1Os autores da recensão tiveram o privilégio de apresentar, primeiro na Universidade do Algarve (por João Filipe Marques) e, alguns dias mais tarde, na Universidade do Minho (por Fernando Bessa Ribeiro), o livro de Elísio Estanque. Estes encontros, nos extremos geográficos do país, foram momentos muito participados de sociologia pública. Se quisermos ser fiéis aos argumentos de Michael Burawoy, esta implica não só o diálogo com os alunos mas também o envolvimento dos cientistas sociais nos debates travados fora do campo académico. Inseparável do que o sociólogo norte‑americano designa por critical sociology, os que alinham por esta forma de produção de conhecimento sociológico ambicionam evidenciar que o mundo não tem de ser como é, contribuindo assim para a desestabilização da “inevitabilidade do presente” (Burawoy - “Public sociologies: contradictions, dilemmas and possibilities”. Social Forces, 82:4 (2004) 1-16). A recensão que agora se apresenta é o resultado da convergência dos textos que serviram de suporte às duas apresentações.

2Os livros têm um autor. Também porque o seu trajeto de vida nos diz muito sobre os interesses de investigação e, neste caso, sobre a prática da sociologia pública, é relevante começar por situar Elísio Estanque no espaço e no tempo: nascido em Aljustrel, mais concretamente em Rio de Moinhos, estudou na sua terra natal mas também em Faro e em Lisboa. Foi, desde muito cedo, trabalhador-estudante, e essa condição parece ter marcado a sua trajetória científica e intelectual. Licenciou-se em Sociologia pelo ISCTE na década de 1980. Após a licenciatura, integrou a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra como assistente estagiário e o Centro de Estudos Sociais como investigador. É nestas duas instituições que desenvolve e consolida a sua carreira. Doutorou‑se em 1999, com uma tese inovadora sobre a indústria do calçado ancorada em observação participante numa fábrica do setor. Dela resultou o livro Entre a fábrica e a comunidade: subjetividades e práticas de classe no operariado do calçado, publicado em 2000. Na sua condição mais recente de professor jubilado, tem circulado por várias universidades da Europa e da América Latina. As suas áreas de investigação e publicação centram-se fundamental, mas não exclusivamente, nas relações laborais e sindicalismo, nas desigualdades, classes e mobilidade social, nas questões da classe média, bem como nos rituais académicos conhecidos como “praxe”, sendo hoje um dos mais reconhecidos praticantes da sociologia pública.

3Ler, pensar e escrever implica sempre escolher um ponto de vista, um lugar a partir do qual se observa, se analisa e se intervém na academia e fora dela, nos mais variados contextos onde se debate a vida social e política. Como bem nos mostra, não existem pontos de vista objetivos, desinteressados e imunes a valores ou qualquer tipo de compromisso. Dando a palavra a Elísio Estanque, o livro é uma “síntese da minha trajetória académica e pessoal” (p. 14). Tal quer dizer que também não existe prática sociológica indiferente às relações pessoais, às cumplicidades e, claro, às divergências. Com isto aproveitamos para lembrar que conhecemos Elísio Estanque há muitos anos. Com ele partilhamos, convocando Max Weber, algumas afinidades eletivas, mas também, no caso de um de nós, Fernando Bessa Ribeiro, irreconciliáveis divergências que, sublinhamos, não nos causam desconforto, pois elas não impedem o reconhecimento do nosso compromisso pela procura de soluções que possam minorar as injustiças e sofrimento que marcam a história e o presente das sociedades humanas.

4Lembrando o célebre debate sobre classes sociais no número 49 da Revista Crítica de Ciências Sociais, de 1997, onde Elísio Estanque tem um artigo, é pertinente afirmar que ambos lemos os mesmos autores, tendo nalguns deles grandes referências comuns: Immanuel Wallerstein, Eric Olin Wright e Micahel Burawoy, aliás, largamente presentes e discutidos no livro aqui escrutinado. Porém, Elísio Estanque parece a todo o tempo procurar marcar as diferenças em relação a estes teóricos. Isto é, o autor lê e trabalha com os textos destes marxistas, num diálogo não raro tenso e crítico num tempo que já não coloca a alternativa entre “socialismo ou barbárie”, como justamente cunhou Rosa Luxemburgo num texto famoso de 1915, mas entre o “socialismo e o fim”, como afirmou Ricardo Antunes num seminário organizado em 2022 pelo Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. Ora, não aparecendo o socialismo em nenhum radar do futuro, temos de encarar como possibilidade real o colapso da sociedade humana, sendo certo que o planeta e as restantes formas de vida passarão muito bem sem nós.

5Feito este longo mas justificado preâmbulo, o título do livro não deixa dúvidas sobre os propósitos do autor. É um livro de e sobre sociologia pública. Tendo em Michael Burawoy uma das figuras de destaque, creio que os conteúdos do livro confirmam com inteira propriedade o que o leitor interessado nas questões do nosso tempo pode imaginar a partir da leitura do título: é um livro implicado e interpelador de um sociólogo que jamais recusou participar no debate público, inserindo-se numa longa tradição, desde logo marxista, mas também não estranha a Max Weber.

