Navigation – Plan du site

AccueilNuméros55Dossier AmapáAs obras de infraestrutura estrat...

Dossier Amapá

As obras de infraestrutura estratégicas para a organização do espaço amapaense

Travaux d’infrastructure stratégique pour l’organisation de l’espace Amapá
Strategic infrastructure works for the Amapá space organization
Eduardo Margarit

Résumés

Ce texte vise à présenter une systématisation des informations sur la réorganisation territoriale provoquée par la mise en œuvre des travaux d’infrastructure stratégique à Amapá. Pour ce faire, des données primaires et secondaires ont été collectées sur l’organisation de l’espace à Amapá et une revue de la littérature sur le sujet a été réalisée. Le résultat de ces analyses est présenté tout au long du texte dans des cartes contenant la représentation cartographique du phénomène de réorganisation territoriale induit par les ouvrages analysés. La structure du texte est la suivante : Le texte présente d’abord le processus de transition de l’hégémonie des fleuves à l’intégration routière en Amapá. Puis, dans le deuxième thème, la complémentarité du transport routier et fluvial dans l’intégration de l’Amapá est présentée. Le troisième sujet analysera comment les infrastructures fonctionnent dans le cadre du programme d’accélération de la croissance (PAC) ont favorisé le développement des activités économiques à Amapá. Dans le quatrième thème, une analyse est faite de la dynamique de sélectivité spatiale du grand capital dans le cerrado d’Amapá. Le cinquième et dernier thème présente une proposition cartographique pour lire la dynamique actuelle de l’organisation de l’espace en Amapá à travers les arrangements socio-économiques.

Haut de page

Entrées d’index

Index géographique :

Amapá
Haut de page

Texte intégral

1A criação do Território Federal do Amapá em 1943 gerou presença intensa do aparelho estatal nessas terras e representou um marco para o início de um processo de ordenamento territorial promovido pelo Estado. Até a década de 1950, os rios no Amapá representavam papel preponderante na circulação e na distribuição da população. Na segunda metade do século XX, o Estado adota como estratégia de nexo territorial a construção de obras de infraestrutura capazes de promover a ocupação das terras do estado por atividades econômicas. Foram construídas uma ferrovia, um terminal portuário, uma usina hidrelétrica e duas rodovias federais, além de algumas rodovias estaduais.

2Com tais obras de infraestrutura implementadas no Amapá, inicia-se um processo gradual de transferência da hegemonia dos rios no ordenamento territorial para as rodovias na centralidade funcional da circulação e integração municipal do Amapá. As obras permitiram a incorporação de suas terras ao sistema produtivo nacional, vinculado às demandas do mercado nacional e global. O agronegócio, a mineração e a indústria madeireira foram as principais atividades alavancadas pela introdução de tais objetos técnicos.

3Este texto tem como objetivo apresentar uma sistematização de informações acerca do reordenamento territorial provocado pelas obras de infraestrutura no Amapá. Para tanto, foram coletados dados primários e secundários sobre a organização do espaço no Amapá e realizada revisão bibliográfica sobre o assunto. O resultado dessas análises é apresentado ao longo do texto em mapas contendo a representação cartográfica do fenômeno de reordenamento territorial provocado pelas obras de infraestrutura.

4O texto apresenta inicialmente o processo de transição da hegemonia dos rios para a integração rodoviária no Amapá. Em seguida, no segundo tópico, é apresentada a complementariedade dos transportes rodoviário e hidroviário na integração do Amapá. O terceiro tópico analisa como as obras de infraestrutura no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) vem promovendo o desenvolvimento de atividades do grande capital no Amapá, principalmente o agronegócio. No quarto tópico é feita uma análise da dinâmica de seletividade espacial do grande capital no cerrado amapaense. Já o quinto e último tópico apresenta uma proposta cartográfica de leitura da atual dinâmica de organização do espaço no Amapá por meio de arranjos socioeconômicos.

