1Minha família reside em São Sebastião desde 1967 e há três anos eu e minha esposa moramos na Praia do Guaecá, próxima ao centro urbano. A região é o Litoral Norte do Estado de São Paulo, formado pelos municípios de Ubatuba, Caraguatatuba, Ilhabela e São Sebastião (Figura 1) que integra extensa faixa costeira entre Angra dos Reis - RJ e Bertioga – SP. É uma região muito conhecida pelas suas belezas naturais em que predominam a Serra do Mar e suas altas escarpas cobertas pela Mata Atlântica em sua maior parte próximas ao mar, ilhas de todos os portes, além de centenas de baías, enseadas, sacos, praias, costões, rios e cachoeiras, lagos, canais, estuários, restingas, mangues e planícies litorâneas de médias e pequenas extensões.

2Nesse litoral os núcleos urbanos são bem antigos para os padrões brasileiros e alguns deles foram criados durante a ocupação colonial vicentina de meados do século XVI e, até aproximadamente os anos 1940, essa região e sua população tradicional – os caiçaras - encontravam-se praticamente isolados das regiões mais desenvolvidas do estado e do país. Esse quadro começou a mudar com a chegada das rodovias em 1939, em que a Rodovia dos Tamoios conectou o planalto a Caraguatatuba, em 1955 foi implantada a litorânea entre Ubatuba, Caraguatatuba e São Sebastião e em 1960 entre São Sebastião e Bertioga que, juntas, formam hoje o trecho paulista da rodovia conhecida como Rio – Santos.

3Com o asfaltamento dessa rodovia iniciado nos anos 1970 e concluído nos anos 1980, a expansão urbana da região acelerou e a população de seus quatro municípios cresceu nas décadas seguintes em taxas anuais bem superiores às do país. Como característica geral, esse segmento costeiro conta atualmente com centros urbanos e polos turísticos de todos os portes que se espalham pelas cidades e em dezenas de pequenos núcleos de ocupação que estão localizados nas suas praias mais conhecidas e que contam com infraestruturas como o acesso por rodovias, energia elétrica, coleta de lixo, rede de água tratada e internet.

4Ao mesmo tempo, e especialmente nos últimos trinta anos, suas praias, encostas e planícies foram intensamente ocupadas pelas chamadas segundas residências, em que se destacam os loteamentos e condomínios de diversos portes com casas de médio e alto padrão, além de hotelaria e serviços voltados para o turismo de alta renda. Mas, como tem ocorrido no Brasil e fora dele, esses arquipélagos com suas ilhas de riqueza exercem forte atração sobre o oceano de pobreza que os circunda e isso se expressa no Litoral Norte, em que o principal vetor dessa acelerada expansão urbana e populacional recente tem sido impulsionada pela forte corrente migratória que tem origens principalmente nos estados de Minas Gerais e Bahia.

5Daí porque ao lado ou próximo dos condomínios e núcleos de alto padrão e a exemplo do que ocorre em todo o país, formaram-se inúmeros bairros e ocupações populares que têm sido tecnicamente designados de aglomerados subnormais – um eufemismo para as conhecidas favelas - contando com dezenas de milhares de moradores de baixa renda que trabalham principalmente como empregados ou autônomos nos serviços e no comércio como caseiros ou domésticos, na hotelaria e na construção civil. Em sua quase totalidade, essas comunidades e suas ocupações desordenadas e precárias de todo porte estão afastadas das praias e de sua infraestrutura e encontram-se espalhadas pelas antigas e novas clareiras de desmatamento da floresta nativa, nos fundos de planícies e vales e, com muita frequência, nos sopés e nas baixas e médias encostas ou nos topos dos morros da Serra do Mar, todas elas conhecidas áreas de alto risco.

6Face a essa acelerada expansão urbana e populacional dos últimos anos e de seus comprovados impactos negativos sobre o singular patrimônio ambiental dos ecossistemas da região – em especial os florestais e marinhos – têm crescido as demandas no campo das políticas públicas das três esferas de governo visando ordenar de algum modo a ocupação e o uso do território na região. A mais importante e de maior efetividade dentre todas foi a criação do Parque Estadual da Serra do Mar, em 1977, com uma área de 332 mil hectares que se estende por 25 municípios paulistas e que definiu normas rígidas e sistemas de gestão ambiental destinados à proteção da Mata Atlântica e demais ecossistemas a ela associados.

