1O desenvolvimento urbano e o intenso crescimento populacional contribuíram para alguns dos desafios que as cidades enfrentam atualmente. O consequente aumento das construções urbanas e obras públicas torna evidente a escassez de recursos ambientais locais, colocando a biodiversidade em pergunta (Astee & Kishnani, 2010). Vários desafios para uma sociedade mais sustentável, podendo ser de caráter econômico ou ambiental, entre os quais estão as mudanças climáticas, apresentam implicações para o ecossistema e o ser humano (Huntingford et al., 2013). Neste contexto, a segurança alimentar é uma das preocupações mundiais, visto ser estimado que os extremos do clima devido às mudanças esperadas para as próximas décadas possam ser capazes de reduzir as produções alimentares globais em 13% a 45% (Eigenbord & Gruda, 2015).
2Há um interesse crescente em centros urbanos mais autossustentáveis, com mais áreas verdes e envolvendo uma transição de baixo carbono (Gaziulusoy & Ryan, 2017). Diferentes cidades ao redor do mundo já estão reconhecendo o diferencial da agricultura urbana como parte integrante do seu planejamento, visto que a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos promovidos com esta prática podem apresentar também grande importância social, sendo capazes de agregar o caráter resiliente a estas áreas. O interesse neste tipo de atividade não é recente, no entanto atrai cada vez mais adeptos entusiasmados. A agricultura urbana consiste em uma ideia simples: realizar jardinagem, horticultura e produção alimentar dentro dos centros urbanos (Dubbeling & De Zeeuw, 2011).
3Neste sentido, a implementação da horticultura urbana ajuda a reduzir a pegada de carbono do sistema alimentar, pois não envolve o transporte de onde é cultivado para os centros de distribuição nas cidades. Além disso, muitos centros urbanos precisam se adaptar no sentido de se tornarem ambientes mais sustentáveis, com mais qualidade de vida e mais segurança alimentar para todos os seus cidadãos, sendo as hortas e práticas de agricultura urbana parte da solução (FAO, 2014). Em termos globais, estima-se que a procura alimentar irá crescer 70% até 2050 a fim de suprir as necessidades básicas da população mundial de aproximadamente 9 a 10 bilhões de pessoas na metade do século atual (Korth et al., 2014). Existe um imenso desafio para alimentar a crescente população, o qual pode e deve ser vencido pela agricultura urbana (Vadlapatla, 2013).
4Assim, o presente artigo propõe uma apresentação do histórico da agricultura urbana junto a um detalhamento dos seus diferentes tipos de modalidades, seguido por uma revisão bibliográfica sistemática a respeito dos benefícios da sua implementação relatados na literatura científica. Por fim, apresenta-se uma perspectiva atual sobre os movimentos da atividade no Brasil.
5Hortas comunitárias têm uma longa história, chegando a 100 a.C. até os loteamentos de Lands End (Inglaterra). Espaços com a finalidade de produção alimentar surgiram no século XVIII para lidar com a pobreza urbana e a Primeira Guerra Mundial provocou a sua expansão, especialmente na Europa, havendo registros da primeira cidade jardim introduzida na Islândia, na década de 1910 (Reynarsson, 1999).
6Durante e após a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, as "hortas vitoriosas" (victory gardens em inglês) foram amplamente difundidas e bem-sucedidas no aumento do abastecimento de alimentos no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Austrália durante os anos de austeridade (Imagem 1) (Gowdy-Wygant, 2013). Enquanto as hortas comunitárias são pensadas principalmente para a produção de alimentos e abastecimento local, o valor pedagógico de jardins foi promovido pelo filósofo John Dewey no início dos anos 1900, tendo como resultado a proliferação de jardins em terrenos escolares por todo o território americano, proporcionando aprendizado experimental e conexões diretas entre a sala de aula e o ensino prático (Ord, 2009).
Imagem 1 - Exemplo de cartaz de "Hortas vitoriosas" (Victory gardens)
Fonte: Sundin (2017).
