1No século XIX, a América do Sul ainda era percebida como uma região fronteiriça entre os mundos conhecidos e desconhecidos, um espaço primordial localizado na última fronteira que se desenrolava entre a “civilização” e a “barbárie”. Este território manteve-se fora de qualquer autoridade estatal até à década de 1880 e fascina pela sua majestade e pelas especificidades biológicas e culturais dos seus habitantes: surge como um livro aberto no tempo, susceptível de revelar os segredos da evolução da espécie humana. As disciplinas emergentes da antropologia e da etnografia tornam-na, assim, um campo privilegiado de estudo. Ao traçar o rastro dos aventureiros franceses na Patagônia, Terra do Fogo e Araucanía, este livro refaz a história das grandes missões de exploração e coleta realizadas no sul da Argentina e do Chile, e investiga a forma como a apropriação intelectual e material de foi feita a população do “fim do mundo” em Paris, na época do surgimento dos museus de etnografia.

2Paz Núñez-Regueiro é curadora-chefe de patrimônio, responsável pela Unidade de Patrimônio das Américas do Musée du quai Branly - Jacques-Chirac. Este livro é resultado de uma tese e em 2019 recebeu o prémio “Valois” para jovens pesquisadores da Comissão de História do Ministério da Cultura.

Trechos da introdução

3“Nowhere is a place” (“Nenhum lugar é um lugar”) escreve Bruce Chatwin sobre a Patagônia. Diante da magnificência de grandes extensões sem fim, de uma paisagem atemporal onde a presença humana ainda hoje é esquecida, esta observação mantém a imagem de uma Patagônia selvagem, deserta e atemporal, reinventada muitas vezes por cinco séculos por uma vasta literatura de viagens e contos de exploração. Território fora da norma nas margens do mundo, esse “lugar sem nome” que seria a Patagônia acaba sendo multivocal, pois sua percepção e sua definição variaram desde o século XVI.

4O nome Patagônia, aplicado ao extremo sul da América, abrange as regiões que hoje correspondem ao sul da Argentina e do Chile, entre os graus 39 e 55 de latitude sul. Dividido em toda a sua extensão pela Cordilheira dos Andes, este vasto território com paisagens contrastantes de montanhas, geleiras, estepes, florestas subpolares, costas e ilhas, estende-se do Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico. Seu limite norte é geralmente estabelecido na altura do rio Colorado, além do qual se estendem as grandes planícies, ou Pampas; seu limite sul faz fronteira com a Terra do Fogo e seu arquipélago.

5Em 1519, Fernando de Magalhães ofereceu este território ao Velho Mundo e desvendou uma passagem para os “Mares do Sul” através de um estreito que hoje leva o seu nome. O extremo sul da América tornou-se o local de crescente tráfego marítimo, a última escala antes da incursão no Oceano Pacífico para chegar às Índias Orientais. A Patagônia, que corresponde aos confins do mundo conhecido, cristaliza um sentimento de “fim do mundo” e permanece nos mapas oficiais uma terra incógnita até o século XIX: livre de toda autoridade ocidental antes do último quarto do século, é percebido pela Europa como intacto e pertencente “mais à lenda do que à história”. […]

6Nossa pesquisa traça o rastro dos aventureiros franceses na Patagônia, Terra do Fogo e Araucanía (centro-sul do Chile) para entender os desafios das explorações e coletas realizadas em campo. Segue os marcos que levaram à construção dos arquivos do “fim do mundo” em Paris. O fio vermelho é a história do acervo sul-americano reunido no Musée d'Ethnographie du Trocadéro durante seu período de atividade (1882-1937), em diálogo com o acervo de restos humanos, documentos escritos e gráficos, diários de viagem, mapas e fotografias associadas a ele. […] As aventuras exploratórias analisadas nas páginas seguintes, e as experiências de coleção e museu associadas a elas, oferecem outra história da América do Sul através do prisma das coleções agora mantidas na França.

Conteúdo

7O Desenvolvimento Político e Cultural da América do Sul

8Capítulo I América do Sul no século XIX

9Capítulo II Primeiras Coleções da América do Sul

10Um médico no Cabo Horn (1882-1883)

11Capítulo III A missão científica do Cabo Horn (1882-1883)

12Capítulo IV O estudo dos Yahgans e o acervo antropológico

13Capítulo V O Campo Etnográfico de Paul Hyades

14Um explorador na Patagônia argentina (1896-1897)

15Capítulo VI A missão de Henry de La Vaulx na Patagônia (1896-1897)

16Capítulo VII A política de troca e dádiva

17Um religioso na Araucanía chilena (1926-1932)

18Capítulo VIII A investigação do Irmão Claude Joseph em território mapuche (1926-1932)

19Capítulo IX Santiago-Sevilha-Paris: a estética mapuche no cenário internacional

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