3A coremática foi apresentada por Roger Brunet pela primeira vez como uma proposta estruturada no artigo La composition des modèles dans l’analyse spatiale, publicado na revista l’Espace Géographique em 1980 (Brunet, 1980). A partir de então, a proposta foi aprofundada e desenvolvida pelo autor em diversas obras nos anos de 1980 e 1990, principalmente, o que coincidiu com as atividades do Groupement d’Intérêt Public – Réseau d’Étude des Changements dans les Localisations et les Unités Spatiales - (GIP-RECLUS), criado por Roger Brunet em 1984 e extinto em 1997. Durante esse período, um grande número de geógrafos agregados na Maison de la Géographie, em Montpellier, participou de projetos de ordenamento territorial na França e publicou inúmeros trabalhos, o principal deles a Géographie Universelle. Esses geógrafos também contribuíram com o desenvolvimento e a aplicação da coremática em diversas áreas, inclusive na educação básica, onde a coremática teve forte difusão. Neste artigo, contudo, nosso foco está nos trabalhos de Roger Brunet. Os trabalhos dos demais autores importantes para compreender a coremática serão objeto de outros artigos.

5É compreensível que nas décadas de 1980 e 1990 a coremática não tenha encontrado terreno fértil no Brasil, pois a Geografia brasileira passava por um processo de libertação da ditadura militar e de construção da corrente crítica, baseada sobretudo no materialismo histórico e no materialismo dialético. A criação de uma corrente crítica na Geografia era um movimento na ciência geográfica que já havia ocorrido nas décadas de 1960/70 nas Geografias da Europa e nos Estados Unidos. Nesses países, contra a “ameaça comunista”, a partir a década de 1960, a “arma” utilizada foi a realização do welfare state, acalmando os movimentos sociais e a insatisfação das classes trabalhadoras. Contudo, no mesmo período, nos países da América Latina, a população foi submetida a regimes ditatoriais militares para destruir e impedir o surgimento de movimentos comunistas. A liberdade foi mantida nos EUA e na Europa, enquanto que na América Latina a sociedade – e a ciência – foram silenciadas e reprimidas. Nos anos 1980 as geografia radicais, marxistas, críticas etc. já eram decadentes na Europa e nos EUA: seja pelo funcionamento da estratégia do welfare state, pela divulgação dos crimes do período stalinista na União Soviética ou pelo iminente fim do comunismo naquele país. Contudo, no mesmo período, com o fim da ditadura no Brasil, as Geografia Crítica era uma necessidade e um elo faltante e, por isso, a revolução da Geografia Crítica a partir da década de 1980. Foi só então que a Geografia brasileira encontrou liberdade para fazer as críticas sociais necessárias àquela época e anda hoje, visto a permanência dos profundos problemas sociais no país.

6Na França, já a partir da década de 1970, houve um movimento de superação da Geografia regional tradicional/lablacheana, com críticas aos estudos idiográficos, descritivos e pouco analíticos. Esse movimento buscava dar bases mais “científicas” para a Geografia, o que significava a busca por abordagens matemáticas e nomotéticas: era o movimento da Nouvelle Géographie. É neste movimento que está inserida a coremática de Roger Brunet, mais especificamente na busca de uma abordagem que, embora não exclua o idiográfico, salienta o nomotético na produção do conhecimento geográfico. Esse movimento, que também ocorreu no Brasil, teve vida curta, e foi prontamente sobrepujado pela corrente crítica da Geografia brasileira, que passou a ser predominante a partir de meados da década de 1980 no país. Portanto, não houve tempo para que a coremática chegasse ao Brasil no contexto da Geografia Teorético-Quantitativa. O movimento da Geografia Crítica no Brasil foi necessário e muito importante para as necessidades do país e para cunhar uma Geografia com identidade própria no Brasil, contudo, uma das consequências foi a negligência do uso do mapa na Geografia, privilegiando-se uma Geografia de uma só linguagem – o texto - como defendemos em Girardi, E. P. (2008; 2011).

