As atividades de pesquisa subjacentes a esta contribuição foram gratamente financiadas no âmbito do European Union’s Horizon 2020 Research and innovation programme ODYSSEA sob o Marie Skłodowska-Curie Grant Agreement No 691053.
1Por mais de 30 anos, a Ecologia Política "conquistou" um lugar permanente na Geografia. Trabalhos como o dos geógrafos Piers Blaikie e Harold Brookfield (Blaikie & Brookfield, 1987) sobre o "problema ambiental" da degradação do solo, publicado em 1987, são considerados "textos fundadores" conceituais, na medida em que descrevem a dimensão política do acesso desigual a recursos, as relações de poder desiguais, o problema da pobreza, etc. Usando questões que parecem apolíticas à primeira vista, como a erosão do solo, os autores destacam que há política por trás delas e, assim, eles contribuíram para uma "politização" do debate ambiental. Livros, antologias e artigos (por exemplo, Bryant & Bailey, 1997; Robbins, 2004; Martínez Alier, 2007; Leff, 2015; Porto-Gonçalves & Leff, 2015) destacaram o viés interdisciplinar da Ecologia Política, que está principalmente ancorada no espectro das Ciências Sociais. Como explicar a popularidade aparentemente ininterrupta acerca desta abordagem?
2Em primeiro lugar, o conceito do "meio ambiente politizado” (politicized environment), representado pela Ecologia Política, ecoa diversas facetas do ambientalismo. A rotulagem de problemas ambientais concretos como "campos de batalha de interesses" (battlefields of interests) correspondeu às experiências de muitas pessoas que, por diferentes motivos e com diferentes formações profissionais, lidaram com as relações homem-meio ambiente. É possível notar que essas relações estão cada vez mais desequilibradas no decorrer do aprofundamento da modernização e da economia, bem como da crescente velocidade da globalização. Um outro fator de popularidade para a abordagem da Ecologia Política para muitas pessoas foi (e ainda é) a clara estrutura analítica. Com base em problemas ambientais concretamente observáveis, como por exemplo a degradação do solo, os conflitos por recursos escassos, as infraestruturas controversas etc., pode-se aplicar a análise clássica das chamadas cadeias de explicação (chain of explanation). As cadeias de explicação seguem uma perspectiva multinível, relacionando as situações locais com os mecanismos e as influências diretas e indiretas de níveis superiores, que determinam as respectivas "lógicas" de conflito dos atores, a fim de conectar diferentes níveis de escala do nível local ao global. Embora a Ecologia Política tenha se expandido em suas várias "tonalidades" (para apresentações de visão geral da Ecologia Política mais recentes, ver Bryant, 2015; Perreault et al., 2015), as perspectivas de pesquisa e os focos centrais mencionados abaixo podem ser identificados como o "menor denominador comum" da estrutura de análise político-ecológica:
3• O ponto de partida da análise são os atores, cujas atuações e interações podem ser entendidas como uma “arena”, em que se expõe as suas lógicas e os seus escopos de ação. A diferenciação entre os chamados atores como “place-based” e “non-placed-based” oferece uma sistematização para compreender as complexas interdependências entre atores de níveis diferentes, que estão direta ou indiretamente envolvidos em conflitos ambientais.
4• O foco da análise sobre conflito leva em consideração os diferentes interesses e, principalmente, o caráter conflituoso das relações homem-meio ambiente, em que se expressam as desiguais relações de poder social.
5• O foco da análise sobre espaço-território é o resultado da localização e da materialidade dos problemas ambientais que se inscrevem no espaço.
6• A Ecologia Política é normativa porque, ao analisar as relações homem-meio ambiente dentro de um contexto politizado, vê a responsabilidade em se comprometer e a se posicionar, expondo, por exemplo, a vulnerabilidade e a resiliência, o poder e a impotência, a desigualdade e a injustiça, no sentido de “dar voz aos subalternos”.
7• Em termos de metodologia, as análises político-ecológicas são geralmente realizadas mais por métodos qualitativos do que quantitativos. O espectro do “material empírico” e dos métodos adequados, especialmente os provenientes do contexto das Ciências Sociais, é muito amplo: várias formas de questionários, cartografia, análise documental e mediática, métodos participativos, etc.
8No que diz respeito à ênfase temático-regional da Ecologia Política, diferentes fases podem ser identificadas nas últimas décadas. Enquanto as análises político-ecológicas se focaram inicialmente no Sul Global e, quase exclusivamente nas zonas rurais, nos últimos anos as questões ambientais do Norte Global têm sido cada vez mais levadas em consideração. No entanto, o potencial aqui está longe de se esgotar, como, por exemplo, o quadro analítico da Ecologia Política nos contextos de problemas urbanos, que estão em curso há apenas alguns anos (tanto nos países do Sul Global como do Norte Global). A análise político-ecológica se expandiu para além da abordagem clássica, que é tradicionalmente e fortemente orientada para a materialidade dos conflitos ambientais. Há, atualmente, outras perspectivas que abordam conteúdos imateriais como, por exemplo, as dimensões discursivas e/ou simbólicas no contexto das relações homem-meio ambiente. Quase se poderia falar em uma virada cultural (cultural turn) na Ecologia Política, no sentido das abordagens pós-estruturalistas. Questões relacionadas a gênero e a perspectivas analíticas de discurso também encontraram seu caminho na Ecologia Política.
