1A produção e a reprodução camponesa resultam de uma conexão intrínseca entre modo de vida, trabalho e resistência. Em um modo de produção capitalista, os camponeses, contraditoriamente, continuam mantendo relações não capitalistas de produção. O camponês, longe de desaparecer, “[...] não só continua presente, como pode representar uma forma alternativa ao modelo produtivista hegemônico” (Bosetti, 2016, p. 143). O camponês é resistência por continuar existindo, e também por corresponder a uma forma alternativa frente ao modelo hegemônico capitalista, considerado moderno, mas que não respeita o tempo da natureza, a história ambiental, os modos de vida, o etnoconhecimento, portanto “o modelo é arcaico” (Loureiro, 2009, p. 117), porém em pleno vigor.
2A identificação dos camponeses na área de estudo é baseada nos “elementos da produção camponesa” (Santos, 1978; Oliveira, 1991): força de trabalho familiar, ajuda mútua, trabalho acessório, força de trabalho assalariada, socialização do camponês, propriedade da terra e dos meios de produção, jornada de trabalho e reprodução simples da produção, e com base em Shanin (2005), que entende o camponês atrelado às interações ocorridas em um contexto mais amplo; afinal, os camponeses não são sujeitos isolados nem o pretendem ser. Pelo contrário, são interligados ao modo de produção hegemônico e aproveitam-se dessa condição para se reproduzirem economicamente, porém mantêm um modo de vida diferenciado.
- 1 Comunidade é um “termo amplamente utilizado para referir a um grupo de famílias que se reuniram par (...)
3A metodologia é baseada no conceito de camponês, modo de vida, identificação e identidade. Três trabalhos de campo, com uma duração aproximada de uma semana cada, foram realizados, em: outubro de 2017, janeiro e julho de 2018. A coleta de dados primários foi realizada na comunidade1 Dom Pedro II, por meio de: aplicação de questionário, realização de entrevistas semiestruturadas, observação direta e registros fotográficos. A figura 01 corresponde a área de estudo, que possui, atualmente, catorze (14) famílias.
Figura 01 – Localização da comunidade Dom Pedro II, em Barcelos (AM)
rabetarabetinha4Alguns sujeitos se auto identificam como indígenas, sem excluir outras autoidentidades, como: agricultor, pescador, caboclo. Esses sujeitos também apresentam características camponesas de modo de vida, organização territorial e trabalho, por isso o conceito de camponês é utilizado como teoria científica. Portanto, o objetivo geral deste artigo é analisar uma particularidade do universo camponês identificada na comunidade Dom Pedro II. Os objetivos específicos são: caracterizar o modo de vida camponês, e apresentar a variável indígena como uma das formas de identificação dos informantes da pesquisa.
5A discussão deste artigo está pautada no modo de vida camponês para haver clareza sobre quem este artigo se refere e porquê a escolha em denominá-lo – pelo menos, a princípio – de camponês, e, posteriormente, na identificação indígena em uma correlação com o ser camponês.
- 2 Há pesquisadores que defendem a presença de uma agricultura familiar no Amazonas, e não de campones (...)
6O camponês é uma denominação teórica e política, que representa resistência de um modo de vida não capitalista interligado ao modo de produção hegemônico. Existem várias interpretações sobre o camponês e o campesinato2 no Brasil e no mundo. Dito isto, entende-se que o campo científico abrange essa discussão e nosso intuito é agregar valor a ela.
7O conceito de camponês possui laços históricos com o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, na Rússia, final do século XIX e início do século XX, mas há particularidades oriundas do lugar e tempo histórico atuais, pois assim como o sujeito, as teorias não são engessadas. Afinal, “o termo campesinato não implica a total semelhança dos camponeses em todo o mundo [...]” (Shanin, 2005). Já naquele contexto histórico e político, foram pensadas correntes teóricas antagônicas (Quadro 1-Teorias sobre o campesinato).
Quadro 1 – Teorias sobre o campesinato
Quadro 1 – Chayanov apresentou uma tese contrária as teses marxistas da época. Kautsky e Lênin focaram no avanço do capitalismo no campo, acumulação de capital e suas estratégias. Chayanov analisou a racionalidade camponesa, as estratégias, a força da família camponesa e sua resistência. Fonte: Alves et al. (2016).
