1No mundo amazônico, sabe-se que as principiais dinâmicas territoriais muito devem à abertura de estradas e rodovias, planejadas ou “espontâneas”, configurando a região em vários pontos de conexão com as demais regiões do Brasil. Esses nexos, mercantil e demográfico, atravessaram parte da massa florestal, instituindo uma economia e uma sociedade que se caracterizam, principalmente nas sub-regiões derivadas da migração e da colonização agrícola, pela intensa extração dos recursos naturais, atualmente alimentada por um discurso comum que se contrapõem a defesa da natureza e dos povos tradicionais em seus territórios.
2Se pensarmos na epopeia do espaço amazônico, certamente a construção da rodovia BR-230, denominada pela propaganda oficial (no Plano de integração nacional de 1970) como Transamazônica, ganha especial relevo, considerando sua expressão latitudinal, ainda inacabada, que ligou as frentes pioneiras do norte de Tocantins e sudeste do Pará ao mundo das florestas em Lábrea, no Amazonas. A expressão continental da BR-230 é de 5.662,60 quilômetros, incluso os trechos não concluídos, que nasce em Cabedelo (Paraíba, região Nordeste) e termina em Lábrea, percorrendo boa parte do sul do estado do Amazonas (Figura 1).
Figura 1: Rodovia Transamazônica, município de Apuí, estado do Amazonas (2018).
Foto: Viviane Vidal da Silva
3Em sua porção Amazônica, ao longo do percurso, muitas cidades, vilas e projetos de assentamentos rurais foram implementados. Algumas dessas estruturas territoriais foram construídas no âmbito das políticas territoriais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, que na década de 1960 coordenou a ocupação socioeconômica ao logo da rodovia Transamazônica, no trecho localizado no estado do Pará.
4Se no estado do Pará a nova geografia agrária se organizou em torno da terra, madeira e agropecuária, vinculada a embrionária urbanização da fronteira, no estado do Amazonas a rodovia Transamazônica ficou na precária abertura, sem pavimentação, que nos períodos mais chuvosos, tornava impossível o tráfego de veículos. O esquecimento da rodovia pelas agências públicas de infraestrutura resultou na paisagem mais representativa dessa parte da Amazônia brasileira, que por muito tempo pareceu imêmore das dinâmicas territoriais agrárias mobilizadoras das frentes pioneiras então vigentes no Pará, Mato Grosso e Rondônia.
5Contudo, essa geografia, aos poucos, vem se transformando nas últimas duas décadas, quando objetivamente se verifica um gradual deslocamento dos processos de incorporação da natureza ao circuito mercantil, reproduzindo semelhantes mecanismos de transformação do espaço regional pelas dinâmicas territoriais que no passado configuraram a região em fronteira de recursos e da agropecuária. No sul do estado do Amazonas, a rodovia Transamazônica (BR-230) emerge como novo eixo de expansão econômica da região (Figura 2), composta pela agropecuária, projetos hidrelétricos, exploração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas, garimpos e migração intrarregional (dentro da Amazônia).
Figura 2: Fronteira no sul do estado do Amazonas e Norte de Rondônia (2019)
6No plano geral, inicialmente, a partir da cartografia do sul do Amazonas, podemos indicar três eixos das dinâmicas territoriais que qualificam as transformações espaciais nesta parte da Amazônia sul-ocidental, as quais devemos aprofundar em trabalhos de campo e observação da paisagem nestas sub-regiões da Amazônia ocidental.
7O primeiro eixo, provisoriamente, denominamos de “Transamazônica vivida”. Trata-se da parte da rodovia BR-230 que adentra o estado do Amazonas até o município de Humaitá. No percurso de 674 km, entre as cidades de Jacareacanga (Pará) e Humaitá (Amazonas), há somente três localidades que servem como referência ou ponto de apoio ao fluxo de veículos particulares, pessoas e transportes de cargas: distrito de Sucunduri, cidade de Apuí e o assentamento rural Santo Antônio do Matupi – também conhecido como “180” (Figura 3), em função da distância até Humaitá. Nesse vasto percurso há um conjunto significativo de áreas protegidas (unidades de conservação e terras indígenas), no qual a rodovia BR-230 margeia essas unidades territoriais.
