2Dada esta localização, apresentamos um inventário da ilha que resulta de um esforço de compilação de dados em campo (a maioria, coletados em julho de 2016) e em gabinete (consulta a materiais bibliográficos e, em menor medida, cartográficos existentes).

Dimensões e lugares notáveis

3Com alta declividade e formato elíptico, a toponímia lhe faz justiça. Bem se a assemelha a um monte de trigo. Com 130 hectares de área, possui seu eixo maior dirigido para N 60º E, com comprimento aproximado de 1,5 km (Coutinho e Melcher, 1973).

4Discrimina-se uma costa voltada ao continente, o mar noroeste, e, diametralmente oposta a ela, um costão íngreme ladeado pelo chamado « mar grosso ». Partindo-se deste ponto de mar aberto e de acentuado desnível litorâneo e seguindo-se em sentido anti-horário, tem-se, a nordeste, a Ponta Negra (dada a maficidade de sua constituição rochosa); ao norte, o Porto do Imbiru (sutil reentrância costeira do mar abrigado, opondo-se às correntes marítimas e de vento do sul, típicas do mar bravo); a noroeste, as Tocas (escolhos e lajeados marinhos, com destaque para a Lage, de maior dimensão); a oeste, costão pouco articulado; e, enfim, ao sul, as ilhotas e a Ponta do Sul (Ibidem) (Figura 3).

Retrato geológico-geomorfológico

5Posicionada, do ponto de vista morfoestrutural e tectônico, na Província da Serra do Mar, despontando como terra de gênese magmática, a ilha é uma suíte alcalina do Cretáceo e do Terciário (Heilbron et al., 2004 apud Enrich, 2006) e partilha de características geoquímicas similares às de outras ilhas oceânicas de origem e localização relativamente próximas, como Vitória, Búzios e São Sebastião (Spinelli, 2007). Estudos geocronológicos sugerem, por meio de datação isotópica com argônio, que a ilha possui rochas de até 86,5 milhões de anos, resultantes de diversas fases de magmatismo (Enrich, 2006).

6No terreno monteiro, existem quatro domínios petrográficos distintos (Enrich, 2000): 1. Sienítico (90% da área), representado por um stock, zonado quanto à saturação em sílica de modo a abranger tanto a nefelina sienito I, no centro geométrico insular, quanto a nefelina sienito II e o sienito com nefelina, nas áreas marginais. 2. Monzossienítico, em delgada fração sudeste. 3. Máfico, o segundo em área de ocorrência (7% do total), constituído por melateralitos e olivina melagabros com nefelina. 4. Ultramáfico, no extremo boreal, ladeado pelo setor máfico e com representatividade inferior à deste, com exemplares de clinopiroxenitos e olivina clinopiroxenitos (Figura 5).

7Adentrando-se o costão rochoso, há rochas com direções de diaclase produzidas por “mecanismo de resfriamento geometricamente condicionado à forma do maciço” (Coutinho e Melcher, Op. cit., pp. 244-245). Os matacões de sopé e média vertente abundam na medida em que o gradiente altimétrico médio de 48% desencadeia um contínuo processo de deposição gravitacional. Os sedimentos são grosseiros, não havendo quaisquer praias arenosas ou pontos com volume avantajado de aluviões finos.

8Com 300 m por 600 m, há um platô de aspecto melânico ao norte, particularizado em relação ao maciço mais austral. Sua declividade relativamente menor constitui fator de fixação populacional (é lá que se encontra a Vila dos Pescadores). No maciço, há um costão oriental bastante íngreme e um costão ocidental repleto de blocos decamétricos empilhados (constituindo aquilo que os habitantes denominam “cavernas”) (Enrich, 2006). De seu lado, a orientação subvertical das vertentes e do costão, combinada à considerável declividade e à resistência das rochas à intemperização, oferta solos aparentemente rasos e cobertos por matacões (Cardoso, 1996). Não fosse a exuberância da cobertura vegetal, as rochas expostas seriam o distintivo do espaço monteiro. Por sua vez, o topo rochoso aguçado (pontão) insinua-se com paredão adjacente mais declivoso que a média do conjunto insular, tendo-se, em paralelo, nas cotas altimétricas inferiores, uma exposição esparsa de lajes segundo uma franja litoral medianamente articulada. Aliás, este alto gradiente altimétrico, superior ao das ilhas graníticas, é típico dos terrenos alcalino-sieníticos, muitos deles, como é o caso, com formato cônico (Motoki, 1986).