Organização: autores.
8Os camponeses se integram ao modo de produção capitalista para a obtenção de dinheiro e, portanto, aquisição de outras mercadorias, isto é, eles “persistem ao mesmo tempo em que se integram à economia capitalista circundante” (Shanin, 2005). O material e o imaterial estão presentes no processo de trabalho camponês, onde “o trabalho é mediação, significa troca de energia entre o homem e a natureza, em um devir quantitativa e qualitativamente cada vez mais complexo” (Witkoski, 2010, p. 129, baseado em Marx e Engels). Chayanov “procurou ver o camponês a partir de sua lógica interna de sobrevivência, ressaltando suas estratégias e racionalidades” (Bosetti, 2012, p. 143). A racionalidade camponesa detém o material, o imaterial, e não visa exclusivamente à obtenção de lucro. Em um viés material, são realizadas a produção e a comercialização de mercadorias para o abastecimento familiar, a reprodução econômica da família e a troca de bens entre os indivíduos. Em um viés imaterial, destaca-se o etnoconhecimento, a troca de saberes entre os indivíduos, a conservação da biodiversidade, a religiosidade, as crenças, os mitos, entre outros.
- 3 A pesca não é oriunda de atividades ligadas a piscicultura, o que atenderia a outras lógicas de mer (...)
9Na comunidade Dom Pedro II, as atividades de agricultura e de pesca são as mais importantes para a reprodução econômica camponesa. Os camponeses realizam diversas atividades de trabalho: cultivo (agricultura, manejo de plantas medicinais na propriedade camponesa), extrativismo animal (pesca3 e caça) e extrativismo vegetal (coleta de plantas medicinais). A principal mercadoria da agricultura é a mandioca, cultivada e transformada em farinha. O peixe é o principal alimento do município. Existe na cidade uma área chamada de esquina dos pescadores. Por isso, a pesca é um trabalho importante e constantemente realizado pelos camponeses. Em Barcelos, há uma classificação de quatro tipos de pesca (Quadro 2-Classificação dos tipos de pesca em Barcelos-AM).
10Essas diferentes atividades revelam que o camponês é um ser polivalente, pois os diferentes familiares trabalham e contribuem para a autonomia da família. Nas diferentes formas de trabalho, diferentes membros da família se revezam, ao mesmo tempo em que, combinam-se nas atividades. As crianças participam do processo de trabalho, aprendendo com os membros familiares mais velhos. O caráter da polivalência dos membros da família camponesa corresponde ao fato de que “todos têm que trabalhar e de modo diverso e combinado” (Witkoski, 2010, p. 30).
Quadro 2 – Classificação dos tipos de pesca em Barcelos-AM
Quadro 2 – Em determinados períodos do ano alguns tipos de pesca são inviáveis, proibidos ou pouco rentáveis por causa do calendário hidrológico. Esse calendário é considerado e respeitado nas decisões dos camponeses. A atividade pesqueira é uma das atividades que compõem o processo de trabalho da família camponesa. Fonte: trabalho de campo, 2018.
Organização: autores.
11A atividade de pesca em Barcelos é diversificada, praticada durante todo o ano e atrelada ao ciclo hidrológico. Essa atividade atinge escalas de mercado que ultrapassam consideravelmente àquelas do trabalho com a agricultura. Foram identificados quatro tipos de pesca:
121. A pesca ornamental é exclusivamente praticada para o atendimento de demandas internacionais. A unidade de compra do peixe ornamental é o milheiro, ou seja, os camponeses pescadores contam a quantidade de peixes de um por um até alcançar o total de mil peixes.
132. A pesca turística ou esportiva promove uma alta circulação de capital no município. Existem pacotes específicos aos turistas, a fim de propiciá-los experiências diretamente com a pesca, mas também com elementos culturais (culinária, artesanato, entre outros). Existem empresas que possuem seus próprios barcos-hotéis como parte do pacote turístico.