Figura 3: Distrito Santo Antônio do Matupi, rodovia Transamazônica (2012)
Foto: Viviane Vidal da Silva
8No contraponto às áreas protegidas, conforme a cartografia das dinâmicas territoriais (Figura 2), há um conjunto socioeconômico e territorial que tende a se afirmar no espaço da Transamazônica, assumindo a função de motor econômico da fronteira. O crescimento da pecuária e a extração madeireira são os primeiros indicadores do movimento espacial da fronteira, no qual se soma a invasão de áreas públicas para fins de grilagem de terra, alimentando o comércio ilegal de terras. A projeção de hidrelétricas nos rios Roosevelt e Aripuanã amplia a escala de exploração dos recursos hídricos, tornando a região mais complexa em função dos “requerimentos” de pesquisa mineral e expansão de vários garimpos dentro ou nos limites das áreas protegidas. Há um tensionamento produzido pela marcha econômica na política e nos territórios de proteção ambiental (áreas protegidas), o que qualifica os limites da expansão da fronteira.
9O segundo eixo que compõe as dinâmicas territoriais do sul do Amazonas sai de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, empurrando o fluxo econômico para as cidades amazonenses de Humaitá e Lábrea. Sabe-se que a colonização agrícola em Rondônia, ocorrida nas décadas de 1970/1980, deslocou a economia regional, então assentada no extrativismo vegetal, para a afirmação da agropecuária e seus corolários. Na atualidade, esse movimento de incorporação de áreas naturais se desloca tanto para o norte de Rondônia e sul do Amazonas, incrementando os mesmos processos pretéritos que movimentaram a expansão da fronteira: pecuária, madeira, grilagem de terras, violência e desmatamento.
10Neste segundo eixo, esse processo é qualificado pelos moradores locais, movimentos sociais, agentes públicos e empresários da região de Humaitá como “rondonização”, ou seja, a transformação da floresta e das áreas protegidas, principalmente unidades de conservação, em espaço da agropecuária e mercado de terras. Nesse processo, há uma lenta e precária reativação da rodovia Transamazônica até Lábrea, cujo fluxo cresce a cada ano. Assim, a pecuária e o roubo de madeira são as “moedas” correntes da fronteira que se expande para o sul do Amazonas, derivada, em sua maioria, dos migrantes e proprietários de terras de Rondônia.
11A região do município de Boca do Acre se configura no terceiro eixo das dinâmicas territoriais do sul do Amazonas. Constituem esses processos as constantes invasões às unidades de conservação (sobretudo as de usufruto dos seringueiros), roubo de madeira, pecuária, grilagem de terras e violência contra os povos amazônicos. Há, ao menos, duas frentes de expansão na região: uma derivada do deslocamento da pecuária e grilagem de terras, especialmente das cidades de Rio Branco e Acrelândia (Acre), considerando que essa região é de crescimento da pecuária e extração madeireira.
12Outra frente de expansão se desloca da “Ponta do Abunã”, região de Rondônia que faz fronteira com o Acre, que tem o rio Abunã como referência regional. Na Ponta do Abunã há vários distritos, vilas e povoados, que crescem em função da extração madeireira, pecuária, grilagem de terra e invasão de terras indígenas e unidades de conservação. Essas duas frentes atingem o sul do município de Lábrea e Boca do Acre. Nessa região os conflitos no campo têm aumentado contra camponeses, indígenas e seringueiros, donde madeireiros e grileiros agem contra os territórios tradicionais e seus povos. Em todo caso, há um deslocamento da fronteira intraestadual de Rondônia que se movimenta tanto para Humaitá e Lábrea, quanto para Boca do Acre, no sentido de fazer do sul do Amazonas o novo espaço da pilhagem ambiental.
13Para concluir, nossos apontamentos provisórios indicam que o processo de expansão da fronteira, que se concretiza na apropriação da natureza e sua transformação no circuito mercantil (terra, madeira, agropecuária, dentre outros) atingiu os limites das áreas protegidas. Significa que essas dinâmicas servem às pressões políticas e territoriais dos agentes econômicos para reformular a política de proteção ambiental e territorial da Amazônia. Isso produz uma geografia política do território, na medida em que se cristalizam os limites entres duas formas-conteúdo de ordenamento do território, qual seja, os limites e tensões nas áreas protegidas frente o movimento espacial da fronteira no sul do estado do Amazonas.
14Projeto de pesquisa apoiado pela FAPERO, FAPEAM, DHJUS/EMERON.