1A relação entre sociedade e natureza, implica em complexas interações que se colocam enquanto desafio científico frente a fragmentação das áreas do conhecimento (Morin, 2001). Nesse contexto, a Geografia assume o importante papel de confrontar o distanciamento entre os saberes ao permitir o diálogo de áreas distintas da ciência. Além disso, possibilita experimentar aplicações técnico-jurídicas para o entendimento dos processos que determinam a produção do espaço em suas diferentes escalas (Freitas, 2002). Neste sentido o presente estudo busca analisar os processos biogeofísicos da Mata Atlântica, bem como os atributos socioambientais do Quilombo da Fazenda, enquanto possibilidade de compreensão das complexidades territoriais existentes. Assim, vislumbra-se oferecer contribuições aos processos de reconhecimento de territórios historicamente habitados por povos e comunidades tradicionais.

2Para tanto, evidencia-se o contexto da luta pelo reconhecimento territorial da comunidade e o conflito instaurado pelo impasse sobre os estudos necessários para titulação da área, seus desafios e as limitações impostas pelo embate de ideias e posições políticas. Sendo assim, exercita-se o entrelaçamento entre referenciais teóricos e metodológicos que pressupõem aplicações de técnicas para o desenvolvimento de análises que consideram a ecologia histórica e a modelagem de dados ambientais.

3Nesse caso, a partir de literaturas sobre os temas relacionados ao estudo, foi possível assumir algumas definições importantes: que a floresta é o principal componente que expressa o resultado dos processos evolutivos e, que a dinâmica dos fatores ambientais representa relações históricas de interações entre sociedade e natureza. Assim, tem-se que os usos socioeconômicos, especialmente o extrativismo e uso sustentável da floresta são elementos que determinam os atributos morfodinâmicos dos territórios tradicionais. Diante disso, as análises empreendidas neste estudo confrontam o limiar da disputa pela apropriação e proteção dos recursos frente a concepções de justiça ecológica em detrimento da luta por justiça ambiental (Acselrad, et al., 2004).

4Portanto a aplicação prática dos resultados alcançados pode oferecer contribuições relevantes para o processo de luta quilombola. Para tal, as etapas deste trabalho compreendem: 1) evidenciar o contexto de luta pelo reconhecimento do território quilombola, 2) apontar as limitações técnico-jurídicas impostas pelo processo formal de reconhecimento, 3) abordar a aplicação metodológica como possível solução para avançar no debate normativo sobre o tema, 4) apresentar e discutir os resultados e sua potencial contribuição para a luta por justiça ambiental do quilombo.

Caracterização da área de estudo

5A área de estudo está localizada no extremo norte do litoral paulista, próximo à divisa com o estado do Rio de Janeiro, entre as coordenadas geográficas 23° 20' 14" sul e 44° 50' 10" oeste, sendo que o território analisado está inserido diretamente na planície costeira da praia da Fazenda, Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), município de Ubatuba-SP (Mapa 1).

Contextualização do Problema

6O processo de reconhecimento territorial do Quilombo da Fazenda iniciou-se em meados da década de 1990 e se estende até os dias atuais. Nesse contexto a Associação Comunidade Remanescente de Quilombo da Fazenda (ACRQF) destaca-se como principal representação na luta pela legitimidade dos remanescentes quilombolas e seus direitos territoriais. Assim, configura-se uma relação de assimetria posta pelo interesse da comunidade frente a proteção legal exercida sobre a área por parte do Estado, representado pelos órgãos do poder executivo e Procuradoria Geral do Estado (PGE).

7A Fundação Florestal (FF) órgão vinculado à Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SMA), justifica que não há elementos técnicos e científicos capazes de subsidiar o reconhecimento do território. Isso se dá pois, não há estudos que comprovem a capacidade suporte do meio que possa garantir a reprodução física e cultural dessa comunidade de forma sustentável (São Paulo, 2010). Por outro lado, a comunidade que reside na área a mais de 70 anos vive a mercê da condução vertical e excludente dos processos que envolvem a decisão sobre o reconhecimento. Desprovidos de um acompanhamento permanente que garanta equidade na disputa, são pressionados com argumentos técnicos e jurídicos que os condicionam a uma relação de luta desigual.

