1Na perspectiva do desenvolvimento sustentável, as contradições associadas à criação de assentamentos para fins de reforma agrária na Amazônia brasileira vêm sendo comumente reportadas na literatura (Diniz et al., 2013; Le Tourneau; Bursztyn, 2010; Ludewigs et al., 2009; Pacheco, 2009; Schneider; Peres, 2015; Van De Steeg et al., 2006). São estudos que avançaram teoricamente na compreensão das transformações socioambientais, bem como, dos diversos objetos de luta, conflitos e formas de resistência, observados nos Projetos de Assentamento (PAs). Adicionalmente, levantam questões a respeito do contexto em que esses PAs foram implantados, de como a gestão inadequada levou ao esgotamento dos recursos naturais e ao estado de pobreza em que muitas das famílias agricultoras se encontram atualmente. Em última análise, são abordados os cenários para as próximas gerações, tendo em vista a adaptação da agricultura familiar no interior dos PAs, diante das incoerências e alternâncias no cumprimento de políticas públicas e programas governamentais.

2No sul da Amazônia brasileira, precisamente no norte do estado de Mato Grosso (MT), a história da ocupação agrícola se remete ao meado dos anos 1970, quando lideranças empresariais assumiram o papel do Estado para implementar projetos de colonização orientados pelo governo militar (Becker, 1988). Em larga escala, as terras foram adquiridas por agricultores com capital, oriundos dos estados do Sul do País, sobretudo do Estado do Paraná. Os agricultores sem recursos para custear o pagamento da primeira parcela de um imóvel tiveram sua subsistência condicionada à venda da mão-de-obra nas grandes propriedades (Guimarães Neto, 2002) ou no investimento em garimpos de ouro (Weihs; Sayago; Tourrand, 2017).

3Transcorrida a primeira década de ocupação dessa região, o colapso das lavouras “brancas” (milho, feijão, arroz, etc.), gerado por um conjunto de adversidades encontradas na produção, armazenamento, comercialização e logística, trouxeram a lume um modelo desenvolvimento territorial precário (Miranda, 1990). A falência de um grande número de agricultores resultou em êxodo rural, contribuindo para a reconcentração da terra e um acelerado processo de urbanização, bem como, na migração das famílias para abrir outras fronteiras agrícolas da Amazônia ou, ainda, para recomeçar a vida em seus Estados de origem (Cunha, 2006; Weihs; Sayago; Tourrand, 2017). Além disso, a falência das lavouras, associada às diretrizes regionais do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), uma política pública de concessão de crédito rural, aos poucos determinou a especialização da pecuária bovina leiteira, no setor da agricultura familiar regional (Sabourin, 2006).

4Uma das válvulas de escape das centenas de famílias que perderam as suas terras, durante esse processo, foram os PAs, sobretudo os da região norte de MT (CEAAF, 2010). Atualmente são 76 PAs, que foram criados majoritariamente na primeira década dos anos 2000 e ocupados por cerca de 24% do total de assentados do estado de MT (Starling Assad De Avila et al., 2019). As áreas correspondem a terras devolutas e, na maioria dos casos, ainda não foram legalizadas pelo Estado brasileiro (ICV, 2005).

5O PA São Pedro, localizado no município de Paranaita, integra esse conjunto de assentamentos. Foi criado em 1997, com objetivo de amenizar a alta demanda por terras, gerada, entre outros fatores, pelo processo de reconcentração da terra, especialização da pecuária e fechamento dos garimpos de ouro na região do município de Alta Floresta. O assentamento ocupa uma área total de 35.000 hectares, que foi designada à reforma agrária por meio da desapropriação de parte de uma propriedade privada (Agropecuária Mogno), considerada improdutiva pelo governo federal, em função de uma acanhada produção de arroz (Gervazio, 2019).

6Uma série de problemas de gestão da ocupação do território, por parte de INCRA, resultou em um intensivo processo de desmatamento e devastação da vegetação remanescente, incluindo as áreas de preservação permanente e de reserva legal. De acordo com Butturi et al. (2016), restam hoje cerca de 26% da vegetação natural, a qual está aleatoriamente distribuída nas propriedades rurais. As reservas legais, que haviam sido agrupadas em forma de condomínio, no projeto original, também foram ocupadas e parcialmente desmatadas.