14A participação do camponês nessa pesca é diferenciada e restrita. Um entrevistado informou que trabalha com essa pesca na alta temporada em Barcelos (meses: novembro a janeiro) e em Mato Grosso (meses: maio a outubro). Ele foi contratado por deter um etnoconhecimento das áreas apropriadas para essa pesca. Quando ele está em Barcelos, contribui com a renda familiar, mora na comunidade e trabalha na roça da família, mas é um pescador profissional do setor da pesca esportiva. O esposo de uma entrevistada também trabalha com essa pesca, exclusivamente em Barcelos, pois a família alcança um retorno financeiro significativo, que contribui para a manutenção econômica da família durante alguns meses.
15Essa atividade é muito parecida ao trabalho acessório do camponês, que é quando “[...] dá-se a transformação periódica do camponês em trabalhador assalariado, recebendo por jornada de trabalho. [...]” (Santos, 1978, p. 37). A diferença é que há uma subordinação do camponês às empresas contratantes. De qualquer forma, é uma estratégia camponesa de trabalho e reprodução econômica, com o intuito de aumento da renda familiar.
163. O peixe liso é consumido localmente, mas, em sua maioria é comercializado para outros estados e até outros países na forma de filé, o que agrega mais valor econômico à mercadoria.
174. Por fim, o peixe de escama atende ao abastecimento da família camponesa, prioritariamente, mas, segundo entrevistas, esse tipo de peixe é comercializado em grande quantidade a cidade de Barcelos e aos municípios vizinhos (Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira).
18Desses quatro tipos, a pesca esportiva é a mais diferenciada. Em se tratando dos outros três tipos, geralmente, os camponeses precisam se deslocar até a cidade para comercializá-los. O peixe é vendido em maior quantidade aos donos de mercados locais (mercadinhos), que, por sua vez, revendem a população local. Caso o dono do mercadinho não consiga vender todos os peixes em prazo de até quatro dias, ele contrata outro sujeito, que possui um transporte, para vender o produto pela cidade.
19A materialidade do trabalho camponês é essencialmente advinda da força de trabalho familiar, racionalmente organizada para a realização do trabalho. Todos os membros da família participam do trabalho e “a força de trabalho é utilizada segundo seu valor de uso, pois é como atividade orientada de transformação de objetos que a capacidade de trabalho de cada membro possui significado para a família” (Santos, 1978, p. 33). O trabalho camponês também pode ser realizado de forma combinada com os vizinhos.
20Além do trabalho com a mandioca (Figura 02), outros produtos são cultivados nas roças camponesas, por exemplo: macaxeira, abacaxi, milho, banana, cará, batata, hortaliças. Quando há o período de safra do açaí, por exemplo, ele também aproveita para a venda e obtenção de renda familiar, por meio do extrativismo vegetal. Como dito anteriormente, o camponês é um ser polivalente.
Figura 02 – Uma das etapa do processo de trabalho para a produção de farinha na comunidade
Figura 02 – À esquerda, na margem do rio Negro, camponeses de diferentes faixas etárias participam do processo de trabalho para a transformação da mandioca em farinha. Eles estão reunidos para descascar a mandioca. À direta, no dia seguinte, é possível ver uma parte do trabalho já executada (seta azul) e o trabalho que ainda precisa ser realizado (seta vermelha). Fonte: trabalho de campo, janeiro/2018.
Organização: autores.
- 4 Termo regional.
- 5 Um hectare (ha) corresponde a dez mil metros quadrados (1 ha = 100 m X 100 m = 10.000 m²).
21As famílias camponesas detêm individualmente um espaço próprio ao plantio denominado de roça. O trabalho na roça demanda energia e tempo de toda a família para o cultivo de alimentos destinados ao abastecimento interno e, em alguns casos, à venda. O abastecimento familiar é prioritário. Antes do plantio, os camponeses fazem a limpeza da área (retiram as árvores maiores), realizam a coivara4 (amontoam pedaços das árvores), queimam a área (esse processo gera mais fertilidade na terra, segundo os entrevistados) e, por fim, plantam. Posteriormente, aguardam alguns meses para colher os produtos. Geralmente, a roça possui meio hectare5, e algumas famílias também possuem roças nas ilhas localizadas em frente da comunidade Dom Pedro II (Figura 03), isto é, possuem uma roça na terra firme e outra na várzea.
