1O debate sobre políticas públicas no Brasil ainda não incorporou o olhar da Ação Pública no qual papel e lugar dela muda consideravelmente. Quem sabe porque essa discussão é rica na língua francesa e vivemos tempos nos quais o conhecimento em inglês se impõe sobremaneira. As proposições de Bruno Jobert & Pièrre Muller (1987); Gilles Massadier (2003), Jean-Claude Thoenig (1997, 2005), Patrick Le Galès e Pierre Lacoumes (2007) ainda não alcançaram a visibilidade necessária para que se consolide como uma alternativa para gestores e estudiosos de políticas públicas ou de administração de empresas que estejam socialmente comprometidas com a transformação das desigualdades de nossa sociedade.
2Estes autores têm logrado desenvolver o que se conhece por Sociologia da Ação Pública, e influenciado de maneira considerável o modo de operar do Estado e da Sociedade francesa no que respeita ao enfrentamento dos problemas públicos. No livro Sociologia da Ação Pública publicado por Lascoumes e Lé Galès (2007) há uma exposição didática “capaz de aproximar ao campo da Ação Pública a qualquer pessoa que busque outra maneira de ver e lidar com os problemas sociais entendidos como de caráter público e que são objeto do que tradicionalmente se chama de Políticas Públicas.” (Silva, 2018: 195).
3Entretanto, esse debate há carências que poderiam ser supridas pela emergência de uma Psicologia Política da Ação Pública, interdiscipliunar e focalizada nas interrelações entre atores, territórios e enfrentamentos das questões que afetam a vida em sociedade e alteram as dinâmicas do poder.
4Vale notar que a interdisciplinaridade aqui está subordinada ao reconhecimento da diferenciação de campos que se complementam e geram faces de um poliedro, mas que habitualmente são vistas de modo fragmentado: cada campo é lido como se fosse o todo e, portanto, oferece uma visão reduzida da realidade. Em nossa perspectiva, a interdisciplinaridade é um aspecto necessário da produção do conhecimento, pois este é resultante de um processo dialético que permite que o saber humano seja fruto da diversidade e dos múltiplos encontros entre formas de abordar a realidade social. Tais encontros acrescem a esse processo dialético de produção de saberes outro elemento fundamental: a intersubjetividade. A apreensão destes dois elementos, dialética e intersubjetividade, permite-nos compreender a realidade social a partir das reais possibilidades de investigação que os sujeitos possuem, visto que estes provêm de distintos lugares e possuem diferentes historicidades.
5Olhares disciplinares fatiam a realidade que é de natureza complexa, fazem de um objeto de pesquisa outra coisa que ele mesmo não é/está, pois, ao limitá-lo arbitrariamente, o privamos de outros elementos que lhe são próprios e, sem eles, o transformamos em algo distinto do que imaginamos que ele seja ou possa ser/estar. O ato de delimitar o processo de produção do conhecimento não pode ser o impeditivo e o justificante para deixarmos de lado a pluralidade de sentidos, de determinações que constituem cada objeto, cada problema que buscamos conhecer, que procuramos resolubilizar, e nem para canonizarmos certos lugares de produção deste saber como únicos. A fragmentação de um objeto ou problema não pode ser a condenação da totalidade e nem a totalidade a desculpa para não nos atentarmos para todos os matizes que a investigação de um sujeito ou problema exige. Por essa razão é que a interdisciplinaridade é o elo que permite que, mesmo delimitado, um objeto seja uno, mantenha sua tessitura social e historicidade. Segundo Gaudêncio Frigotto, “o trabalho interdisciplinar não se efetiva se não formos capazes de transcender a fragmentação e o plano fenomênico, heranças fortes do empiricismo e do positivismo. Todavia, (...) ele também não se efetiva se cairmos no reducionismo estruturalista que abandona o plano histórico-empírico e se locupleta no plano discursivo.” (Frigotto, 2008:44).
6Para muitos autores e autoras, a Psicologia Política é um campo de estudos que nasce da confluência entre a Ciência Política, a Psicologia Social, a História e o Direito (Dorna, 1998, 2004; Sabucedo 2000; Silva, 2012; Devoto, 1960; Herman, 1986; Knutson, 1973). Andrea Devoto (1960) recorda que a Psicologia Política pode ser um ponto de encontro entre várias ciências. Para o autor, a Psicologia Política é:
“um instrumento de investigação moderno, ágil, funcional, adaptável às mais diversas circunstâncias que o momento histórico possa apresentar. Na verdade, a psicologia política pode vir a ser um autêntico ponto de encontro de todas as ciências – teóricas e práticas – que estudam o homem e as suas manifestações” (p. 8).