Da hegemonia dos rios para a integração rodoviária

5No Amapá, permanecem em simbiose duas lógicas de organização do espaço que representam, em sua essência, duas temporalidades distintas. As relações espaço-temporais no Amapá estão se materializando em uma dicotomia entre povos tradicionais e empreendimentos capitalistas, que se traduz por elementos simbólicos da construção da territorialidade de cada um desses grupos. O tradicional é o resultado da construção histórico-geográfica da sociedade amapaense, que tem os rios como elemento simbólico central na construção de suas territorialidades. Já o moderno, representado pelos empreendimentos capitalistas, possui as obras de infraestrutura como elemento simbólico central de afirmação territorial, ensejando seus arranjos territoriais por meio delas.

6Inicialmente, faz-se necessário compreender como se desenha a organização do espaço no Amapá antes das obras de infraestrutura. Para tanto, recorre-se a um trabalho desenvolvido pelo geógrafo Antônio Teixeira Guerra na década de 1950, em que ele demonstra a configuração espacial dominante no Amapá até a primeira metade do século XX, com cidades, distritos e povoados situados ao longo dos rios, forma de circulação predominante até então, conforme representado no Mapa 1:

Mapa 1: Território Federal do Amapá: distribuição espacial da população (1950)

Mapa 1: Território Federal do Amapá: distribuição espacial da população (1950)

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: Agencia Nacional de Águas (ANA) e Guerra (1954).

7Essa configuração socioespacial acabou ganhando a conotação de uma ilha, por seu caráter de isolamento e a possibilidade de integração apenas por meio dos rios. Nesse contexto, destacam-se os rios Amazonas, Oiapoque, Araguari e Jari como principais eixos de circulação fluvial. Entretanto, diversos outros rios e igarapés complementam a malha hidrográfica por onde circulavam embarcações que agregavam a capilaridade do sistema fluvial para inúmeras comunidades espalhadas em suas margens (Santos, E. R. C., 2012). A dificuldade e o isolamento da fronteira antes da construção de rodovias no Amapá são relatados a seguir:

O abastecimento de produtos variados para a fronteira era feito por navios que transitavam com pouca frequência, bem como por aviões bimotores que pousavam em dois pequenos campos de pouso. As aeronaves permitiam também o vai-e-vem de autoridades e funcionários enviados das capitais regionais, Macapá e Caiena. Além disso, apenas um navio se deslocava de Caiena para Saint-Georges a cada três semanas, o que deixava a cidade francesa muito dependente do comércio com Oiapoque em produtos de primeira necessidade. Para esta, por seu turno, os produtos chegavam semanalmente de Macapá também por navios. (Silva, Granger & Tourneau, 2019)

8A adoção de uma política territorial efetiva de integração do Amapá só começa após a criação do Território Federal do Amapá (em 1943), pois tornou-se necessário para o Estado adotar estratégias de desenvolvimento econômico para o Amapá nos moldes do capitalismo mundial. Dessa forma, em 1947 foi assinado o contrato de prospecção de manganês entre a Indústria de Comércio de Minérios (ICOMI) e o governo do Amapá, mas apenas em 1957 o manganês começou a ser exportado, devido ao tempo utilizado no processo de prospecção e construção de infraestrutura necessária para a extração (Drummond & Pereira, 2007).

9Para tornar a atividade de mineração de manganês em Serra do Navio viável, foi necessária a construção de um porto, onde atualmente está a cidade de Santana; uma vila operária em Serra do Navio e outra em Santana; a Estrada de Ferro Amapá, ligando à área de mineração ao porto; e usinas termoelétricas (com geradores movidos a diesel) em Serra do Navio e Santana.

10Mais tarde, com a política de integração nacional da ditadura militar (1964-1985) houve a construção das rodovias BR-156 e BR-210 no Amapá. A BR-156 foi planejada para exercer o papel de integração restrita ao estado do Amapá, já a BR-210 exerceria o papel de contornar o perímetro da fronteira norte brasileira, por isso ficou conhecida como “Rodovia Perimetral Norte”, e seria um instrumento de colonização e integração (Porto, 2002).

