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Um século de recenseamentos no Brasil (1920-2020)

Os recenseamentos no Brasil: história, abordagens, desafios

Les recensements au Brésil : histoire, approches, défis1
The Brazilian censuses: history, approaches, challenges
Alexandre de Paiva Rio Camargo, Claudia Damasceno Fonseca et Hervé Théry

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  • 1 Este artigo é a tradução de um texto publicado na revista Brésil(s), que publicou em francês, na su (...)

1Instrumentos essenciais para as ações do Estado brasileiro e para sua avaliação, os recenseamentos refletem os processos de concepção e de consolidação de políticas econômicas, territoriais e sociais do país. Desde a primeira metade do século XX, eles contribuíram para a criação de modelos de desenvolvimento, para a veiculação de representações sobre a identidade brasileira, para a formulação dos grandes problemas nacionais, e para a emergência e consolidação da pesquisa em ciências sociais.

2O objetivo desse dossiê temático é revisitar cem anos de história censitária do Brasil, colocando em relevo a perspectiva de análise dos estudos sociais da quantificação. O marco inicial escolhido é o censo de 1920, inovador por diversos aspectos, como sua qualidade técnica, o número de variáveis pesquisadas e o modo de apresentação e publicização das informações. Para além das inovações em termos da propaganda, coleta e análise, a estratégia de associação da campanha censitária com o centenário da independência conferiu grande repercussão ao censo junto à opinião pública, causando uma inédita mobilização pela sua realização. Como mostra a contribuição de Maria do Carmo Gomes, a bem-sucedida cooperação federativa iniciada pelos organizadores do censo possibilitou o desenvolvimento das estatísticas regionais - especialmente no caso de Minas Gerais - e aprofundou o processo de institucionalização das estatísticas nacionais.

3Como resultado, em parte, das experiências acumuladas nos anos 1920, foi criado, em 1936, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o maior provedor de dados do país. Além de coordenar o sistema nacional de informações estatísticas, geográficas, cartográficas e geodésicas, o IBGE tem sido responsável pelo estabelecimento da regularidade censitária, por meio dos levantamentos que realiza a cada dez anos, sem interrupção, desde 1940 (Senra, 2006-2009). Ao longo de sua trajetória, o instituto promoveu diversas iniciativas de reordenamento do quadro territorial, atuando diretamente na criação de novas categorias espaciais. Realizou a uniformização das toponímias e dos limites dos municípios, estabelecendo sua padronização cartográfica. Formalizou a divisão em “grandes regiões” hoje conhecida - Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-oeste -, contribuindo para instituir a região como substrato fundamental da identidade e da alteridade dentro do espaço nacional (Camargo, 2022a). Nos anos 1960, a divisão regional estendeu-se à escala das áreas metropolitanas, com a instituição das “microrregiões homogêneas”.

4O IBGE não só canalizou a produção de informação sobre o espaço brasileiro, como também contribuiu para produzir, transformar ou tornar oficiais categorias e representações espaciais em diferentes escalas. O artigo de Cathy Chatel discute a construção das categorias "urbano” e “rural" atualmente utilizadas para classificar populações e espaços, observando que apesar da dupla vocação do instituto (geografia e estatística), tais definições não atribuem o devido peso às variáveis e informações geográficas e topográficas, a despeito do imenso volume de dados disponíveis (IBGE, 2017b: 11, citado por BRUNO, 2020).

5A escala intraurbana dos dados sociodemográficos e espaciais está contemplada no texto de Samuel Oliveira, que, através da análise de representações visuais das favelas (fotografias, mapas e cartogramas) divulgadas pela imprensa e em publicações estatísticas, retoma discussões recentes (Motta, 2019; Gonçalves, 2019) sobre o papel do censo de 1950 na percepção, pelo senso comum, da favela como parte integrante dos espaços urbanos, bem como na emergência da favela como objeto de políticas públicas.

6Os textos reunidos nesse dossiê privilegiam, portanto, as análises dos modos de produção, circulação e uso das estatísticas, entendidas como objetos culturais, artefatos que resultam de práticas sociais de classificação, registro e comparação de diferentes dimensões da realidade. Trata-se de uma abordagem que se interessa pelos censos não somente como fonte de informação das dinâmicas espaciais, demográficas ou econômicas, ou como parte do ciclo de formulação e avaliação das políticas públicas; a perspectiva aqui adotada acrescenta uma chave de leitura sobre as relações de poder operadas pelos números, ampliando as possibilidades de crítica e transformação. Ao lado de um ponto de vista metodológico sobre os censos, que enfatiza sua precisão técnica e condições de comparabilidade, optamos por explorá-los também como objeto privilegiado para compreender as relações entre Estado e sociedade, ao longo do tempo e do espaço.