7Um diagnóstico desenvolvido pelo ICV (2005) estimou que cerca de 40% dos assentados pioneiros venderam seus lotes e abdicaram da vida no assentamento. De acordo com Oliveira (2014), a ausência de infraestrutura constituiu-se em um dos principais gargalos enfrentados pelas famílias na primeira fase da ocupação. Ademais, os agricultores vivenciaram uma importante mudança na matriz econômica, quando necessitaram converter as lavouras de grãos em pastagens, para a criação de bovinos. Entre os principais riscos atuais à permanência na terra e reprodução social da família na agricultura, Silva et al. (2018) e Eri et al. (2020) chamam a atenção para o avançado estágio de degradação das pastagens, incluindo o risco de “morte súbita”, uma das causas das deficiências de acesso ao crédito, um dos principais vetores do fortalecimento da agricultura familiar no contexto da fronteira agrícola da Amazônia. Ademais, há ineficiência na assistência técnica e a força de trabalho se tornou escassa, tendo em vista a idade avançada da população que subsiste na terra.

8As vulnerabilidades do assentamento são francamente expostas com o recente movimento de expansão da monocultura de soja para a região. A área de produção de oleaginosa, no município de Paranaíta, aumentou 775% entre os anos de 2013 e 2017 (IBGE, 2018). O problema existe principalmente porque, na medida em que as lavouras avançam para o norte do Estado, no bioma Amazônia, os agricultores familiares em situação de vulnerabilidade vão sendo impelidos, com ou sem conflitos, a comercializar ou arrendar as suas terras para os grandes produtores expandirem suas lavouras (Fernández, 2007). De uma parte, esse fenômeno causa resistência de alguns agricultores familiares. De outra, cria esperanças a agricultores familiares, que se julgam incapazes de satisfazer as atuais necessidades e desejos de consumo de suas famílias.

9Esse misto de problemas é aqui analisado à luz do processo histórico e da dinâmica recente do PA São Pedro. Tendo em vista os processos históricos vivenciados pelas famílias, na atualidade, quais são as suas principais vulnerabilidades? Nesse contexto, quais são as ameaças à agricultura familiar, diante da pressão exercida pelas lavouras de soja? Essas são as principais questões que o estudo busca responder. Não se trata de um esforço para esgotar o assunto, mas, de forma descritiva, colaborar para a compreensão de algumas das vulnerabilidades existentes atualmente na agricultura familiar e as ameaças geradas pela expansão das lavouras de soja, um dos mais recentes estressores da agricultura familiar nos assentamentos de reforma agrária na Amazônia mato-grossense.

10O texto está dividido em três partes, nas quais listamos os três ciclos de desenvolvimento que determinam as dificuldades à continuidade da agricultura familiar no PA São Pedro.

Metodologia

Área de Estudo

11O estudo foi realizado no ano de 2017, no PA São Pedro, município de Paranaíta, MT, localizado a 880 km da capital, Cuiabá (mapa 1).

12Fonte: Jôine Cariele Evangelista do Vale, Georreferenciado no Software ArcGIS® 10.3.

13Neste município há uma representativa presença de população rural. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2018, do total de 11.193 habitantes, 47,1% dos domicílios localizam-se no meio rural (IBGE, 2016). São, ao todo, 1.681 estabelecimentos agropecuários familiares que ocupam aproximadamente 1/3 da área total do município (IBGE, 2009).

14O PA São Pedro (figura 2) é um dos maiores projetos de assentamento de reforma agrária do Estado de MT, ocupando 33,10% da área total de agricultura de pequena escala do município de Paranaíta (Alcântara, 2011). O projeto foi concebido e implementado pelo INCRA para assentar 776 famílias (Brasil, 1997). Em 2010, o PA era ocupado por 634 famílias (EMPAER, 2010). O seu território é dividido em 22 comunidades (Figura 1), as quais possuem entidades representativas locais e uma entidade que representa todas, denominada Associação dos Produtores do Assentamento São Pedro (EMPAER, 2010).

15Procedimentos Metodológicos

16Para a seleção das comunidades envolvidas na pesquisa optou-se por aquelas que apresentam características que ampliam a sua predisposição a conversão em lavouras de soja. Consideramos, nesse sentido as comunidades que têm maior proximidade com as vias de escoamento de produção (rodovias ou estradas de maior porte); e maior proximidade com as grandes fazendas produtoras de soja. De posse desses critérios optamos por incluir as comunidades Rio Jordão e São Marcos (figura 1).

17Outro motivo que nos levou a escolher essas comunidades foi o relevo relativamente plano, requisito necessário para a implantação dessa modalidade de agricultura (figura 2).