11A BR-156 é fruto de um projeto antigo. Durante a execução da missão de demarcação de limites (1926-1927), o general Cândido Rondon afirmou que a integração dos transportes era fundamental para o controle da fronteira e propôs a construção de uma rodovia de Macapá até Clevelândia do Norte (Romani, 2011). Desde então, o projeto de uma rodovia de Macapá até a fronteira foi sendo gradativamente consolidado. Tostes e Ferreira (2016) afirmam que a rodovia começou a ser construída em 1945. Segundo Guerra (1954), no início da década de 1950 a estrada havia sido construída até a cidade de Amapá. Quando passa a integrar a política de integração nacional da ditadura militar, a rodovia recebe a denominação de BR-156, alcança a fronteira com a Guiana Francesa e, no sentido sul, a partir de Macapá, as margens do rio Jari.

12Já o traçado da rodovia BR-210 não se concretiza por completo. A rodovia tem seu início em Macapá, passa pelo empreendimento de mineração da ICOMI, em Serra do Navio, e termina nas terras do povo indígena Waiãpi, ainda no Amapá, sem, portanto, circundar todo o perímetro da fronteira norte. Outros trechos descontínuos da BR-210 também foram construídos nos estados de Amazonas e Roraima.

13A construção das rodovias no Amapá acabou integrando, em sua maioria, as mesmas cidades, distritos e povoados já existentes às margens dos rios, mas se tornou também elemento de concorrência no processo de ordenamento territorial do estado, promovendo a ocupação das terras no entorno. Esse fenômeno pode ser compreendido a partir do Mapa 2, que apresenta a configuração contemporânea do espaço no Amapá a partir da distribuição espacial da população e sua relação com a infraestrutura rodoviária existente.

Mapa 2: Distribuição espacial da população e infraestrutura rodoviária (2010)

Mapa 2: Distribuição espacial da população e infraestrutura rodoviária (2010)

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE.

14Ricardo Ângelo Pereira de Lima, que pesquisou a Antropização, dinâmicas de ocupação do território e desenvolvimento no Amapá, considera que houve a incorporação de uma média de 1.500 hectares de terras por quilômetro de rodovia construída no Amapá, considerando as estradas secundárias que ligam a BR-156 a cidades e comunidades do seu entorno (Lima, 2003). Esse dado é importante, pois representa o potencial de terras amapaenses incorporadas à dinâmica rodoviária e com potencial ao desenvolvimento de atividades ligadas à dinâmica do capitalismo mundial.

A circulação rodofluvial

15A configuração espacial contemporânea do Amapá é fruto da orientação da dinâmica de circulação de pessoas e mercadorias em longas distâncias dentro do estado para as rodovias, pois, apesar da precariedade da infraestrutura rodoviária, esse modal passou a ser uma opção mais eficiente. Devido às características da rede hidrográfica e a construção das rodovias, na segunda metade do século XX houve, praticamente, a extinção do transporte hidroviário interno de longa distância no estado do Amapá.

16Entretanto, a navegação manteve-se fundamental em comunidades ribeirinhas que não possuem acesso rodoviário. A supremacia dos rios no Amapá ainda se expressa de forma contundente na circulação de mercadorias e pessoas para comunidades ribeirinhas ao longo do rio Amazonas. As estradas são, para essas comunidades, elementos complementares na circulação, pois o rio permanece como centralidade no transporte.

17Com relação ao transporte de cargas e passageiros em escala interestadual no Amapá, o transporte aeroviário representa uma modalidade de grande importância, mas não conseguiu eliminar a modalidade hidroviária para esse tipo de escala. A ausência de rodovias para outros estados permitiu que o transporte hidroviário interestadual permanecesse como majoritário no transporte de cargas e ainda com grande volume de passageiros.

18Silva (2022) faz uma análise do transporte multimodal que integra o Brasil às Guianas e que forma uma estrutura logística capaz de possibilitar a integração regional. O autor intitula de Transrodoguianense o conjunto de vias terrestres que conectam as capitais das Guianas, incluindo o Amapá, tornando possível a formação de uma grande via de integração regional transnacional. Entretanto, essa dinâmica de integração rodoviária não esgota a necessidade do transporte hidroviário entre o Amapá e outros estados brasileiros, que só podem ser acessados pelas conexões hidroviárias ou aeroviárias.