9Hoje, a Ecologia Política pode ser vista na Geografia como uma perspectiva de pesquisa "estabelecida". Resta saber qual a contribuição que a Ecologia Política pode dar para uma melhor compreensão das relações homem-meio ambiente nas constelações sociais atuais? E qual contribuição a Ecologia Política pode oferecer à Geografia, que se entende como “interface” entre as “fronteiras” disciplinares das Ciências Naturais e das Ciências Sociais. O presente artigo tem como objetivo investigar esses questionamentos, no contexto do agronegócio globalizado da soja, analisando as constelações regionais do Norte de Mato Grosso na transição do Cerrado para as regiões de floresta tropical da Amazônia.
10A destruição da floresta tropical, as suas consequências ecológicas e socioeconômicas, os atores e seus interesses, bem como as estratégias e políticas, que poderiam contribuir para a contenção da destruição da floresta tropical, estão entre as "grandes questões" da Ecologia Política nas últimas décadas. Em particular, a Amazônia brasileira, a maior área de floresta tropical contígua do planeta, que representa, sem dúvida, um hotspot global neste contexto. Por outro lado, a rápida e extensa degradação (ou destruição) do Cerrado brasileiro está bem menos no foco do interesse público global, embora existam inúmeras conexões territoriais entre os processos socioeconômicos e os problemas socioecológicos nas florestas tropicais e nas áreas de savana (ver de la Vega-Leinert & Huber, 2019).
11No fim da década de 1970, observou-se a crescente ameaça e a destruição tanto das florestas tropicais amazônicas como das áreas de savana do Brasil central. Durante o governo militar no Brasil, época em que se começava a “desenvolver” a periferia, o governo usava o lema "terra sem homens para homens sem terra" como uma “válvula” para resolver as questões de desigualdades agrossociais nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. A colonização agrícola, especialmente nas áreas de floresta tropical da Amazônia, foi vista como uma suposta alternativa a uma reforma agrária urgente – o que logo se revelou um erro fatal por questões ecológicas e, igualmente, por razões sociais. Por outro lado, acreditava-se que a disponibilização de terras (subsidiadas pelo Estado) para a pecuária em grande escala, para a intensificação da extração de matérias-primas e para a expansão da produção de energia (principalmente por meio da construção de grandes hidrelétricas), com base na modernização regional, aumentariam a contribuição das periferias ao valor agregado nacional (para uma visão geral, ver Kohlhepp & Coy, 2010). Estas ações tinham como base o desenvolvimento da infraestrutura da região, por meio de grandes projetos rodoviários, principalmente voltados para o sul-norte, superando milhares de quilômetros, que sempre funcionaram como corredores de imigração para a região. Como resultado, numerosos e variados conflitos se desenvolveram:
12• O conflito ecológico fundamental baseava-se na conservação dos ecossistemas de floresta tropical e de savana, por um lado, e na respectiva "valorização", por outro, através da exploração madeireira, da extração de ouro, de diamantes, de cassiterita e de outras matérias-primas minerais. O aspecto mais extenso e destrutivo, no entanto, foi a transformação das áreas nativas em lavouras e pastagens.
13• O conflito sociocultural mais expressivo e, sobretudo, existencial pode ser observado entre os novos imigrantes e os povos indígenas. Os primeiros, pertencentes à “sociedade majoritária” brasileira, que em sua maioria imigraram das áreas centrais do sul e sudeste para as periferias da Amazônia e para o centro do Brasil, e os últimos, que foram expulsos de seus territórios e cujos direitos de sobrevivência foram ignorados.
14• O conflito social articula-se entre os pequenos proprietários (sejam colonos ou posseiros), os antigos latifundiários e os novos investidores/especuladores de terras, sendo esses últimos os principais representantes de uma parte das antigas e novas elites de poder na região.
15A seguir, focar-se-á na área de influência da rodovia BR-163 Cuiabá-Santarém, que, para alguns, é um corredor de desenvolvimento, de modernização e de logística necessário, porém, para outros, é um corredor de destruição. Apenas a área de influência da rodovia BR-163, entre Diamantino e Nova Mutum, na parte sul, e Sinop, na parte norte, representam cerca de 35% da área total de soja e até 44% das terras utilizadas para soja e milho no Mato Grosso (conforme IMEA 2016). Nesse contexto, observam-se as contradições entre, por um lado, a modernização e o desenvolvimento regional orientados para o crescimento, resultando em degradação ambiental e destruição da natureza e, por outro, os esforços (fúteis?) para a proteção (tanto da natureza quanto dos grupos indígenas e das populações tradicionais) e a sustentabilidade (para mais detalhes ver contribuições em Coy & Klingler, 2014). Assim, a região com suas diversas dinâmicas de desenvolvimento e de potenciais de conflitos, mostra-se, portanto, ideal para ser analisada por meio de uma perspectiva político-ecológica. O foco deste artigo, que se baseia em anos de pesquisa empírica, será o polo regional de Sinop e seu entorno no norte do estado de Mato Grosso. A região de investigação pode ser caracterizada da seguinte forma:
16Sinop e os seus arredores ficam, no sentido natural, na região de transição entre as savanas dos Campos cerrados e a zona da floresta tropical da Amazônia. Essa transição é conhecida como Cerradão, uma formação vegetal mais densa que a savana. Nesse sentido, na área de Sinop podem ser observadas quase que “prototipicamente” as diferentes fases de uso da terra, que são típicas para o desenvolvimento da região de floresta tropical da Amazônia, bem como para o desenvolvimento das áreas de savana do Cerrado.