Ambientes topoclimáticos

9Empregando-se a classificação climática de Köppen (Sartorello, 2010), o clima do litoral norte paulista define-se caracteristicamente como tropical, com precipitação média anual superior a 1.500 mm, total de chuvas do mês mais seco superior a 60 mm, temperatura média do mês mais frio superior a 18 ºC, sem estação invernal bem definida e com verões excessivamente úmidos. De mais a mais, a zona onde se localiza Monte de Trigo é típica de transição de sistemas atmosféricos, com grandes oscilações ao longo dos anos, amplitude térmica diária mais ou menos acentuada (por vezes, abrandada pela maritimidade), vento predominante de sudeste, período chuvoso (valores de até 2.000 mm) de outubro a março e período mais seco (totais mais baixos, porém normalmente acima de 1.000 mm) de abril a setembro (Monteiro, 1973, 1976 apud Sartorello, loc. cit.).

10Ademais, a distribuição das precipitações vale-se tanto da maritimidade quanto do efeito orográfico da Serra do Mar e da dinâmica das frentes (Schroder, 1956 apud Sartorello, loc. cit.). Isso porque o sistema oceano-atmosfera é a base do clima insular e, no caso da ilha, ocorre por meio dos embates entre a massa polar e a massa tropical atlânticas, bem como segundo o regime atmosférico desempenhado pelo Anticiclone e, principalmente, pela Zona de Convergência do Atlântico Sul. Dada a localização do Montão junto às isóbatas menos profundas da costa, os aspectos oceanográficos da Plataforma Continental de Sudeste (PCSE) tendem a influenciar o clima, bem como a sofrer suas influências diretas. A valer, “os movimentos das águas na PCSE são gerados por uma combinação de diferentes forçantes, tais como a Corrente do Brasil, as marés, os ventos e as descargas fluviais” (Mazzini, 2009, p. 3).

11Se, aos fatores climáticos apontados, somarmos a ação dos nevoeiros, que, em Montão de Trigo, têm participação mais evidente no pico rochoso aguçado, relativamente mais frio que o costão, torna-se possível inferir acerca da existência de ambientes topoclimáticos na ilha. Naturalmente, extrapole-se a distinção higroscópica entre pico e cotas mais modestas, há que se reconhecer outras duas regiões: a vertente do mar bravo e a vertente do mar abrigado, sendo a primeira comparativamente mais úmida.

A natureza como recurso

12O clima tropical úmido, quando combinado com uma suíte alcalina como a de Monte de Trigo, é capaz de ensejar uma série de fluxos hídricos vertente abaixo, alguns deles formando riachos ou, até mesmo, regatos coincidentemente às concavidades de dissecação. A alta declividade, a área diminuta insular e a resistência do leito rochoso não permitem a formação de um rio de maior caudal ou hierarquicamente mais significativo. Algumas dessas águas interiores, por seu lado, localizam-se na vertente do mar bravo e próximo ao costão austral. Um olhar atento a uma ortofotografia (Figura 2) ou a uma carta planialtimétrica (Figura 3) permite distinguir com facilidade um entalhamento fluvial com foz próxima ao Leme.

13Pesquisas de campo anteriores apontaram a existência de sete nascentes em média vertente (Cardoso, 1996), donde despontam cursos d’água de baixa vazão, com destaque para o córrego do Rio Pardo, mais setentrional (Carolino, 2010). Por sua vez, os moradores servem-se das águas de nascentes localizadas nas áreas mais elevadas, utilizando-se, para tal, de trilhas de difícil acesso e manutenção, algumas, inclusive, voltadas para a vertente oriental. Os monteiros também se valem de mangueiras conectadas diretamente nesses pontos de início de drenagem, bem como de caixas d’água em suas residências (Pereira, Novaes Júnior, Cunha e Mariano, 2009).