8A ocupação dessa região remonta aos séculos XVII e XVIII, período em que ocorriam ciclos econômicos, essencialmente relacionados a mineração e produção de café, os quais motivaram o uso de mão-de-obra escravizada, que chegaram na região, sobretudo, pelo porto de Paraty-RJ, condição que se estendeu até o início do século XX. O território até então pleiteado pela ARQF localiza-se em parte da área de uma antiga fazenda (Fazenda Picinguaba). A comunidade é constituída por caiçaras e descendentes de escravizados locais, ambas provenientes de bairros vizinhos, como de Ubatumirim, Almada, Vila de Picinguaba, Cambucá, entre outras localidades dos municípios de Paraty, Ubatuba e Cunha.

9No ano de 1947, a Fazenda Picinguaba entrou em decadência, período que culminou com as primeiras ocupações do território atual. Naquele momento, doze famílias foram autorizadas a morar e trabalhar no local, com anuência do então proprietário (Saint Clair Bustamante), que impôs restrição sobre comercialização das terras. Esse processo foi decisivo para a formação da atual comunidade, acompanhado à permanência da família do antigo administrador da Fazenda (Marchetti, 2008, apud, Itesp, 2007).

10Já no final dos anos de 1970 o governo estadual cria o PESM (Decreto Estadual n° 10.251/1977). O Parque de fato passou a sobrepor a área citada a partir da ampliação decretada em 1979, com a extensão dos limites sobre as praias: Brava da Almada, Fazenda, Picinguaba e Cambury (Decreto Estadual n° 13.313/1979). Atualmente o PESM é o maior parque estadual paulista, com área de 332 mil ha, engloba nove núcleos administrativos e compreende vinte e três municípios paulistas situados nos trechos de planalto e planície costeira (Decreto Estadual nº 56.572/2010).

11A implantação do Parque ocorreu efetivamente em 1984, a partir dos trabalhos da extinta Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista (SUDELPA) e do Instituto Florestal (IF), com o objetivo de conter o acelerado processo de especulação imobiliária e, consequentemente, os danos ambientais resultantes das ocupações irregulares da época (Imagem 1-a; b).

12Com a elaboração do Plano de Manejo da UC no ano de 2005 foi definido em seu zoneamento a chamada Zona Histórico-Cultural Antropológica (ZHCAn). O objetivo desta zona é a proteção do patrimônio cultural material (sítios históricos ou arqueológicos) e imaterial (modos de fazer e expressar dos povos tradicionais), visando estudos, interpretação e valorização para garantir a preservação, conservação e desenvolvimento.

13Nesse ínterim, como forma de garantir o acesso aos recursos naturais na ZHCAn, foi instituído o Plano de Uso Tradicional (PUT)1 formulado com o objetivo central de limitar a expansão da ocupação sobre áreas mais preservadas no interior da UC, sobretudo com relação à construção de novas residências, implantação de serviços destinados ao atendimento de turistas e supressão de vegetação (Simões, 2015). O PUT define a partir de subzonas no interior da ZHCAn, as áreas que devem ser garantidas para uso público e institucional, uso residencial caiçara e quilombola, subsistência, cultivo e uso sustentável de recursos florestais (São Paulo, 2006).

14Especificamente sobre a garantia dos direitos quilombolas previstas na Constituição Federal (artigo 68), o reconhecimento de quilombos alcançou êxito com o Decreto Federal nº 4.887/2003, que regulamentou o procedimento para identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas. Nesse sentido, em agosto de 2006, a ACRQF, solicita a Fundação ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) a elaboração do “laudo antropológico”, exigência legal para obtenção dos títulos de propriedade coletiva das terras ocupadas pela comunidade.

15O referido laudo foi elaborado a partir de um Relatório Técnico-científico (RTC) que atestou a ancestralidade de moradores antigos do Sertão da Fazenda e adjacências. A fundamentação disposta no laudo, contribuiu para a delimitação do território reivindicado para a titulação, por meio da pesquisa histórica, etnográfica e levantamento genealógico, que atestaram que a ocupação atual resulta de fluxos migratórios que partiram de áreas contíguas à Fazenda, ocorridos nos últimos 60 anos, além das uniões com pessoas nativas que remontam a uma ocupação de pelo menos 120 anos2. O território atualmente pleiteado pela ACRQF para o reconhecimento e titulação contempla integralmente o limite da ZHCAn do PESM e, possui aproximadamente 982,30 há (Mapa 2):

Limitações que impedem a resolução do processo

16Após diversas tratativas visando o reconhecimento territorial do Quilombo da Fazenda, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SMA) editou uma resolução que passou a subsidiar estudos de revisões de limites em Unidades de Conservação, visando conciliar a proteção dos ecossistemas e a existência de comunidades tradicionais (São Paulo, 2010).