19A permanência da modalidade de transporte hidroviário no Amapá faz com que haja um fluxo constante e extremamente dinâmico no sistema de portos do estado. Na orla do município de Santana, junto à sede municipal, concentram-se diversos portos públicos e privados que atendem à demanda dos fluxos de transporte de cargas e passageiros em embarcações de pequeno e médio porte. Já as embarcações de grande porte, que realizam o transporte de cargas para portos no Brasil e em outros países, são atendidas pelo Porto Organizado da Companhia Docas de Santana (CDSA) (Viana, 2016).

20No Distrito Industrial do município de Santana há, ainda, diversos portos privativos que são utilizados para o transporte de caminhões, que movimentam cargas dentro do estado do Amapá. As empresas que prestam esses serviços são responsáveis pelo transporte dos caminhões entre a cidade de Belém, no Pará, e a cidade de Santana, no Amapá, estabelecendo a conexão hidroviária complementar para o transporte rodoviário. Já nos portos públicos e privados da orla central da cidade de Santana é realizado o embarque e desembarque de passageiros e cargas em embarcações que realizam o transporte local e regional.

21A permanência da navegação na centralidade da circulação de pessoas e mercadorias entre o Amapá e outros estados é elemento representativo da característica insular do território amapaense. As cidades do Amapá estão integradas por rodovias, mas o estado permanece sem ligação rodoviária com o restante do Brasil, estabelecendo uma característica diferenciada do território em relação a outras unidades da federação. Esse fenômeno é representado por meio do Mapa 3, que apresenta as principais rotas de integração multimodal utilizadas no transporte de cargas e passageiros entre o Amapá e o Pará.

Mapa 3: Rotas de integração rodofluvial entre o Amapá e o Pará

Mapa 3: Rotas de integração rodofluvial entre o Amapá e o Pará

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e DNIT.

22Portanto, os rios são fator preponderante na lógica de organização do espaço no Amapá e, apesar de não serem mais as únicas vias de circulação, eles mantêm relevância significativa na economia do estado e são fundamentais para a manutenção do modo de vida dos povos tradicionais e integração de mercados do grande capital. O deslocamento da circulação dos rios para as rodovias, internamente, não esgotou totalmente os rios como elemento central na organização do espaço no Amapá, e ainda continua qualificando as expressões culturais e atividades econômicas da sociedade amapaense.

O Programa de Aceleração do Crescimento e a ascensão do agronegócio sojicultor

23Com o lançamento do PAC em 2007, pelo governo federal, inicia-se uma nova etapa de desenvolvimento da infraestrutura de circulação no Amapá. Não que tais infraestruturas já não existissem, mas foram consolidadas e ampliadas. Entre as obras previstas no PAC, destaca-se a pavimentação da rodovia BR-156, principal eixo de integração norte-sul do estado e integração entre a capital e a fronteira com a Guiana Francesa. Foram incluídas também no PAC a construção de três novas usinas hidrelétricas, a interligação por linhas de transmissão ao Sistema Elétrico Nacional, a reestruturação do Porto de Santana, a modernização dos aeroportos de Macapá e Oiapoque e a construção da ponte binacional integrando a infraestrutura rodoviária do Amapá à Guiana Francesa (Brasil, [s.d.]). O Mapa 4 apresenta um panorama da distribuição espacial das principais obras de infraestrutura previstas no PAC para o Amapá.

Mapa 4: Obras do PAC no Amapá

Mapa 4: Obras do PAC no Amapá

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.

24Das obras de infraestrutura citadas, apenas a pavimentação da BR-156 ainda não foi concluída, mas está em andamento. Cabe destacar que há também em curso diversas obras complementares desenvolvidas pelo governo do estado do Amapá, principalmente com a pavimentação de rodovias estaduais, que complementam a malha viária federal. Com o desenvolvimento dessas obras de infraestrutura, o aparelho estatal está gradativamente consolidando a infraestrutura necessária às atividades do grande capital.

25Diante do cenário de melhoria da infraestrutura no Amapá, o agronegócio, a mineração, a indústria madeireira e a indústria pesqueira de outras unidades da federação, e até de outros países, encontraram oportunidades de estender seus negócios no estado. Empreendimentos ligados a esses setores estão buscando aproveitar a infraestrutura existente, frente ao potencial logístico-localizacional e à disponibilidade dos bens naturais do Amapá para expandir negócios. Para tanto, as empresas tecem estratégias de territorialização e utilizam as instituições e mecanismos do Estado para dar suporte às suas atividades.