14Frutos do clima úmido, orientando-se segundo a gravidade oferecida pelo relevo, a despeito de seus obstáculos, os recursos hídricos, uma vez perenes, permitiram a colonização permanente da ilha. A luz solar, dadivosamente oferecida num contexto de tropicalidade, não é recurso menos importante: precisamente, a energia elétrica utilizada é de matriz fotovoltaica. A fonte dá-se por painéis solares acionados por baterias de carro, e, posto o fato de não haver outra opção existente, estão em uso apenas equipamentos de baixo consumo (televisores, rádios, carregadores de celular), excluindo-se, assim, geladeiras e chuveiros elétricos (Carolino, Op. cit.).

Mata, roça, pesca e pomar

15Em estudos preliminares de campo, identificaram-se formações vegetais associadas a costões rochosos e com mecanismos adaptativos à salinidade oceânica, bem como campos de gramíneas e samambaias. O domínio da Mata Atlântica, por sua vez, parece ser o aspecto dominante, com menor presença na proximidade do povoado setentrional, onde ocorre “a extração mais intensa de madeira para lenha, construção de casas e utensílios como remos e cabos de ferramentas” (Cardoso, 1996, p. 38). Capoeiras bem desenvolvidas e campos graminosos, com processos de sucessão ecológica em andamento, podem ser observados no Sítio de Lá e nos arredores da Vila dos Pescadores, dado o abandono paulatino, notadamente em finais da década de 1980, do roçado em ambas as localidades e o êxodo daqueles que habitavam a primeira delas. (Figuras 7 e 8).

16Tempos atrás, o binômio roça-pesca, base econômica dos caiçaras por excelência, manifestava-se de modo mais marcante na paisagem. Que se pode recuperar no histórico de produção primária da ilha, havia cultivos de batata, feijão e mandioca, hoje em número bem reduzido, quase ascendendo à vista do observador em pontos específicos do espaço insular como verdadeiros vestígios arqueológicos. A derrocada da roça deu-se principalmente por conta de dois processos: num contexto específico, pela infestação de ratos quando da construção da escola primária; num contexto geral, dadas as transformações socioespaciais do litoral norte paulista, que inserem as comunidades tradicionais em um âmbito de mercado de certo modo descompassado com suas práticas de subsistência e comercialização de excedentes agrícolas (Ibidem). A cana-de-açúcar e o café ainda vigoram.

17Traço distintivo caiçara é, por seu turno, o conhecimento profundo das espécies vegetais e seu aproveitamento, seja para a produção econômica, seja para o autoconsumo (construção, alimentação, medicamentos). De um lado, próximo às casas dos monteiros, há uma verdadeira floresta-pomar, com coqueiros e árvores frutíferas, cujos frutos são essenciais à manutenção da vida do ilhéu e cuja estrutura conjunta de dossel e raizame protege os solos e sombreia as residências. De outro, no maciço propriamente dito, mais ao sul, ocorre a Floresta Ombrófila Densa, com fisionomia e densidade elevadas e uma diversidade considerável de formas biológicas e estratos vegetacionais. Enfim, na condição de espaço intergrades, a floresta secundária e os campos graminosos impõem-se ao espaço monteiro como alternativas para o extrativismo vegetal. Aliás, em levantamento de campo, pudemos verificar o aproveitamento da madeira e da folha da bananeira para, respectivamente, a construção de casas e o trabalho artesanal. Afora tais fatos, podem-se citar os seguintes frutos e plantas aproveitados pelos ilhéus: maracujá, goiaba, pitanga, mamão, jabuticaba, banana, manga, jaca, coentro, capim-cidreira, erva-doce, boldo, hortelã, quebra-pedra e grumixama (Lima, 2014), afora algumas cactáceas e suculentas situadas na picada rumo ao topo do Montão.

18Dentre os representantes da fauna insular (Figura 9), podemos classificar os mamíferos em dois grupos principais: o das espécies nativas (em que se elencam o ratinho do mato, o morcego, o gambá e o quati) e os introduzidos (cotias, cabras, ratos, porcos, gatos e cães) (Varjabedian, 1996 apud Cardoso, 1996). Além dessa classe de animais, também destacamos as aves (galinhas, gansos, patos e pássaros, como sabiás-pretos), os lagartos e os aracnídeos, bem como um sem par número de insetos. Inclusive, em estudos de distribuição geográfica de mosquitos culicídeos (transmissores de enfermidades como malária, filariose, dengue, febre amarela e encefalite), foram encontrados, na ilha, exemplares da espécie Stegomyia albopicta, ainda não incriminados, até o presente momento, como vetores de qualquer uma dessas doenças tropicais (Pereira, Novaes Júnior, Cunha e Mariano, Op. cit.). Diferentemente de outras ilhas do litoral paulista, como Búzios, Vitória e Queimada Grande, não há quaisquer serpentes, consequência, decerto, do insularismo, condição de isolamento que bloqueou o fluxo migratório desses répteis oriundos de outras terras, insulares ou continentais.