6Ressonâncias e sociologia pública; ensaio sociológico sobre a sociedade portuguesa constitui, portanto, uma incursão em torno dos modos de ressonância que o sociólogo inconformado e engajado pode (e deve) assumir enquanto ser no mundo, nomeadamente ao nível da reflexão crítica sobre a sociedade que o rodeia, mas também no que diz respeito à intervenção cívica no espaço público. Como escreve Luís Osório no prefácio, Elísio Estanque é “um homem dos livros, mas também das pessoas. Da procura de novas palavras, mas sem esquecer que qualquer combate só se ganha sabendo comunicar” (p. 25).

7Logo na introdução somos confrontados com um conjunto de questões que todos aqueles que têm, de um modo ou de outro, algum tipo de ligação às ciências sociais não deixam de colocar: “Perante o risco de esgarçamento da sociedade e os horizontes distópicos que se anunciam, qual o papel das ciências sociais? Que responsabilidade nos resta, designadamente à sociologia, enquanto conhecimento que pretende vislumbrar e interpretar as estruturas e poderes sociais que se escondem para além das aparências? Qual a atitude que os cientistas sociais engajados devem assumir face ao processo acelerado de fragilização das democracias?” (p. 27). Trata-se, como se percebe pelo sentido das questões, de uma reflexão acerca dos modos como as ciências sociais, através dos seus instrumentos teóricos e conceptuais, bem como das suas aquisições empíricas, nos podem guiar na compreensão das tensões sociais e políticas com que as sociedades contemporâneas se confrontam.

8Este livro compreende duas partes relativamente distintas, mas coerentemente articuladas. A primeira parte é constituída por um denso mas cativante ensaio, organizado em cinco temas, ao longo do qual o autor revisita os principais marcos teóricos das ciências sociais – da sociologia, evidentemente, mas também da antropologia, da filosofia política e até da psicologia social – que marcaram a sua vida e norteiam o seu pensamento. Aliás, nas suas próprias palavras, o fechamento teórico e disciplinar não pode deixar de ser interpelado e superado: “perante as tamanhas perplexidades com que somos confrontados no mundo atual, as ciências sociais e a sociologia devem saber transcender velhas rivalidades teóricas e promover o diálogo virtuoso entre si, em vez de persistirem com antagonismos paradigmáticos fúteis” (p. 39). Após uma primeira reflexão sobre as relações entre a realidade e o conhecimento acerca do social, bem como sobre as responsabilidades do cientista social, são discutidas as teorias de autores clássicos da sociologia, como Karl Marx – numa perspetiva assumidamente crítica –, Max Weber – numa posição de maior alinhamento – ou Durkheim, também relevante enquanto um dos “pais fundadores”. Mas também são convidados para esta reflexão sobre o papel das ciências sociais na compreensão do mundo autores contemporâneos com filiações tão diversas como Pierre Bourdieu, Karl Polanyi, Walter Benjamin e Boaventura de Sousa Santos. Trata-se de um exercício onde cabem também as memórias sobre as vivências subjetivas de ensino, percursos na pesquisa e momentos de efervescente entusiasmo político, sempre objeto do seu olhar crítico.

9Trata-se, pois, de uma reflexão sobre o trajeto sociológico do autor, de uma vida ligada à sociologia, como professor e investigador. E tendo começado mais tarde do que é habitual, sobretudo nos dias de hoje, as experiências anteriores da sua vida não deixaram de marcar de forma afetiva os seus interesses e sensibilidades na sua análise sociológica. A saber, o trabalho e as questões laborais, incluindo as relacionadas com o movimento sindical, as desigualdades sociais, mais tarde a universidade, a juventude e as culturas estudantis. Elísio Estanque expõe‑nos – expondo-se, portanto – à fina trama que entrelaça a sua biografia pessoal, o seu posicionamento teórico e conceptual e a sua trajetória política e intelectual.

10Já a segunda parte – organizada em seis temas, antecedidos por um enquadramento teórico da sociologia pública e do debate público – é feita de textos de opinião que se inserem ostensivamente na sociologia pública, abordando temas que são objeto de reflexão na primeira parte, mas também as memórias, afetos, viagens, olhares e perplexidades em tempos de pandemia e agora de guerra na Ucrânia. É nesta parte do livro que Elísio Estanque nos mostra com clareza a vertente “pública” da sua sociologia. Contendo um conjunto alargado de artigos e crónicas que o autor foi publicando na imprensa ao longo das últimas décadas, são analisados muitos dos temas que constituíram outros tantos debates, não apenas na sociedade portuguesa, mas também noutros contextos nacionais, mostrando que o país não é uma entidade fechada e isolada e que não é indiferente ao que acontece noutras geografias, até porque muito do que acontece em Portugal só pode ser devidamente compreendido considerando outros contextos políticos, sociais e económicos. No ano em que se comemoram os cinquenta anos do 25 de Abril, esta reflexão de Elísio Estanque torna-se ainda mais pertinente, pois trata-se de uma radiografia da democracia contemporânea, com uma especial atenção para o diagnóstico das “doenças” que a assolam. Por isso temos as análises sobre o Maio de 1968, a Revolução soviética de 1917, o racismo e o fascismo, bem como sobre a pandemia da covid-19 e o confinamento, a guerra na Ucrânia e as suas reverberações políticas.

