicais e a sua transposição para uma notação escrita. Em qualquer caso, importa sublinhar que ser músico não decorre apenas de uma competência técnica. É necessário fazer parte de uma rede de relações sociais para que tenham lugar os processos de iniciação, primeiro, e os processos de aquisição de competências musicais e eventual profissionalização, depois. (Campos, 2007, p. 88)

41Dessa forma, o autor sublinha a frequente importância dos contextos sociofamiliares de origem na iniciação musical e, possivelmente, nas circunstâncias determinantes da profissionalização do músico, bem como da sua continuidade nesse meio (Campos, 2007). Tais questões, porém, ainda necessitam de mais estudos.

42Um dos conceitos mais marcantes dentre os estudos sobre a identidade profissional dos músicos é o de outsider, formulado por Becker (2009) em sua teoria sociológica do desvio. O autor partiu do argumento de Hughes (1958) de que, no decorrer de sua carreira, o indivíduo desempenha uma sequência de papéis sociais que possibilitam a integração social necessária para a construção de sua identidade. Nesse ambiente, há um constante processo de rotulação e julgamento, nos quais determinados papéis sociais são considerados como “normais” ou outsiders. Dessa forma, segundo Becker (2009, p. 27), os outsiders são “aquelas pessoas que são consideradas desviantes por outras, situando-se, por isso, fora do círculo dos membros ‘normais’ do grupo”. Isto é, alguém que foge às regras sociais estabelecidas pelo grupo por meio de seu comportamento.

43Nas relações de poder presentes na sociedade, as classes hegemônicas definem regras e normas acerca daquilo que é considerado normal ou usual (Becker, 2009). A partir dessas classificações, grupos ou indivíduos podem vir a ser rotulados como desviantes, ou seja, outsiders. Becker (2009) afirma que a carreira desviante do músico não é rotulada igual à de um delinquente ou criminoso, mas é, ainda assim, um comportamento comumente não aceito perante a sociedade. Isso porque tal profissão sofre com um estigma forte criado pela preconcepção sobre algumas características, como, por exemplo, os horários de trabalho atípicos, o que carrega consigo aspectos da “vida noturna”, como o contato com os usuários de drogas que frequentam os estabelecimentos noturnos, as brigas noturnas e o contato próximo com as relações de promiscuidade (Goffman, 1988; Becker, 2009). Todas essas características da profissão dos músicos fazem com que:

a identidade desse profissional seja cada vez mais rotulada como desviante pelo “outro”. A identidade “Eu” do músico é construída na relação com a identidade “Outro”, e as identidades “Eu” e “Outro” se determinam mutuamente, e é a partir do frame do trabalho do músico que o profissional constrói o seu self, portanto, em determinadas situações de trabalho os músicos podem agir de determinadas maneiras, que em outros espaços das suas vidas não agiriam. (Ferreira, 2018, p. 9)

44Os músicos de casas noturnas, portanto, desenvolvem rotinas desviantes e se percebem como diferentes, pois, “embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade” (Becker, 2009, p. 89). Becker (2009, p. 168), contudo, conclui que é preciso ver o desvio e os outsiders “como uma consequência de um processo de interação entre pessoas, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras”. Assim, as mesmas classes hegemônicas, “a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes”.

45Por outro lado, e mais recentemente, Bartz (2020) buscou refletir sobre a identidade profissional de músicos de orquestra a partir das questões de flexibilização trabalhista, por meio de etnografia realizada em 2017 com os instrumentistas da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (OCTSP), de Porto Alegre. O pesquisador notou que todos os músicos entrevistados desenvolviam atividades musicais paralelas às da orquestra e se submetiam a condições laborais marcadas pela flexibilidade, instabilidade, informalidade e precarização. Conforme Bartz (2020, p. 7), naquele ambiente, além de músicos de orquestra, havia “professores de música, músicos de eventos (casamentos, formaturas, aniversários, homenagens, funerais), recitalistas e concertistas, estudantes de música etc.”, e esses profissionais não ampliavam sua atuação por vontade própria, mas sim devido à necessidade econômica de complementar sua renda: “eram obrigados a agir assim a fim de poderem continuar atuando como músicos” (Bartz, 2020, p. 7).