19Sobre a atividade pesqueira monteira, base estruturante dessa comunidade de pouco mais de cinquenta habitantes, é possível verificar diferentes modalidades cujos principais alvos são, geralmente, tainhas, peixes de pedra (garoupas, caranhas, chernes, meros), enchovas, bicudas, lulas e cações (Cardoso, 1996).

20Até meados da década de 1970, a pesca monteira era mais sólida – em termos de ganhos monetários e de espaço e peixes disponíveis – do que o é na atualidade. A chegada de embarcações de arrastos e de parelhas (principalmente advindas do Rio de Janeiro e de Santa Catarina), nos anos subsequentes, acabou por constranger esses caiçaras, quer porque precisavam competir com empresas pesqueiras de capacidade técnica superior, quer porque não possuíam força política tampouco unidade estratégica para firmar raízes territoriais nos mares circundantes à ilha. Não obstante, nas águas próximas ao Montão, os conflitos também se dão entre monteiros e pescadores artesanais do continente, sendo potencialmente mais intensos no verão (de dezembro a março), quando as atividades se tornam mais concentradas. Tenha-se em mente que a pesca não é apenas considerada uma atividade arriscada como também é competitiva, uma vez que o mar é considerado patrimônio comum (Teramoto, 2014).

21Cada vez mais, a pressão sobre os monteiros intensifica-se, fomentando, inclusive, episódios emigratórios. Isso porque suas três bases econômicas estão sendo pressionadas – as roças minguaram, o extrativismo vegetal encontrou (mais recentemente) os impeditivos da legislação ambiental e os conflitos por peixes, crustáceos e moluscos tendem a se alastrar.

22Se adequada mostrar-se a fiscalização, com o estabelecimento de uma Área de Preservação Ambiental (APA) na região marítima onde se situa a ilha Monte de Trigo, espera-se minimizar os conflitos. Pois, sendo uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, haveria impeditivos à pesca empresarial de grande envergadura, ao passo que continuariam possíveis, do ponto de vista da legislação, as atividades haliêuticas artesanais das populações tradicionais (realizadas nos padrões culturais historicamente estabelecidos), bem como as de modalidade amadora e esportiva, desde que praticadas de modo sustentável. Persistindo o conflito, o zoneamento pesqueiro e a limitação do número de embarcações de frete seriam possíveis alternativas (Ibidem).

23Além do autoconsumo, a pesca monteira possui traços tipicamente comerciais, a despeito de seus resultados monetários frequentemente irrisórios. A venda de peixes na Barra do Una, na praia do Juquehy e, no máximo, em outras localidades próximas no município de São Sebastião, inserem Montão de Trigo no padrão tipicamente insular paulista, “com descarga em localidade próxima ao centro de comercialização” (Silva, 2014, p. 32). Por sua vez, as embarcações externas que pescam no entorno da ilha descarregam também no continente, contudo um pouco mais ao sul.

24Além das atividades econômicas citadas, elencam-se as atividades domésticas, o ensino formal (pagamento de salário a uma professora e à merendeira da escola), a limpeza das trilhas e da escola (remuneradas pelo Iate Clube da Barra do Una e pela Prefeitura Municipal de São Sebastião, respectivamente), a manutenção das embarcações e o artesanato (Carolino, Op. cit.). Quanto a este, citam-se os remos, as miniaturas de embarcações e gaiolas (produção majoritariamente masculina); as toalhas, os tapetes e as bolsas e chapéus de palha (confecção predominantemente feminina) (Cardoso, 2012); sendo que sua comercialização está voltada para os turistas no continente ou na própria ilha (onde aportam mergulhadores e pesquisadores).