7Em muitos países da Europa, as hortas ou jardins de loteamento são comuns e têm uma longa tradição. Em geral, as suas funções passaram do autoabastecimento para o lazer, embora a legislação ou regras locais possam especificar uma área mínima para a produção de alimentos. Entretanto, estes espaços na Europa Ocidental reinventaram-se. O intuito de lidar com a fome foi substituído por um enfoque na alimentação saudável e em ambientes social e fisicamente ativos. Na Alemanha, França e Grã-Bretanha, as listas de espera de loteamentos ressurgiram após décadas de declínio em muitas cidades, mostrando um crescente interesse no assunto por parte da população urbana (Bell et al., 2016).
8O cultivo de alimentos em centros urbanos desempenha um papel importante na alimentação da crescente população urbana. Um exemplo de país, o qual devido a necessidades teve de recorrer à agricultura urbana, foi Cuba, visto ter de lidar com fortes restrições comerciais e com limitação do próprio território para a produção alimentícia, resultando em cidades tomadas pela agricultura a fim de abastecer a própria população. Na capital Havana, mais de 35 mil hectares de área são usados para a prática agrícola urbana (Eigenbord & Gruda, 2015). Este modelo vai de encontro ao que Caldas & Jayo (2019) caracterizam como “agricultura urbana de escala”, na qual há um grande volume de produção e que se encontra localizado nas periferias das cidades. Em contrapartida, estes autores também discorrem sobre a chamada de “agricultura urbana de visibilidade”, sendo localizada em regiões geralmente mais centrais e que apresentam menor produção agrícola, algo muito observado no município de São Paulo (Caldas & Jayo, 2019).
9Atualmente, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de 800 milhões de pessoas no mundo já estão cultivando alimentos em cidades, produzindo assim aproximadamente 15% a 20% dos alimentos a nível global. Em algumas megacidades chinesas, por exemplo, a maior parte da produção agrícola provém da área urbana (Royte, 2015). Deste modo, é possível constatar que a agricultura urbana pode ser verdadeiramente útil na estratégia do alcance às metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, especialmente os ODS 1 (Erradicação da Pobreza – acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares), e ODS 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável – acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável) (ONU, 2015). Com a grande visibilidade que a Agenda 2030 conquistou mundo afora, o surgimento de empreendedores de sucesso na agricultura urbana tem culminado no crescente interesse global por este assunto (Mougeot, 2006).
10Globalmente, a agricultura urbana assume diferentes caracteres, os quais variam conforme sua finalidade ou local de implantação. De acordo com a produção, as hortas alimentares urbanas podem ser divididas naquelas baseadas na produção individual (hortas familiares e hortas de loteamento), e naquelas baseadas em esquemas coletivos (hortas educativas, terapêuticas e comunitárias).
11As hortas familiares em meio urbano são espaços não comerciais, produtores de alimentos, cujo objetivo é fornecer à família diferentes itens alimentares. Tipicamente, não são sujeitas a qualquer agenda política, embora planos diretores ou esquemas de infraestruturas verdes possam estabelecer condições ou objetivos para estas. O Plano Diretor de Reiquiavique (Islândia), por exemplo, declara a sua intenção de incentivar a agricultura urbana familiar, o qual enfatiza a ideia de estimular as pessoas a cultivarem alimentos em casa nas suas próprias hortas. Há várias conexões entre a política sobre a agricultura urbana e a atual política ambiental, tal como a política do solo, a qual objetiva que a cidade esteja livre da poluição e que as áreas verdes da cidade sejam também utilizadas para atividades educacionais ao ar livre, com ênfase no trabalho com a natureza (Reynarsson, 1999).
12Com antecedentes que remontam à Idade Média, a horta de loteamento é mais popular do que nunca como um meio de obter os alimentos mais frescos possíveis, além de instigar a coesão da comunidade. O movimento dos pequenos jardins, que ganhou ímpeto no século XIX à medida que os trabalhadores rurais se aglomeravam nas cidades industriais, ofereceu algum alívio das condições de vida urbanas sombrias daquela época (Nilson, 2014).