7Maritza Montero e Alexandre Dorna (1993) afirmam que
“la psicología política surge y se desarrolla a partir de la unión de la psicología social y politología. Numerosos son los psicólogos que estudiando la realidad en que viven se conducen políticamente. A su vez, muchos políticos recurren a la psicología para influir en los hechos. Sin embargo, ambos aspectos no llevan necesariamente a producir ni ciencia política ni psicología política, pero si a incluir la dimensión psicológica en la política y a explicitar la dimensión política en la psicología.” (p. 7).
8Nossa leitura dessa posição se dá a partir dos clássicos. Entendemos que autores como Tocqueville (1835), Boutmy (1901. 1902), Brito (1906), Fornelli(1903), Edwards Salas-Edwards (1914, 1925), André (1906), Le Bon (1910) e outros pensaram um campo para o exercício de cientistas sociais das mais diferentes configurações que buscam compreender problemas que estão mais além de fronteiras disciplinares. É como se seu olhar superasse as disputas pelo poder na conformação do campo científico (Bourdieu, 1983). Pensaram um campo social que não poderia ser destituído da subjetividade como propunham autores de alguma corrente hegemônica das ciências sociais emergentes.
9Os chamados “pais fundadores” da política pública como confluência da análise dos territórios temáticos das políticas públicas e da política também estiveram envolvidos com a psicologia política como campo interdisciplinar de construção de conhecimento como Lasswell (1930; 1934; 1936; 1948; 1949); Simon (1947; 1956); Lindblom (1963; 1965; 1968).
10Nessa linha, encontramos lugar para muitas outras contribuições como a que aportam pesquisadoras/es que compõem o Grupo de pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo da EACH-USP. Dele participam docentes da EACH provenientes das Ciências Políticas, Filosofia, Sociologia, Administração, Comunicação e Psicologia.
11Como apontou Fernádez-Christlieb (1987), a análise da função ideológica do conhecimento passa pela análise da ação humana tanto na esfera pública quanto na privada. Esse exame termina por ser uma maneira de compreender o exercício do poder e o centro dos estudos psicopolíticos. Para efetivá-los é necessário esse diálogo entre saberes, sendo a própria Psicologia Política uma forma de materialização do trabalho interdisciplinar: o locus explicativo estaria no encontro entre a História, a Epistemologia, a Sociologia a, Psicologia social e a Ciência Política.
12Um exemplo formidável de pensar essa resultante pode ser visto na aproximação da Psicologia Social à Política que resultou na emergênciada Escola de Frankfurt, sendo a Personalidade Autoritária uma obra prima em Psicologia Política. Antonio Gomes Penna, em seu livro Introdução à Psicologia Política (1995), apresenta o campo como uma Teoria Crítica da Sociedade vinculada à transformação social e conectada com a ideia de interdisciplinaridade:
“Efetivamente poderíamos defini-la como tendo por objeto o estudo das estruturas sociais visando ou ao seu aprimoramento através de modificações progressivas, ou à sua reformulação radical, sempre se objetivando o bem-estar coletivo. Inclui-se em seu objeto a busca da justiça social, a se atingir mediante procedimentos de uma eqüitativa distribuição do abundante ou do escasso. Obviamente, ao conceituarmos assim, estamos optando por um tipo de psicologia política que marcou muito a participação da Escola de Frankfurt, especialmente tal como ela se expressa através de Habermas.” (Penna, 1995:21).
13Uma leitura mais próxima à nossa é a que faz Xosé Manuel Sabucedo Cameseles (1996, 2000). Para ele, assim como para Montero e Dorna (1993), a Psicologia Política também nasce da confluência entre as Ciências Políticas e Psicologia Social. Mas não por acaso, destaca as ciências políticas em função de questões que surgem em seu interior e que faz com que esta busque estabelecer canais de diálogo com a Psicologia Social. E ao fazê-lo, ele enfatiza a natureza interdisciplinar da Psicologia Política:
“Dado el objeto de estudio de la Psicología Política, el análisis de las relaciones de los procesos psicológicos y políticos, son numerosas las líneas de investigación que existen dentro de este ámbito disciplinar (…). Una de las razones que provoca la formalización de esta disciplina es la necesidad, percibida especialmente en su momento por las ciencias políticas, de utilizar en conocimiento psicológico para la explicación de determinados procesos políticos (…). Por ello, la psicología política nace con una clara vocación interdisciplinar. Se trata de que las contribuciones de ambas áreas de conocimiento, ciencias políticas y psicología, posibiliten una mejor comprensión de los procesos y fenómenos políticos” (pp. 2-3).