17Sinop e os seus arredores "surgiram" na década de 1970, na sequência do desenvolvimento da infraestrutura da região, sobretudo, com a construção da rodovia Cuiabá-Santarém. O projeto privado de colonização foi operado por um empresário do sul do Brasil, que adquiriu cerca de 600.000 hectares para construir o núcleo de colonização em Sinop. A área foi dividida em lotes de, em média, 100 hectares para venda a pequenos e médios agricultores do sul do Brasil, com o intuito de oferecer-lhes uma alternativa às cada vez mais difíceis condições de produção e de vida nas regiões do sul do Brasil.
18Ao longo dos anos, a área de estudo passou por várias crises estruturais: a crise do café nos anos 1970, uma crise subsequente da mandioca nos anos 1980, e, finalmente, a crise da exploração da madeira no início dos anos 2000, cada uma delas associada a mudanças fundamentais no uso da terra e a profundas convulsões sociais (sobre a história variada dos ciclos, ver Coy et al., 2020 e Figura 1).
Figura 1 - Os ciclos socioeconômicos na região de Sinop
Fonte: Os autores.
19De modo geral, as “narrativas” dominantes das “frentes pioneiras” da região da Amazônia Legal podem ser explicadas pelas suas dinâmicas socioeconômicas e socioecológicas espaciais e pelo seu alto potencial de conflito associado (para uma discussão mais detalhada da questão da fronteira, em geral e no contexto brasileiro, ver Coy et al., 2017). A “visão endógena” e a “visão exógena” colidem muitas vezes de forma irreconciliável, uma vez que na visão exógena os atores da frente pioneira são responsabilizados pela destruição da natureza, enquanto na visão endógena suas ações são legitimadas por considerarem-se prestadores de serviços do “desenvolvimento”. A abordagem multinível político-ecológica destaca os conflituosos discursos entre as diferentes esferas (global e local), que são importantes para entender a interpretação, a execução e a regulação de conflitos concretos entre homem e meio ambiente.
20Como a maioria das regiões que estão localizadas no "arco do desmatamento", que abrange a floresta amazônica ao sul/sudeste, e onde há anos as maiores taxas de desmatamento são registradas, o "mito da frente pioneira" ainda prevalece como a "narrativa" mais importante em Sinop e arredores até aos dias de hoje. Isso inclui a "heroização" da história do projeto da colonização privada da empresa Sociedade Imobiliária do NorOeste do Paraná (por isso o nome Sinop) e a "glorificação" dos "pioneiros", do fundador, dos primeiros proprietários de serrarias, dos primeiros comerciantes, dos primeiros operadores de postos de gasolina, das primeiras transportadoras etc. Em contrapartida, o discurso sobre os pequenos agricultores mal-sucedidos é relatado de forma superficial como o grupo de "guerreiros" que, mesmo expostos a condições de vida difíceis devido a doenças, falta de infraestrutura, etc., lutaram para extrair matérias-primas da "natureza" (hostil?) e, com muito esforço, produzir nas lavouras. Nesta lógica da “narrativa da frente pioneira”, voltada para a modernização, houve uma “transformação da natureza em progresso”, como era o lema de uma das maiores serrarias da região nos anos 1980. Os frequentes fracassos, dessa forma, são amplamente ignorados, uma vez que eles não puderam ser percebidos de forma positiva. Completamente ausentes da narrativa dominante estão também os indígenas, que viveram na região até a área ser aberta pela construção de estradas e pela colonização. Os indígenas foram dizimados (de forma violenta e também devido à transmissão de doenças), deslocados ou realocados à força para o Parque Nacional do Xingu, sendo, dessa forma, “eliminados” da memória coletiva do Sinop atual, em que pouquíssimas pessoas sequer reparam que esta narrativa, extremamente curta e míope, mas potente, de uma história regional que ainda nem chegou a completar 50 anos deva ser motivo de reflexão (para entender a história emblemática do povo Panará, neste contexto, ver ISA, 1998). Em contrapartida, a mudança nas atividades econômicas dominantes na região e as profundas transformações econômicas e sociais de longo prazo na sociedade local já desempenham um papel importante na “narrativa” dominante da região.