17A Resolução SMA n° 29/2010 definiu, entre outros, que as propostas de mudança nos limites ou categorias de manejo das UC paulistas, deveriam tramitar rigorosamente fundamentadas em “estudos técnicos e científicos que demonstrem os benefícios dessas mudanças para o equilíbrio dos ecossistemas protegidos com ênfase para a preservação da biota, observada a necessidade de convocar consultas públicas” (São Paulo, 2010, p.2).

18Dentre os estudos elencados, a resolução prevê a realização de diagnósticos e a instrução dos conteúdos técnicos e científicos que devem compor o processo, consubstanciada, predominantemente, a partir de uma visão preservacionista, como discutido por Honora (2018). Apesar da ênfase à preservação da biota, a resolução surge como uma alternativa, pois se propôs a considerar a possibilidade de rever decisões tomadas no passado acerca da criação de Unidades de Conservação sobre territórios tradicionais. Isso foi baseado principalmente no que dispõe o artigo 225, inciso III da Constituição Federal, que preconiza a garantia de que eventuais alterações, não ofereça ameaça integridade dos atributos que justificam a proteção da UC.

19Entre os doze itens de orientação para fundamentação das propostas de revisão, destaca-se o item VIII, que aponta a necessidade de se incluir uma análise sobre “níveis de capacidade suporte do meio para permitir a reprodução social e cultural, de forma sustentável” (São Paulo, 2010, p.3). Esse aspecto recebe enfoque no texto, ao se tratar de sobreposição com territórios indígenas ou quilombolas conforme segue:

“Parágrafo único – a sobreposição, de territórios indígenas ou quilombolas, com as Unidades de Conservação, quando reconhecido pelo órgão gestor da área protegida, poderá recomendar a alteração de limites, a mudança da categoria de manejo ou a desafetação de toda área protegida, desde que sejam elaborados estudos de crescimento demográfico da população e estudos que comprovem a capacidade suporte do meio para garantir a reprodução física e cultural em bases sustentáveis dessas populações” (São Paulo, 2010, p.4).

20Apesar de inovar no tema, a resolução não apresenta qualquer referencial que possa subsidiar as instituições sobre a implementação e cumprimento de seus dispositivos. Nesse caso, não há qualquer instrução teórica e prática que demonstre com clareza as diretrizes a serem seguidas para os estudos, o que inviabiliza o direcionamento técnico adequado para o processo. Nesse contexto, acirram-se as disputas diante da ineficácia do instrumento proposto, que por sua vez, expõe a fragilização e descrédito dos mecanismos internos de proteção seja da natureza ou direitos humanos, conforme discutido por De la Torre (2018).

21É a partir desta ótica que passamos a inserir neste trabalho o debate sobre justiça ambiental, nesse caso, não somente pelo fato da urgência sobre a garantira de regularização da posse da terra, mas, sobretudo, pelo contexto de vulnerabilidade social o qual a comunidade está exposta, que indicia o caráter desproporcional de injustiça que se revela ao incorporar desigualdades sociais profundas, principalmente do cerceamento de oportunidades de exercer sua luta (Acselrad et al., 2004).

22Nesse sentido, a necessidade de se analisar a capacidade de suporte do meio, torna-se um dos estudos de maior complexidade, pois foi necessário considerar aspectos sociais que envolvem aspectos de desigualdade e discriminação, naturalizados enquanto fenômeno ou simplesmente negados enquanto problema (Silva, 2012). Trata-se aqui, de transpor barreiras metodológicas para oferecer resultados práticos e dar visibilidade ao conflito, no intuito de avançar no debate sobre justiça ambiental e seu potencial analítico, ao identificar injustiças e propor intervenções que considerem a implementação de práticas mais justas ao contexto abordado.