22A manutenção das roças nas ilhas é realizada individualmente por cada família, o que constitui um dos territórios da família camponesa, bem como, a própria ilha é um território da comunidade. As ilhas possuem nomes e pertencem às comunidades da área. Cada família reconhece e cuida de sua própria roça, logo, nenhuma delas interfere na roça das outras. O território “se forma a partir do espaço. [...] Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente, o ator “territorializa” o espaço. [...] É um espaço onde se projetou um trabalho [...], e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder” (Raffestin, 1993, p. 143-144).
Figura 03 – Ilhas em frente da comunidade Dom Pedro II
Figura 03 – Nas ilhas, os camponeses mantêm uma roça a mais e praticam atividades de extrativismo animal e vegetal. Fonte: trabalho de campo, janeiro/2018.
Organização: autores.
23O ecossistema do rio Negro apresenta baixa fertilidade, em comparação ao do rio Solimões, para a agricultura, mas a subida da água do rio, promovida pelo ciclo hidrológico anual, contribui para que a roça nas ilhas (área de várzea ou igapó) seja considerada melhor do que a roça na comunidade (área de terra firme).
O plantio leva em consideração fatores que muitas vezes escapam à nossa percepção, tornando-se bastante difícil para nós, leigos no assunto, realizar uma “leitura” precisa”, ou seja, longe de ser uma atividade mecânica no sentido de repetitiva, é uma atividade oriunda de um processo de (etno)conhecimento da terra, dos ecossistemas, do período adequado para o plantio, de integração dos membros da família, da necessidade de abastecimento familiar, entre outros (Woortmann e Woortmann, 1997, p. 75).
24Os territórios revelam usos diferenciados e individuais das famílias, mas, ainda assim, a ajuda mútua é praticada entre os camponeses em casos de necessidades e de solicitação. O mutirão (ajuda mútua) “[...] ocorre em casos de doença ou sinistro [...]. [Mas também] se faz mutirão com a finalidade de executar rapidamente uma tarefa do ciclo agrícola [...]” (Santos, 1978, p. 34-5).
25A ilha também serve para o extrativismo vegetal (coleta de plantas) e animal (caça) praticado pelas famílias que revelam um minucioso conhecimento territorial. Os camponeses corriqueiramente realizam a territorialização de diversas áreas, incluindo, as ilhas, a unidade doméstica e de trabalho, as áreas de pesca, entre outras. A territorialização “significa apropriação social de um fragmento do espaço a partir das relações sociais, das regras e normas, das condições naturais, do trabalho, das técnicas e tecnologias, das redes (de circulação e comunicação) e das conflitualidades [...]” (Saquet, 2011, p. 22).
26A presença de crianças nas atividades de trabalho é incentivada. Elas participam observando os mais velhos ou trabalhando. Com o tempo, há uma familiaridade e um sentimento de pertencimento e, portanto, a socialização do camponês, quando “aproximadamente aos quinze anos, os jovens passam a desempenhar tarefas de adultos” (Santos, 1978, p. 46), adquirindo gradativamente responsabilidades. Esse processo também foi observado em relação ao uso e conhecimento de plantas medicinais. Desde crianças, as meninas, principalmente, são bastante atentas a essa atividade relacionada ao tratamento de enfermidades ou prevenção de doenças. Destaca-se também que o uso das plantas é uma resistência, por se tratar de sua autonomia em relação aos medicamentos industrializados e da reprodução do etnoconhecimento.
27O modo de vida camponês se constrói com base nesses vários elementos, entre eles, a propriedade da terra camponesa, que “não é propriedade de quem explora o trabalho alheio. É [...] terra de trabalho” (Oliveira, 1991, p. 61). Os camponeses são detentores de seus instrumentos de trabalho e organizadores do seu tempo, da função de cada membro familiar, o que os possibilita a exploração da terra ao atendimento de suas necessidades básicas, e não ao atendimento unidirecional aos capitalistas. A inserção dos camponeses no mercado é proposital. Sua jornada de trabalho “varia conforme a época do ano” (Santos, 1978, p. 61), a sazonalidade das mercadorias produzidas, do tempo ecológico, das adversidades naturais, entre outros.
28A maioria dos elementos da produção camponesa foi identificada na área de estudo, o que revela a motivação em denominar os sujeitos como camponeses, mas a identificação e a construção da identidade são problemáticas que merecem maior atenção.