14Essa característica interdisciplinar nasce da necessidade de ofertar respostas mais adequadas aos fenômenos. A Psicologia Política, portanto, tratar-se-ia de um campo de saber, e nem tanto uma disciplina como tradicionalmente se tende a pensar. Ela se constituiria no interstício das fronteiras disciplinares, e vive as idiossincrasias próprias desse espaço de encontros (Silva, 2012ab). Isso faz com que ela, muitas vezes, se veja refém de um processo identitário que busca estabilidade e segurança na ideia de ser: ser uma disciplina própria com métodos e teorias, por exemplo. A questão é que ao se constituir em um espaço fronteiriço, ela não possui uma territorialidade definida e deslindada, mas antes o contrário.
15Assim, a Psicologia Política se constituiria identitariamente desde um estar fluido e metamórfico, que atua no âmbito do que é público. E é exatamente essa fluidez que lhe permite, a nosso juízo, responder às complexas interrogações próprias da contemporaneidade de modo diferente das possibilidades efetivas de dar respostas a essas questões desde um olhar que segue a tradição disciplinar, os quais não têm conseguido responder de modo satisfatório às inquietudes que surgem hodiernamente.
16Do ponto de vista da origem do campo há disputas, e a esse respeito escreveu Florencio Jimenéz Burillo (1986) o seguinte:
“El término Psicología Política aparece en un trabajo del politólogo norteamericano CH. Merriam en 1924, -lo que ha llevado a algunos autores de este país ignorantes de cuanto no escriben ellos- a atribuir la paternidad de la expresión a la Ciencia Política U.S.A. la cosa, claro, no tiene mayor importancia, pero, en rigor, antes que a Merriam y [Harold Dwight] Lasswell el dudoso honor habría que atribuírselo a Gustavo Le Bon - autor de un libro publicado en 1910 con el título "La PsychologiePolitique et la défensesociale"” (s/p)
17Mas na tentativa de corrigir uma imprecisão histórica, o autor também esquece outros tantos autores que antecederam ao próprio Le Bon. Na verdade, o termo, como visto no capítulo anterior, tem antecedentes mais antigos em obras como Essai d'une psychologie politique du peuple anglais au XIXe siécle (1901) e Elements d'une Psychologie du Peuple Américain (1902), do jurista e politólogo Émile Boutmy (1835-1906). Formado em Direito, Boutmy é conhecido por haver fundado a Escola Livre de Ciências Políticas – SciencePo – e haver defendido sua autonomia enquanto ciência. Mas pouco ou nada se fala acerca de sua obra, sobretudo as que inauguram a Psicologia Política.
18Mas ao que parece, os anos da virada do século XX ressoam um conjunto de personalidades preocupadas com questões que transitavam entre os interstícios do conhecimento. O filósofo Eloy Luis André (1876-1934) publica El histrionismo español. Ensayo de psicología política (1906); o pedagogo Nicola Fornelli (1843-1915) escreve em 1903 a obra Dove si va? Appuntidi psicologia politicae o advogadoRicado Salas-Edwards em 1914 publicou Balmaceda y el Parlamento en Chile: un estudio de Psicología Política Chilena analisando as tensas relações entre poderes da república chilena. Já Victor de Britto, Médico baiano radicado no Rio Grande do Sul, estado (província) pelo qual também foi deputado, publica em 1908 Gaspar Martins e Julio de Castilhos: Estudos Críticos de Psychologia Política. As obras de Salas-Edwards e Britto, por exemplo, focam questões que estão diretamente relacionadas com disputas políticas que guardam relação com processos instituintes das repúblicas nascentes do Chile e do Brasil, sendo o primeiro trabalho direcionado às disputas e tensões existentes entre o executivo e o parlamento chileno e o segundo as disputas políticas que conduziram à guerra civil gaúcha conhecida como Revolução Federalista de 1893 na qual monarquistas e republicanos entraram em contenda. Finalmente, recordamos a Agustín Alvarez autor do livro South América: ensayode psicología política (1894).
19Mas cabe destacar que a obra Psychologie Politique et la Défense Social de Gustave Le Bon (1910) também trata das tensões vividas na França no século anterior, mas com um olhar centrado nos processos de mudança. Está voltada a compreender e enfrentar as mudanças sociais que podem desestabilizar o status quo. Essa obra teve grande repercussão e se estabeleceu como um marco para essa nova configuração interdisciplinar do campo que viria a se consolidar, apenas nos anos de 1960.
20Ao lermos a obra de Le Bon percebemos que ele percebia sim que não seria possível entender as multidões sem uma postura que hoje chamamos interdisciplinar. Le Bon trata de questões econômicas e políticas ou mesmo comunicacionais como saberes que não podem ser entendidos hermeticamente. Essa leitura nos conduz a concluir que no seio desse campo estão reunidos pensadores que percebem que as transformações sociais não podem ser explicadas por cientificidades neutrais, que não mesclam saberes devido ao mito da pureza científica. Para ele, “A psychologia politica participa da incerteza das sciencias sociaes, que indicámos. Cumpre, entretanto, utilisal-a tal como é, pois os acontecimentos nos impellem e não esperam.” (Le Bon, 1910:4). Infelizmente, o fato da designação desse campo começar com a palavra psicologia faz com que se gere um imaginário social que o aprisiona simbolicamente à área da Psicologia, o que, de fato, é uma falácia.