46O autor concluiu que essa situação, presente entre os entrevistados, trazia sérias consequências para as carreiras e para as concepções acerca do que é “ser músico”, tais como um sentimento de incerteza e insegurança permanente. Isso porque a diversidade de tarefas desempenhadas por eles e os múltiplos pertencimentos laborais enfraqueciam seu senso de identidade profissional e dificultavam a especialização e a noção de integridade e coesão identitária (Bartz, 2020).

47A situação dos músicos de orquestra apontada por Bartz (2020) já fora observada por outros autores, como visto (Becker, 2009, 2010; Menger, 2001 APUD Nunes e Mello, 2011; Menger, 2002), o que possibilita a reflexão acerca daquilo que se alterou e do que se manteve inalterado desde o estudo pioneiro de Becker. Ao que parece, os músicos seguem tendo uma carreira bastante instável. Dessa forma, pode-se refletir sobre a questão profissional dos músicos em termos dos aspectos de continuidades e rupturas nas trajetórias de carreira descritas por Dubar (2005), em que a instabilidade é mostrada como uma característica marcante da profissão do músico em diversos contextos. Isso, em conjunto às recentes transformações do mundo do trabalho – que são cada vez mais flexíveis –, reflete uma situação na qual as rupturas estão tornando-se cada vez mais presentes nas trajetórias profissionais, em detrimento das continuidades.

48Em síntese, é possível depreender que a situação profissional dos músicos é fundamentalmente diferente da dos policiais e militares em geral. A próxima seção introduz o caso dos policiais militares músicos com o objetivo de lançar o questionamento acerca da união dessas identidades.

4. O entrelugar dos policiais militares músicos

49Bandas de música militares são encontradas por todo o mundo. Na história brasileira, “evidências sugerem que as bandas de música foram introduzidas no exército luso-brasileiro na passagem do século XVIII para o XIX, como parte de uma cultura aristocrática na qual se inscrevia a oficialidade” (Binder, 2006, p. 10). A partir de 1840, bandas militares se tornaram mais comuns, “devido à expansão do exército e pelo surgimento de outras corporações militares, como a Guarda Nacional e as Polícias Militares provinciais, que também equiparam seus quadros com bandas de música” (Binder, 2006, p. 10).

50Entende-se que os policiais músicos sempre desempenharam um papel relevante, que não diz respeito unicamente à música como meio de comunicação em batalha, mas também como elemento psicológico, tanto animando as tropas como atemorizando os inimigos. Duarte (1981) afirma que, na guerra do Paraguai, as bandas tocavam durante o combate, protegidas dentro de uma formação tática quadrangular: “a banda de música tocava dentro do quadrado [tático], enquanto durasse o fogo [tiroteio]; tanto o toque de fogo, como o de cessar fogo seriam dados por todos os corneteiros e tambores” (Duarte, 1981, pp. 155-156). Essa forma de emprego da agremiação musical indica que sua atuação não era operacional, mas sim de retaguarda, para produção de reforço da cultura belicista e garantia psicológica da prevalência dos valores culturais militares para que a tropa se sentisse psicologicamente mais forte para perseverar no combate e sobrepujar as dificuldades encontradas no enfrentamento do adversário.

51Atualmente, diversas instituições militares possuem suas agremiações musicais, que vêm expandindo sua atuação e seus objetivos ao longo dos últimos anos. Para os fins deste trabalho, parte-se do caso dos policiais músicos da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), para melhor detalhar as características e fatores associados a esses profissionais, possibilitando uma melhor análise.

52A Polícia Militar de Minas Gerais conta, atualmente, com vinte bandas militares marciais, uma banda de baile, uma orquestra sinfônica e um quadro de corneteiros, distribuídos por todo o território mineiro. A Lei 5.301, de 16 de outubro de 1969, do estado estabelece que:

Art. 6.º-B – Para ingresso nos Quadros de Praças e de Praças Especialistas da Polícia Militar é exigido o nível superior de escolaridade, obtido em curso realizado em estabelecimento reconhecido pelo sistema de ensino federal, estadual ou do Distrito Federal, em área de concentração definida em edital, sem prejuízo do disposto no § 4.º do art.º 13.º [sublinhado nosso].