Classificação segundo vocabulário caiçara – Németh (2010) Base de referência: Ortofotos – Emplasa (2011) Elaboração: Menegatto, 2017

Figura 8. Representantes da vegetação monteira

Infraestrutura e situação socioeconômica

25Dentre as picadas de circulação, há caminhos de certa densidade na Vila dos Pescadores com a clara função de interligar as residências e os equipamentos de uso comunitário, assim como há trilhas em direção ao pico, às nascentes da vertente do mar bravo e ao Sítio de Lá (Figura 3). Como verificamos em campo, dada a alta declividade do terreno, as distâncias físicas raramente coincidem com as distâncias-tempo.

26Outras infraestruturas de relevância e interesse na Vila (Figuras 10, 11 e 12) parecem ser as moradias (construções de madeira ou de material reciclado, cômodos diminutos, nem sempre contando com banheiros, eventualmente suspensas se declivoso o terreno onde se assentam), a escola (em alvenaria, com fossa séptica), o Portinho ou Porto do Imbiru (sem píer, com canoas puxadas mediante estiva de madeira), a Igreja Evangélica Assembleia de Deus, o campo de futebol (utilizado pelos ilhéus e outros pescadores eventualmente aportados) e as antenas retransmissoras (localizadas no cume, funcionando por intermédio de painéis solares pertencentes ao Iate Clube da Barra do Una). No Sítio de Lá, tem-se a capela de São Benedito, padroeiro da ilha (Carolino, Op. cit.).

27A educação está representada apenas pela escola municipal, originalmente construída em 1969, posteriormente desativada e tendo reiniciado suas atividades em 1991. Tal estabelecimento de ensino oferta, com o auxílio de uma única docente, aulas que equivalem até o patamar do 5º Ano do Ensino Fundamental, geralmente em classes multisseriadas.

28Não existem quaisquer infraestruturas de saúde (quiçá, há visitas nas épocas de vacinação), tampouco voltadas ao turismo. Sugere-se, pois, aqui o patamar socioeconômico dos monteiros. Assim, do ponto de vista formal, a escolaridade dos adultos é, por conseguinte, baixa, a despeito dos níveis diminutos de analfabetismo. Dessarte, na ausência de postos de saúde, o que constitui fato grave nas ilhas de ocupação consolidada, como o é Monte de Trigo, os ilhéus necessitam transladar ao continente para consultas ou urgências médicas. De mais a mais, podem-se enumerar outros fatos que justifiquem a viagem, a saber, a comercialização do pescado (à mercê do preço estabelecido pelo atravessador), a compra de produtos de uso essencial e a resolução de assuntos de âmbito civil (batizados, matrimônios, divórcios) (Pereira, Novaes Júnior, Cunha e Mariano, Op. cit.). Eis a insularidade manifesta.

Alma insular, vida comunitária

29A religião é aspecto essencial da vida monteira em diferentes tempos. Paulatinamente, as formas de solidariedade grupal em torno dos festejos católicos de outrora (nas festividades a São Sebastião e ao santo padroeiro, cada uma com duração de três dias) vão cedendo lugar ao respaldo mútuo diariamente manifesto pelos irmãos de culto. Isso porque a divisão entre católicos e evangélicos é fato recente.

30Conquanto os encontros da igreja componham segmento importante no cotidiano do ilhéu, outras atividades, como a visita ao continente, a reunião noturna para assistir aos noticiários e às novelas, os banhos próximos ao desembarcadouro e as partidas de futebol, são frequentes na vida desse lugarejo insular.

31Contrastando-se com as suprarreferidas infraestruturas físicas da ilha, há também as imateriais, aquelas que compõem o universo cultural caiçara. Nesse sentido, citam-se os seguintes itens e hábitos alimentares: uma ou duas refeições-padrão (com arroz, feijão e farinha, comprados do continente, e peixe como item principal ou mistura, pescado no local e preparado frito ou ensopado), café-de-cana (café adoçado com garapa), paçoca de cará ou pão local (cará cozido e secado no pilão) (Barros, 1997).