7Outra medida na esfera estadual foi a aprovação em 2017 do Zoneamento Ecológico e Econômico do Litoral Norte que classifica as áreas e seus possíveis usos de acordo com os níveis de vulnerabilidade e, além disso, ele se sobrepõe às normas legais da esfera municipal voltadas para o uso e ocupação do solo, com destaque para o Plano Diretor. Por último, interferem direta e indiretamente nessa área das políticas públicas a extensa e por vezes sobreposta e conflituosa legislação ambiental federal, estadual e municipal, na qual se destaca, também pela sua efetividade, a Lei Federal 12.651 de 2012, conhecida como Código Florestal.

Chuvas, Temporais e Catástrofes

8Além de suas exuberantes belezas naturais, da ocupação desordenada e da aguda desigualdade social e espacial, o Litoral Norte possui uma característica peculiar e bem conhecida dos moradores e especialistas da área que é a grande frequência de elevados índices de precipitação pluviométrica durante o período de setembro a abril e especialmente no verão. Como os diversos estudos dos geógrafos do Departamento de Geografia da USP têm revelado, desde pelo menos os anos 1960, a elevada pluviosidade constitui um componente indissociável das características físico-naturais e bióticas predominantes da região e, na linguagem atual, podemos dizer que também de sua identidade geográfica.

9A exemplo da floresta ombrófila densa amazônica, a alta pluviosidade é um elemento vital para a Mata Atlântica e sua rica biodiversidade e não por acaso ambas são designadas pela literatura científica internacional como rainforest. Pesquisas internacionais abrangentes como as do LBA – Large Scale Atmosphere-Biosphere Experience in Amazonia, demonstram que existe uma intensa interação entre os fluxos atmosféricos e essas florestas tropicais úmidas e está empiricamente comprovado que elas também são vitais para o funcionamento do clima regional e continental e em especial para o regime de chuvas.

10O clima do Litoral Norte é singular e em grande parte isso decorre de sua posição geográfica, pois do ponto de vista da dinâmica climática ele se encontra justamente na transição entre os fluxos atmosféricos subtropicais (ou polares) e os tropicais, o que favorece para que especialmente durante o verão os impactos pluviais sejam provocados tanto pela atuação da Frente Polar Atlântica, como pelo Anticiclone Tropical do Atlântico, ou ainda, nos impactos mais agudos, pela convergência entre esses sistemas atmosféricos e os corredores de umidade provenientes da Amazônia que comprovadamente atingem o Sudeste nessa época do ano. Além disso, é preciso considerar o efeito orográfico da Serra do Mar, isto é, o papel exercido pelas altas escarpas próximas à linha costeira que funcionam como anteparo aos ventos quentes e úmidos vindos do mar e às nuvens de grande espessura e saturadas de umidade, forçando-as à condensação e à precipitação.

11Em síntese, as inúmeras pesquisas sobre essa região demonstram que é a ação convergente de seu clima peculiar e regular com os fenômenos meteorológicos abruptos e intensos que provoca esses episódios pluviométricos extremos. Afinal, todos esses fluxos podem atuar em conjunto em um único momento e lugar, gerando um evento excepcional mesmo para os padrões regionais. Daí porque o Litoral Norte é o recordista dos mais violentos episódios de precipitação pluviométrica do país, com as trombas d’água ou simplesmente temporais, em que chuvas torrenciais – especialmente no verão – têm alta frequência de registros de índices superiores a 200 mm em algumas horas.

12Ainda sobre esse tema, grupo de pesquisadores internacionais dessa área defende que a maior frequência de eventos climáticos na atualidade, em todo o mundo, deve-se à elevação da temperatura decorrente do aquecimento global - de 0.85ºC nos últimos 100 anos, segundo o IPCC - e essa é uma hipótese bastante consistente, mas a influência dessas mudanças globais no funcionamento do clima nas escalas mesorregionais e microrregionais ainda é questão não suficientemente examinada.

13Os moradores permanentes – os chamados locais – e as prefeituras municipais convivem e estão familiarizados com essas ocorrências e procuram prevenir, minimizar ou mitigar seus danos, muitas vezes com pouco sucesso. Muitos desses episódios frequentes no verão resultam em deslizamentos de encostas, transbordamento de rios, inundações e vez por outra na ocorrência de desmoronamento de residências, danos materiais e eventualmente vítimas fatais, mas de modo geral trata-se de impactos de pequena e média escalas. Na cidade e em seus arredores, os moradores dos bairros de Topolândia, Morro de Itatinga, Morro do Abrigo e na Praia de Barequeçaba, em praticamente todos os anos sofrem com esse tipo de ocorrência e, nesta última, em 2019, as chuvas atingiram o índice de 234 mm em um dia e 34 casas localizadas nas encostas vieram abaixo.