13Uma horta de loteamento (Imagem 2) é uma área subdividida em pequenas parcelas, que são alugadas ao abrigo de um contrato de arrendamento acordado (Simon-Rojo, 2015). Normalmente resultam de iniciativas municipais em terrenos públicos e a sua regulamentação é altamente formalizada, com diretrizes regionais ou nacionais. Estes espaços podem ser geridos por um grupo organizado, ou mesmo estabelecidos como associação de jardinagem (Lima, 2019). Estes espaços são vistos como uma boa opção para áreas subutilizadas tais como hortas escolares, como no município de Oslo (Noruega). Outras hortas de loteamento visam atuar especificamente na temática social, no sentido de uma maior inclusão, o que é observado em países como Portugal, Espanha, Grécia e Estônia (Vejre et al., 2016).
Imagem 02 – Exemplo de Horta de Loteamento
Fonte: CulturaMix (2014)
14As hortas educativas oferecem um instrumento pedagógico que aborda a produção, transformação e consumo de alimentos e o seu impacto ambiental, com um elevado potencial para a sensibilização do público e propagação ecológica com diferentes práticas de plantação e jardinagem, realizando, desta forma, a educação ambiental e nutricional (Boog, 2010). Geralmente são localizadas em instituições educacionais que fornecem aprendizagem baseada em hortas integradas à sua comunidade, tais como escolas e jardins de infância, mas também em algumas Associações de Pais e Amigos (APAEs), ou hortas desenvolvidas por centros ambientais que oferecem serviços educativos aos visitantes (Guimarães et al., 2020).
15Estes espaços podem estar integrados nas políticas públicas a nível municipal, no entanto a sua criação depende principalmente do empenho pessoal de professores e do apoio público, havendo um número crescente de programas municipais para hortas educacionais, como nas cidades Utrecht (Holanda), Saragoça (Espanha) e em Lisboa (Portugal), sendo que na República Tcheca, a jardinagem alimentar foi integrada no currículo da escola primária (Simon-Rojo, 2015). Parcerias estratégicas com instituições especializadas, como a EMBRAPA e a EMATER, bem como empresas privadas que atuam no setor da agricultura, incentivam a instalação de hortas escolares à base de instruções agronômicas fornecidas. São sugeridas estratégias pedagógicas na sala de aula, no sentido de usar a horta pedagógica como um recurso didático de ensino-aprendizagem (EMATER, 2019).
16Os efeitos terapêuticos básicos da jardinagem e da prática agrícola podem ser explorados através do envolvimento com hortas. São geralmente presentes em regiões periurbanas, em instituições terapêuticas para a saúde física e mental, podendo servir como complemento para o tratamento de perturbações mentais, autismo, doença de Alzheimer ou paralisia cerebral (Uwajeh et al., 2019). Este tipo de espaço se expandiu na Holanda, com uma forte organização nacional com mais de mil hortas (Simon-Rojo, 2015).