53Para fazer parte da categoria de músico da PMMG, o candidato ou candidata deve participar no concurso público para o Curso de Formação de Soldados do Quadro de Praças Especialistas (QPE) da PMMG. O processo seletivo, geralmente, envolve parâmetros como provas de conhecimentos, prova de redação, prova prática da especialidade, Exames Psicológicos, Exames de Saúde, Teste de Capacitação Física e Exame Toxicológico. Importante ressaltar que o candidato deverá comprovar, na fase de conhecimentos, que possui certo grau de conhecimento musical prévio.

54Após a aprovação em todas as fases do concurso, o candidato torna-se aluno e recebe o título de soldado de 2.ª Classe. Nessa fase, o objetivo é a formação do Soldado de 1.ª Classe do Quadro de Praças Especialistas, capacitando-o para o exercício de sua função específica como músico policial militar, bem como para o exercício da atividade-fim da Corporação que é o policiamento ostensivo.

55Durante o período de formação, o aluno tem diversos tipos de aulas como defesa pessoal policial, tiro, armamento e equipamentos policiais, comunicação organizacional, história da PM, dentre outras. Nesse momento, há pouca atividade musical, pois a ênfase inicial é formar operadores de segurança pública. Passado o período de treinamento e do curso, o Soldado de 2.ª Classe será promovido a Soldado de 1.ª Classe.

56Além das atribuições gerais, no âmbito da segurança pública, o soldado especialista deve realizar ações particulares de sua especialidade. No caso do especialista músico, ele deverá, por exemplo: participar de ensaios, gravações e apresentações musicais nas agremiações musicais da PMMG, como executante e/ou solista; proferir palestras, aulas e outras atividades desenvolvidas pela PMMG com envolvimento da atividade musical; colaborar em programas culturais, sociais e outros inerentes à atividade de músico.

57Hoje, no quadro de especialista músico da PM, o profissional começa como soldado e, posteriormente, é realizado um concurso interno para o cargo de Terceiro Sargento. Depois de um tempo de aproximadamente cinco anos de formado como sargento, o militar faz uma prova interna para a graduação de Segundo Sargento. Com mais seis anos, é possível realizar um curso interno, o qual possibilita a posição de Primeiro Sargento. Passados mais sete anos, pode-se realizar uma prova interna para ocupar o cargo de Subtenente – que é o cargo máximo, como praça, que o músico pode chegar na ativa. Outra opção é o curso de habilitação de oficiais/curso superior de tecnologia de gestão em segurança pública, que é destinado aos subtenentes, primeiros sargentos e segundos sargentos com, no mínimo, 15 anos e, no máximo, 24 anos de efetivo serviço na Instituição Militar Estadual, completados até à data da matrícula no curso, para o desempenho do cargo de Oficial Especialista (maestro).

58A compreensão da lógica hierárquica da Polícia Militar é importante para a localização e melhor entendimento da situação dos músicos nessa instituição. De modo geral, a estrutura hierárquica militar é equivalente à presente nas Forças Armadas e Bombeiros Militares. Para além dessas, a PM conta com a especificidade do quadro de especialistas, ou seja, todos aqueles que desenvolvem alguma especialização técnica. Nesse sentido, existem especialistas em diversas áreas, como medicina, mecânica, comunicação, música, tecnologia, dentre outras.

59Ao observarmos o caso dos técnicos músicos na prática em conjunto, não existe a lógica hierárquica militar, mas uma lógica conforme à hierarquia técnica musical. Não é necessário, portanto, ser um subtenente para ser o Spalla da Orquestra, por exemplo. No caso da regência do grupo, entretanto, o maestro será sempre o mais antigo na instituição (função geralmente desempenhada por oficiais). Depreende-se, nessa condição, que a hierarquia militar acaba se unindo à musical.

60Os ensaios constituem parte necessária do cotidiano dos especialistas músicos, dada a complexidade exigida nesse tipo de performance. Além da prática individual, de fundamental importância, o músico também deve aprender a desempenhar o seu papel em conjunto e tornar-se apto a contribuir musicalmente para o grupo do qual fará parte. O domínio desses aspectos só é possível por meio dos ensaios, nos quais os músicos se empenharão em coordenar entre si uma vastíssima gama de procedimentos musicais complexos, além de aprender a se concentrar nos sinais não verbais que são emanados do regente (maestro). Desse modo, a performance musical deve ser precedida de vários anos de aprendizagem (sensório-motora, intelectual, estética, etc.) e de estudo (prática deliberada), para que o músico possa dominar todos os elementos necessários para uma performance de alto nível.