23Diante disso, passou-se a considerar a correlação de aspectos geográficos (históricos, culturais e demográficos) às variáveis ambientais (bióticas e abióticas), por englobar conceitos da Ecologia que ainda não foram amplamente aplicados em territórios habitados historicamente por populações tradicionais. Nesse caso, o estudo exigiu um esforço de aplicação técnica, que fosse capaz de correlacionar diferentes temas na busca de uma resposta que cumprisse com os objetivos da resolução apresentada pelo Estado.

24Assim, ao se propor a compreender os elementos centrais sobre o conceito de capacidade de suporte, verificou-se a importância de se considerar principalmente os aspectos demográficos da população local, que indicaria a disponibilidade de recurso e/ou áreas em função da quantidade de população que necessita de seu uso e/ou ocupação (Machado, 1999).

25A partir dessa perspectiva, considerando os últimos levantamentos, em relação ao ano de 2009, Marchetti traz os seguintes dados: “Dentre os 132 moradores amostrados, 73 são homens e 59 mulheres. As faixas etárias mais numerosas da comunidade são de crianças (0-9 anos), jovens (10-19 anos, principalmente homens)” (Marchetti, 2009, p. 21).

26Diante das informações apresentadas pelo autor e complementadas a partir de 2014, nota-se o aumento de moradias e de habitantes, entre os anos de 2005 e 2007, provavelmente pela inclusão das famílias residentes na Praia e na Ponta Baixa, bem como o reconhecimento por avaliações técnicas mais criteriosas, como no caso do RTC e, posteriormente, pelo detalhamento para formulação do Plano de Uso Tradicional, assinado em dezembro 21 de dezembro de 2005 (Quadro 2).

Quadro 2: Levantamentos demográficos já realizados na área

Tipo de Estrutura	Período (ano)
	1984	1992	2005	2007	2009	2014
Moradias em uso	16	24	22	40	35	48
Moradia em construção	-	-	-	-	7	7
Moradia vazia/abandonada	-	-	3	2	7	1
Moradia veraneio	-	-	-	1	1	-
Número total de habitantes	-	44	73	104	132	121
Fonte	IF	IF	IF	ITESP	MARCHETTI	FF

Fonte: Elaboração própria, 2019, a partir de Marchetti, 2009.

27Os trabalhos analisados demonstram que a ocupação do território ocorre a partir de núcleos familiares, visando que as terras sejam divididas entre os filhos e seus sucessores. De forma geral, a produção familiar, manejo das terras e usufruto de recursos naturais são provenientes de um modo de vida orientados pelas necessidades das famílias. A categoria de uso da terra de maior relevância está relacionada à prática de roças, predominantemente o cultivo de mandioca.

28Ainda conforme apresentado por Marchetti (2009), dentre as principais atividades econômicas praticadas pelos homens adultos, predominam aquelas ligadas ao setor terciário, sendo pouco mais de 40% (funcionalismo público, prestador serviço ao turismo e serviços gerais) ao setor primário dedicam-se aproximados 36% da população (agricultura, extrativismo e pesca). Pouco mais de 12% (produção de farinha, artesanato e construção civil) dedicam-se ao setor secundário da economia. Do total das mulheres, 42% destas possuem como principal atividade os afazeres domésticos, seguidos do funcionalismo público e demais serviços (turístico, produção de farinha).

29Com base nas informações, as práticas relacionadas a uso da terra (solo) e extrativismo vegetal (floresta) são tidas como principais referências de sistemas de produção a serem analisados para efeito de capacidade de suporte, o que reforça a definição de Junk (1995), ao estudar o caso da Amazônia. O autor enfatizou a importância do tema visando compreender a dimensão de equilíbrio entre a exploração dos recursos naturais e a sua salvaguarda:

"[...] a capacidade de um ecossistema ou de uma região para suportar sustentadamente um número máximo de população humana sob um dado sistema de produção. Sistemas de produção são considerados todos os sistemas baseados sobre recursos renováveis, principalmente agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e as várias combinações destas práticas" (Junk, 1995, p.52).