32E se o assunto é o espírito comunitário, ora fruto da religião, ora do trabalho, ora do lazer, vale ressaltar que os monteiros possuem propriedades comuns, como é o caso da escola, dos remanescentes da roça de cana-de-açúcar, da floresta e dos víveres nela presentes, mas, tal como outras sociedades caiçaras, não são exatamente coletivistas. Cada um, pois, tem sua propriedade. Há, inclusive, posse pessoal de árvores frutíferas (mesmo daquelas plantadas em áreas comuns) e de pontos no desembarcadouro, constituindo objetos de venda, aluguel e herança (Figura 13).

33É propriedade de cada família aquela constituída pela residência e área de entorno (quintal). São, contudo, raras as construções físicas criadas por mão humana capazes de estabelecer formalmente a segmentação dos terrenos, uma vez que as seções territoriais são mais ou menos compreendidas pelos moradores a partir de marcos divisórios naturais (córregos, rochas, árvores) ou já apropriados para o uso social (costão de desembarque) (Carolino, Op. cit).

Histórico da ocupação e atual perfil da população

35Há quem atribua o início do povoamento a uma espécie de mito de origem, no qual dois casais de irmão habitavam, cada qual, um costado da ilha e, uma vez em contato, relacionaram-se entre si, povoando o espaço monteiro. Mais factível, porém, parece-nos a versão oral coletada por Cardoso (1996): Antônio Pantaleão, Manuel e João aforaram a ilha junto à Igreja do Carmo, erigindo, em 1777, uma edificação onde hoje se assenta o desabitado Sítio de Lá. Com o gradual povoamento, Monte de Trigo transmutou-se numa paisagem organizada por duas centenas de pescadores-agricultores, que estabeleciam, com Bertioga e praias adjacentes, o comércio daquilo que era produzido na ilha ou nos seus mares circundantes. Fatos anteriores são apontados pela Sociedade Amigos do Bairro do Una – SABU (1983 apud Carolino, Op. cit.): o Montão pertencia à Fazenda Una, que, em 1656, foi concedida à família Vasconcellos por meio de uma carta de sesmarias e, em 1866, vendida a Antônio de Goés Filho.

36Finalmente, o século XX parece ter sido, nessa ordem de sucessão, o nascente e o poente do sucesso monteiro. De início, o Sítio de Lá destacava-se pela aglomeração humana, sendo que seus habitantes, para suas pescarias, partiam rumo a regiões marítimas relativamente distantes, como Alcatrazes e a Laje de Santos. Com o desequilíbrio demográfico (alta taxa de masculinidade, sobretudo) e o decréscimo do patamar socioeconômico, Monte de Trigo experimentou, adiante, o deslocamento interno do Sítio de Lá para a Vila dos Pescadores e o êxodo de vários moradores.

37Com base no Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, sabe-se que a população da ilha, em torno de 50 habitantes (mais especificamente, 49 pessoas à época), distribuída por 12 residências fixas, possui um perfil mais que heterogêneo, desigual: 31 homens, 18 mulheres; 4 crianças de 0 a 4 anos; 12 crianças de até 10 anos de idade, todas com registro de nascimento; 38 alfabetizados dos 45 habitantes com 5 anos ou mais; em 8 domicílios, os homens são os únicos responsáveis pela renda familiar; em 4, a mulher possui corresponsabilidade.

38Figura 13. Mapa dos usos do território

A ilha: território de quem?

39Do ponto de vista político-administrativo, Montão de Trigo pertence ao distrito de Maresias, município de São Sebastião.

40Do ponto de vista geográfico, está na Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte, Região Geográfica Intermediária de São José dos Campos e Região Geográfica Imediata de Caraguatatuba, Ubatuba e São Sebastião. A Vila dos Pescadores ocupa o setor censitário 0042, sendo uma localidade do tipo lugarejo rural (IBGE, 2010, 2017).

Estruturas fundamentais de Montão de Trigo à luz da modelização gráfica

42Os mapas são imagens analógicas da realidade. Exibem-na sob uma perspectiva, dentro de dimensões apropriadas, com medidas e transformações geométricas particulares, de posse de uma linguagem visual plena de intencionalidades. Nunca são a reprodução fiel da realidade, tal qual uma pintura realística, mas também não estão totalmente isentos das formas reais do terreno. Parecem habitar o domínio da analogia; sugerem suprimindo. Funcionam, portanto, como modelos, aproximações seletivas do real. E é precisamente aí que reside sua utilidade. “Naturalmente, nenhum mapa pode representar perfeitamente a realidade, mas não fazendo isso, ele é mais útil ainda” (Board, 1975, p. 139).