Censo, Estado e população: gênese de uma relação

7O Estado destaca-se como o agente mais importante de classificação das populações, por representar um tipo mais estável de relação social e concentrar mais recursos materiais, capilaridade e poder simbólico. São diversas as políticas estatais que constroem classificações de pessoas e lugares. Contudo, os censos são as mais estudadas pela literatura. Isso ocorre porque o censo é um dos principais instrumentos de construção simbólica das nações, contribuindo diretamente para remodelar hierarquias sociais, fundamentar o direito ao domínio territorial, instituir espaços para ação governamental, e mediar os referentes comuns da “comunidade imaginada”, aquela em que os laços de pertencimento não dependem da interação face à face entre seus membros (Anderson, 2008; Chatterjee, 2004).

8Antes do surgimento do Estado-nação contemporâneo, as identidades - raciais, étnicas, linguísticas e religiosas - tinham grande fluidez e não implicavam exclusividade. A própria noção de que as identidades culturais das populações importavam na vida pública era totalmente estranha aos Estados não modernos (Gellner, 2000). Em tal cenário, as formas tradicionais de contagem da população, como as estimativas, os cálculos indiretos, as listas nominativas de habitantes e a enumeração dos fogos, limitavam-se a registrar os eventos principais do ciclo de vida – nascimentos, casamentos e mortes -, com finalidades fiscais, administrativas, eleitorais e coloniais. As estatísticas serviam para aplicar regulamentos, conhecer as finanças, proteger as fronteiras e áreas pouco povoadas, extrair recursos naturais, determinar o número de eleitores de uma paróquia ou circunscrição civil, recompor o número de súditos atingidos por guerras e epidemias, exprimindo, em cada caso, a grandeza e a potência de Estados e Impérios.

9As contagens tradicionais visavam a utilidade dos indivíduos para o Estado, a felicidade e o bem-estar dos povos importando somente a título secundário. Não se interessavam sobre as condições de vida das pessoas, suas relações familiares, seus regimes de produção e reprodução, que constituem os fatores de desenvolvimento interno da população, entendida como realidade que precede e fundamenta o governo nas sociedades modernas (Foucault, 2008). Segundo Theodore Porter (1986, p. 26), “para que o censo pudesse dizer muito sobre o que realmente importava, seria preciso uma profunda transformação na concepção do objeto da investigação quantitativa”.

Cartaz da journée d’études no CRBC, 28/1/2020

Cartaz da journée d’études no CRBC, 28/1/2020

10A mudança viria com o advento da quantificação social, que exprimiu as variações e escalas dos fenômenos gradualmente definidos pelas emergentes ciências humanas. Este é o momento da “avalanche dos números impressos”, expressão cunhada por Ian Hacking (1990) para designar a explosão de publicações estatísticas, que, entre os anos 1820 e 1840, cresceu em grau exponencial quando comparada ao aumento apenas linear da impressão de palavras e textos na Europa. A instalação de agências compiladoras de dados nos mais diferentes países europeus levou ao efeito de visualização em série de uma variada grade de fenômenos, antes inacessíveis à comparação. Ao colocar em perspectiva eventos até então considerados dispersos e sem conexão entre si, tais publicações revelaram regularidades inesperadas e surpreendentes em vários domínios, que iam do regime de mortalidade por doenças à constância dos casamentos, passando pela relação entre analfabetismo e propensão ao crime, entre muitas outras.

11Ao lado das agências de compilação sistemática de dados, o século XIX viu nascer, em escala global, a padronização dos pesos e medidas, a harmonização do sistema de horários e a comparação estatística dos diferentes países, permitindo que sequências de atividades humanas fossem sincronizadas no tempo e no espaço. Neste processo, tiveram papel decisivo os Congressos Internacionais de Estatística, que, desde 1853, reuniram acadêmicos da disciplina, estatísticos administradores, formadores de opinião e delegações oficiais dos Estados-membros. Suas resoluções fixaram marcos para as políticas alfandegárias, promovendo o liberalismo contra o protecionismo, por meio de uma estatística internacional do comércio e de comparações retrospectivas das economias e populações de cada país, dando lugar aos primeiros rankings de que temos notícia. Nos congressos, debatiam-se a normalização das classificações, a redação dos questionários, as correlações entre os fenômenos quantificáveis, a atribuição dos papéis dos produtores de dados e das autoridades públicas, entre outros temas (Brian, 1989).