- 6 A comunidade não faz parte de Terra Indígena oficialmente demarcada.
29A comunidade Dom Pedro II é atendida pelo Distrito de Saúde Indígena (DSEI) de Barcelos, pois quase todos os membros dessa comunidade se auto identificam como indígenas6. Em 2017, o DSEI registrou catorze famílias residentes na comunidade, totalizando cinquenta e sete pessoas distribuídas nas etnias: Baré (33), Tikuna (19), Baniwa (3) e Tukano (1). Apenas um morador não se auto identificou como indígena.
30Não há “evidências indígenas” facilmente identificáveis na comunidade como há evidências camponesas. Além disso, duas entrevistadas, ao mesmo tempo, que se reconhecem como pertencentes a uma etnia para o DSEI, afirmaram não serem indígenas na entrevista. Essa contradição chamou a atenção e motivou a elaboração deste artigo.
31Em Barcelos, a presença indígena é bastante antiga. A colonização europeia transformou drasticamente a realidade e demarcou o início de uma intensa acumulação de capital na região. Os colonizadores chegaram ao rio Negro na primeira metade do século XVII e muito rapidamente a região se tornou fundamental para a economia agroextrativista e de escravos (Barra e Dias, 2013). O processo de colonização foi caracterizado por grande violência física e cultural (Id. Ibid.).
32Barcelos foi palco inicial da colonização da região do rio Negro, tendo sido, sede de missões, da Capitania de São José do Rio Negro (1758) e local de convergência dos “descimentos” indígenas (Adrião, 1991). A interferência das coroas europeias afetou os indígenas, pois houve um processo de destribalização e, posteriormente, o contato entre indígenas e brancos (Id. Ibid.).
Pensamos o problema do contato não apenas como confronto étnico-cultural, onde um teoricamente anularia o outro, mas também em termos de convívio e sobreposição de traços culturais distintos entre culturas que se relacionam mutuamente, apropriando-se e expropriando-se simultaneamente num processo de “atualização”, “reconstrução cultural”, da qual ambas “perdem” e “ganham” sem que nós, de fora, possamos avaliar o grau de perda ou ganho sem tomar um partido” (Id. Ibid., p. 6)
33Atualmente, em Barcelos, pode-se dizer que ainda há o resultado desse encontro cultural iniciado em meados da colonização. Por isso, uma definição rígida dos sujeitos pode ser equivocada e precipitada. Aliás, uma definição dessa natureza não é necessária, pois “não há um “termômetro” que avalie ou assegure o grau de indianidade [...]” (Adrião, 1991, p. 6) e “pensar o índio na aldeia e nos padrões culturais históricos é coisa do passado, das obras literárias” (Id. Ibid., p. 8). Essa autora (Adrião, 1991) trouxe elementos na sua dissertação para a construção da identidade indígena em Barcelos, por meio das relações entre os sujeitos (Quadro 3-Relações de construção da identidade indígena em Barcelos-AM).
Quadro 3 – Relações de construção da identidade indígena em Barcelos-AM
Quadro 3 – Sistematização das relações que permeiam a construção da identidade indígena em Barcelos.
Fonte: Adrião (1991). Organização: autores.
34O modo de vida é camponês, mas o sujeito abrange múltiplas identidades, como a indígena, pois o modo de vida parte do seguinte princípio: “aquilo que eles [os indivíduos] são coincide, portanto, com sua produção, com o que produzem e também com o como produzem” (Marx e Engels, p. 2009, 24-25). O modo de vida e as identidades revelam complementaridade e, ao mesmo tempo, estratégias dos sujeitos.
35Simultaneamente, essa particularidade é atrelada a vida pretérita da região de Barcelos, pois a expropriação dos indígenas causou sérias transformações, fazendo com que esse indígena se adequasse aos outros padrões da sociedade como forma de resistência. Justifica-se essa transformação da seguinte forma: “a condição de part-society vivenciada hoje por aqueles indígenas reflete um estágio no longo processo de integração à sociedade nacional [...]. [...] O campesinato surge [...] como decorrência do processo de integração ao qual se acha submetido” (AMORIM, 1970, p. 89). Isto é, os indígenas em Barcelos precisaram criar mecanismos de sobrevivência, aceitação e reprodução social. Amorim (1970) apresenta uma ruptura dos indígenas que estuda com a estrutura indígena devido às necessidades de integração desses sujeitos a sociedade por causa de expropriações ocorridas ao longo da história. Por isso, esses indígenas apresentam tantos elementos camponeses, fazendo Amorim identificá-los como camponeses indígenas.