14Como destacado, também é nessa região que ocorrem os episódios pluviométricos excepcionais ou de violência máxima, que são capazes de atingir acumulados de 700 mm ou mais ao longo de um único dia e que sempre estão associados a grandes catástrofes quando essa ocorrência se dá em áreas de risco densamente ocupadas, em centros urbanos ou fora deles. O mais violento desses episódios ocorreu em março de 1967 nas encostas da Serra do Mar em Caraguatatuba, ao lado da Rodovia dos Tamoios, em que foram registrados 720 mm em dois dias (em um pluviômetro localizado no sopé da serra), provocando impactos de grande intensidade como deslizamentos de encostas, avalanches e transbordamento de rios que causaram 450 mortes, inúmeros feridos e a destruição de metade da cidade. Essa violenta tromba d’água atingiu em cheio o alto das vertentes da serra, impulsionou a força da lama misturada a pedras e troncos de árvores e sua violência foi tanta que lançou os corpos dos vitimados na tragédia a mais de 10 km mar adentro.

A Costa Sul de São Sebastião e a Catástrofe

15O Município de São Sebastião possui uma extensa faixa costeira de 112 km, entre Caraguatatuba e Bertioga e conta com 36 praias (Figura 1). Sua população atual é estimada em 90 mil habitantes e seu orçamento em 2023 é de R$ 1.4 bilhões, um volume de recursos bem acima da média dos municípios desse porte no país e graças, sobretudo, ao recebimento de compensações financeiras pela operação do terminal marítimo da Transpetro, aos royalties pela exploração de petróleo offshore e à arrecadação de impostos municipais.

16A maioria de suas praias mais conhecidas e de grande apelo turístico está localizada na Costa Sul, entre elas, de norte a sul, Barequeçaba, Guaecá, Toque-Toque Grande, Toque-Toque Pequeno, Maresias, Boiçucanga, Camburi, Baleia, Barra do Sahy, Juquehy, Barra do Una e Boracéia e algumas delas estiveram no foco do noticiário dos últimos dias porque foram as mais atingidas pelos violentos temporais na noite de 18 para 19 deste mês, em pleno feriado de Carnaval.

17Em um grupo delas, formado por Maresias, Boiçucanga, Camburi, Barra do Sahy, Juquehy e Barra do Una, a expansão urbana e o crescimento populacional foram exponenciais nas duas últimas décadas, impulsionados pela implantação de condomínios de luxo de segunda residência, hotéis e pousadas e, como em todo o Litoral Norte, como visto, pelo surgimento de bairros populares em sua maioria localizados em áreas de risco, especialmente nas encostas dos morros da Serra do Mar. Esses aglomerados constituem núcleos urbanos de fato – ainda que desordenados de modo geral – e todas eles com população atual acima de 5.000 habitantes e uma dinâmica semiautônoma em relação ao centro urbano municipal, inclusive porque os mais distantes, como Sahy e Juquehy, estão localizados a 50 Km deste.

18Com o crescimento intenso e desordenado dos últimos anos esses núcleos, sob muitos aspectos, assemelham-se àqueles das frentes pioneiras amazônicas e de boa parte do litoral brasileiro, em que uma única estrada (ou “avenida”) corta suas aglomerações caóticas com ruas sem asfalto empoeiradas ou enlameadas e bairros populares por vezes misturados a casas e hotéis de alto padrão e, registre-se, quase todos sem rede e tratamento de esgotos. No caso desse grupo de praias, seus aglomerados se estendem pela planície costeira até as baixas e médias encostas da Serra do Mar (os antigos “sertões” do litoral), especialmente ao longo dos rios e em terrenos de antigas e novas áreas de desmatamento. Em síntese, um cenário de forte contraste entre a grande beleza dessas famosas praias (na faixa de areia) e a feiura de seus entornos urbanos.

19Além disso, destaque-se que o semi-isolamento desse trecho da Costa Sul é agravado pela precariedade da única rodovia (de pista simples) desse segmento da faixa costeira, especialmente no trecho entre Guaecá e Juquehy, em que seu sinuoso trajeto corta o Parque Estadual da Serra do Mar e está encravado nos costões. Como agravante, ela não dispõe de faixa de acostamento - uma espécie de Costa Amalfitana florestada e chuvosa - e desde que foi construída, ali são frequentes obstruções totais e parciais de tráfego provocadas pelas fortes chuvas com os deslizamentos de barreiras e destruição de pontes, sobretudo no período de veraneio, justamente quando é mais intenso o movimento de veículos.