18Os dados analisados no estudo advém de 36 entrevistas de caráter semiestruturado (Ander-Egg, 1978), isto é, guiadas por um roteiro pré estabelecido, as quais foram associadas à construção de linhas do tempo e observação participante. Selecionamos as famílias participantes de forma aleatória, incluindo a família de uma propriedade e excluindo a família da propriedade seguinte. Entrevistamos 18 residentes da Comunidade Rio Jordão e 18 residentes da comunidade São Marcos. Como a comunidade Rio Jordão é maior que a São Marcos (figura 1), incluímos apenas as propriedades cujos limites coincidem com os limites do PA São Pedro.

19Entrevistamos o adulto (ou o responsável familiar) presente na propriedade no momento de nossa visita, partindo da premissa de que este possuía mais informações que permitiriam responder as perguntas levantadas por este trabalho. As entrevistas eram moderada pelo pesquisador, que conduzindo a conversa buscando associar as resposta, com o auxílio dos entrevistados, para a construção de uma linha de tempo que conta a história de cada família (Weihs; Sayago; Tourrand, 2017).

20De acordo com Yakura (2002), esse método permite fazer uma representação gráfica de um conjunto de unidades temporais pontuadas por "eventos" ou "marcos". O uso da linha do tempo é especialmente rico porque permite que o pesquisador acesse um grande volume de informações, sobre o passado, o presente e fazer projeções do futuro (Kolar et al., 2015), dadas a possibilidade de uma posterior sistematização das várias opiniões sobre o mesmo assunto em uma única linha do tempo (Adriansen, 2012).

21Na primeira parte da entrevista, as perguntas nortearam a construção do perfil socioeconômico das famílias participantes. Na segunda parte as perguntas desdobravam-se em três dimensões, em todas elas foram incluídas as lembranças do passado, as observações sobre o presente e as perspectivas futuras: (i) as transformações nas estratégias de obtenção de renda; (ii) os impactos socioambientais e seus determinantes socioeconômicos; (iii) os determinantes das possíveis transformações associadas à expansão do monocultivo de soja em direção ao assentamento. As estratégias usadas na execução do método foram orientadas por (Soriano, 2004; Minayo, 2009; Richardson, 2012).

22Com a permissão concedida pelos entrevistados através de um Termo de Consentimento do Livre Esclarecido todas as conversas foram gravadas e transcritas. As propriedades e atividade de pesquisa foram fotografadas com a devida permissão dos proprietários.

23As informações obtidas por meio das entrevistas foram sumarizadas em tabelas e as séries das linhas do tempo permitiram a construção de um esquema-síntese, em qual foi possível visualizar as etapas de transformação do assentamento. Por fim, com base no conjunto de informações coletadas, os determinantes e os processos que transformaram o assentamento foram colocados fronte-a-fronte e analisados com apoio das observações participantes (Gervazio, 2019), em busca de respostas para a capacidade dos agricultores enfrentarem o desafio da atual expansão da soja. Os resultados são apresentados na forma de uma narrativa, acrescida de informações obtidas em outras fontes.

Resultados e discussão

Perfil socioeconômico dos entrevistados

24A ampla maioria dos agricultores participantes da pesquisa possuía idade acima de 41 anos (92%) (tabela 1), sendo que 53% tinham idade acima de 50 anos. Em 61% dos casos, tratava-se de mulheres. O nível de escolaridade do grupo era baixo, tendo em vista que 78% possuíam menos de 8 anos de estudo. As famílias dos entrevistados são compostas por 2 ou 3 pessoas, geralmente o marido, a esposa e um filho jovem.

Tabela 1: Perfil das famílias entrevistadas.

Perfil		N	%
Gênero
	Masculino	14	39%
	Feminino	22	61%
Idade do entrevistado
	Abaixo de 30 anos	2	6%
	De 31 a 35 anos	1	3%
	De 41 a 45 anos	8	22%
	De 46 a 50 anos	6	17%
	Acima de 50	19	53%
Pessoas no grupo familiar
	0	1	3%
	2	9	25%
	3	9	25%
	4	3	8%
	5	6	17%
	6	4	11%
	7	2	6%
	8	2	6%
Escolaridade
	Analfabeto	1	3%
	1º grau incompleto	28	78%
	1º grau completo	1	3%
	2º grau incompleto	2	6%
	2º grau completo	4	11%

Fonte: Elaborado pelos autores.