26Entre as atividades do grande capital que estão se desenvolvendo no Amapá a partir das possibilidades geradas pelas obras do PAC, destaca-se o agronegócio. O arrendamento de áreas e a reestruturação do Porto de Santana permitiu a instalação da empresa Cianport, operada em sociedade pelas empresas Fiagril e Agrosoja, ambas do estado de Mato Grosso. A estratégia da empresa consiste em realizar o transporte da soja produzida no Mato Grosso em caminhões pela BR-163 até o município de Itaituba, no estado do Pará, onde os grãos são embarcados em balsas e transportados por meio do rio Amazonas até o Porto de Santana, no qual ocorre o transbordo para navios graneleiros responsáveis pela exportação (CDSA, 2019). Com essa estratégia, as empresas de logística economizam no custo do frete e conseguem tornar a soja brasileira mais competitiva no mercado internacional.

27Com a criação de condições para a exportação dos grãos no Amapá, agricultores de outros estados resolveram aproveitar o potencial logístico-localizacional e a disponibilidade de terras para a produção de grãos. A partir do início da instalação do terminal graneleiro, em 2012, começaram a chegar produtores de grãos de outros estados, principalmente da região Centro-Sul, no estado do Amapá, que adquiriram terras e iniciaram o plantio de grãos. Em 2016 ocorreu o primeiro embarque para exportação diretamente em navios no terminal graneleiro do Porto de Santana. Foram exportados naquele ano 25 mil toneladas de soja produzidas em 17 mil hectares nos municípios de Macapá, Itaubal, Ferreira Gomes e Tartarugalzinho (Santos, A., 2016).

A seletividade espacial

28O processo de territorialização do capital no Amapá engendra o reordenamento territorial sob os auspícios do capitalismo mundial. No entanto, é indispensável ponderar que esse reordenamento territorial não ocorre de forma generalizada, mas de forma seletiva sobre o cerrado amapaense. Essa seletividade espacial ocorre por questões relacionadas à viabilidade e competitividade das terras sob influência do bioma cerrado, cuja legislação exige 35% de reserva legal, enquanto no bioma Amazônia são exigidos 80% de reserva legal (Brasil, 2012). Somam-se a isso as características do relevo nas áreas de ocorrência de cerrado no Amapá, na qual se encontram os terrenos menos acidentados e, portanto, mais propícios à mecanização, e a existência de rodovias pavimentadas nessa porção territorial.

29A territorialização do capital no cerrado amapaense foi viabilizada pelas obras de infraestrutura que atravessam grande parte das terras sob esse tipo de bioma. Nesse contexto, as rodovias – modal predominante no Amapá – passaram a tutelar as terras do cerrado sob o prisma do desenvolvimento capitalista.

30A dinâmica de ocupação do cerrado amapaense pelo grande capital encerra uma relação ideológica contraditória, pois é o cerrado, por excelência, o território ecologicamente construído pelos povos tradicionais, já que foi formado pela atuação milenar desses povos por meio do uso sistemático do fogo, conforme apontou Miranda (2007). Há, ainda, a dificuldade dos povos tradicionais do cerrado amapaense em terem suas territorialidades reconhecidas, situação que evidencia a contradição entre diferentes formas de conceber a posse e o uso da terra, conforme descreve Liliane Rodrigues Soares (2017) ao analisar a identidade quilombola e os conflitos territoriais no cerrado amapaense:

O cerrado do Amapá historicamente é território de pequenas comunidades tradicionais extrativistas e áreas de comunidades quilombolas. Tais comunidades reivindicam há anos a regularização de suas áreas, tanto de forma individual, como de forma coletiva e apresentam diferentes concepções de vida e visões de mundo, podendo falar de temporalidades históricas diferentes quanto à chegada dos novos atores na referida região, estabelecendo-se “novas fronteiras”. (SOARES, 2017, p. 4)

31Portanto, há a construção exógena das formas de apropriação do cerrado amapaense para fins de reprodução do capitalismo global. Nesse processo, o cerrado amapaense não é considerado como produto social dos povos tradicionais do Amapá, mas apenas como uma zona potencial para o desenvolvimento capitalista, ou seja, recurso para a reprodução do capital. Trata-se da redução à simples mercantilização da terra como recurso natural disponível para exploração e acumulação capitalista, subjugando qualquer territorialidade dos povos tradicionais.