21Para clarificarmos melhor o que estamos dizendo, elencaremos 20 grandes áreas de interesse (as quais poderiam ser ordenadas de outro modo sem quaisquer problemas) e apontaremos alguns desdobramentos em cada uma delas: 1. Comportamento Eleitoral, 2. Comportamento Político, 3. Comunicação de Massas e Discurso Político, 4. Crenças e Valores Societais, 5. História da Psicologia Política, 6. Memória Política e Coletiva, 7. Movimentos Sociais, 8. Participação Política, 9. Personalidades Políticas, 10. Influência Social, Poder e Totalitarismos, 11. Política Internacional e Relações Internacionais, 12. Políticas Públicas, 13.Teorias das Elites, 14. Revoluções e dos Conflitos, 15. Socialização Política e Educação política, 16. Trabalho e Sindicalismo, 17. Tomada de Decisão e Negociação, 18.Violência Política e Terrorismo, 19. Políticas Públicas, 20. Governo, Governança e Cidadania.
22Na concepção de autores como Boutmy, Salas-Edwards, Britto, Alvarez e Le Bon, a relação entre sujeito e Estado é central e a ideia de governo e governança, de ação política que está focada na esfera pública é central a ponto de Le Bon, por exemplo, entender que o outro nome da Psicologia Política poderia ser Sciencia do Governo. Segundo o autor, “a psychologia politica ou a “sciencia do governo” seria “tão necessaria que os estadistas não a poderiam dispensar”. (Le Bon, 1910:6). Como ciência do governo, a Psicologia Política seria uma espécie de engenharia social capaz de evitar que governantes cometessem graves e custosos erros, porque estariam orientados não por “leis formuladas”, mas por “impulsos da occasião e algumas regras tradicionais”. (p. 6).
23A preocupação em evitar erros e, consequentemente, com um governo que garantisse estabilidade, tem ampla relação com os eventos históricos que sacudiram a França do século XIX e que Le Bon não foi apenas observador, mas partícipe. Como médico que se volta aos problemas sociais, pensamos que é adequada a imagem de um homem que deseja sanar os males da sociedade. E a falta de força de quem está no poder e/ou a ausência de vontade de exercer esse governo são enfermidades que devem ser combatidas.
24A força exercida por um governante é condição para que não falte a ordem social, assim como a segurança política; que afasta os perigos da revolução. Sua força também depende da vontade de governar. A vontade é, portanto, a origem e a mantenedora da força de quem governa. A ausência da vontade é a causa, para Le Bon, da falência institucional vivida na França. A esse respeito, assinala Moscovici, ao contextualizar o pensamento de Le Bon:
“No tienen la confianza necesaria en su visión, por falta de la cual las funciones e instituciones políticas se hunden en la indecisión e irresponsabilidad. No tienen siquiera el merito de la flaqueza; en la democracia si bien es el gran número el que vota, es siempre el pequeño número el que gobierna. Entendámonos bien. Le Bon no reprocha a las clases dirigentes el fraude o la falta de principios. Las acusa de no saber volver la espalda al pasado y de carecer de eficacia. En una época de turbulencia y de desmoralización, la decisión reposa en sus manos.” (Moscovici, 1996:75)
25Ainda que, antes de sua obra, já houvesse outras que traziam em seu título o termo psicologia política, para Le Bon, “o único verdadeiro tratado de psychologia política conhecido foi publicado ha quatro seculos por um ilustre florentino que a sua obra tornou imortal. (...) O illustre ecriptor ahi formulava regras precisas no tocante á arte de governar os homens do seu tempo”. (1921:4-5) Os erros de governantes não poucas vezes ocorreriam porque a estes faltaria um conhecimento psicológico do comportamento dos povos que governam ou pretendem governar, pois, para ele, “os grandes condutores dos homens são necessariamente grandes psychologos”, conhecedores de um “intimo conhecimento das mentalidades dos individuos e dos povos”. (p. 7) Mais adiante, ele é peremptório ao afirmar que “a utilidade da psychologia das multidões manifesta-se agora de um modo evidente. O conhecimento mais necessario de um estadista n’uma democracia é a psychologia das multidões.” (p. 153)
26Para Le Bon, “a mais importante das regras do governo dos homens são relativas á acção”. (p. 4) Daí advém a relevância que Le Bon atribui à ação governamental. Ceder ou resistir à pressão das multidões é uma questão estratégica na arte de governar, e ceder não seria nem a melhor nem a pior forma de se tomar decisões políticas. O pior é não decidir por falta de vontade de governo. Nesse sentido, as multidões, as massas ganham centralidade no mundo moderno com a obra leboniana, pois é ele que explicita o papel das multidões no conflito vivido na França e são elas que detêm a chave de resolução.