25Quanto à procedência das famílias, a maioria migrou de municípios do norte de MT (Paranaíta, Alta Floresta e Carlinda), sendo originários, principalmente, do estado do Paraná (47%), localizado na região sul do país (tabela 2). Cerca de dois terços dos entrevistados (67%) eram agricultores em seus locais de origem. A respeito do motivo pelo qual vieram residir no PA São Pedro, 94% dos agricultores afirmaram ser pelo desejo de ter “sua própria terra”.

Tabela 2: Histórico das famílias entrevistadas.

Histórico		N	%
Tempo de residência no PA São Pedro
	Menos de 5 anos	2	6%
	De 10 a 15 anos	6	17%
	De 15 a 20 anos	26	72%
	Mais de 20 anos	2	6%
Atividade anterior
	Agricultor	24	67%
	Assalariado	4	11%
	Pecuarista	1	3%
	Autônomo	7	19%
Lugar de origem
	Paraná	17	47%
	Santa Catarina	1	3%
	Minas Gerais	2	6%
	Bahia	2	6%
	Maranhão	3	8%
	São Paulo	1	3%
	Alta Floresta/MT	7	19%
	Paranaíta/MT	2	6%
	Carlinda/MT	1	3%

Fonte: Elaborado pelos autores.

26Aproximadamente três quartos dos entrevistados (72%) residem no PA São Pedro há mais de 15 anos, sendo que 67% foram assentados diretamente pelo INCRA. Os demais adquiriram a propriedade de terceiros.

27A pecuária bovina constitui a principal fonte de renda da ampla maioria das famílias (tabela 3). A renda é complementada pela aposentadoria (44%), venda da mão-de-obra em outras propriedades a um valor fixo diário (22%) e de emprego fixo (14%).

Tabela 3: Meios de obtenção de renda

Atividades produtivas		N	%
Fonte de renda vinda da propriedade
	Gado de corte	10	28%
	Gado de leite	20	56%
	Aluguel da pastagem	8	22%
	Cultura perene/cultura temporária	10	28%
Fonte de renda externa
	Nenhuma	4	11%
	Diarista	8	22%
	Emprego	5	14%
	Aposentadoria	16	44%
	Emprego/Aposentadoria	1	3%
	Aluguel de casa na cidade	1	3%

Fonte: Elaborado pelos autores.

Os ciclos de desenvolvimento

Primeira fase: Ausência de infraestrutura, abundância e diversidade de alimentos

28O Lugar encontrado, no momento do assentamento das famílias, não possuía a infraestrutura mínima. Havia somente trilhas, que cortavam as densas florestas, sem qualquer estrada, escola, casa ou outro aporte necessário. Apesar de possuírem uma origem comum, na maioria dos casos, as famílias eram estranhas entre si.

29Entre as primeiras medidas a serem tomadas pelas famílias estava a abertura das estradas, construção de residências e conversão da floresta em área produtiva. Oliveira (2014) relata que este foi um período de muitas dificuldades, contribuído para a renúncia da terra, de um número significativo de famílias. Segundo alguns entrevistados, muitas vezes, a necessidade de complementar a dieta familiar os levava a recorrer à caça de animais silvestres para a obtenção de proteína animal.

30A situação econômica melhorou nos anos seguintes. No início dos anos 2000, houve abundância na produção de café, arroz, milho, feijão e cana de açúcar, entre outras culturas, além de hortaliças e animais para consumo. A lavoura garantia a subsistência das famílias e 75% dos entrevistados dependiam exclusivamente dela. As colheitas eram trocadas entre vizinhos. Em alguns casos era necessário comprar apenas o sal de cozinha.

Segunda fase: A segurança e as ameaças da especialização da pecuária bovina

31A especialização da pecuária bovina, em curso especialmente a partir de 2003, mudou o cenário de abundância e diversidade de alimentos. Atualmente, 39% dos agricultores dependem fortemente da renda advinda da produção leiteira. Outros 61% dependem de aposentadorias, empregos, diárias, juntamente com a produção de culturas perenes e temporárias (ex. maracujá, café) ou a venda de gado para corte. A maior parte dos alimentos é adquirida nos supermercados.

33Ficou difícil manter as lavouras devido à necessidade da mão de obra intensiva, insumos e agrotóxicos. Logo, o financiamento era uma oportunidade de implantar uma única cultura e tornar produtivas as áreas que chamam de “desperdiçadas” (área com vegetação nativa, afloramentos rochosos, pontos alagados, etc.). Também havia a dificuldade para adquirir ferramentas de trabalho e artigos de necessidade básica. Neste contexto, a introdução do leite foi positiva, pois oferecia uma alternativa que lhes garantia um recurso financeiro fixo ao fim de cada mês.