11Entre os outros temas tratados neste exercício de sociologia pública, destacam-se os relacionados com as mudanças no mundo do trabalho, o alastramento da precaridade e a crise do sindicalismo. Constatando a perda de centralidade deste último, o autor advoga a necessidade da sua reinvenção, afastando-se assim das teses que defendem a sua irrelevância na sociedade contemporânea. As numerosas páginas em que se ocupa com o trabalho, nomeadamente em diálogo com os sociólogos brasileiros deste campo, como Ricardo Antunes, permitem perceber que o capitalismo neoliberal foi paulatinamente organizando um “novo mundo laboral”, mantendo algumas das características que o caracterizaram na época do taylorismo e do fordismo: o cumprimento rigoroso dos horários, a obediência submissa à hierarquia, o consentimento de uma ordem e cultura organizacionais que oprimem os trabalhadores mas que são frequentemente assimiladas para garantir o salário. Tal confere plena atualidade às observações de Karl Marx – entre outros textos, cf. 2014 (1867), O capital: crítica da economia política (Livro primeiro – O processo de produção do capital) – sobre o significado concreto do trabalhador “livre” no capitalismo, ao sublinhar que, não possuindo este os meios de produção, a liberdade é ilusória, pois está severamente limitada pela necessidade de vender a sua força de trabalho para assegurar a sobrevivência.

12Atribuindo o justo destaque ao trabalho nas duas partes do livro – campo não raro desvalorizado por muitos, em favor dos estudos sobre estilos de vida, lazer e consumo –, Elísio Estanque nunca desistiu, recusando ir atrás de modas apanhando o “comboio da linha mais frequentada”. Ao persistir nesta opção, permitiu oferecer-nos um livro que se constitui como um contributo fundamental para a sociologia do trabalho, em especial aquela que se escreve em português. Um outro tema é o da estratificação social, sublinhando o autor as dinâmicas de erosão das chamadas “classes médias” e da mobilidade social que, hoje, é sobretudo dominada por tendências de proletarização e empobrecimento. As transformações na Universidade, nomeadamente a redução da representação democrática, não podiam deixar de fazer parte desta sociologia pública, como também a discussão sobre o associativismo estudantil, as questões do género e os rituais iniciáticos comummente designados por “praxes académicas”. Fazendo parte das culturas juvenis, o autor ocupa-se igualmente com a análise das dinâmicas de “rebelião” e de “conformismo” na juventude contemporânea.

13Qualquer leitor medianamente perspicaz, apreciando este livro, não deixará de notar que, a bem dizer, a sociologia se interessa por tudo, trazendo à recensão um artigo notável de Eduardo Prado Coelho sobre a sociologia publicado no jornal Público (“Inesquecível socióloga”, 28 de janeiro de 2004). Recusando o fatalismo, Elísio Estanque convoca a nossa atenção para a importância do fator político e da organização e ação coletivas, mormente no campo do trabalho, simultaneamente como resistência e luta emancipatória. Num tempo dominado por práticas científicas que favorecem o encerramento dos investigadores e professores no campo científico e no fornecimento de conhecimento pericial ao poder político de turno, abdicando da intervenção no campo público e da cidadania, este livro de Elísio Estanque é um exemplo precioso do “remar contra a maré”. E que não descarta, há que sublinhar, o escrutínio dos caminhos de superação do capitalismo, apontando o ecossocialismo como utopia: “Um horizonte fundado na ideia de contenção do crescimento económico ilimitado, na edificação de um ecossocialismo realista e progressista pode ser a utopia que o mundo requer à entrada da terceira década do século XXI” (p. 75).

14Em suma, este livro responde a uma questão que inquieta muitos cidadãos leigos e estudantes que se iniciam no estudo desta ciência: para que serve a sociologia? Aqui temos a resposta. Por outras palavras, estamos perante um livro magnífico, simultaneamente biografia do trajeto do autor e teoria sociológica com um foco no trabalho, nas classes e desigualdades sociais e nos movimentos estudantis. Nele se combinam ainda textos que se inscrevem na sociologia pública, tal como a definiu Michael Burawoy e que Elísio Estanque procura, com indiscutível maestria, alimentar e ampliar em Portugal e no vasto espaço que pensa, fala, lê, escreve e sonha em português.

- Receção: 06.05.2024

- Aprovação: 10.05.2024