12As convenções emanadas dos congressos foram determinantes na difusão, fora da Europa, de dois modelos institucionais: a agência nacional de estatística, capaz de centralizar a produção de dados ou estabelecer suas diretrizes, em cada país; e a fórmula da contagem exaustiva e periódica da população, em intervalos de dez anos, representada pelo censo nacional. Este distinguia-se das contagens tradicionais, ao se definir por critérios até então inéditos, em seu conjunto: respaldo legal; dotação orçamentária própria; simultaneidade da pesquisa nas diferentes regiões; data de referência pré-estabelecida; demarcação territorial pré-fixada; universalidade da enumeração dentro deste território e enumeração individual de todas as pessoas, e não somente de certas categorias, como os “chefes de fogo”. Diferentemente dos levantamentos anteriores, que traziam essencialmente propósitos militares, administrativos, fiscais ou eleitorais, é no censo geral que se consubstancia a finalidade manifesta de se conhecer as condições de vida e desenvolvimento da população, tomados como base da ação governamental e da formulação das políticas públicas.

Os censos nos estudos sociais da quantificação

13Desde suas origens, impulsionados, sobretudo, por um conjunto de pesquisas historiográficas, os estudos sociais da quantificação (Diaz-Bone, Didier, 2016; Camargo, Daniel, 2021) destacaram a centralidade dos recenseamentos e dos sistemas estatísticos na construção da autoridade política e da ordem social. De um lado, uma história política e institucional da produção de dados, colocou em evidência as práticas de registro e contagem ao longo do tempo (INSEE, 1987), consagrando uma visão pioneira da estatística como instrumento estatal de administração do território e da população. Mais tarde, influenciados pelas obras pioneiras de Benedict Anderson (2008), Ian Hacking (1990), Alain Desrosières (1993) e Theodore Porter (1995), diferentes trabalhos releram o processo de construção do Estado e dos espaços nacionais a partir da trajetória dos censos (Anderson, 1988; Curtis, 2001; Labbé, 2019; Mespoulet, 2001; Otero, 2006; Patriarca, 1996 et Tooze, 2001, entre outros). As tentativas de reconstrução histórica de sistemas estatísticos nacionais evidenciaram a relação entre a seleção de questões socialmente relevantes, que foram colocadas na agenda das políticas públicas a cada momento, e a criação de ferramentas estatísticas para objetivar tais questões, dar-lhes legibilidade e, assim, gerenciá-las (Desrosières, 2008). Também foram produzidas análises comparadas dos sistemas estatísticos de diferentes países e continentes (Beaud; Prévost, 2000), entre as quais destacamos as coletâneas sobre a América Latina (Senra, Camargo, 2010; Beaud, Fonseca, 2017; Briones, Estefane, Daniel, 2022), que se juntaram à sólida tradição de estudos sobre censo, identidade e etnicidade (Kertzer, Arel, 2002; Simon, Piché, Gagnon, 2015, entre outros).

14Entre os temas enfocados por tais trabalhos, encontramos, resumidamente: os métodos empregados nos censos dos séculos XIX e XX; as formas de apresentação das informações numéricas e seu papel nos movimentos de construção e reforma do Estado; as controvérsias estatísticas envolvendo instituições, comunidades científicas e elites técnicas que encontraram no censo um espaço de intervenção nos debates públicos e de desenvolvimento de seus campos de saber; o papel das tecnologias de quantificação na construção das práticas e dos públicos das ciências; a importância das formas de raciocinar e valorar com números para a formação de um ethos econômico capitalista e para a modernização das relações de trabalho; a gênese das categorias espaciais, econômicas e demográficas e sua evolução, em relação com a emergência de novas formas de participação social; a interface entre censos, mapas e gráficos na difusão dos dados, na construção da imagem de nação e na ordenação político-territorial; o impacto das tecnologias digitais e do algoritmo sobre a produção do censo e a transformação do controle público sobre a difusão da informação.

15De acordo com Ian Hacking (1991), a linguagem estatística promoveu um conjunto de classificações por meio das quais as pessoas pensam a si mesmas. A invenção de categorias em que cada pessoa deveria se enquadrar foi um modo de gerir e de enrijecer as novas conceituações acerca do ser humano. Tais categorias deram origem a outras formas de conceber os indivíduos; por exemplo, a classificação segundo a aptidão para o trabalho, originalmente desenhada por inspetores de fábrica, foi assimilada pelo censo na escala da população, consagrando um princípio de categorização baseado no papel desempenhado pelos indivíduos nas relações de produção. Trata-se de uma inovação que ajudou a instituir a estrutura de ocupações e de classes, orientando os termos pelos quais vemos a sociedade e nos situamos em relação a ela.