27Para Le Bon, decidir implica um processo analítico e um embasamento em leis, e não em impulsos. Decidir deve ser um ato da razão, e a Psicologia Política seria o instrumento que capacitaria o governante a decidir e não cometer graves erros. Por esse motivo, quem sabe Le Bon proponha que um dos objetivos da nova disciplina consiste em responder cientificamente “quando, como e em que limites se deve agir”, pois “a resposta a essa interrogação constitue inteiramente a arte da política”. (p. 5) Essa questão é fundamental na arte do governo, sobretudo porque, quanto mais graves são os fatos sobre os quais se faz mister decidir, menos tempo há para atuar e, nestas situações, as intuições, os impulsos ou algumas regras tradicionais não bastariam ao exercício do governo.
28Como consequência, una das tarefas da Psicologia Política consistiria em descobrir os fatores presentes e passados que poderiam estar relacionados com os fenômenos do cotidiano da governança. Assim, o governo não deve encontrar sustentação em ilusões que dependem apenas de uma racionalidade lógica, pura. Essa crítica faz Le Bon com um endereço: os defensores, na academia, de uma razão pura destituída de emoções e sentimentos.
29Curiosamente, muitos dos argumentos que Le Bon traz aparecem nos debates em torno a governo, governança e políticas públicas. Ele os antecede e muitas vezes nos faz dar conta de que muito de nosso presente parece um looping, uma repetição, sobretudo quando olhamos o estado da arte de nossas instituições e problemas de governança. Nesse sentido, essa questão é estratégica e por isso os dois elementos seguintes são centrais na concepção do que temos dito até aqui, sendo as perguntas que motivaram a emergência da Psicologia Política muito próximas daquelas que mobilizam o capo da Ação Pública. Muller nos ajuda a fazer essa ponte quando pergunta “Como se produz a ordem política em sociedades cada vez mais complexas, cada vez mais fragmentadas e cada vez mais abertas ao exterior?” (Muller, 2000: 192).
30A questão de Muller é central na análise de políticas públicas no enfoque da ação pública. Entendemos Ação Púbica como sendo “a maneira como uma sociedade constrói e qualifica problemas coletivos e elabora respostas, conteúdos e processos para abordá-los” (Thoenig, 1997:28). A abordagem de problemas coletivos conduz a uma mudança no modo como se percebe um problema e os agentes nele implicados, pois a complexidade da vida social e seu governo deixam de ser objeto de um pequeno grupo de especialistas e coloca as fronteiras da resolução do problema bem mais além dos limites de um governo institucional (Silva, Mello-Théry & Romero, 2018). Desta feita, uma revisão do significado de política pública se faz necessário, pois política pública seria o desdobramento de algo maior que reflete o redimensionar do espaço e a ampliação dos atores envolvidos no processo de enfrentamento de problema social.
31A Ação Pública exige a ruptura com visões lineares e verticais dos processos de governo das nossas sociedades (Thoenig, 1997). Segundo Massardier (2003), o conceito de ação pública oferece uma nova concepção para a noção de ‘público’ deslocando o olhar do poder soberano para as controvérsias “sobre os problemas públicos e sobre os modos de sua resolução” (pp. 75-84) o que afeta a noção tradicional de política pública. Nessa perspectiva, verifica-se a deterioração progressiva da visão hegeliana de Estado onisciente ou onipotente, cuja racionalidade podia transcender a irracionalidade dos interesses particulares. Nessa abordagem perde sentido a ideia de monopólio ou predomínio do Estado na atividade de formulação, implementação, monitoramento e avaliação de Políticas Públicas com vistas à resolubilizar problemas que afetam o público.
32Nessa linha, ação pública significa levar em conta tanto as ações das instituições públicas quanto a pluralidade de atores, públicos e privados, oriundos quer da sociedade civil, quer da esfera estatal para toma decisões que visem resolver conjuntamente um problema que é de todos ou de uma parte significativa da sociedade. Essas ações se dão por meio interdependências mútuas que podem estar no âmbito nacional, local ou supranacional e devem produzir formas de regulação das ações coletivas.
33A abordagem da ação pública implica no entendimento de que as políticas públicas têm como característica a variedade dos atores políticos que devem compor um quadro múltiplo capaz de vislumbrar a complexidade do problema a ser enfrentado; a dimensão multipolar e poliárquica das relações entre os diversos envolvidos no processo, sem que haja linearidade na produção do processo político e, por fim a fragmentação e a flexibilidade da ação pública.
34Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès (2007) recordam que a partir dessa perspectiva, políticas públicas adquirem maior complexidade, pois a análise dos elementos constitutivos, bem como a análise das interações entre os elementos constitutivos da política, passam a ser centrais para compreender as ações dos múltiplos atores, sejam individuais ou coletivos, assim como os recursos disponíveis e os comportamentos estratégicos que esses atores apresentam. Como estes estão articulados no instante de estabelecer os “quadros cognitivos e normativos” que dão sentido às ações, é outro elemento. As instituições com regras, rotinas, procedimentos, e os processos que contêm as formas de mobilização e de interação dos atores, devem ser analisadas como um elemento que compõe esse quando geral. Por fim, os efeitos da ação pública necessitam de atenção já que eles refletem quais foram os resultados, quais as possíveis consequências ou efeitos da ação pública realizada.
35A ação pública engloba as políticas públicas e não se reduz a elas.
36Essa perspectiva transgride o normal, o habitual, o clássico em políticas públicas, permite que estas se fazem possíveis tanto por meio de ações desencadeadas por instâncias governamentais, como por outros atores sociais ou mesmo no próprio curso da ação social articulando atores governamentais e não governamentais.Há nela uma inequívoca ampliação dos contextos de ação incremento dos atores que podem estar envolvidos, resultando na desconcentração do poder atribuído ao Estado.
37Os elementos significativos para a análise das políticas públicas são flexíveis e dependem desse quadro que não é linear e pode alterar-se a qualquer instante dependendo de como esses atroes se posicionam no processo de resolubilizar o problema em questão.
38O processo passa a ser menos top-down, menos vertical e mais participativo. Como consequência, a perspectiva da ação pública faz com que a política pública passe a ser entendida como processo composto por múltiplos atores e se torne multipolar, com uma espacialização que ultrapassa os limites estabelecido tradicionalmente por aqueles especialistas que servem o Estado centralizador. Na Ação Pública o próprio Estado precisa mudar, se reposicionar frente a si mesmo e frente aos demais atores.
39Para que isso seja possível, é fundamental uma nova postura comunicacional e discursiva, dado que o espaço social muda. Há agora atores sociais dotados de autoridade e que tomam decisões que afetam a dinâmica clássica do Estado e sua burocracia. É importante ter presente que a abordagem pela ação pública não ignora que a autoridade pública “constrói configurações de crenças, interesses e condutas que permitem a coordenação e a direção” (Thoenig, 1997:34).
40Lascoumes e Le Galès (2007:112) apontam para a ação pública como “(…) uma forma de refletir sobre as novas configurações entre Estado e a sociedade civil, entre uma (ou várias) autoridade(s) pública(s) democraticamente legitimada(s) e as múltiplas formas de mobilização dos atores sociais que procuram organizar e promover os seus interesses simbólicos e materiais”. A ação pública possibilita uma maior heterogeneidade de atores em interdependência e interferindo no processo de tomada de decisão continuamente e reflete melhor a diversidade social e as realidades múltiplas envolvidas nesse processo. A relação entre atores estatais e os demais atores não prima pela harmonia e não exclui a conflitividade e nem a possibilidade de antagonismos irreconciliáveis. Há uma realidade porosa, fluida e um espaço em disputa. Há também sobreposições e paralelismos, mas há uma outra configuração de autoridade e de poder, de cognição acerca do poder e do que pode cada ator implicado. Para isso há que se implementar a desierarquização do poder. Este não é mais central, mas compartilhado entre as múltiplas partes.
41Para Gilles Massardier (2003), na ótica da ação pública, a política pública é observada como um “conjunto de ações múltiplas, mais ou menos coordenadas num espaço social mais ou menos unificado” (p.84). Mas o que é preciso destacar que mais ou menos unificado significa, necessariamente, reconhecer a fragmentação como parte do processo e, por isso, conflitivo, posso, marcado por sobreposições e em disputa. Políticas públicas são parte de algo maior e mais complexo e dependem do alargamento do espectro dos atores e das instâncias que se reconhecem como agentes interdependentes, as quais geram “formas de regulação das atividades coletivas em diversos domínios” (Commaille, 2004:413).
42Na lógica da ação pública emergem como centrais os princípios da horizontalidade e da circularidade das interações múltiplas e interdependentes. São diversos os atores que mostram capacidade para intervir nos processos produção das políticas públicas. A negociação e tomada de decisão passa a ter sentido numa outra espacialidade, constitui um novo território subjetivo e objetivo para a ação política. Para Pierre Muller (2000), a fase da decisão é um “processo esquivo em que atores de natureza diferente (políticos, funcionários, grupos de interesse) participam num tipo de decantação progressiva de escolhas (que não são nunca definidas à partida) mobilizando de forma pouco coerente informações e dados extraordinariamente heterogéneos” (pp. 191-92). Decidir é um ato compartilhado e não pode ser objeto de fetiche que conduz a concentração de poder nas mãos de que supões saber o que é melhor ou mais adequado.