17Muito pode ser aprendido com os modelos de sucesso já implantados, como a Horta Terapêutica de Vegetais, iniciada pelo serviço de assistência social do Município de Kifissia (Grécia) (Simon-Rojo, 2015). Em Veneza (Itália), a horta terapêutica do Hospital San Camilo é o primeiro espaço no país concebido especificamente para a reabilitação de pacientes em cadeiras de rodas ou com deficiências físicas (Vejre et al., 2016), onde os pacientes podem participar ativamente na plantação, cuidado e colheita das plantas, o que não é visto apenas como uma atividade física, visto que o maior benefício deriva do contato com uma variedade de plantas e flores cuidadosamente escolhidas para estimular o olfato, a visão e o tato, despertando os sentidos e, assim memórias e emoções. No Brasil, também há registros de espaços de horticultura e hortoterapia voltados a alunos com necessidades especiais, atuando como um método interativo de gestão utilizado para o controle e melhoria contínua da horta e produção de hortaliças, usado tanto para o tratamento, como para a inclusão psicossocial (Camargo et al., 2015). Entre exemplos, tem-se o projeto de horta orgânica implantada na APAE no município de Mossoró/RN para alunos com necessidades especiais, a qual gerou inclusão social baseada numa maior participação dos alunos nas atividades ocorridas na horta, além de benefícios e ganhos na relação comunidade-escola (Soares et al., 2012). Outra horta orgânica implantada na APAE Centro de Educação Especial Pequeno Príncipe, localizado no município de Glória de Dourados/MS (Guimarães et al., 2020), gerou resultados igualmente positivos e de maior inclusão dos alunos, baseada numa maior participação nas atividades ocorridas na horta. O Instituto Federal do Tocantins (IFTO) iniciou um projeto de revitalização e de inclusão social na APAE da Lagoa da Conceição/TO, a base de atividades educacionais e recreativas, incluindo o plantio e a colheita de hortaliças (IFTO, 2019).
18As hortas comunitárias surgem tipicamente como iniciativas populares com caráter social, ou seja, não são apenas sobre cultivar alimentos, mas também sobre cultivar redes sociais e estabelecer um sentido de comunidade, sendo as regras e a sua organização estabelecidas pelos próprios participantes (Simon-Rojo, 2015). Geralmente é negociado um acordo com as autoridades municipais ou proprietários de um determinado terreno, no entanto, nem sempre estes espaços são legalizados. A grande maioria é orientada para a produção orgânica, sendo também crescente a associação com instalações de compostagem de resíduos. Além disso, a realização de atividades educativas e culturais são uma parte essencial do seu funcionamento (Branco & Alcântara, 2011). Bryld (2003) relatou que o cultivo de alimentos urbanos começou a ser impulsionado a partir dos anos 80, independente de apoio governamental, tanto na América Latina, como também no continente Africano e na Ásia, como uma estratégia para segurança alimentar das populações mais pobres, atingidas por crises econômicas nessas regiões. No Brasil, hortas comunitárias urbanas surgiram também nos anos 80, incentivadas pelas prefeituras municipais e outras instituições locais (Farfán et al., 2008).
19Desde então, o movimento das hortas comunitárias não só tem crescido pela iniciativa de cidadãos, como também está sendo incorporado na identidade de países e municípios. Em Curitiba/PR, as hortas urbanas transformaram tanto espaços desocupados da cidade como a qualidade de vida das comunidades locais, transformando espaços que estavam vazios e sem uso em fonte de alimentos saudáveis, além de gerar renda financeira extra, segurança alimentar e convívio social para muitos dos moradores envolvidos como agricultores urbanos (Programa Agricultura Urbana, 2018).
20Em pesquisa inicial realizada no banco de dados Capes (Portal periódicos da Capes), cujos termos de busca foram “community gardens” e “benefits”, foi possível coletar o total de 4.731 artigos científicos em revistas revisados por pares, relatando associações entre os termos de busca. O período pesquisado foi de 2000 a 2020 usando parentes para todas as palavras-chave e o operador booleano AND. Num segundo momento foram identificados os benefícios variados da implementação de hortas urbanas nas três principais áreas: a social, a ambiental e a econômica, conforme demonstrado na Tabela 1. Esta busca foi realizada utilizando-se os termos em língua inglesa, que foram, de forma individual, associados junto ao termo “community gardens”, sendo na área social as palavras-chaves “Bem-estar” (4.374) e a “Segurança alimentar” (1.075) os mais citados; na área ambiental, “Biodiversidade” (918), e “Qualidade do ar” (424) apresentaram maior número de citações; enquanto como benefício econômico mais relatado observou-se “Econômica” (1.573) e “Produção de alimentos” (1.252). Todos os títulos e resumos foram lidos, para verificar se o artigo tratou de benefícios. O conjunto de buscas detalhado na Tabela 1 demostra a importância dos benefícios de hortas urbanas.