21No que diz respeito ao agronegócio, pode-se observar “narrativas” in loco extremamente poderosas, que tentam legitimar a “manipulação da natureza” por meio de uma agricultura monocultural, altamente mecanizada, baseada na soja (e milho ou algodão), o que é problemático do ponto de vista ambiental (desmatamento em grande escala, degradação do solo, consumo de água, perda de biodiversidade, uso de sementes geneticamente modificadas) e social (deslocamento). A “narrativa” centrada no agronegócio destaca que as regiões produtoras de soja “alimentam o mundo”, porém, não leva em consideração as consequências problemáticas do atual regime alimentar mundial, que se baseia na agricultura industrial e nas cadeias de valor organizadas globalmente.
Imagem 1 – Os campos de Mato Grosso
Foto: Coy, 2018.
22Do ponto de vista econômico nacional, devido ao contínuo aumento do valor agregado e das exportações nos últimos anos, o agronegócio é visto como fator de sucesso do Brasil, e, portanto, as regiões produtoras de soja são as “regiões de sucesso” do país. Os custos (ecológicos e sociais) do sucesso, bem como as dependências unilaterais associadas ao "caminho do sucesso" centrado no agronegócio (ver abaixo) são, no entanto, ignorados. Para o nível local, a "narrativa" centrada no agronegócio fornece vários argumentos. O agronegócio apresenta não só fluxos de capitais econômicos a nível global, mas também a nível local e regional. Os efeitos de acoplamento direto e indireto na economia local, por exemplo, criam, no caso específico de Sinop, um mercado de mão de obra mais qualificada, permanente e diversificada, diferentemente do ciclo econômico anterior de extração de madeira. Para entender melhor os ciclos econômicos regionais, utilizaremos a seguir a abordagem conceitual das redes de produção globais (acrônimo “RPG”) (em inglês, Global Production Networks, ver Henderson et al., 2002, 2011; Coe et al., 2004, 2008), que tem origem na Geografia Econômica.
23A abordagem RPG, que se origina da Geografia Econômica e da pesquisa de globalização geográfica, visa compreender as cadeias de valor organizadas globalmente e as suas consequências (econômicas) resultantes do desenvolvimento.
24Com base em (ou com base na crítica de) abordagens como a Cadeia de Valor Global, CVG (ver Gereffi & Korzeniewicz, 1994), o foco da estrutura de análise da RPG não está apenas nas formas de organização e de governança interna e interempresariais, mas também no ambiente social e institucional no qual as RPG estão inseridas. A abordagem RPG vai além da compreensão de uma cadeia de valor, pois, em vez de apenas se utilizar de um conceito linear, segue uma lógica de rede que se concentra nas repercussões das redes de produção e de comércio organizadas globalmente na configuração e na mudança das estruturas socioeconômicas e espaciais regionais. A RPG é baseada em uma perspectiva orientada por atores, ou grupo de atores, e é multinível, na qual suas respectivas estratégias de ação são relacionadas a diferentes níveis de escalas (do local ao global). A abordagem RPG inclui em sua análise não apenas atores econômicos (por exemplo, empresas), mas também atores não econômicos (tais como instituições estatais e internacionais, ONGs, comunidades indígenas, organizações da sociedade civil ou sindicatos), a fim de levar em consideração o amplo contexto político e econômico no qual as redes de produção estão inseridas.
25A abordagem RPG tem um enfoque claramente econômico, que se expande na dimensão sociopolítica e está muito menos relacionada à dimensão ecológica. No entanto, é possível verificar uma série de semelhanças com a estrutura analítica da Ecologia Política (ver Dorn & Huber, 2020). A abordagem RPG também foca no ator e segue uma perspectiva multinível, em que o enraizamento dos atores, os seus respectivos interesses e as relações (desiguais) de poder entre eles desempenham um papel essencial. Neste contexto, devem ser considerados os atores diretamente relacionados à cadeia de valor, bem como os atores políticos que influenciam as regulamentações institucionais essenciais para o funcionamento da rede de produção.
26Em qualquer conflito concreto entre homem e meio ambiente, vinculado a desenvolvimento econômico e a interesses econômicos (e isto é quase sempre o caso), a abordagem RPG pode contribuir para a análise sistemática e a compreensão das interações e dependências dos atores e as suas lógicas de ação entre diferentes níveis homem-meio ambiente.
27Nesse sentido, a seguinte descrição do complexo de soja do Norte Mato-Grossense, com base na abordagem RPG, é um pré-requisito essencial para compreender as poderosas apropriações e "valorizações" da natureza, que podem ser observadas regionalmente em constelações de atores econômicos concretos, bem como em interesses de atores por meio de uma perspectiva político-ecológica (ver "arena de atores" da RPG da soja, usando o estudo de caso específico Sinop - Figura 2).
Figura 2 - Arena dos atores da RPG da soja
Fonte: Os autores.