43O conceito de territorialidades ganha relevância nessa proposta porque a partir dele poderemos encontrar elementos que nos permitem estabelecer as bases geopolíticas do poder (Mello-Thèry, 2011). Assim, o tema da territorialidade é fundamental para que se possa pensar políticas de desenvolvimento. Estas resultam normalmente em grandes modificações do espaço geográfico e atuam simultaneamente sobre o econômico e o social, mas também no processo de subjetivação de sujeitos e grupos. Tanto os incentivos financeiros quanto elementos políticos e sociais desempenhando um papel importante na definição do uso do espaço geográfico, nas dinâmicas territoriais e afetam o comportamento humano.
44Olhar o que ocorre no território, seja decorrente dos processos econômicos, das mobilidades populacionais, das mobilizações sociais ou das ações de governos, analisando as transformações e impactos deles resultantes é um desafio para a psicologia política e para a ação pública o que faz dessa dimensão geográfica um elemento de que desvela complexidades do fazer político. A complexidade de todos estes processos e das ações neles inseridas induzem a uma necessária articulação com outros olhares científicos sobre as múltiplas formas de territorialidades e espacialidades.
45Para Soja (1971:19), a organização do espaço pelo homem, ganha contornos políticos na noção de territorialidade. Esta pode ser vista como “um fenômeno comportamental associado com a organização do espaço em esferas de influência ou de territórios claramente demarcados, considerados distintos e exclusivos, ao menos parcialmente, por seus ocupantes ou por agentes outros que assim os definam”. Raffestin considera que a territorialidade é mais do que uma simples relação homem-território. Ela vai mais além da mera demarcação de parcelas individuais existe a relação social entre os homens. Dessa forma, a territorialidade seria “um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema”. Desta feita, há vários tipos de territorialidade (Raffestin, 1993:160).
46Dada a complexidade da sociabilidade humana, a territorialidade dos grupos humanos pode ser estruturada a partir dos sentimentos de identidade espacial, exclusividade e de interação humana no espaço (Soja, 1971:34). A identidade espacial se manifesta como um sentimento de afetividade ou de topofilia. A exclusividade é um sentimento latente que emerge quando alguma ameaça põe em risco o espaço, seja esse individual, familiar ou grupal, levando ao estabelecimento de um processo que tende à auto-segregação coletiva. Por fim, a interação espacial permite a troca, o reconhecimento do outro e a solidariedade que se consolida a partir de compartilhamentos que se mostram vantajosos ao grupo. Com base nisso, Raffestin (1993) aponta como relevante a dimensão social que dá sentido as territorialidades, visto que a relação homem-meio sofre atravessamentos como classe social e cultural que depende contexto histórico em que este está inserido.
47Para Sack (1986), a territorialidade é um comportamento humano espacial que expressa podere constitui uma estratégia humana para determinar o uso social do espaço. A territorialidade, portanto, afeta, influencia e controla o uso social do espaço. Para o autor, “a tentativa de um indivíduo ou grupo para afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações, e para delimitar e impor controle sobre uma área geográfica. Essa área será chamada de território” (Sack,1986:19). A territorialidadeé uma construção social que se constitui como uma forma de delimitação espacial, na qual há um modo próprio se comunicar e está controlada tanto no acesso quanto no seu uso (Mello-Thèry, 2011).
48Nesse sentido, é patente a condição territorial dos processos políticos e que estão vinculados a elementos centrais ao pensarmos o agir político e a ação pública. Disto se desprende a pergunta: qual o papel de governos e Estados na construção e gestão de territórios? Deve restringir-se à arbitragem e a garantir o acesso aos bens públicos essenciais dentro do modelo de Estado mínimo? Na Perspectiva de uma Psicologia Política da Ação pública isso levaria a uma despotencialização de ações mais circulares, menos hierarquizadas e com maior reconhecimento dos atores envolvidos, o que geraria uma menor efetividade da vinculação de sujeitos a esses territórios nos quais pouco influem.
49Sabidamente, o território é usado na ação governamental para condicionar os processos políticos. A territorialidade é, assim, um meio de ação institucional no âmbito de um território. Esse uso do território pode ser benéfico para os interesses do capitalismo ao propiciar a compensação da incapacidade do mercado em ofertar igualmente bens públicos a todos, pois a inciativa privada deve desempenhar um papel decisivo na oferta de bens e serviços. Ao governo caberia garantir, por meio de impostos, o acesso igualitário dos mais carentes a estes bens e serviços. Entretanto, não é garantido o acesso justo e democrático em uma sociedade marcada pela desigualdade na distribuição de riqueza.