43Coabitam dois tipos de modos gráficos no âmbito dos estudos geográficos: um no sentido mais amplo, de seleção visual de elementos do espaço terrestre socialmente apropriado, outro no sentido mais específico, de representação dos próprios conceitos geográficos abstratos na forma de figuras. O primeiro sentido incluiria as imagens analógicas (cartas, mapas, plantas). Já o segundo seria modelo espacial em sentido normativo, forma abstrata daquilo que se considera mais significativo tanto em um campo de pesquisa próprio (o urbano, o agrário) como em um espaço assinalado (o Brasil, a ilha Montão de Trigo). Os mapas são modelos gráficos no primeiro sentido por ainda ocuparem o posto da analogia no que concerne ao espaço representado. Os modelos gráficos no sentido mais estrito, como os trata a Coremática, são pós-cartográficos ou metacartográficos (Théry, 2004 apud Dutenkefer, 2010), isto é, são modelos dos conceitos identificados no espaço representado ao longo de todo o trabalho cartográfico.

44As estruturas elementares do espaço ou coremas funcionam como signos, e o sistema de signos imagéticos que permite representar a realidade geográfica em suas diversas nuances é o que se chama linguagem gráfica. Ora, se esses signos representam cada qual uma estrutura elementar do espaço, tem-se um exercício de modelização gráfica. Precisamente, da qualidade esquemática e conceitual dos modelos gráficos depende a correta leitura do espaço. É importante afirmar que, na condição de expressão imagética demonstrativa porque pedagógica, o modelo gráfico deve ser “claro e legível” (é necessário abordá-lo com clareza de conjunto), “esquemático” (somente algumas informações são representáveis), “rigoroso” (“deve resumir sem depreciar”, visto que “a exatidão da análise é condição indispensável da síntese”) e “evocativo” (expressivo, dá destaque à imagem, faz alusões) (Brunet, 1962, pp. 18-26, tradução nossa).

45O corema representa, por meio dos modelos gráficos, uma forma geográfica comum a dois ou mais espaços – sem, é evidente, rejeitar o que é peculiar a cada lugar. Precisamente, frente à dicotomia entre a descrição e a normatização, problema que se anunciou tão logo nasceu a Geografia moderna, a Coremática, gramática dos coremas, surge como novidade não só no tratamento gráfico como na interpretação teórico-conceitual do mundo. Isso porque “o corema é o elo fundamental há muito em falta na teoria geográfica entre o espaço geral e os espaços específicos, desatando a clássica contradição entre a nomotética e a idiográfica, a ciência do espaço e o conhecimento dos lugares particulares” (Brunet, 2001, p. 196, tradução nossa).

46Na qualidade de re(a)presentações dos objetos e das dinâmicas que compõem a Terra, com seus símbolos e formas geométricas, os modelos gráficos propõem-se a expor quais estruturas fundamentais (coremas) configuram determinado retrato regional. Acerca de Monte de Trigo, intentou-se construir duas sortes de modelos: o primeiro grupo (modelos analíticos) com imagens de coremas isolados e outro (modelos sintéticos) com estruturas espaciais combinadas. O modelo sintético sugere conexões entre os fatos individuais do modelo analítico (Théry, 2004).

47Para que a modelização gráfica dê conta de captar as dinâmicas fundamentais do espaço insular, foi central que se fizesse um inventário geográfico preciso e dinâmico, abordando as especificidades de cada tema sem, com isso, desvinculá-lo de outros aspectos estruturantes. Com efeito, associar objetos tanto pela localização como pelos seus fenômenos sempre foi um problema para a Geografia Regional. Uma matriz de dados geográficos (Berry, 1964) é, dessa forma, mais que desejável: com um vetor-coluna oferecendo as características regionais ou locacionais e com um vetor-linha reunindo as características elementares ou substantivas, ficam derivadas a diferenciação das áreas (com comparações do vetor-coluna) e a covariação espacial (com comparações do vetor-linha). Se introduzirmos características como estabilidade e instabilidade, a matriz se torna dinâmica. Porém, se ainda quisermos uma matriz menos tradicional e cristalizada, podemos lançar mão de outras propostas, como a de Haggett e Chorley (1975), na qual se substitui “características locacionais” por “relatividade da localização” e “características elementares” por “dimensões do espaço geométrico” – ordem zero (pontos, localidades); primeira (linhas, redes), segunda (áreas) e terceira (terrenos).