28A expansão da economia da soja no Norte do Mato Grosso e a incorporação de grandes áreas do Cerrado e partes da Amazônia às redes de produção globais de soja estão relacionadas à crescente importância global dada às commodities agrícolas. A demanda global de soja baseia-se, em grande parte, no “complexo de oleaginosas-cereais-pecuária” (ver Weis, 2013), no qual a soja é um componente central, pois é utilizada como ração de engorda animal (ver também Langthaler, 2018). A China, que atualmente importa mais de 60% da soja comercializada globalmente, está desempenhando um papel de destaque neste processo. Além disso, o óleo de soja é uma importante matéria-prima na indústria de alimentos, bem como na indústria de transformação de óleo em biocombustível (biodiesel). No contexto dessas múltiplas utilizações da soja (como rações, alimentos, biocombustíveis e outros usos industriais), que podem ser intercambiadas de forma 'flexível', a soja é uma das chamadas “flex-crops”, que estão cada vez mais no centro das estratégias de expansão das empresas globais do agronegócio (ver Borras et al., 2016).
29Embora a soja tenha sido apoiada por pesquisas e financiamentos agrícolas estatais desde a década de 1970 (como cultura estratégica para a implementação de uma agricultura modernizada nas áreas de desenvolvimento tropical do Centro-Oeste brasileiro - seguindo a ideia da Revolução Verde), o crescimento da produção de soja, porém, está vinculado, pelo menos com a mesma intensidade, às estratégias empresariais de grandes empresas agroindustriais transnacionais. A integração vertical globalmente estruturada da produção de soja resulta das etapas de produção que estão a montante e a jusante da produção agrícola.
30No que diz respeito às atividades a montante da exploração agrícola, os sojicultores dependem do chamado pacote tecnológico composto por sementes (geneticamente modificadas), pesticidas e fertilizantes, que são produzidos por empresas agroquímicas transnacionais e produtores de fertilizantes, as quais vendem os pacotes diretamente, por meio de vendedores próprios, ou indiretamente (mais comum), por meio de revendas ou traders (geralmente em troca dos insumos para soja) aos produtores de soja (incluindo serviços de consultoria agrícola na venda). A indústria agroquímica é fortemente caracterizada por processos de concentração com algumas mega corporações como, por exemplo, Bayer (inclusive a Monsanto), ChemChina (inclusive a Syngenta), BASF e DuPont de Nemours, que dominam o mercado global de insumos agrícolas. Não tão concentrada, mas também dominada por grandes empresas internacionais, é a produção de maquinaria agrícola. Essas empresas geralmente possuem unidades de produção nacional no Brasil. No entanto, até agora, estão localizadas, sem exceção, nas regiões Sul e Sudeste. As vendas nas regiões produtoras de soja em Mato Grosso são realizadas principalmente por meio de concessionárias. A integração global da produção de soja é mais obviamente expressada pelos grandes traders, que operam nos 'gargalos' das redes de produção de soja e que conseguem, assim, adquirir uma parte considerável do valor agregado da cadeia da soja. Em Mato Grosso, seis empresas controlam mais de 60% das exportações de soja. Enquanto a Amaggi é uma empresa agrícola com sede em Mato Grosso, os outros grandes traders são empresas com sede nos EUA (ADM, Bunge, Cargill), Europa (Louis Dreyfus) e China (Cofco) (ver na Figura 5 as estruturas de influência e poder na RPG da soja). Além dos grandes exportadores, existem também alguns intermediários de soja: muitas vezes, são grandes produtores de soja com larga capacidade de armazenamento, que tentam expandir a integração vertical nas RPG, por meio da comercialização de insumos agrícolas e da compra de soja de terceiros com o intuito de agregar valor empresarial na área da comercialização. Esses intermediários vendem a soja aos traders de exportação ou às usinas de óleo de soja, que frequentemente são operadas por grandes traders de soja. Os traders são também importantes investidores e operadores de infraestruturas logísticas (por exemplo, com terminais portuários) ao longo dos corredores de exportação de soja. A maior parte da soja é diretamente exportada sem processamento. No entanto, tentativas crescentes podem ser observadas nas regiões de cultivo de soja para estabelecer operações no processamento (esmagadoras de soja) e, em alguns casos, também no refino de soja (produção de biodiesel, ração para frigoríficos locais e para confinamentos), a fim de aumentar o valor agregado regional da economia de soja. Enquanto grandes empresas transnacionais do agronegócio dominam as áreas de insumos agrícolas, comercialização, processamento e exportação de soja, o cultivo da soja em si está, em grande parte, nas mãos de agricultores regionais, cuja posição de poder e "alcance de controle” na rede da produção global são, portanto, limitadas (ver Figura 5). Alguns produtores de soja do sul do Brasil, que migraram para o norte do Mato Grosso nas décadas de 1980 e 1990, conseguiram concentrar grandes áreas de terra para o cultivo de soja. Eles adquiriram tanto as terras de outros colonos que não conseguiam acompanhar o progresso da agricultura modernizada como as novas terras que se tornaram disponíveis devido à expansão contínua da agricultura em áreas de vegetação natural. Embora a maioria dos produtores de soja opere em fazendas de médio porte (com uma área de 1.000 a 2.500 hectares), os maiores produtores de soja produzem em fazendas de dez mil hectares ou mais. Além desses produtores de soja que cresceram regionalmente, houve também, nos últimos anos, um aumento no controle da propriedade da terra (por meio da compra e arrendamento de terras) por empresas de soja de outras regiões (do Brasil e do exterior), que operam grandes fazendas de soja (às vezes com 50.000 hectares ou mais), o que geralmente corresponde a uma posição de poder mais forte em comparação aos agricultores regionais (ver Figura 5). A crescente influência dessas fazendas de gestão capitalizadas (a nível nacional e internacional) está mudando a estrutura de propriedade da terra na região e, cada vez mais, incentiva os produtores de soja "autônomos" e outros proprietários de terras (por exemplo, criadores de gado) a vender ou arrendar suas terras para megaprodutores de soja.