16Outro ponto importante assinalado pela literatura é que a adscrição de efeitos legais e simbólicos às categorias censitárias contribuiu para instituir a concepção estatística da normalidade. Trata-se de uma das mais poderosas noções modernas, já que propõe a fusão da ideia de recorrência (dos fatos e fenômenos) com a desejabilidade (das condutas e identidades), reduzindo as diferenças entre os indivíduos a uma questão de grau e medida, de acordo com a média e a distribuição da curva normal (Hacking, 1990). A concepção da normalidade como combinação entre recorrência e desejabilidade convida sutilmente os indivíduos a se verem através das categorias censitárias, seja reforçando o estigma produzido pelas classificações do Estado (por gênero, etnia, raça, cor, religião), seja, mais recentemente, denunciando a dominação pela contestação dos critérios de classificação, redefinindo seus usos e conteúdos.

17A ideia de normalidade aplica-se também aos espaços e territórios cobertos ou não pelos censos brasileiros. As áreas de habitações autoconstruídas genericamente referidas como "favelas" foram excluídas dos recenseamentos durante décadas, e ainda hoje recebem a classificação oficial do IBGE de "aglomerado subnormal" (Motta, 2019; Gonçalves, 2019, Catalá; Carmo, 2021). Grupos ameríndios que viviam em liberdade nos sertões da América - espaços marginais considerados como a antítese das vilas e "povoações civis" - não eram levados em conta nas contagens da época colonial e imperial. Além disso, a maneira como esta população foi incluída variou bastante desde o primeiro censo nacional (1872) e ao longo do século XX, e um critério importante era o espaço onde viviam : em vários censos, apenas os que estivessem reunidos em aldeias ou "postos indígenas" eram contados como "índios".

18Outro grupo de pesquisas se situa no âmbito dos estudos pós e decoloniais, examinando o papel dos censos na montagem da empresa colonial e nos movimentos de libertação nacional. Seguindo a trilha aberta por Benedict Anderson (2008), trata-se de trabalhos que exploraram as interseções tecnológicas entre os censos e os mapas, de modo a alicerçar a territorialidade do Estado colonial, fixar suas fronteiras, prevenir conflitos e distribuir a burocracia, remodelando a hierarquia etnorracial pré-existente e modificando, assim, o terreno em que as populações colonizadas vivem, sentem e agem (Chatterjee, 2004; Kapalgam, 2014, Touchelay, 2019). Nesses contextos, a estatística seria estratégica na superação de uma visão da topografia local que classificava vilas, mercados e aldeamentos segundo sua inserção em tradições culturais e relatos religiosos. Tais espaços, segmentados e dispersos durante séculos, seriam reconfigurados por meio dos censos e dos mapas, que os representaram como unidades territorialmente contínuas e delimitáveis. Unidades que por vezes foram dotadas de uma narrativa política e biográfica, “que lhes confere uma inédita profundidade histórica, atestando a existência, duradoura e estável, de um domínio colonial” (Scott, 1995, p. 208).

19Enfim, é importante ressaltar que, ao longo das últimas décadas, o censo passou a ser um meio de reconhecimento de minorias raciais e étnicas, coletividades nacionais e comunidades religiosas perante o Estado e a sociedade. Em vários países, a crescente associação entre grandeza numérica e moral na demanda por reconhecimento levou esses grupos a participarem diretamente das consultas sobre o que e como contar nos censos, e da avaliação das políticas de combate à desigualdade, baseadas nesses dados. De fato, as classificações oficiais não apenas registram, como também reescrevem as linhas da diferenciação social. Tal processo ocorreu no Brasil nomeadamente no que toca às populações indígenas. Na década de 1980, universidades e associações da sociedade civil impulsionaram o debate sobre a falta de uma demografia indígena e seu lugar no censo, o que seria resguardado pela Constituição de 1988. Como resultado desses esforços, o censo de 1991 incluiu uma categoria exclusiva para identificação dos povos indígenas, transformando-se, assim, a lógica de produção de informações a seu respeito. O artigo de Ricardo Ventura Santos, Bruno Nogueira Guimarães e Alessandra Traldi Simoni reconstrói a rede de atores envolvida na construção da nova categoria, as polêmicas que cercaram a forma de contagem, e os desafios que se abriram para os censos subsequentes, relacionados à captação de dados para um segmento com características socioculturais tão diferenciadas.