32O Mapa 5 apresenta o macrozoneamento do estado do Amapá, realizado pelo IEPA (Rabelo, 2008). Por meio dele é possível compreender a relação entre a infraestrutura e o bioma cerrado na política de ordenamento territorial do Amapá. A dinâmica de territorialização do capitalismo no campo amapaense segue a vertente do aproveitamento da competitividade territorial das terras do cerrado amapaense, diante da infraestrutura consolidada pelo Estado.

Mapa 5: Macrozoneamento do estado do Amapá

Mapa 5: Macrozoneamento do estado do Amapá

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.

33Nesse contexto de seletividade espacial, em que o cerrado amapaense se torna alvo do desenvolvimento capitalista, os povos tradicionais que exercem a posse e o uso das terras do cerrado passam a sofrer com um processo de especulação fundiária, que se desdobra em conflitos pela posse e uso das terras. Já florestas, mangues e áreas alagáveis não constituem áreas de grande interesse ao capital, permitindo relativa liberdade na reprodução do modo de vida dos povos tradicionais nessas terras. Sobre essa dinâmica, cabe lembrar a observação de Milton Santos (2010, p. 79):

No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha novos contornos, novas características, novas definições. E, também, uma nova importância, porque a eficácia das ações está estreitamente relacionada com a sua localização. Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros.

34Dessa forma, o autor destaca o processo de fragmentação do território, que impõe uma lógica exógena de organização do espaço geográfico, refuncionalizando-o e redefinindo-o de acordo com a necessidade dos atores hegemônicos (Santos, M., 2010). Para tanto, o público e o privado trabalham em parceria, unindo política e técnica no conjunto de ações necessárias para garantir a maior fluidez na reprodução do capital e, consequentemente, competitividade, que representa o diferencial no mercado global – por conseguinte, a maximização dos lucros.

Regionalização socioeconômica do Amapá

35A relação entre a circulação pelos rios, lógica dos povos tradicionais, racional para o modo de vida desses povos, e a necessidade das rodovias para a racionalidade da reprodução do capitalismo se coloca como conflitiva. Os rios são elementos constitutivos do modo de vida dos povos tradicionais, da circulação necessária à realização de suas atividades econômicas, em uma lógica lenta da necessidade momentânea, da alimentação e do bem-estar. Já as rodovias assumem o caráter de indutoras do processo de desenvolvimento do capitalismo, essencialmente em terra firme, nos cerrados do Amapá, dentro de uma lógica de fluidez e rapidez necessárias à acumulação capitalista. São as rodovias que captam o tecido territorial necessário à expansão dos circuitos produtivos e permitem a territorialização do capital.

36Se por um lado as obras de infraestrutura destacadas para o Amapá foram responsáveis pela incorporação de terras aos circuitos produtivos do capitalismo global, por outro, a característica de seletividade espacial dessa dinâmica excluiu outras porções territoriais, nas quais permaneceram a hegemonia das atividades e a lógica dos povos tradicionais ou de atividades primárias sem ligações intensas com a dinâmica econômica global.

37Portanto, o processo histórico-geográfico de organização do espaço no Amapá como um todo é muito amplo e diverso, mas é possível estabelecer uma sistematização da forma de organização do espaço no Amapá resultante desse processo. Nesse sentido, este texto traz uma compreensão de que se consolidou uma regionalização em cinco principais arranjos socioeconômicos no Amapá: 1) ao sul, o arranjo agroextrativista, produto das relações periféricas com o Projeto Jari e os povos tradicionais; 2) ao norte, o arranjo garimpeiro, produto das atividades no garimpo e suas relações com as cidades de Oiapoque e Calçoene; 3) ao leste e ao longo da costa, o arranjo ligado às atividades pecuária e pesqueira, produto da dinâmica dos povos tradicionais com a pesca ao longo dos rios, igarapés, ilhas e lagos e da atividade pecuária nos campos; 4) ao centro, o arranjo urbano-industrial, produto das relações estabelecidas entre a mineração, a indústria madeireira, o agronegócio e os principais núcleos urbanos; e 5) a oeste, terras que estão são em sua maioria florestadas e protegidas, conforme apresentado no Mapa 6.