Tabela 1 – Benefícios da implantação de hortas urbanas, categorizados em três áreas: social, ambiental e econômica
Área
|
Benefício
|
Número de artigos científicos em revistas revisados por pares
|
Social
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Bem-estar
|
4.374
|
Segurança alimentar
|
1.075
|
Educação ambiental
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409
|
Pessoas idosas
|
337
|
Inclusão social
|
318
|
Alimentação saudável
|
278
|
Merenda escolar
|
212
|
Empoderamento da comunidade
|
203
|
Novas habilidades
|
187
|
Convívio
|
105
|
Decisões comunitários
|
92
|
Redução da criminalidade
|
84
|
Ambiental
|
Biodiversidade
|
918
|
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Qualidade do ar
|
424
|
Flora
|
314
|
Fauna
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269
|
Ilhas de calor (redução)
|
261
|
Resíduos orgânicos
|
182
|
Redução de emissões
|
50
|
Sem agrotóxicos
|
23
|
Áreas degradadas
|
22
|
Econômica
|
Economia
|
1.573
|
|
Produção de alimentos
|
1.252
|
|
Renda
|
983
|
Qualidade alimentar
|
207
|
FONTE: Elaborado pelos autores, 2021
21Hortas urbanas são importantes para a segurança alimentar, servindo como base para o consumo de alimentos frescos e saudáveis. Além disso, o cultivo de hortas tanto em ambiente doméstico quanto comunitário torna-se uma excelente opção para o uso de locais ociosos (EMBRAPA, 2020). A produção de alimentos nestes locais culmina em itens com maior tempo de validade, visto que o tempo entre a colheita até chegar à casa do consumidor é menor quando comparado à produção-consumo de longa distância (Eigenbrod & Gruda, 2015). Miccoli et al. (2016) argumentam que a agricultura urbana proporciona à comunidade o acesso a alimentos frescos, fato que tem efeitos positivos sobre a saúde e a qualidade de vida, melhorando, inclusive, o estado psicológico dos indivíduos. Esta atividade permite também adquirir habilidades em um novo campo de trabalho e aprendizagem. Nascimento (2018) em estudo na cidade do Rio de Janeiro/RJ relatou vantagens que influenciam positivamente na segurança e soberania alimentar, na propagação do conhecimento tradicional, além de uma dieta mais saudável e muitas vezes à base de produtos sem agrotóxicos. Foi possível também destacar a recuperação de área anteriormente utilizada como ponto de venda de narcóticos, e agora transformada em canteiros produtivos, agregando maior benefício no sentido de um recomeço para a comunidade local.
22Viver em centros urbanos pode ser caro. Para a população de baixa renda, o custo envolvido com a compra de alimentos pode representar quase 60% da renda familiar (Borges et al., 2015), e, nos centros urbanos, é comum que alimentos frescos e in natura apresentem preços mais elevados em comparação aos alimentos industrializados e ultraprocessados. Quando as pessoas cultivam sua própria comida, o fator custo pode ser amenizado, além de fornecer a possibilidade de destinar o excedente da produção à venda, inclusive para estabelecimentos comerciais, gerando a possibilidade de uma renda adicional à família.