30Assim, verifica-se que apesar das transformações socioeconômicas que modificaram historicamente a dinâmica da região, a população do Quilombo Fazenda manteve as características de uma comunidade de estreita relação com o ambiente e seus recursos naturais, componente determinante para a garantia de seu território e manutenção de suas tradições. Nesse sentido destacam-se os argumentos apresentados por Grabner (2018) ao evidenciar a aplicação da Convenção 169 da OIT e na defesa dos direitos territoriais das comunidades tradicionais quilombolas:

“Ressalte-se que a preservação da economia tradicional, com seus conhecimentos, inovações e práticas características, depende necessariamente da preservação de outros direitos fundamentais dos povos interessados, sobretudo do direito à terra e à utilização dos recursos naturais, aliás, imprescindíveis a seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Grabner, 2018, p.66).

Fundamentação teórico-metodológica

31O cerne desta pesquisa apoia-se nas contribuições de Tricart (1977) que estudou a ecodinâmica das paisagens a partir do conceito de ecossistema. Essa abordagem propõe enfatizar a inter-relação entre meio físico e biótico, que considera “O ecossistema como um conjunto de seres vivos mutuamente dependentes uns dos outros e do meio ambiente no qual eles vivem” (Tansley, 1934, apud Tricart, 1977, p.17). Isso possibilitou elaborar um estudo integrado dos componentes biogeofísicos, considerando os atributos ambientais da área, bem como as condições socioeconômicas e aspectos culturais que influenciam a característica e composição da floresta (Furlan, 2006; Solórzano et al., 2009; Oliveira, 2010).

32Ao aplicarmos as técnicas de análise integrada entre relevo-solo-floresta, passamos a sustentar o conceito de capacidade de suporte (Filet, 1995; Junk, 1995; Machado, 1999; Pacheco, 2012), assim, o estudo permitiu realizar análises sobre o potencial de adaptação do meio, em função da demanda de uso e desenvolvimento social da comunidade quilombola, ou seja, a capacidade de regulação do ambiente em suportar as transformações a partir do uso dos recursos naturais.

33Assim, ao se utilizar os resultados da análise para o estudo de caso que parte da experiência de luta protagonizada pela comunidade quilombola, passou-se a considerar o debate sobre justiça ambiental (Acselrad, et al., 2004; Silva, 2012). Trata-se aqui de uma abordagem que busca analisar o contexto de regularização da posse da terra, diante de um cenário desfavorável que submete o Quilombo da Fazenda a uma condição de injustiça. Assim, buscou-se pelo viés das contribuições técnicas do estudo geográfico oferecer subsídios e valorizar os conhecimentos tradicionais, que conforme nos aponta Silva, 2012 “Estes são extremamente relevantes se o que se tem em vista é redesenhar a política ambiental para que esta seja elaborada de maneira não discriminatória e se consiga atingir uma situação de justiça [...]” (Silva, 2012, p.109).

Procedimentos e técnicas

34Para a análise proposta foi considerado um perfil da planície que compreende as encostas deposicionais, isso se dá pelo seu viés de correlação com os processos históricos de ocupação da área, uma vez que, as intervenções no relevo foram (e continuam sendo) a partir de compartimentos mais baixos, em direção aos níveis de maior altitude (Silva, 2018a). Nesse sentido, para elucidar a composição florística e a estrutura da Floresta Ombrófila Densa, foram utilizados dados secundários referentes às parcelas de pesquisa estudadas por Joly et al. (2012). Sendo que, as interações ecológicas entre solo e vegetação estão apoiados nos estudos realizados por Assis et al. (2011), que aborda a diferença da composição dos fragmentos florestais dada as características edáficas de cada compartimento.

35Assim, foram utilizados os dados referentes aos levantamentos das parcelas localizadas ao longo da planície costeira entre depósitos aluviais e colúvios (A, B, D, E)3, visando integrar as coletas de solo aos estudos de florística e fitossociologia entre esses compartimentos conforme indicado no Quadro 1:

36A caracterização física dos solos foi obtida pela coleta e amostragem pedológica segundo o referencial do Sistema Brasileiro de Classificação de Solos (Embrapa, 2018), com etapas posteriores em laboratório que incluem peneiramento e sedimentação por pipetagem. Assim conforme a tipologia dos solos encontrados, tem-se que na encosta intermediária que remete ao nível altitudinal das parcelas B, D e E, foi identificado o Cambissolo Háplico Distrófico que condiz com as características comuns ao relevo escarpado da Serra do Mar. Também ocorre nas médias e baixas vertentes, as vezes associado à deposições aluvionares e colúvios (Imagem 2).