50Como não poderia ser diferente, o território desempenha importante papel no conflito entre capital e trabalho, o que incide na contínua criação e destruição da paisagem. Nessa dinâmica, é claro uso de políticas territoriais como forma de mascarar as fontes de poder que promovem a acumulação e ampliam as desigualdades sociais que se manifestam subjetivamente e espacialmente.
51Entender os sentidos das territorialidades é fundamental para compreender as dinâmicas do Poder. Como recorda Sack (1986), a territorialidade supera ao limite da circunscrição de grupos humanos, pois ela impessoaliza as relações sociais e oculta, muitas vezes, as reais fontes do poder. Ela tornou-se, assim, um instrumento político-estratégico para alocar/deslocar significado ao espaço e determinar lugares no mundo da vida. Por tal razão, entender sua dinâmica é essencial para que ela própria seja um como contraponto ao poder estabelecido.
52Território é delimitação e a territorialidade é controle. Estudar a territorialidade, portanto, é dedicar-se a ampliação da participação e das formas de participação na gestão territorial, bem como entender a lógica da estratégia político-tecnocrática de manejo da territorialidade. Como não poderia deixar de ser, o conceito de territorialidade é multifacetado e polissêmico. Enquanto processo de construção territorial, ela refere-se as ações de demarcar, interditar e dominar e no que tange à produção e distribuição de recursos ela refere-se ao controle. Estas duas faces estão intimamente ligadas aos múltiplos processos políticos que produzem as relações humanas e a construção de um agir público na e para a sociedade. Desse modo, a territorialidade um complexo de estratégias institucionais que conduz a produção e distribuição de recursos a partir dada espacialidade, que, por sua vez, também é produção social.
53A leitura dos elementos compreensivos que dão base a essa proposta, mostra de maneira inequívoca que aspectos de cada uma se delas se sobrepõem ora se complementa. Mostra também que há um imperativo que as une: a interdisciplinaridade. Por essa razão é que propomos aqui alguns elementos para pensarmos a necessidade de uma Psicologia Política da Ação Pública que se sustenta em um olhar interdisciplinar. Sociologia, Política, Geografia, Administração e Psicologia Social aportam saberes fundamentais para um debate que articula aspectos micro e macropolíticos, micro e macro sociais e que geram essa nova forma de pensar os problemas públicos e os modos de enfrenta-los.
54A Psicologia Política da Ação Publica, claramente nasce de lacunas ou problemáticas já postas na Sociologia da Ação Pública e centra-se em aspectos intersubjetivos das relações produzidas pelos atores envolvidos nos enfrentamentos das diversas questões sociais que afetam a sociedade. Sendo assim, esse campo emergente nos possibilita navegar em uma variabilidade temática que permite compreender dinâmicas que superam a lógica disciplinar.
55Destaque-se que a forma como pessoas, grupos sociais e de interesse e instituições atuam e atribuem sentido a suas existências, problemas e modos de enfrentá-los e afrontá-los pode vir-a-ser um elemento condicionante, um obstáculo da transformação social resultante da ação pública ou mesmo um agente facilitador. A produção de elementos subjetivos que se articulam com racionalidades travestidas de objetividade pode se chave para a efetividade da ação pública no tocante aos processos de reposicionamento de atores frente aos modelos estadocêntricos tradicionais.
56A ação publica, de caráter multicêntrico, aporta uma possibilidade de reconhecimento e de diálogo que altera as posições de sujeito e de operacionalização de territórios e de seus problemas. As dinâmicas do poder são recompostas a partir da produção de novas dialogias e reconhecimentos. Nesse quadro, o humano volta a ser o centro da ação de sujeitos coletivos e de instituições e a política pública deixa de ter um fim em si mesma e passa a ser um instrumento de resolubilização de problemas mais complexos e que não podem ser fatiados a hora de enfrenta-los.
57Massadier (2003), ao discutir a ação pública pressupõem um conjunto de atores muito mais vasto dispostos no tabuleiro do que aquele no qual o Estado é o ator chave e que concentra o poder de decidir os rumos por si mesmo. Há multiplicidade de atores e multicentralidade na ação pública.
58Nela surgem novos processos e com novos processos, instrumentos e organização multiníveis, os quais exigem novas formas de coesão e de compreensão do outro, incluindo a capacidade de trabalhar com o dissenso e com os sentidos produzidos e atribuídos à hora de compor as redes ação pública que podem promover mudança social (Silva, Mello-Théry & Romero, 2018). Mas aqui o que desejamos foi apenas problematizar novas formas de contribuir para o debate desde a perspectiva interdisciplinar da Psicologia Política.