23Há um corpo crescente de evidências que destaca os benefícios potenciais da horticultura na idade avançada, e como forma de lazer favorecida para os adultos mais velhos em vários países. Deste modo, esta pode ser uma forma particularmente benéfica de atividade física para promover um envelhecimento saudável (Collins & O'Callaghan, 2008). Van den Berg et al. (2010) mostraram que pessoas com 62 anos de idade ou mais, trabalhando em jardins e hortas, relataram melhores pontuações em medidas de saúde e bem-estar. De acordo com dados coletados junto ao Governo da Victória (Austrália), a jardinagem é benéfica para as pessoas de idade avançada, pois: 1) é uma forma agradável de realizar exercício físico; 2) aumenta a mobilidade e flexibilidade; 3) encoraja a utilização de todas as capacidades motoras, além de melhorar a resistência; 4) ajuda a prevenir doenças, diminuindo, por exemplo, os índices de osteoporose; 5) reduz os níveis de estresse, promovendo maior relaxamento; 6) proporciona estímulo e interesse na natureza e no exterior; 7) melhora o bem-estar como resultado da interação social; 8) além de poder fornecer produtos nutritivos. Visto isso, a presença de hortas em centros urbanos poderia ser incorporada às políticas de saúde pública, pois atua na prevenção de doenças ao fornecer atividades e alimentos saudáveis, além de poder exercer um efeito paliativo para as desordens já instaladas em indivíduos enfermos, fornecendo especial benefício às pessoas de idade mais avançada (Governo do Estado da Victória, 2014).
24Dentro do contexto social, um efeito de grande destaque atualmente é o de promover o empoderamento feminino através desta atividade. Delgado (2017) avaliou hortas urbanas em Viena (Áustria) e em Lisboa (Portugal), onde os principais atores na atividade são mulheres, focadas na produção de hortaliças, plantas medicinais, temperos, entre outros. O referido estudo demonstrou uma maior hegemonia das mulheres como dinamizadoras do conjunto de tarefas, especialmente como gestoras de hortas urbanas, sendo referidas como empreendedoras sociais. Assim, observa-se uma relação sinérgica: hortas urbanas são capazes de promover o empoderamento feminino, enquanto o protagonismo das mulheres fortalece ainda mais este movimento urbano.
25Outro estudo, de autoria de Souza e Pinheiro (2017), relata as contribuições da implementação de uma horta em uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) no município de Sete Lagoas/MG. Esta atividade como método de recuperação se destaca como uma forma de reintegrar indivíduos condenados na sociedade. Os apenados têm maiores oportunidades no mercado de trabalho à base do conhecimento teórico e prático obtido sobre horticultura, reforçando a validade da metodologia APAC. Vários condenados expressaram a vontade de criar sua própria horta ou se envolver em projetos de hortas comunitárias dos seus municípios.
26Entre os serviços ecossistêmicos fornecidos pelas hortas aos ambientes urbanos, a potencial melhora na qualidade do ar depende da habilidade das plantas em absorver ou atrair partículas e poluentes, o que está atrelado ao índice de área foliar, ou seja, a quantidade adimensional que caracteriza a copa das árvores. Sendo assim, este potencial pelas plantas consumíveis pode ser limitado, restringindo-se a apenas alguns cultivares, no entanto, não deve ser descartado (Aerts et al., 2016). Quanto ao efeito das ilhas de calor, sabe-se que a evapotranspiração de coberturas vegetais em cidades não só é capaz de amenizar a temperatura, como também de reduzir as emissões de gases de efeito estufa (Qiu et al., 2013).
27Frente à vulnerabilidade que as cidades enfrentam em decorrência dos eventos relacionados às mudanças climáticas, a presença de práticas agrícolas nos meios urbanos é capaz de agregar o caráter resiliente. Como exemplo, tem-se o potencial de reduzir o risco de inundações, que ocorre com a presença de raízes capazes de reter a água nos solos, o que caracteriza as chamadas cidades-esponja. Na cidade de Rosário (Argentina), está sendo realizada a conversão de margens de riachos junto a práticas agrícolas, além da migração de telhados tradicionais em verdes, a fim de reduzir o risco de inundações (Hardoy et al., 2013).