20O epicentro do evento pluviométrico extremo da noite de 18 para 19 de fevereiro foi o trecho desse grupo de praias e seus núcleos de ocupação, em que a estação hidrológica de Barra do Uma registrou 648 mm e a de Juquehy impressionantes 694 mm. Esse episódio sem precedentes foi uma espécie de desfecho trágico para uma semana marcada pelo “tempo ameaçado” no linguajar dos caiçaras, com trovoadas e chuvas rápidas nos finais da tarde e à noite e, especialmente, temperaturas elevadas, ventos fracos e mornos, mar calmo e liso e suas águas com temperaturas superiores a 26ºC e, mais preocupante, a previsão de uma frente fria (estacionária) e a formação de uma zona de baixa pressão atmosférica previstas para a região na sexta-feira (17 de fevereiro).

21Os centros de monitoramento e previsão meteorológica como o INPE/CPTEC ajustaram seus prognósticos na quinta-feira (16 de fevereiro) e a Defesa Civil do Estado passou a enviar alertas (via celular) à população local sobre a ocorrência de fortes temporais (com 200 mm ou mais) no sábado. Entretanto, a eficácia desses alertas foi praticamente nula, possivelmente porque a possibilidade de fortes chuvas no verão não seja considerada um evento excepcional e de alto risco pelos moradores da região.

22Além do mais, esses institutos e centros de previsão de tempo do país ainda não dispõem de sistemas e tecnologias de ponta - principalmente supercomputador e rede de radares meteorológicos de última geração - que lhes permitam prever com alta probabilidade de acerto a ocorrência de eventos climáticos extremos como esse, fornecendo, horas antes, informações de maior precisão como o alcance (na região e na microescala), duração e magnitude da precipitação pluvial. Outro fator que pode ter contribuído para a ineficácia dos alertas e a ausência de medidas de prevenção é que, ao invés das mensagens de celular, os aparatos de Defesa Civil deveriam ter implantado o sistema de sirenes na região, utilizado com sucesso em Petrópolis – RJ e de largo emprego em todo o mundo.

23Some-se a esse quadro de desmobilização da população (e possivelmente dos aparatos da administração pública) o fato de que a tromba d’água atingiu a região durante a noite, com seus maiores impactos na madrugada e em pleno feriado de Carnaval. Nesses dias, a cidade e todas as praias da Costa Sul estavam lotadas e não apenas pelos seus moradores ou visitantes em sua rede hoteleira, mas também pela atuação das plataformas digitais de aluguel temporário de residências, que têm contribuído para a acelerada expansão atual do turismo de massa e de suas consequências negativas em todo o mundo, como os inúmeros casos de overtourism.

24Na Costa Sul, principalmente, a chuva intensa e persistente começou por volta das 19:00 h de sábado e prolongou-se até às 06:00 h de domingo. Com o brutal impacto da tromba d’água, por volta das 02:00 h ocorreu o maior desastre desse evento, em que o bairro popular de Villa Sahy (Barra do Sahy), foi devastado pelo deslizamento das encostas que provocou o desmoronamento de mais de 50 casas e danos diversos em praticamente todas as residências de todo tipo da praia, resultando em 65 mortes e dezenas de feridos (moradores e turistas) e cerca de dois mil desabrigados (Figura 3).

25Outros episódios de deslizamentos de encostas, transbordamento de rios e inundações ocorreram em todas as praias próximas a esse epicentro da catástrofe, com os maiores impactos registrados em Baleia e Juquehy, além de diversos casos semelhantes em Camburi e Boiçucanga. Mais para o norte, foram atingidos Toque-Toque Grande e o Morro de Itatinga, na cidade de São Sebastião, e todos esses lugares com índices de pluviosidade superiores a 300 mm (Figura 4).

26No início da manhã de domingo (19 de fevereiro) o cenário era de destruição e as primeiras equipes de socorro conseguiram chegar aos locais mais atingidos, mas o atendimento às vítimas e a remoção dos feridos eram muito dificultados porque o acesso só era possível com o uso de helicópteros, pois a estrada havia sido obstruída em três pontos pelas quedas de barreiras e o impacto maior ocorreu justamente na chegada a Barra do Sahy.