34Aproximadamente quinze anos se passaram desde o primeiro plantio de pastagens. Hoje, a maior parte está degradada e sofre epidosdios de “morte súbita” do capim (Brachiaria brizantha) (Figura 3). De acordo com Müller et al. (2004), na Amazônia, esse processo ocorre principalmente devido à diminuição da fertilidade do solo, 6 a 8 anos após a conversão da floresta em área agrícola. A manutenção da qualidade das pastagens demanda adubação e fertilização (Noronha et al., 2010).

35O custo financeiro para adubar e “reformar” a pastagem é alto, e apenas alguns agricultores dizem ter condições financeiras para realizá-las. Nas palavras dos agricultores:

“O pasto só tira da terra, a gente reformou, mas não tem muita experiência para saber até quando vai durar”.

“Para dar manutenção no pasto precisa roçar, passar veneno no assa-peixe [Vernonia polysphaer, planta invasora], manter as cercas limpas. Pra você ter ideia, uma "bola" de arame liso com 1000 m custa R$ 300,00. Fora o preço do veneno e da mão de obra, que é difícil de achar (...). A gente não dá conta sozinho”.

36Um fator limitante é a dificuldade em acessar novamente os financiamentos agrícolas, determinado pela usência de titulação da terra. De acordo com Le Tourneau; Bursztyn (2010), um movimento iniciado nos anos 2000, por meio de uma parceria entre o Ministério do Meio Ambiente e o INCRA, vem tentando regularizar a situação dos lotes em assentamentos amazônicos. No entanto, as demandas dos órgãos, sobretudo em termos ambientais, bem como a burocracia e a falta de capacidade funcional associada, tem trazido lentidão ao processo (Fatorelli; Mertens, 2010).

37Para a maioria dos agricultores, o cenário atual é de instabilidade financeira. O valor pago no litro de leite pelos laticínios é instável e insuficiente, segundo os agricultores, para a manutenção da produção. O preço costuma variar de acordo com a oferta e a demanda, sendo que na época de estiagem, o valor é mais elevado (entre R$ 1,00 e R$ 2,00), período no qual o produtor precisa investir em ração para o gado, devido à seca que afeta as pastagens. No período de chuva, as pastagens se renovam, o que deveria ser mais vantajoso para o produtor, porém o valor do leite diminui (de R$ 0,70 a R$ 0,99). Logo, o que é ganho, retorna como investimento, formando um ciclo que afeta negativamente a renda da propriedade, como indica um dos entrevistados:

“Quando foi liberado o PRONAF, o valor era para comprar dez vacas, ou nove vacas e um touro. Você pode multiplicar, mas o gado come, bebe, precisa de remédio. Se você colocar na ponta da caneta você gasta muito e o gado leiteiro não dá esse retorno. A alternativa é vender bezerros, mas normalmente o preço não compensa. Se escolher sair para trabalhar para fora, você abandona a propriedade sem cuidar”.

38Mesmo diante de todas as dificuldades, a manutenção da pecuária leiteira continua sendo fundamental para a segurança da renda familiar mensal, além de outros benefícios, tais como a facilidade comercialização do leite (Souza & Erpen, 2009). Em cada comunidade do Assentamento São Pedro existe um resfriador de uso coletivo para o armazenamento do leite. Caminhões de diferentes laticínios buscam o leite em pontos centrais de cada comunidade (Gervazio, 2019). Portanto, a comercialização não é um problema.

39Alguns proprietários foram forçados a desistir, vender o gado e alugar a pastagem. Segundo esse grupo, com essa medida, o único custo passou ser o da manutenção de cercas e da pastagem.

“O aluguel do pasto, para quem não tem gado, é uma alternativa boa. Só que você precisa de 1 alqueire [4,8400 hectares] de pasto para colocar 5 cabeças de gado. Se cada cabeça de gado custa R$ 25,00 no aluguel, então o gado vai comer o mês inteiro por R$ 125,00.”

40A falta de orientação técnicas para a produção e comercialização de alimentos é um dos principais problemas que tem levado ao aluguel dos pastos. Segundo alguns dos entrevistados:

“Se você plantar alguma lavoura, em 1 hectare você lucra mais que o aluguel do pasto. Se o governo investisse um dinheiro para os produtores rurais produzirem alimentos, com garantia de venda, o produtor iria se acostumar dentro da lavoura com compromisso”.