Mapa 6: Regionalização socioeconômica do Amapá

Mapa 6: Regionalização socioeconômica do Amapá

Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.

38Esse produto cartográfico é resultante de análises de diversos fatores relacionados à dinâmica socioespacial do Amapá e busca tecer um retrato aproximado dessas dinâmica, sem, contudo, querer encerrar nesses limites qualquer experiência exata da organização espacial do Amapá, visto ser um cenário complexo e dinâmico. Optou-se nessa proposta por não abarcar todo o território do estado dentro de arranjos socioeconômicos, devido à compreensão de que não é possível envolver todas as terras do Amapá em algum cenário de dinamização socioeconômica. Há muitas terras com baixa densidade demográfica e sob a jurisdição de unidades de conservação que não foram incluídas em nenhum desses arranjos propositalmente.

39Mesmo diante da constatação de que as obras de infraestrutura do Amapá fazem parte do arcabouço estratégico do Estado para o desenvolvimento do grande capital, as informações apresentadas neste texto destacam que o processo de reordenamento territorial do Amapá não atingiu todo o território do estado. Tal fato decorre de dois motivos elencados no texto: o primeiro é a seletividade espacial dos empreendimentos capitalistas, e o segundo, a existência de territórios tradicionais, como as terras indígenas e quilombolas.

40Portanto, conclui-se que as obras de infraestrutura no Amapá foram elementos decisivos no processo de reordenamento territorial, anexando novas porções territoriais aos circuitos produtivos do capitalismo global. Entretanto, persiste a dinâmica socioespacial dos povos tradicionais, mas com grande interação por meio da infraestrutura criada. A característica insular do Amapá representou um desafio ao processo de integração territorial do estado às regiões brasileiras que concentram o poder e a economia, o que foi parcialmente solucionado com um sistema multimodal de transporte.

Considerações finais

41Este texto analisou concisamente o reordenamento territorial provocado pelo desenvolvimento da infraestrutura no Amapá e o papel fundamental dos rios, até ao menos metade do século passado. Evidentemente que esta breve exposição não encerra toda a plenitude de análises em torno da organização do espaço no Amapá, tampouco foi possível estabelecer um diagnóstico preciso de todas as nuances que envolvem esse processo. Contudo, o esforço foi de conseguir contribuir com uma visão da totalidade da dinâmica de organização do espaço no Amapá e da sua articulação territorial com o Brasil.

42O processo de implantação da infraestrutura para o desenvolvimento da economia amapaense pelo Estado mostra-se centrado na articulação com o mercado internacional, antes mesmo do fortalecimento das relações intra e inter-regionais. Há a extrema valorização e ocupação de terras por grandes empreendimentos integrados ao mercado internacional em detrimento dos pequenos e médios empreendimentos focados no mercado interno. Essa dinâmica reforça uma relação de hegemonia capitaneada pelo poder público, seus agentes e empreendedores do grande capital.

Haut de page

Bibliographie

Brasil, Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa […]. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 28 maio 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 18 jan. 2022.

Brasil, Ministério do Planejamento, PAC. Brasília, [s.d.]. Disponível em: http://www.pac.gov.br/. Acesso em: 30 set. 2019.

Companhia Docas de Santana, CDSA recebe carregamento de soja com destino à Europa, Santana, 30 maio 2019. Disponível em: http://www.docasdesantana.com.br/index.php/noticias/301-cdsa-recebe-carregamento-de-soja-com-destino-a-europa. Acesso em: 14 mar. 2022.

Drummond, J. A., & Pereira, M A. P., O Amapá nos tempos do manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de um estado amazônico – 1943-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

Guerra, A. T., Estudo geográfico do território do Amapá. Rio de Janeiro: IBGE, 1954.