27Além das vítimas fatais, feridos e desabrigados, esses impactos provocaram danos materiais de todo tipo em residências (populares e de alto padrão), hotéis, pousadas e restaurantes e veículos foram inundados ou arrastados em todas as praias da Costa Sul. Ao mesmo tempo, imagens aéreas expuseram as marcas e cicatrizes desse desastre em suas paisagens naturais, como nas altas e íngremes escarpas, encostas e costões da Serra do Mar que foi duramente castigada, com extensas perdas de cobertura florestal e ravinamentos, cuja recuperação dificilmente ocorrerá naturalmente. Nas áreas baixas das planícies costeiras, além das inundações de vias públicas e áreas edificadas, as praias desse trecho litorâneo e inclusive o canal marítimo entre São Sebastião e Ilhabela foram tomados por troncos de árvores, lama e entulhos.

28Como tem sido comum nesses episódios e tragédias frequentes no país e no Litoral Norte em particular, os governos (municipal, estadual e federal) têm diante de si um triplo desafio. O primeiro e mais urgente é o de socorrer e amparar os feridos e desabrigados e providenciar o restabelecimento dos serviços públicos e a reconstrução da infraestrutura desses locais. O segundo e sempre o de mais difícil solução, como demonstrado em todos os episódios do passado remoto e recente, é o de providenciar a construção de moradias para as populações carentes afetadas, de preferência em área de menor risco e nas proximidades daquela da tragédia.

29O terceiro é justamente aquele em que praticamente todos os governos em todos os tempos e lugares têm fracassado, que é a adoção de medidas de médio e longo prazos voltadas para o ordenamento do território, isto é, desenhar e implementar políticas públicas (normas legais, planos e programas) que assegurem a ocupação e o uso racionais do solo em todas as escalas, sobretudo nos casos de expansão urbana em áreas comprovadamente vulneráveis e de riscos ambientais e sociais, como é o caso dessa região.

30Quanto a esse aspecto, destaque-se que em 2018 o IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo elaborou estudo detalhado sobre São Sebastião, intitulado “Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) para o Município de São Sebastião, SP”, no qual são apontadas 52 áreas sujeitas a deslizamentos de terra em 21 núcleos de moradias ou bairros do município e dessas, 16 foram consideradas de alto risco e outras 36 que deveriam ser monitoradas. O estudo também elenca diversas medidas a serem adotadas pela Prefeitura para prevenir e mitigar episódios desse tipo.

31Essas medidas, como se sabe, envolvem na prática ações enérgicas e permanentes do poder público que impeçam a grilagem, o loteamento ou a ocupação irregular (por ricos e pobres) de áreas públicas e privadas, especialmente naquelas de risco e de proteção ambiental, a exemplo das encostas íngremes, florestas de mata nativa e mananciais como nascentes e cursos d’água. Entretanto, também em São Sebastião e especialmente na Costa Sul do município, o que tem predominado é a tendência contrária, em que o Poder Municipal - há décadas - não exerce seu poder de planejar e fiscalizar o uso e a ocupação do solo, estimulando assim a especulação imobiliária, as ocupações irregulares e a expansão urbana desordenada.

32Diante desse quadro, ganham relevância os alertas da comunidade científica e as recorrentes manifestações de organizações da sociedade civil da região e de fora dela que procuram reverter ou frear esse processo. Mas como tem ocorrido nos últimos tempos em todo o país, as ações mais efetivas nessa região têm sido conduzidas pelo Ministério Público estadual, especialmente pelo seu grupo de atuação ambiental do Litoral Norte.

33Desde 2019, seus promotores ingressaram na Justiça com 30 Ações Civis Públicas contra a Prefeitura exigindo providências visando a desocupação, a reversão, o reassentamento ou a regularização de 102 núcleos e comunidades em áreas griladas ou ocupadas, todas elas localizadas em locais de alto risco do município. Em uma dessas ações envolvendo justamente a comunidade popular de Vila Sahy, com cerca de 650 casas, os dois promotores encarregados do caso destacaram: “A regularização fundiária, com a adoção das medidas necessárias para o local, busca evitar uma tragédia anunciada”.

Referências

34Minhas homenagens aos colegas do Departamento de Geografia da USP que estudaram o Litoral Norte do Estado de São Paulo: Ary França, José Bueno Conti, Olga Cruz, Armando Correa da Silva e Sueli Ângelo Furlan.