61Em meio ao expediente de serviço exercido pelos militares músicos da PMMG, para além das atividades administrativas rotineiras e dos ensaios musicais, há também necessidade de aprendizado sobre o alinhamento entre o cenário musical e o contexto militar, pois existem posturas e certos comportamentos exigidos. As produções de solenidades, geralmente, são apresentadas em formato de desfiles; portanto, o militar músico necessita ter uma resistência técnica instrumental, corporal e psicológica para estar preparado em todas as ocasiões, seja em áreas internas, seja externas. Por esse motivo, a especialidade de policial músico recebe treinamento físico similar à preparação de um atleta.

62A instituição entende que os treinamentos são imprescindíveis aos militares músicos para elevar a qualidade técnica. Com isso, o estudo individual, o treinamento de grupos e os tipos de ensaios necessitam ter uma organização, planejamento, disciplina e frequência desejada. Entretanto, busca-se também a distribuição equilibrada das horas trabalhadas pelo militar músico, entre empenho operacional e estudo/treinamento/apresentação musical, bem como a manutenção do repertório para o alcance de sua melhor performance ante a necessidade de atualização das atividades policiais. Isso porque os militares especialistas poderão ser aproveitados na atividade-fim das instituições militares estaduais em circunstâncias especiais ou extraordinárias. Assim, o policial militar músico poderá atuar em várias frentes.

63Para além das estratégias de prevenção à criminalidade, as agremiações musicais da PMMG têm como objetivo institucional construir uma Polícia Militar contemporânea que busque, sobretudo, atender as demandas de acesso à informação e de atendimento ao cidadão, em consonância aos objetivos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), instituído pela Lei 11.530, de 25 de outubro de 2007. Isso se dá por meio do desenvolvimento de práticas modernas de comunicação social no âmbito institucional. Assim, as agremiações musicais intentam estreitar a comunicação entre a PMMG e os cidadãos. Também são consideradas estratégias de prevenção correspondentes com os portfólios da filosofia do policiamento comunitário e do plano estratégico da instituição, uma vez que a música desempenha um papel social importante.

64Diante do exposto, observa-se que a atuação das bandas militares apresenta repercussões internas – para os profissionais músicos, mas também para outros militares e pertinentes ao funcionamento da instituição –, assim como reverbera na relação da polícia com as comunidades e nas próprias comunidades individualmente, a partir de uma atuação preventiva.

65Ao observar a profissão de policial músico, nota-se que os músicos militares estão inseridos em um contexto de ambiguidades e desafios, pois eles esbarram na dicotomia de trabalhar em uma atividade que tem como foco a repressão, a preservação da ordem pública e o fomento aos laços sociais por meio da música. Trata-se, dessa maneira, de uma atividade que exige um esforço no processo de construção de sua identidade.

66Ademais, para ser um policial militar músico, é exigido do indivíduo uma formação técnica superior – como pressupõe a conceitualização comum de profissão, segundo a perspectiva da Sociologia das Profissões, em sua maioria –, mas também um conhecimento musical prévio, o qual não necessita ter sido adquirido via escolarização formal. Tais experiências acabam por motivar uma reflexão em torno da identidade profissional desses sujeitos e faz indagar: como esse profissional pode ser situado em meio à Sociologia das Profissões? A identidade de policial militar, mais consolidada socialmente, sobrepõe-se à do músico? Existe uma tensão entre ser militar e ser músico? Tais questionamentos demandam estudos mais aprofundados.