“Se a gente tivesse garantia de compra e orientação para plantar a coisa certa, a nossa vida seria bem melhor”.

Terceira fase: As ameaças do avanço das lavouras de soja em direção ao PA

41A área de produção de soja no município de Paranaíta aumentou significativamente entre os anos de 2013 e 2017, passando de 200 para 2.598 ha (IBGE, 2018). Esse acelerado processo de conversão das pastagens em lavouras pode provocar uma mudança drástica na dinâmica de vida e trabalho no PA São Pedro, como tem sido observado em outras regiões do Estado de MT. A principal consequência desse processo é o crescente fenômeno de venda e arrendamento de terras nos assentamentos (Chelotti & Pessôa, 2006), além do êxodo rural.

42Na percepção de 61% dos agricultores (tabela 5), o avanço das lavouras de soja em direção ao PA (e em torno) ainda não provocou mudanças internas. No entanto, entre aqueles que notam alguma mudança (39%), a metade relata a redução do valor de aquisição do milho. Esse processo ocorre porque em uma parcela das grandes propriedades, o cereal é produzido em alternância com a soja, o que contribuiu para que, em Paranaíta, a área de produção de milho aumentasse em 230%, entre os anos de 2013 e 2017 (de 310 a 1023 ha) (IBGE, 2018). Os novos preços melhoram as condições de criação de galinhas e porcos e, principalmente, do gado no período de estiagem, quando ocorre o esgotamento da pastagem. Outros benefícios em curso são: a geração de empregos (8%), valorização das propriedade (6%) e a diminuição do preço do gado (1%).

Tabela 5: Mudanças e problemas atuais gerados pela chegada da soja na região.

Mudanças e problemas			N			%
Mudanças
	O preço do gado diminuiu		1			3%
	Não sabem		2			6%
	Valorização das propriedades		2			6%
	Mais empregos		3			8%
	O preço dos cereais diminuiu		18			50%
	Nada mudou		22			61%
Problemas
		Transporte	2			6%
		Estradas	3			8%
		Outros	4			11%
		Não há problema	29			81%

Fonte: Elaborado pelos autores.

43Em uma perspectiva futura, a ampla maioria dos entrevistados (81%) não vê a expansão da soja como um problema para quem vive e trabalha no assentamento. Ao contrário, um proporção significativa do grupo acredita que haverá ganhos, principalmente a geração de empregos/renda, mencionada por 75% dos participantes (tabela 8).

Tabela 8: Mudanças positivas esperadas pelos agricultores com a implantação das plantações de soja dentro do PA São Pedro.

Mudanças positivas	N	%
Aumento da renda/ empregos	27	75%
Não sabem	4	11%
Valorização da propriedade	3	8%
Adubação do solo	3	8%
Mais dinheiro para o município	2	6%
Acabariam com a "juquira"	1	3%
Melhoria das estradas	1	3%

Fonte: Elaborado pelos autores.

44A demanda por emprego no setor da agricultura familiar é um fenômeno que se revela em todo o território nacional. De acordo com Wanderley (2009), trata-se de uma estratégia de diversificação das fontes de rendimento familiar que melhora as condições econômicas e, em muitos casos, garante a permanência da família no campo. Na perspectiva dos agricultores, a chegada da cultura mecanizada pode ser uma solução para o problema no PA. Além de promover um meio de subsistência para as famílias, pode reduzir o fluxo constante dos jovens para a cidade.

45Apesar disso, nem toda demanda poderia vir a ser suprida, uma vez que a capacidade de geração direta de empregos pelo setor da soja no MT é de fato modesta (Figueiredo et al., 2005, p. 569). Por exemplo, para atender a demanda final do setor em R$ 1 milhão são gerados apenas oito empregos diretamente na própria atividade. Além disso, a alta mecanização do setor e a intensidade do investimento em capital demanda uma mão de obra altamente qualificada que, na maioria dos casos, é absorvida de outras regiões. Mesmo em atividade indiretamente associadas ao setor, como o trabalho nas indústrias fornecedoras de insumos à produção, são altas as exigências do mercado, em termos de qualificação dos trabalhadores.