37Nessas parcelas a partir das amostras de Cambissolo Háplico coletadas foram confirmadas as características indicadas pela bibliografia, com valores altos de argila e silte e baixo de areia (Embrapa 2018). Os solos amostrados indicam a ausência do horizonte B, mas presença da transição do A para o C, com predomínio da textura franco argilosa e argilosa, sendo o horizonte A de cor bruno-amarelada escura (10YR4/4-6), com resquícios de minerais de baixa resistência à decomposição ao longo das camadas, como mica e feldspato; não raro, ocorre a presença de partículas pouco intemperizadas de quartzo, gnaisse e granito no horizonte C (saprólito). Ocorre assim a transição do Cambissolo Háplico para o Neossolo Quartzarênico, com manchas isoladas em trechos distintos de Espodossolos, observados em campo, porém, não amostrados nos levantamentos da pesquisa. Essa unidade do relevo representa 3.707 indivíduos arbóreos/arbustivos e herbáceos, distribuídos em 435 espécies de 120 famílias botânicas (Assis et al., 2011; Joly et al., 2012).

38Na parcela A, na área de restinga, as amostras indicaram predominância dos cordões arenosos, com o lençol freático suspenso, típicos de Neossolos Quartzarênicos, com material orgânico pouco espesso, sendo que o sistema radicular se distribui paralelamente sobre a superfície mais rica em detritos vegetais (Imagem 3).

39Nessa parcela o solo é franco arenoso, muito friável, não plástico e não pegajoso, constituem-se solos ácidos, com drenagem significativa, forte diluição de nutrientes, e saturação de alumínio. Foram amostrados 1.626 indivíduos arbóreos/arbustivos, de 84 espécies distribuídas em 32 famílias, com destaque para espécies resistentes ao afloramento do lençol freático suspenso, assim como, às inundações sazonais (Assis et al., 2011; Joly et al., 2012).

40A Tabela 1 apresenta as diferenças entre os compartimentos analisados, a partir da síntese dos dados físicos e bióticos das parcelas permanentes:

Tabela 1: localização, fitofisionomia, solo, número de indivíduos e riqueza de espécies

Unidade	Parcela	Fitofisionomia	Altitude	Solo	Nº Ind.	Nº Famílias	Nº Espécies
Depósitos Coluviais	B	FOD Terras Baixas	< 60 m	Cambisolo Háplico Distrófico pH 3,3 a 3,9	1183	38	137
	D	FOD Terras Baixas	> 70 m	Cambisolo Háplico Distrófico	1284	41	156
	E	FOD Terras Baixas	< 90 m	Cambisolo Háplico Distrófico	1240	41	142
Depósitos Aluviais	A	Restinga	< 15 m	Neossolo Quartzarênico pH 3,4 a 4,2	1626	32	84

Fonte: Silva, 2018a, a partir de Joly et al., 2012.

41A partir das informações obtidas, verificou-se que a riqueza florestal amostrada indica uma conectividade entre as encostas adjacentes com as áreas deposicionais, com espécies adaptadas às condições ambientais restritivas das Restingas e Florestas Ombrófila Densa de Terras Baixas, consideradas um estoque genético para destinação de propágulos às demais áreas da planície (Silva, 2018a). Ainda assim, os estudos realizados por Assis et al (2011), demonstram que mesmo diante das diferenças de composição e estrutura, ambas as áreas apresentaram valores semelhantes nos indicadores funcionais (biomassa e produção de serapilheira).

42Nesse sentido, os autores apresentam o argumento de que os fatores ambientais, sobretudo os abióticos, determinariam o estabelecimento e/ou o posterior desenvolvimento das espécies nessas áreas. Assim para Assis (et al., 2011) “Diversas espécies poderiam ter sido eliminadas localmente, uma vez que os solos não seriam propícios ao seu estabelecimento e persistência.” (Assis, et al., 2011, p.117). Contudo, foi observado que os solos não apresentam grandes variações, já que o Cambissolo Háplico Distrófico domina o perfil do gradiente altitudinal analisado, sendo distinto dos trechos de origem deposicionais da planície em que, ocorrem manchas esparsas de Espodossolos com presença de húmus ácido e concentrações ferruginosas.