28A biodiversidade se beneficia com a agricultura urbana quando espaços de concreto ou mesmo simples gramados são convertidos em solo com potencial fértil, o que aumenta a heterogeneidade do mesmo, atrai espécies animais, especialmente os insetos polinizadores, e reduz o carregamento de nutrientes (Benton et al., 2003). É importante também destacar que populações que produzem alimentos em áreas urbanas há anos, desempenharam um papel importante em manter a variedade de sementes e até mesmo da conservação de germoplasma de alguns cultivares, caso de imigrantes mexicanos observados cultivando espécies de milho na Califórnia (EUA). Além disso, esta prática nos meios urbanos evita o aumento da devastação de outros ecossistemas para a produção alimentar, portanto, no tocante à proteção de biomas, a promoção da agricultura em áreas urbanas vai de encontro ao raciocínio de pensar globalmente enquanto se age localmente (Heraty & Ellstrand, 2016).
29Outro potencial da agricultura urbana é a associação à economia circular através do manejo de resíduos orgânicos. O estudo de Weidner & Yang (2020) avaliou a autossuficiência e o desempenho ambiental de um sistema integrado de gestão de resíduos da agricultura em áreas urbanas de duas cidades europeias. Foi observado que a produção de uma grande parte de frutas, vegetais e até de aquacultura com o uso de nutrientes de produtos residuais, além de água da coleta da chuva, é teoricamente possível, e os sistemas integrados de agricultura urbana poderiam assimilar 52% e 17% do desperdício de alimentos em Glasgow (Escócia) e Lyon (França), respectivamente. Com a valorização de resíduos reaproveitados, as produções de gases do efeito estufa destes dois exemplos de sistema agrícola urbano reduziram em 8% e 13% respectivamente, para Glasgow e Lyon. Estes resultados podem inspirar formuladores de políticas urbanas e partes interessadas em considerar a propagação da agricultura urbana em simbiose com estratégias descentralizadas de gestão de resíduos, como um movimento em direção a cidades autossustentáveis e a uma economia mais circular.
30Muito embora soluções baseadas na natureza voltadas para a melhoria da biodiversidade possam proporcionar múltiplos benefícios, observa-se ainda que estas não estão sendo plenamente realizadas. Uma das razões discutidas é a desconexão normativa e cognitiva entre as pessoas e a natureza, destacando a necessidade de novos programas de aprendizagem para promover melhores conexões com a natureza (Dicuck, 2019).
31Diante do exposto, Branco & Alcântara (2011) indicam a problemática jurídica em relação às hortas urbanas e reforçam a importância da regulamentação destes espaços, visto que a política momentânea de um ou de outro governante municipal à base de subsídios governamentais, bem como a expansão desordenada com falta de um plano diretor, podem claramente interferir na sua ampla adoção. Sem uma regulamentação estruturada, as parcerias entre uma horta urbana e instituições acabam sendo dificultadas, o que restringe o acesso a recursos financeiros e a opções de crédito devido à falta da regulamentação da posse de um determinado terreno, por exemplo.
32No Brasil, desde os anos 2000 a política nacional passou a apoiar projetos de hortas comunitárias dentro do seu escopo de garantia de segurança alimentar, além da redução da pobreza. O respectivo Programa Nacional de Agricultura Urbana, através do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, financiou projetos de hortas comunitárias urbanas em todas as regiões brasileiras, bem como atividades como lavouras comunitárias, avicultura e apicultura (Branco & Alcântara, 2011), estando entre as suas vantagens a diminuição de impostos para áreas e terrenos privados ocupados com a produção de alimentos. Embora a regulamentação da agricultura urbana e periurbana seja um pilar fundamental para transformar cidades em ambientes com maior grau de sustentabilidade, ainda não parece ser uma preocupação primordial dos governos locais e estaduais. De acordo com o estudo de Branco & Alcântara (2011), dos 80 municípios nos quais foram identificados relatos destas atividades, a sua regulamentação foi observada em apenas seis destes até o ano de 2010.