46A expansão das lavouras de soja gera riscos à permanência dos agricultores no assentamento, sobretudo quando os grandes proprietários encontram vulnerabilidades socioeconômicas locais (Ludewigs et al., 2009). Na perspectiva dos agricultores do PA São Pedro, as principais fragilidades, nesse sentido, são as possíveis dificuldades em manter a propriedade produtiva e a necessidade de tratamentos médicos. Neste contexto, um terço dos agricultores (31%) admite que venderia a propriedade a produtores de soja, caso necessitassem (tabela 6).

Tabela 6: Agricultores que venderiam ou não suas propriedades para o plantio de soja

Você venderia a sua propriedade para o plantio de soja?		N	%
	Não sabem	2	6%
	Não	9	25%
	Não, a propriedade tem valor sentimental	13	36%
	Não, a renda atual é suficiente	1	3%
	Sim, não tem condições de continuar na propriedade	6	17%
	Sim, a renda ajudaria em tratamentos de saúde	5	14%

Fonte: Elaborado pelos autores.

47Outros 33% reconhecem que poderiam arrendá-la (tabela 7). O arrendamento é visto como uma saída para os problemas das famílias mais pobres e que perderam parte da mão-de-obra familiar, em virtude da migração dos filhos para trabalhar na cidade ou em outras propriedades agrícolas. O mesmo sentimento é compartilhado por aqueles que perderam a qualidade da pastagem e necessitam investir para renová-las, sem ter condições financeiras suficientes para tanto, sobretudo em no contexto de perda do acesso ao crédito.

Tabela 7: Agricultores que arrendariam ou não suas propriedades para o plantio de soja

Você arrendaria a sua propriedade para o plantio de soja?	N	%
Não sabem	5	14%
Não	12	33%
Não, teria que deixar a propriedade devido aos agrotóxicos	1	3%
Não, "acabaria" com a propriedade	3	8%
Não, a renda atual é suficiente	8	22%
Sim	2	6%
Sim, pois a terra seria adubada e recuperada	3	8%
Sim, pois teria renda	7	19%

Fonte: Elaborado pelos autores.

48Na percepção de algumas dessas famílias, o arrendamento da terra solucionaria o problema das áreas atualmente abandonadas, em função do avançado estágio de degradação das pastagens. A fala de um dos entrevistados demonstra essa percepção:

“Arrendar para plantar soja acabaria com as ‘pestes’ do pasto (...) e você teria sua propriedade limpinha e ainda ganharia com isso. Eles [os produtores de soja] adubariam”.

49Uma visão que traz a tona a perspectiva de transitoriedade dos arrendamentos, ou seja, a crença de que, após o fim do contrato de cessão das terras, as famílias irão retornar à propriedade e a encontrarão “limpa”, preparada para a reinserção das culturas desejadas. No entanto, não é essa a dinâmica que tem sido observada nos assentamentos da Amazônia. Trata-se de um processo sem volta, uma vez que o arrendamento viola a função social da terra e anula a condição intrínseca que identifica o beneficiário da reforma agrária, como sugerem Lima; Skutsch; Costa (2011), a aproximação das plantações em grande escala geralmente deslocam os agricultores familiares de suas terras. Incapazes de retornar à atividade, esses agricultores acabam sendo absorvidos pela economia local.

50Sobre ao contexto de vulnerabilidade que levaria os agricultores a arrendarem ou venderem suas propriedades, 28% dos participantes acreditam que há a possibilidade de a agricutliura familiar ser severamente afetada (tabela 9).

Tabela 9: Percepção quanto aos possíveis impactos negativos futuros em seu modo de vida gerados pela chegada da soja, para o Assentamento São Pedro.

Impactos futuros		N	%
	Fim da agricultura familiar/êxodo rural	10	28%
	Excesso de veneno	9	25%
	Produtos básicos de consumo ficariam mais caros	4	11%
	Prejudica a pastagem	2	6%
	Prejudicaria a conservação das estradas	2	6%
	Fim da mão de obra braçal	1	3%
	Não sabem	9	25%

Fonte: Elaborado pelos autores.

51Outro elemento importante da preocupação de 25% do grupo são os prejuízos às plantações que podem a ocorrer em razão do excesso de pesticidas usado no cultivo da soja (25%) (tabela 9). Em alguns municípios do norte de MT, como em Nova Guarita, há registros de eventos chamados de “chuva de agrotóxicos”. Nessas circunstâncias, plantações de assentamentos de reforma agrária foram atingidas por pulverizações aéreas realizadas em grandes propriedades, localizadas nas proximidades (Freitas, 2016). O Ministério Público de Alta Floresta (inf. pessoal) chegou a notificar grandes produtores de Paranaíta e Carlinda, pelos prejuízos causados a agricultores familiares. Por vezes, a persistência dos herbicidas no solo provocou perdas de produção por mais de dois anos, afetando, em situações críticas, parte considerável da renda das famílias afetadas.