Imagem 2 - Novos atores na cadeia de valor da soja
Foto: Coy, 2019.
31A produção monocultural intensiva de soja, voltada para a exportação com baixo processamento regional, tem um forte caráter extrativista (é por isso que alguns pesquisadores falam de "extrativismo agrário"). No entanto, formaram-se redes de produção de soja altamente complexas e incorporadas regionalmente nos novos centros da economia da soja na periferia brasileira (ver Figura 2), onde, no caso específico de Sinop e região, difere dos ciclos extrativistas anteriores. Com base na cadeia de valor local/regional, que é cada vez mais diferenciada do agronegócio globalizado, as relações entre o meio rural e urbano sofreram grandes alterações socioespaciais. As zonas rurais cumprem, cada vez mais, apenas a função de "área de produção", e, cada vez menos, a de um verdadeiro "espaço de vida". Esta transformação das zonas rurais em “máquina de produção” da rede global de produção de soja é precedida por processos de apropriação do fator de produção de “terra”, os quais muitas vezes estiveram e continuam a ser acompanhados de conflitos. A concentração da terra é indispensável na lógica interna da economia da soja, porque no sistema de produção dominante, devido aos elevados custos de produção, a produção economicamente "viável" só é possível em grandes unidades agrícolas com pelo menos várias centenas de hectares de terra. Esses processos de concentração estão associados a um crescente "desmatamento" ecológico da paisagem, uma vez que todos os possíveis obstáculos à agricultura mecânica em grande escala devem ser removidos por razões econômicas. No entanto, as zonas rurais estão não apenas perdendo sua função social de "espaço de vida", devido a sucessivos deslocamentos de pequenos agricultores, mas também porque, para os sojicultores e suas famílias, a cidade se tornou um centro de vida e uma verdadeira "central de comando" da economia regional. A cidade é o lugar onde o sojicultor realiza a maior parte das suas atividades cotidianas: negociações com traders, bancos, consultorias, transportadoras e outros prestadores de serviços etc. Por isso, cada vez mais os sojicultores escolhem viver nas cidades em vez de nas zonas rurais, não só por conveniência e por razões sociais, mas, sobretudo, por razões comerciais, deixando a fazenda aos cuidados de administradores e funcionários.
Imagem 3 - O espaço rural perde a sua função de "espaço de vida"
Foto: Coy, 2013.
32Entretanto, a integração regional no complexo de soja global moldou a estrutura e a diferenciação funcional da cidade de Sinop. O domínio regional do agronegócio e, portanto, a conexão econômica funcional entre o setor agrário da área rural e da cidade de Sinop está documentado de forma particularmente impressionante na rodovia BR-163, que forma, pelo menos do ponto de vista econômico, a “linha vital” da cidade (ver Figura 3).
Figura 3 - Mapeamento funcional da BR-163 em Sinop (Norte de Mato Grosso) em 2018
Fonte: Os autores.
33Tanto na periferia sul como na periferia norte da cidade, dominam-se os silos de soja (ou milho) e os secadores de grão das empresas nacionais (Amaggi) e transnacionais (ADM, Bunge, Cargill). Durante a época de colheita e, posteriormente, da comercialização, o acesso rodoviário é o "fator locacional" decisivo para o transporte pesado (atualmente, são utilizados quase exclusivamente caminhões com sete ou nove eixos com capacidade superior a 50 toneladas para o transporte da soja e do milho).
Imagem 4 - Venda de máquinas agrícolas em Sinop
Foto: Coy, 2018.
34Consequentemente, as empresas logísticas estão localizadas principalmente nas áreas mais remotas da cidade, onde centenas de caminhões ficam, por vezes, estacionados. Nas áreas mais centrais da BR-163, as inúmeras concessionárias de máquinas agrícolas são impressionantes. Todos os atores globais do setor estão representados, como por exemplo, John Deere, Case, New Holland, Valtra, Ford, Massey Ferguson, etc. As máquinas mais importantes, que praticamente todas as empresas oferecem, são grandes tratores, colheitadeiras, máquinas de plantio direto, pulverizadores, ou seja, equipamentos que representam grande valor monetário. A área de abrangência das representações destas empresas estende-se também para um vasto interior. Além da venda e do financiamento de maquinaria agrícola (muitas vezes o financiamento é providenciado pelos próprios bancos corporativos das empresas de implementos agrícolas), encontram-se também, no perímetro da BR-163, as empresas de manutenção e oficinas de conserto. Outra área que está diretamente relacionada ao agronegócio é o setor de sementes e agroquímicos (fertilizantes, agrotóxicos). Neste setor específico, inúmeros escritórios de representação dos grandes grupos agroquímicos podem ser observados (Bayer, Syngenta, Dow, BASF, etc.), que funcionam geralmente tanto como agências de vendas (e revendas) como também consultorias. As concessionárias de veículos automotores, localizadas na BR-163, também têm uma conexão direta, ou pelo menos indireta, com o agronegócio. Não é surpreendente que há uma grande variedade de pick-ups de todas as marcas em Sinop. As questões funcionais nas operações agrícolas e a simbolização do sucesso econômico e do status social são relevantes para a popularidade desses tipos de veículos. Desta forma, o perímetro urbano da BR-163 de Sinop representa uma “vitrine” direta e indireta das atividades econômicas, que conferem à região e à cidade dinamismo, negócios e prosperidade.