20O combate aos diferentes tipos de desigualdade passa diretamente pelo refinamento das categorias utilizadas pelo censo, muitas vezes como resultado do ativismo de dados. O artigo de Luana Myrrha, Ana Cleaver, Maria de Fátima Guerra e Wilson Fusco aborda a desigualdade social e de gênero a partir do trabalho doméstico remunerado no Brasil. Se o censo de 2010 havia introduzido variáveis que permitiram captar com mais detalhes as características deste agrupamento, como, por exemplo, seu movimento migratório e a mobilidade pendular, as alterações no questionário do censo em andamento (2022) irão provavelmente comprometer a compreensão de aspectos relativos à jornada de trabalho e ao acesso a benefícios assistenciais, fundamentais na avaliação das políticas de proteção social.

21Os drásticos cortes no orçamento impostos pelo governo federal resultaram no cancelamento do censo em 2020, até que uma decisão judicial da Suprema Corte obrigou o ex-presidente Jair Bolsonaro a relançar o processo. Um caso histórico de judicialização, em que o censo foi envolvido nos ataques dirigidos pelo governo Bolsonaro aos cientistas, à imprensa e às universidades, ao longo de uma gestão em que diversas medidas foram tomadas prescindindo de evidências e dados estatísticos de qualidade (Camargo, 2022b). A campanha censitária foi retomada em 2022, mas já se sabe que diferentes problemas atrasaram a coleta, e possivelmente afetaram, ao menos em parte, a qualidade dos resultados.

22O artigo de Moisés Kopper analisa as controvérsias relativas à implementação do novo censo, abordando-o como uma infraestrutura informacional que, mesmo antes de sua realização, permite imaginar e estabilizar ideais de futuro através dos números. Se o momento de obscurantismo e judicialização quase fez o censo submergir devido a cortes orçamentários, críticas e crises, ele também deixou em maior evidência a rede técnico-política normalmente envolvida na produção dos dados oficiais. Explorando esta janela, Kopper chama atenção para um outro tipo de ativismo, encabeçado por uma elite formada por estatísticos, altos funcionários e ex-dirigentes do IBGE, cuja mobilização passa por diferentes costuras entre o orçamento e o questionário do censo, de que dependeriam a qualidade do levantamento e, indiretamente, o futuro do país.

23Em seu conjunto, portanto, os artigos reunidos nesse dossiê partilham com os estudos sociais da quantificação aqui elencados o pressuposto de que censos e estatísticas não são técnicas neutras de representação da realidade; são tecnologias políticas que permitem intervir, rastrear e mudar as práticas mesmas que os estatísticos supostamente apenas registram e descrevem. As abordagens são múltiplas, orbitando sobretudo entre a sociologia, a antropologia e a história, mas sempre investigando como o Estado e a sociedade moldam os censos, e como as categorias da coleta de informação retroagem sobre o comportamento das pessoas. Dessa forma, o censo aparece revestido de um interesse heurístico particular, exigindo um olhar atento para os processos de construção da autoridade, para as formas de criticar e resistir com números, e para as redes técnico-políticas de produção e uso dos dados.

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Notes

1 Este artigo é a tradução de um texto publicado na revista Brésil(s), que publicou em francês, na sua edição 23, o dossiê "Un siècle de recensements au Brésil (1920-2020)" os mesmos artigos publicados, em português, nesta edição 59 de Confins: Alexandre de Paiva Rio Camargo, Claudia Damasceno Fonseca et Hervé Théry, « Les recensements au Brésil : histoire, approches, défis », Brésil(s) 23 | 2023. URL : http://journals.openedition.org/bresils/14334 ; DOI : https://doi.org/10.4000/bresils.14334

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Table des illustrations

Titre Cartaz da journée d’études no CRBC, 28/1/2020
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/51371/img-1.jpg
Fichier image/jpeg, 520k
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Pour citer cet article

Référence électronique

Alexandre de Paiva Rio Camargo, Claudia Damasceno Fonseca et Hervé Théry, « Os recenseamentos no Brasil: história, abordagens, desafios  »Confins [En ligne], 59 | 2023, mis en ligne le 01 juillet 2023, consulté le 15 mars 2025. URL : http://journals.openedition.org/confins/51371 ; DOI : https://doi.org/10.4000/confins.51371

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Auteurs

Alexandre de Paiva Rio Camargo

Universidade Candido Mendes (UCAM), ORCID http://orcid.org/0000-0001-5720-7369, alexandre.camargo.2009@gmail.com

Claudia Damasceno Fonseca

Directrice d’études à l’École des hautes études en sciences sociales (EHESS), directrice du Centre de recherches sur le Brésil colonial et contemporain (CRBC), ORCID https://orcid.org/0000-0002-8893-0514, claudia.damasceno@ehess.fr

Hervé Théry

Directeur de recherche émérite au CNRS-CREDA, Professor na USP-PPGH, ORCID http://orcid.org/0000-0001-8282-3470, hthery@aol.com

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