52A alusão à problemática ambiental trouxe a lume uma paradoxal posição dos agricultores do PA São Pedro em relação ao avanço da soja. Frente à questão ambiental, grande parte das perspectivas positivas foram secundarizadas pelos agricultores, considerando que, em conjunto, as perspectivas futuras não seriam tão positivas. Isso ocorre porque, na fronteira agrícola da Amazônia, a construção da percepção sobre as ameaças e vantagens da soja é transpassada por memórias de desastres e buchichos relacionados a eles (Weihs, 2015). Assim, enquanto de um lado, os agricultores visualizam a possibilidade de alguma melhoria futura nas condições de vida, esbarram, de outro, no receio das consequências negativas que historicamente afetaram a agricultura familiar.

Conclusões

53O estudo pretendeu compreender as vulnerabilidades existentes no PA São Pedro, em função das dificuldades históricas vivenciados pelas famílias e as atuais ameaças geradas pela expansão das lavouras de soja.

54O contexto da agricultura familiar do PA é de envelhecimento da população (os pais) e a consequente falta de mão-de-obra causada pela emigração dos jovens (os filhos), que deixam as propriedades em busca de outras fontes de renda. As fragilidades criadas por esse processo, associam-se à perda de segurança econômica gerada pelo atual estágio de degradação das pastagens, as quais configuram, por meio da pecuária bovina e a comercialização do leite, as principais fontes de renda da maior parte das famílias.

55Os problemas poderiam ser redimidos com a obtenção da titulação das propriedades. Mas, mesmo com o esforço conjunto de diversas instituições locais (prefeituras e organizações não governamentais), até recentemente o processo burocrático que leva à geração dos títulos da terra não havia sido concluído. Na ausência da regulação fundiária, os agricultores não conseguem voltar a ter acesso ao crédito rural, via PRONAF, uma vez que o Banco Central do Brasil endureceu as exigências em 2008, colocando a problemática ambiental da Amazônia no centro das atenções. Muitas são as fragilidades encontradas, nesse contexto. A perda da oportunidade de inovação e fortalecimento da agricultura familiar é a mais importante delas.

56Os próprios agricultores reconhecem suas vulnerabilidades quando reclamam da longínqua escassez de assistência técnica que, quando ocasionalmente ocorre, pouco contribui, segundo eles, para a resolução dos problemas, sobretudo entre as famílias mais pobres. Outra observação dos entrevistados diz respeito à baixa capacidade de organização social, que os coloca, em grande parte, na dependência dos frigoríficos para comercializar o leite, tendo que submeter-se aos valores definidos por essas instituições.

57Mas não há só fragilidades no PA São Pedro. Os aprendizados acumulados durante o penoso processo de adaptação ao PA, considerando o abandono inicial, por parte das instituições públicas, a energia despendida para converter a floresta em lavouras e a necessária especialização da pecuária bovina, traz certa segurança a uma parcela das famílias. Seguramente àquelas que conseguiram se capitalizar ao longo do processo. No entanto, de forma geral, o conhecimento das condições em que vivem e a presunção das reações necessárias diante de novos desafios, contribui para que as famílias se sintam relativamente seguras diantes das ameaças à agricultura familiar geradas pela aproximação das lavouras de soja.

58Como ocorre em outras assentamentos do norte de MT, a expansão das lavouras de soja aumenta a pressão sobre os agricultores, ameaçando a sua permanência no assentamento e a reprodução social da família na agricultura familiar. O fenômeno afeta principalmente aqueles que convivem com algum tipo de vulnerabilidade (pobreza, baixa capacidade produtiva ou adoecimento de um membro da família).

59Para gerar renda e manter a relação com a terra, as famílias de assentados necessitam de incentivo para diversificar a produção e, em conjunto com a vizinhança e o setor público, criar alternativas de comercialização, agregar valor aos seus produtos, sobretudo produzindo em consonância com as prioridades de conservação dos ecossistemas amazônicos. Instituições externas, como as Organizações Não Governamentais, vêm contribuindo com o desenvolvimento do setor, sobretudo quando voltam as suas ações ao que interessa ao agricultor, em termos de produção e organização. Neste tipo de iniciativa, é de extrema importância a valorização da vivência e experiência da família agricultora na definição de estratégias de ação.