35É interessante observar como os habitantes de Sinop percebem a relação campo-cidade e as mudanças acerca da expansão do agronegócio na região. Uma pesquisa com cerca de 100 pessoas (pesquisa realizada com pessoas de diferentes setores e estudantes da UNEMAT), realizada em agosto de 2018, forma a base empírica das seguintes explicações (ver Figura 4).
Figura 4 - Percepções das relações campo-cidade e da importância do agronegócio em Sinop e arredores
Fonte: Os autores.
36O resultado do questionário mostra que 92% dos entrevistados concordam que o agronegócio se tornou o fator de desenvolvimento dominante nas áreas rurais de Sinop. A respeito da perspectiva dos entrevistados sobre o desenvolvimento do espaço rural, pode-se observar que 73% concordam que a área rural é, cada vez mais, uma "máquina de produção" de commodities agrícolas e, portanto, está perdendo a sua função como espaço de vida. Isso também expressa o fato de os entrevistados estarem cientes do efeito problemático da expansão do agronegócio no meio rural em sua função de espaço social. Nesse sentido, quase dois terços dos entrevistados associam a expansão do agronegócio ao aumento do êxodo rural. Porém, para mais de 70% dos entrevistados o agronegócio trouxe vantagens para Sinop e arredores, bem como contribuiu para a melhoria da qualidade de vida. Esses resultados refletem uma ambivalência que levanta a questão dos “vencedores” e dos “perdedores”. Mesmo que não explicitamente mencionado, pressupõe-se que o sucesso econômico é atribuído aos negócios urbanos que o agronegócio proporcionou. Afinal, na opinião da quase totalidade dos entrevistados (88%), os “fornecedores” municipais do agronegócio e serviços relacionados, também localizados na cidade, são tão importantes quanto as atividades produtivas imediatas que acontecem nas áreas rurais, o que apoia a ideia de RPG. Nesse contexto, não é surpreendente que 80% dos entrevistados concordem com a afirmação de que Sinop pode ser descrita como uma “cidade do agronegócio”. Em comparação à época em que Sinop era dominada pela extração de madeira e pelo setor de serraria, atribui-se ao agronegócio um efeito comparativamente positivo sobre os mercados de trabalho locais/regionais, especialmente no que diz respeito à qualidade dos empregos. Por último, mas não menos importante, é também concedida a Sinop a função extrarregional, especialmente econômica, em relação às cidades mais ao norte, ao longo da BR-163 (por exemplo, Novo Progresso no estado do Pará), atribuindo-lhe, dessa forma, um papel importante como "central de comando" na futura expansão do complexo da soja e autodenominando-se a "Capital do Nortão".
37As interdependências econômicas mundiais são fortemente promovidas pelas condições do quadro político neoliberal. A flexibilidade, a desregulamentação e a privatização são os "motores" de crescimento, de modernização e de desenvolvimento da política neoliberal, geralmente orientada para o mercado mundial. Uma forma concreta dessas "inscrições" no espaço são, geralmente, as mudanças no uso da terra e a degradação ambiental associada (desmatamento, erosão, poluição do sistema hídrico etc.). O complexo da soja é um bom exemplo disso. Impulsionado pelo rápido aumento da demanda global das agroindústrias verticalmente integradas nas cadeias de valor globais, a soja, que algumas décadas atrás era um produto agrícola, de certa forma, insignificante em toda a América do Sul, tornou-se amplamente disseminada não somente nas regiões centrais do subcontinente, mas também em toda a economia regional. Ao mesmo tempo, as alterações espaciais vão muito além das mudanças no uso do solo. Elas refletem também uma mudança profunda nas condições sociais e demográficas (imigração, mas também processos de deslocamento), nas relações campo-cidade, bem como em mudanças nas elites e nas identidades regionais. A rápida expansão do cultivo da soja nas áreas de savana sul-americanas equivale à transformação de antigas periferias em regiões globalizadas, que em tempos de dinamismo econômico estão se tornando cada vez mais relevantes como "regiões de sucesso" na competição nacional das regiões; mas, ao mesmo tempo, devido à sua incorporação nas cadeias de valor globais, estão sujeitas a extenso controle externo, possuem baixa resiliência devido à sua monoestrutura econômica e, portanto, permanecem sendo regiões altamente vulneráveis. Essas constelações refletem-se nas estruturas complexas de atores da rede global de produção da soja. As divergentes relações de poder e de controle determinam a posição e as relações dos atores dentro da rede e, acima de tudo, determinam a sua capacidade de influenciar o desenvolvimento local/regional (ver na Figura 5 o posicionamento dos atores da soja na RPG no que diz respeito ao poder e ao controle).