Lima, R. A. P., Antropización, dinámicas de ocupación del territorio y desarrollo en la Amazonía brasileña: el caso del estado de Amapá. Tese de Doutorado em Geografia Humana, Universidade Autônoma de Barcelona, Barcelona, Espanha, 2003.

Miranda, E. E., Quando o Amazonas corria para o Pacífico: uma história desconhecida da Amazônia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

Porto, J. L. R., Amapá: principais transformações econômicas e institucionais (1943-2000). Tese de Doutorado em Economia Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil, 2002.

Rabelo, B. V. (coord.), Macrodiagnóstico do estado do Amapá: primeira aproximação do ZEE. 3. ed. Macapá: IEPA, 2008.

Romani, C., “Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920”, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi/Ciências Humanas, v. 6, n. 3, p. 501-524, set.-dez. 2011.

Santos, A., Exportação pelo porto de Santana reduz em 60% custos de transporte da soja, 9 set. 2016. Disponível em: https://www.portal.ap.gov.br/noticia/1609/exportacao-pelo-porto-de-santana-reduz-em-60-custos-de-transporte-da-soja. Acesso em: 15 mar. 2022.

Santos, E. R. C., Amazônia setentrional amapaense: do “mundo” das águas às florestas protegidas. Tese de Doutorado em Geografia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, Brasil, 2012.

Santos, M., Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Silva, G. V., “O transporte multimodal na região das Guianas: desafios, impasses e geopolítica regional”, In: Costa, W. M., & Garcia, T. S. L., América do Sul: geopolítica, arranjos regionais e relações internacionais. São Paulo: FFLCH/USP, 2022.

Silva, G. V., Granger, S., & Tourneau, F.-M., “Desafios à circulação na fronteira entre Brasil e Guiana Francesa (França)”, Mercator, v. 18, 2019.

Soares, L. R., “Identidades quilombolas e territórios em disputa no cerrado do Amapá”, In: Simpósio Internacional de Geografia Agrária, 8, Curitiba, 2017. Disponível em: https://singa2017.files.wordpress.com/2017/12/gt02_1506924650_arquivo_liliane_soares_trabalho_singa2017.pdf. Acesso em: 08 mar. 2022.

Tostes, J. A., & Ferreira, J. F. C., “Amapá (Brasil) e Guiana Francesa (França): definindo o corredor transfronteiriço”, PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, v. 9, n. 3, p. 73-97, dez. 2016.

Viana, T. M. S., Planejamento e gestão urbanos na orla fluvial de Santana: aportes para o desenvolvimento local. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional, Universidade Federal do Amapá, Macapá, Brasil, 2016.

Haut de page

Table des illustrations

Titre Mapa 1: Território Federal do Amapá: distribuição espacial da população (1950)
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: Agencia Nacional de Águas (ANA) e Guerra (1954).
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-1.png
Fichier image/png, 199k
Titre Mapa 2: Distribuição espacial da população e infraestrutura rodoviária (2010)
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 130k
Titre Mapa 3: Rotas de integração rodofluvial entre o Amapá e o Pará
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e DNIT.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-3.jpg
Fichier image/jpeg, 115k
Titre Mapa 4: Obras do PAC no Amapá
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-4.jpg
Fichier image/jpeg, 118k
Titre Mapa 5: Macrozoneamento do estado do Amapá
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-5.png
Fichier image/png, 321k
Titre Mapa 6: Regionalização socioeconômica do Amapá
Crédits Elaborado por: Cleuton Pinto Miranda. Fonte dos dados: IBGE e IEPA.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/45847/img-6.png
Fichier image/png, 172k
Haut de page

Pour citer cet article

Référence électronique

Eduardo Margarit, « As obras de infraestrutura estratégicas para a organização do espaço amapaense »Confins [En ligne], 55 | 2022, mis en ligne le 18 juin 2022, consulté le 28 mars 2024. URL : http://journals.openedition.org/confins/45847 ; DOI : https://doi.org/10.4000/confins.45847

Haut de page

Auteur

Eduardo Margarit

Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), eduardo.margarit@unifap.br

Haut de page

Droits d’auteur

CC-BY-NC-SA-4.0

Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC-SA 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

Haut de page
Search OpenEdition Search

You will be redirected to OpenEdition Search