48A escolha de uma ilha neste trabalho teve por objetivo experimentar imagens gráficas que tratem do tema da insularidade (clássico nos trabalhos de Geografia, mas negligenciado em muitos círculos de pesquisa), bem como usar a realidade insular como uma espécie de laboratório para um inventário geográfico regional (os limites são facilmente definidos e os fenômenos frequentemente alcançam pouca nuance frente a espaços regionais continentais, mais amplos e diversos). Aqui, se nossa compilação de textos e mapas se aproximou de uma matriz clássica de dados geográficos, para a construção de um modelo gráfico de Monte de Trigo, inspiramo-nos na matriz de dados geográficos de Chorley e Hagget (Op. cit,) e na tabela de coremas de Brunet (1962, 2001), buscando identificar estruturas fundamentais a partir da dimensão geométrica e da relatividade da localização dos fenômenos.

49Como os processos socioterritoriais somente são assimilados à luz das relações entre o tempo histórico e o espaço geográfico, a modelização gráfica da ilha em questão também nos traz estruturas espaciais pretéritas. Posto que analisar o espaço é mais do que descrever seus elementos numa ordem convencional – mas mostrar sua sucessão e suas interações –, todo espaço possui uma genealogia particular, sendo que, em relação a outros pontos do globo terrestre, há muitas semelhanças e diferenças, explicadas por distintos fatos e momentos que tanto derivaram de traços gerais como resultaram de características específicas (Brunet, 2001).

50Para evidenciar de forma mais nítida as estruturas e dinâmicas do Montão, simplificou-se o fundo do mapa da ilha. Dado que “a lógica da modelização e da representação coremática é geométrica e abstrata” (Dutenkefer, Op. cit., p. 113), os contornos de costa do espaço insular foram, na sequência, simplificados, depurados e, afinal, geometrizados.

Considerações finais

51As possibilidades de visualização gráfica e a própria memória visual são imprescindíveis ao trabalho geográfico, seja porque permitem a identificação de prováveis relações espaciais por meio de coincidências na localização, seja porque fomentam a transmissão pedagógica dos conhecimentos sobre o território – para a instrução da população que nele habita e para a ação de planejadores e governantes. Particularmente, imagens sobre as ilhas podem, por vezes, explicá-las mais do que os textos, ofertando chaves de interpretação de sua condição e funcionamento distintivos.

52Se um inventário geográfico e cartográfico permite-nos compreender, de maneira fragmentada e sucessiva, algumas das características que compõem a paisagem de Monte de Trigo, a modelização gráfica parece ir além: apresenta-nos a ilha como uma totalidade dinâmica, resultado da sobreposição, no espaço e no tempo, de fatores também presentes em outros espaços insulares brasileiros. O sol, a tropicalidade, o maciço magmático alcalino, o mar sempre à vista. Trunfos e adversidades à permanência dos monteiros no território a eles atado, seja pela tradição, seja pela necessidade. A esses fatores, somem-se a especulação imobiliária, o turismo, novas e velhas perspectivas jurídicas e políticas sobre a ilha, em especial, e o litoral paulista, em geral.

53De fato, o habitante de Montão de Trigo é, concomitantemente, caiçara e monteiro, identidade que lhe é, em certo sentido, complementar e, em outro, contraditória. Pois, como monteiro, ele tem amor à sua terra e, pela pesca e pela religião, parece conservar um pouco da vida comunitária que ainda lhe resta. Não obstante, como caiçara, ele não está sozinho – nem ele, nem sua comunidade; é, mormente, mais um dentre tantos moradores tradicionais do litoral paulista que, na busca pela diversificação de suas atividades, quer queira, quer a isso seja pressionado, elege a utopia do além-mar em detrimento da eutopia insular. De mais a mais, se assim o faz, sua ilheidade nunca é extinta por completo, uma vez que é dela que vem o nutriente cultural e psicológico para definir-se, segundo sua situação geográfica e posição social, como sujeito do mundo ou, ao menos, no mundo.