Figura 5 - Estruturas de poder e controle na RPG da soja
Fonte: Os autores.
38A expansão e a "incorporação" na rede global de produção de soja são os "motores" das mudanças econômicas, socioespaciais e, acima de tudo, ambientais. No sentido político-ecológico, isso implica não somente numerosas constelações de conflitos explícitos como também um grande número de transformações latentes. Em particular, as grandes exigências do agronegócio para a continuidade da expansão da infraestrutura baseiam-se em argumentos puramente econômicos, mas abrigam considerável potencial para uma exacerbação dos já virulentos conflitos ambientais em torno do crescente desmatamento na área de influência ao norte da BR-163, no estado do Pará. A forte pressão política exercida pelo lobby do agronegócio, que nos últimos anos tem dificultado ou impedido os esforços para implementação de medidas contra os efeitos socioambientais negativos, agravou-se consideravelmente em vista da recente guinada à direita na política brasileira, sob o presidente da extrema-direita, Jair Bolsonaro. O lobby agrário e as “regiões de sucesso” do agronegócio figuram-se entre os mais importantes apoiadores do presidente, os quais agora solicitam a “recompensa” pelo seu apoio, por meio do desmantelamento de políticas ou medidas ambientais e de sustentabilidade e exigem, ainda, a implantação de estratégias extremamente neoliberais baseadas exclusivamente no crescimento econômico (ver Abranches et al., 2019 para mais detalhes sobre esses últimos desenvolvimentos políticos). Nesse contexto, o “mito da frente pioneira” está florescendo novamente como narrativa dominante de sucesso e progresso. Embora medidas e programas para promover a sustentabilidade também tenham sido lançadas no contexto do agronegócio da soja nos últimos anos (por exemplo, a Moratória da Soja, RTRS - Mesa Redonda da Soja Responsável, Plano ABC - Agricultura de Baixa Emissão de Carbono, ver, por exemplo, Arvor et al., 2017 e 2018), ao mesmo tempo, os objetivos e critérios de sustentabilidade para a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais não são só colocados em segundo plano, como são também ativamente combatidos, uma vez que são interpretados no discurso atual como um freio ao crescimento e um obstáculo ao progresso. Nessa situação politicamente exacerbada, a Amazônia Legal é, no sentido mais verdadeiro da palavra, um “ambiente politizado”, um espaço para os mais diversos interesses.
39O complexo da soja representa uma configuração do “capitalismo selvagem” desenfreado que só pode florescer sob condições de estruturas ultra-neoliberais. Essa lógica de produção está ligada a uma condição socioambiental que entende as relações com a natureza, exclusivamente, de forma antropocêntrica, como uma mina de recursos que deve ser utilizada para a satisfação das necessidades humanas. As condições naturais valorizadas na lógica da expansão do cultivo da soja são, por exemplo, a vasta disponibilidade de terra, as áreas de desmatamento simples, as paisagens planas para o processamento mecânico, os solos adequados para a agricultura, a presença de depósitos de calcário para correção dos solos, a precipitação e a frequência de precipitação anual "adequadas", etc.
40Essa relação homem-meio ambiente está baseada na “valorização” (pode-se também dizer exploração) dos recursos naturais e na transformação da natureza, mas não na coevolução e no respeito/na adaptação. Essa “ordem” prioriza “formatos espaciais” específicos, que são baseados nas economias de escala, na exclusão social e em novas tecnologias de capital intensivo (por exemplo, sementes geneticamente manipuladas, uso de imagens de drones, aplicação aérea de insumos e métodos de plantio direto). Além disso, também se referem à aceitação de novos tipos de riscos (certamente também ecológicos), às interdependências globais (de mercado) e, por conseguinte, à aceitação de numerosos mecanismos de controle regional externo (ver o funcionamento da RPG da soja), que resultam em novas vulnerabilidades.
41Em suma, o que se observa no Norte de Mato Grosso, em face da expansão e do domínio do complexo da soja, é um “laboratório real” de uma “neoliberalização da natureza”. No contexto dos discursos e da política dominante, as alternativas (econômicas) possuem dificuldade em se desenvolver. No entanto, há alguns pontos de partida, como a implantação e o fortalecimento de ciclos econômicos regionais de pequena escala, que poderiam contribuir para uma economia mais sustentável e, dessa forma, aumentar a resiliência da economia regional. Em primeiro lugar, uma política que focasse no abastecimento de alimentos na região; em segundo lugar, uma política que apoiasse os grupos de pequenos produtores que ainda existem na região “à sombra” do complexo soja e que fosse capaz de reduzir a vulnerabilidade regional e fortalecer a resiliência e, finalmente, uma política que estabelecesse um possível caminho de desenvolvimento sustentável, mais ecologicamente correto, rumo a uma transformação socioecológica por meio da promoção da agricultura orgânica.