67

Considerações Finais

68Estudos que partem da perspectiva da Sociologia das Profissões constataram que a identidade policial se forma na sua estrutura organizacional, por meio de um sistema dotado de crenças, valores e percepções, construídos a partir das experiências concretas e diárias. As atitudes, os comportamentos, as relações sociais e os sentimentos vivenciados por um policial compõem seu conhecimento a respeito da sua realidade profissional, um conhecimento que é compartilhado e modificado dentro do grupo de convivência (Moscovici, 2001). Desse modo, percebe-se que as instituições têm um papel fundamental na formação da identidade profissional, pois a forma de pensar e de ser dos profissionais se define dentro desse meio. No caso do policial músico, a formação identitária pode ser ainda mais complexa por unir dois aspectos profissionais em um mesmo cargo, aspectos que podem ser, inclusive, conflitantes. Isso porque a polícia, como profissão, é pautada por um estreito conjunto de valores e crenças que lhe confere uma importante dimensão simbólica comum dentro da organização policial. “O sentido da profissão policial ou da profissionalização da polícia por meio da formação faz parte de um processo social para lhes atribuir poder, legitimidade e prestígio para atuar como força de segurança pública” (Alcântara, 2017, p. 72).

69Ao se pensar a profissão policial, é fundamental pensar no processo de identificação social e no contato que a polícia estabelece com a sociedade. Tal contato é feito com o objetivo de promover o sentimento de segurança, por meio de uma constante atualização de conduta, de acordos e de mudanças nas legislações que norteiam o “fazer policial”, regido pela missão de “servir e proteger” a população.

70Por outro lado, a profissão de músico não demanda um conjunto de requisitos prescritos. Geralmente, ela é entendida, em um primeiro momento, como ocupação, e só posteriormente ganha status de profissão (Pavalko, 1971). A irregularidade, a inconstância e a informalidade presentes no trabalho musical, com atuação em horários atípicos, aliadas ao reconhecimento tardio da profissão do músico no Brasil (em 22 de dezembro de 1964) e ao não consenso sobre a categorização da profissão do músico, trazem dificuldades para se estudar o trabalho do músico no país, além de gerar impactos no imaginário popular acerca de tais profissionais.

71Essa dicotomia suscita uma reflexão acerca das interpretações de diferenças ou de semelhanças entre indivíduos e grupos e, consequentemente, sobre suas identidades. Entende-se que as profissões de policial e de músico possuem expectativas quanto à identidade profissional quase que antagônicas, que, no entanto, unem-se no caso dos policiais militares músicos – o que, possivelmente, impacta nas identidades profissionais desses sujeitos.

72Observa-se que o lugar da atuação do policial músico é uma atividade que carrega consigo suas contradições. Ao mesmo tempo que está associada a uma atividade de repressão por ser policial, também traz elementos de conexão. Observa-se que a música desempenha um papel importante nesse sentido, sobretudo pelo que ela representa no imaginário coletivo.

73Se a identidade profissional é parte de um processo complexo e dinâmico, no qual os indivíduos podem recusar uma identificação e transitar por outras, bem como alterar sua identidade conforme transformações nos grupos de referência e de pertença aos quais estão ligados (Bauer, 2004), entende-se que a construção da identidade profissional depende do reconhecimento formal e também dos reconhecimentos cotidianos de adequação dessa profissão e sua prática. Observa-se, portanto, que, no âmbito da Sociologia das Profissões, a atividade do policial músico ainda carece de maiores pesquisas e investigações, sobretudo para compreender as fronteiras que limitam até onde vai o músico, até onde vai o policial na construção específica dessa identidade. Acredita-se que pesquisas nesse sentido podem contribuir significativamente para o campo de estudos sobre identidade profissional.

- Receção: 04.08.2021

- Aprovação: 21.12.2021

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

MARCO AURÉLIO DA CRUZ CORREA e LUCIANA TEIXEIRA DE ANDRADE, «Entrelugar dos policiais músicos no âmbito da Sociologia das Profissões »Configurações, 32 | -1, 103-126.

Referência eletrónica

MARCO AURÉLIO DA CRUZ CORREA e LUCIANA TEIXEIRA DE ANDRADE, «Entrelugar dos policiais músicos no âmbito da Sociologia das Profissões »Configurações [Online], 32 | 2023, posto online no dia 07 dezembro 2023, consultado o 01 novembro 2024. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/19756; DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.19756

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Autores

MARCO AURÉLIO DA CRUZ CORREA

Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais(PUC-Minas)

Regente Titular da Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG)

coreliviola@gmail.com

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-6485-5516

LUCIANA TEIXEIRA DE ANDRADE

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)

lucianatandrade1@gmail.com

ORCID ID: https://orcid.org/

0000-0001-6137-1268

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