Modelagem de dados e álgebra de mapas

43A análise integrada dos aspectos bióticos e abióticos demonstra que a relação de equilíbrio ecodinâmico resulta dos processos de morfogênese e pedogênese em função da estrutura e composição da cobertura vegetal. Assim, optou-se por classificar os dados de suscetibilidade a movimentos de massa e inundação (Ipt/Cprm, 2015) e riqueza de espécies florestais (Joly et al., 2012), com o objetivo de se analisar a capacidade de suporte ambiental, conforme os parâmetros e indicadores selecionados e apresentados na tabela 2:

Tabela 2: Matriz de avaliação da capacidade de suporte com base em Tricart (1977)

Unidade	Pedogênese/ Morfogênese	Riqueza de Espécies	Potencial de Adaptação	Capacidade de Suporte
Estável	Prevalece a Pedogênese	Alto	Rápido	Alta
Intermediária	Equilíbrio entre Pedogênese e a Morfogênese	Médio	Moderado	Média
Fortemente Instável	Prevalece a Morfogênese	Baixo	Lento	Baixa

Fonte: Elaboração própria a partir de Crepani et al., 1996.

44Por se tratar de uma área que passou por diversas intervenções ao longo do tempo, a qualidade ambiental dos fragmentos indica a ocorrência de espécies mais tolerantes a variações ambientais (Assis, et al., 2011). Nesse caso, a classificação dos dados das parcelas permanentes reúne os resultados riquezas de espécies, sendo o componente florestal, a síntese das interações históricas observada enquanto fator de forte relevância à capacidade de suporte.

45Os estudos de Crepani (et al., 1996), consideram os diversos processos que influenciam direta e indiretamente o desenvolvimento da pedogênese e/ou morfogênese, que são convencionados nas classes: estável, intermediária e fortemente instável. No caso do Quilombo da Fazenda os atributos ambientais analisados expressam as relações biogeofísicas e a compatibilidade com o conceito de Ecodinâmica (Tricart, 1977). Em especial, pela característica da compartimentação topográfica da área, associados às condições naturais de drenagem e pedogênese, bem como a influência dos usos tradicionais na estrutura e diversidade da vegetação (Silva, 2018a).

46A partir da matriz de avaliação da capacidade de suporte foram adotadas quatro etapas com: seleção, classificação, cruzamento e processamento das informações por meio do software ArcGIS 10.5. Dessa forma, na primeira etapa foram selecionados os dados vetoriais que receberam valores por classe que variam entre 1,0 a 3,0, de acordo com os graus de estabilidade em relação aos processos de morfogênese e pedogênese, ponderada da seguinte forma: alto (1,0), médio (2,0) e baixo (3,0) conforme quadro 2:

47Fonte: Elaboração própria 2020.

48Na segunda etapa foram cruzados os dados matriciais e partir disso, já na terceira etapa foram aplicadas as operações aritméticas (álgebra de mapas). Por fim os dados foram processados de forma a avaliar a capacidade de suporte e estabilidade do meio de forma sintética e analítica conforme modelo apresentado (Imagem 4).

Resultados e discussões

49No mapa 3, se encontra o resultado das modelagens de capacidade de suporte ambiental, desta forma é possível verificar que nos depósitos aluviais as características físicas implicam em um número baixo de espécies florestais, com baixa diversidade, em que incide a morfogênese (níveis instáveis – cor vermelha). No interior do território prevalece uma relação maior de equilíbrio entre pedogênese e morfogênese, sendo uma faixa de transição que demonstra as relações entre sistemas naturais de forma mais ativa (níveis intermediários – cor amarela).

50Já nas áreas superiores (colúvios), diminuem as áreas de baixa capacidade de suporte e, prevalecem ponderações médias e altas para riqueza de espécies e estabilidade física de solo e relevo, entretanto, são também as áreas mais altas e de maior declividade. Em contrapartida, o grande número de ocorrências combinadas com a alta e média suscetibilidade física demonstram a influência direta dos indicadores para riqueza de espécies, o que contribuiu por ampliar as áreas mais estáveis, em que prevalecem a pedogênese e indicam alto potencial para adaptação baseada na qualidade ambiental dos ecossistemas do quilombola (níveis estáveis – cor verde), nesse caso, destaca-se a maior capacidade de suporte ambiental.