33Minas Gerais foi o primeiro estado a desenvolver uma legislação regulamentadora da agricultura urbana e periurbana, através da Lei 15.973/2006. De acordo com Branco & Alcântara (2011), a normatização dessa atividade pode contribuir para o aumento da área cultivada e dos investimentos por parte dos produtores, o que pode significar a garantia da sobrevivência dos projetos no longo prazo. No estado do Rio Grande do Sul, a Lei Estadual de Agricultura Urbana e Periurbana (Lei 15.222/2018) foi deferida em 2018, porém ainda são observadas falhas na conversa entre o poder estadual e o poder municipal. Segundo levantamento da EMATER, há apontamentos em torno de 1.173 hortas urbanas e periurbanas neste ente federado, porém apenas 130 hortas apresentaram registro junto aos órgãos governamentais até o ano de 2019 (EMATER, 2019). Isto demonstra que o movimento da agricultura urbana vem ganhando força entre os estados da federação, sendo válido destacar que se deve em grande maioria ao engajamento de membros da sociedade civil.
34A nível federal, a Lei Complementar 14.011/2020, a qual se insere na Política Nacional de Agricultura Urbana, regulariza o uso de terrenos pertencentes à União para esta prática, preenchendo uma importante lacuna nos processos de adoção da atividade, especialmente nos centros altamente urbanizados. De acordo com Pinheiro e Ferrareto (2010), o principal entrave para a agricultura urbana no Brasil relaciona-se ao acesso à terra, sendo comum observar a dependência de espaços cedidos por proprietários de terrenos particulares por parte dos produtores urbanos, uma vez que auxílio do Estado na disponibilização de espaços ainda se apresenta limitado e burocrático. Sendo assim, além da possível facilitação na cedência de terrenos, a lei federal também objetiva a ampliação da segurança alimentar e nutricional da população urbana em situação de vulnerabilidade social, a geração de renda e o estímulo a uma economia solidária (Brasil, 2020).
35No país, 13 dos estados possuem políticas estaduais de agricultura urbana já homologadas. No entanto, ainda assim observa-se a ausência de algum canal oficial em que se possa acessar o agrupamento da existência desta atividade no território, o que dificulta a compreensão da dinâmica destes espaços e os seus principais retornos e entraves.
36Embora a implementação destes projetos apresente contribuições reconhecidas em favor do desenvolvimento sustentável urbano, limitações na sua ampla adoção se relacionam ao fato de que conforme as circunstâncias existentes em cada proposta, certos pilares da sustentabilidade podem ser mais influenciados do que outros. Boa parte da literatura dedicada ao tema tem-se focado, ou nas reflexões teóricas gerais sobre a potencial influência da agricultura urbana no desenvolvimento sustentável da cidade (Opitz et al., 2016; Van Tuijl et al., 2018), ou em estudos empíricos relacionados apenas com um aspecto selecionado da relação agricultura urbana e desenvolvimento sustentável de cidades (Purcell et al., 2018).
37Seja em espaços sem uso, entre prédios, em telhados, em ilhas de tráfego ou em paredes de casas, as hortas fazem uso criativo das áreas urbanas que inúmeras vezes aparecem ociosas e inóspitas à primeira vista. Tão importante quanto a produção e colheita de alimentos, está a possibilidade destes espaços serem cultivados em conjunto, possibilitando desta forma a melhora na infraestrutura urbana, a integração social e a reconexão com a natureza, culminando, por fim, em comunidades mais fortalecidas.
38Embora este movimento esteja ganhando força no Brasil e ao redor do mundo, modelos de implantação ainda necessitam de desenvolvimentos mais aprimorados, tanto pelo tocante jurídico quanto pelo estrutural. Fortalecer sistemas que protejam o meio ambiente, promovam saúde, estimulem a obtenção de alimentos saudáveis, bem como estimulando serviços localmente e combatendo a desigualdade tornará as regiões urbanas mais resilientes. Neste contexto, os movimentos de hortas urbanas, quando bem implementados, podem ser capazes de fornecer apoio aos pilares ecológico, econômico e social do desenvolvimento sustentável, e, portanto, devem fazer parte da agenda de municípios e serem estimulados pelos governos.