36Os estudos sobre o camponês indígena no Brasil tiveram maior notoriedade a partir de Oliveira (1970), que apresenta dois aspectos do campesinato indígena no Brasil: a posse e o uso da terra e a dependência ou a independência do índio campesino na organização de sua economia e de sua vida social (Id. Ibid.). O campesinato indígena é “um complexo de experiências vívidas de identidades, percepções de mundo, modos de reprodução material e imaterial, estratégias e táticas de organização, focos de resistências, contestações, proposições e tradicionalidades” (Santos Junior & Germani, 2013). Porém, aqui se considera, nesse momento, que os sujeitos são camponeses e indígenas, por necessidade de maior aprofundamento, mas não se descarta tal possibilidade.
37A autoidentificação indígena não segue classificações ou regras oficiais, pois, abrange relações reproduzidas pelo convívio entre os sujeitos, em uma coletividade, na partilha de características ou projetos em comum. Na comunidade Dom Pedro II, a identificação indígena, oriunda de uma identidade, prevalece com base nas relações entre “irmãos de sangue” – crianças menores de cinco anos de idade possuem identidade étnica, o que também comprova a afirmação anterior – e, também, entre “irmãos de mesma luta”.
38Por fim, entende-se que “a população barcelense fundamentalmente marcada por sua origem étnica, convenientemente usa da identidade indígena, cabocla e branca” (Adrião, 1991, p. 111). A identidade é acionada conforme o contexto, necessidade e situação, pois “a memória indígena é revivida por hábitos e costumes tradicionais ainda hoje presentes no que se refere a práticas de saúde, crenças populares, modos de preparo e conservação de alimentos, etc. [...]” (Id. Ibid., p. 112). Essas múltiplas identidades não confundem ou limitam o sujeito. Pelo contrário, a realidade se apresenta contraditória e enigmática, fazendo-se necessário a discussão científica para o esclarecimento de tais realidades, respeitando as escolhas identitárias dos sujeitos, que, ora se apresentam como indígenas, ora como pescadores, agricultores, etc, e, cientificamente, podem ser compreendidos como camponeses. Múltiplas identidades que revelam a totalidade dos sujeitos.
39Como proposto, o presente artigo buscou analisar uma particularidade do universo camponês encontrada na comunidade Dom Pedro II, em Barcelos (AM), com base nos pressupostos teóricos do conceito de camponês, mas também de identificação e identidade indígena.
40Barcelos é um município que apresenta uma diversidade cultural com a presença de indígenas, camponeses, citadinos, militares, povos tradicionais, pesquisadores, comerciantes, entre outros. Há povos indígenas moradores de terras oficialmente demarcadas, mas também existem indígenas que assim se auto identificam pelas relações de parentesco, de compadrio, de projetos em comum. Esses sujeitos habitam áreas chamadas de comunidades. Essas áreas apresentam uma organização territorial muito semelhante às outras localidades camponesas.
41Os indígenas recebem auxílio do Estado em relação à saúde, por exemplo, provocando interesse dos indígenas, que não residem em áreas demarcadas, pelos direitos. No entanto, os indígenas ainda são vistos como seres inferiores e interesseiros por uma parte da população. O trabalho (forma e organização) e o modo de vida dos sujeitos moradores da comunidade Dom Pedro II o caracterizam como camponeses, mas ao mesmo tempo não impede outras autoidentificações. A construção da identidade passa pela necessidade, situação e pelo contexto.
42Desse modo, a discussão realizada a partir, principalmente, na década de 1970, sobre um campesinato indígena se torna pertinente para mostrar que em um processo de perdas pelos povos indígenas (violência, expropriação, genocídio), também houve ganhos (camponês indígena), que são o resultado das estratégias de sobrevivência desses sujeitos.