51A tabela 4 apresenta o detalhamento quantitativo das classes, em que a áreas de alta capacidade de suporte ambiental correspondem a 33% do território, enquanto as áreas de baixa são aproximadamente 42% do total. Os níveis intermediários representam 26% e são aqueles que podem indicar quais são os limites de sustentabilidade dos ecossistemas. Com relação a esse aspecto, Pacheco (2012) tratou essas áreas como zonas de transição biogeográficas, sensíveis às influências físicas e socioeconômicas.

Tabela 4: Quantitativo de área por classe de capacidade de suporte ambiental

Escalada de Valores	Capacidade de Suporte	Área (hectares)
0,00 - 1,00	Alta	322
1,01 - 2,00	Média	252
2,01 - 3,00	Baixa	408
Total		982 ha

Fonte: Elaboração própria, 2020.

52A modelagem indica que as áreas de maior capacidade de suporte ambiental correspondem aos trechos ocupados por usos tradicionais, nesse caso, coincidem aquelas destinadas ao cultivo e utilização de recursos florestais do quilombo (São Paulo, 2006). Esta perspectiva reforça os argumentos que orientaram os estudos deste artigo, sobretudo, demonstra que a proposta metodológica pode de fato vir a subsidiar os processos decisórios acerca do conhecimento sobre a biodiversidade e, seu potencial para o ordenamento e gestão do território.

53Cabe ressaltar que o mapa prioriza aspectos técnicos que precisam ser facilitados em linguagem simples e acessível, de modo a representar elementos identitários como símbolos territoriais, tais como: manejo agrícola, áreas de coleta e artesanato, rios, casas, equipamentos de uso comum e outros símbolos que denotam importância para a cultura para o território. Evidencia-se assim, o papel fundamental da cartografia social como sendo uma abordagem estratégica de maior envolvimento e empoderamento comunitário (Brandão e Oliveira, 2019).

Considerações finais

54A necessidade de conciliar o caráter multidisciplinar das diferentes áreas do conhecimento aproximou a pesquisa à ação prática. A trajetória do estudo permitiu compreender melhor as áreas manejadas historicamente pela comunidade quilombola, sobretudo que a diversidade de espécies florestais está diretamente associada ao uso sustentável e aos saberes tradicionais. As áreas de roça e extrativismo vegetal coincidem com aquelas de maior estabilidade ecodinâmica (Tricart, 1977), essa constatação reforça o caráter intrínseco do conhecimento quilombola e o estudo científico legitima essa relação ao possibilitar gerar subsídios para a luta por justiça ambiental (Acselrad, 2004).

55No presente trabalho buscou-se analisar as situações de uso dos recursos naturais da Mata Atlântica a partir das características biogeofísicas do território. Para isso foi importante reconstruir o processo histórico que demonstra a apropriação e transformação do relevo e cobertura vegetal da Serra do Mar e, como a articulação de diferentes áreas do conhecimento podem contribuir com soluções metodológicas para o reconhecimento do Quilombo da Fazenda.

56O crescimento demográfico dos últimos 30 anos demonstrou não afetar a qualidade ambiental dos ecossistemas diante da demanda de uso da comunidade. A riqueza de espécies florestais, indica que o território é capaz de suprir as necessidades da comunidade por um intervalo de tempo equivalente ao período considerado nessa análise. Se considerarmos as áreas de alta e média capacidade de suporte ambiental compatíveis com as necessidades de uso direto da comunidade, isso representa 58% do território reivindicado para o quilombo.

57Com base na contribuição técnica e científica apresentada conclui-se que, o território compõe em sua maioria, áreas estáveis, em que prevalece média e alta capacidade de suporte ambiental, sendo, portanto, o suficiente para atender as exigências da Resolução SMA n° 29/2010. A área do Quilombo da Fazenda representa a combinação entre uso e apropriação de recursos naturais ao longo do tempo que, determina a qualidade e sustentabilidade dos ecossistemas. Diante disso, torna-se necessário ressignificar as práticas normativas conduzidas pelo Estado, por se constituírem enquanto forma de injustiça e exclusão (Silva, 2012).

58As áreas mais conservadas por usos tradicionais são aquelas de maior suporte ambiental, ou seja, o conhecimento dos quilombolas acerca da dinâmica da natureza e, sua compreensão sobre a dimensão simbólica dos recursos naturais, exerce uma influência positiva nos fenômenos observados e analisados neste estudo.