7Hoje, passadas cerca de quatro décadas dos eventos narrados acima relativamente a Geografia brasileira; chacoalhados pelo movimento pós-modernista e; com uma visão muito mais clara do papel do método científico como instrumento que serve às necessidades do pesquisador e não como camisa de força, podemos pensar em articular, de forma coerente, o papel da representação (carto)gráfica das/nas diversas correntes e escolas da Geografia com o objetivo de potencializar e utilizar de forma mais ampla possível a representação (carto)gráfica como instrumento de pesquisa e discurso geográficos. Fazer isso no contexto da Cartografia Geográfica brasileira é o objetivo principal do projeto de pesquisa no qual se inscreve este artigo.

8Acreditamos que, pela inexistência da tradução para o português das obras seminais sobre a coremática, especialmente aquelas de Roger Brunet, tal abordagem ainda tem muito a ser explorado e discutido acerca das contribuições que pode dar para a Geografia e para a Cartografia Geográfica brasileiras. Para isso, é imperativo esclarecer suas bases teóricas e de método.

Os trabalhos de Roger Brunet antes da coremática

9As primeiras pesquisas e publicações de Roger Brunet foram sobre Geomorfologia, que teve grande importância na sua tese publicada em 1967, e é provavelmente aí que está a origem da sua preocupação com a representação (carto)gráfica, já que os trabalhos de geomorfologia se utilizam amplamente de mapas, croquis e esquemas gráficos. Suas primeiras publicações datam de 1951. Desde o início, Brunet utiliza-se fartamente dos mapas, croquis e esquemas gráficos em seus trabalhos, sendo raros aqueles que não portam algum tipo de representação (carto)gráfica. Em 1962 Roger Brunet publica a primeira edição de Le croquis de géographie régionale et économique (Brunet, 1962; 1967a); entre 1957 e 1965 ele escreve sua tese sobre Les campagnes toulousanes (Brunet, 1965); e em seguida trabalha na sua tese complementar Les phénomènes de discontinuité en géographie, publicada em 1967 (Brunet, 1967b). As duas teses escapam do modelo tradicional da Geografia Regional francesa, sendo propositivas e consideradas referências no processo de renovação da Geografia Regional Tradicional.

10Le croquis de géographie régionale et économique (Brunet, 1962) aparece cinco antes da obra Sémiologie Graphique de Jacques Bertin (1967), embora a publicação de Brunet não tenha a mesma envergadura normativa daquela de Bertin, que vai se consolidar como uma referência ainda não superada até a atualidade. Enquanto Brunet preocupa-se com o croqui, Bertin preocupa-se com o mapa, mas em ambas as representações gráficas do espaço as regras semiológicas precisam ser obedecidas. O foco de Brunet é pensar os croquis no contexto da Geografia Regional francesa, o que também inclui os gráficos e diagramas, como Bertin. Brunet destaca o caráter didático do seu livro, voltado para os alunos da licenciatura. Aí encontramos a tradição dos croquis na Geografia francesa: a preparação dos professores do ensino básico e o concurso de Agrégation, pelo qual passam os formados em Geografia e História que querem ministrar aula de Geografia no ensino básico francês. Uma das atividades historicamente cobradas – inclusive atualmente - no citado concurso é a elaboração de croquis. A maior parte dos professores universitários e pesquisadores da Geografia francesa também passaram por esse concurso, embora não seja obrigatório para a docência/pesquisa no ensino superior. Há, na atualidade, vários manuais de elaboração de croquis publicados na França que são específicos para candidatos do concurso de Agrégration.

11A tradição dos croquis na Geografia Regional francesa será decisiva para a proposição da coremática por Brunet. Vejamos como Brunet (1962) relaciona a Geografia Regional e os croquis:

A geografia regional é o estudo sintético de uma porção do espaço terrestre. Longe de ser um inventário, é a pesquisa da forma como esse espaço é organizado, do qual os homens se beneficiam. [...] (p. 12). O objetivo do croqui é descrever a região: ele deve expressar seu conteúdo, mas não somente os elementos que a compõem, mas também a forma como eles interagem. Ele deve simbolizar o complexo. Seus méritos são grandes: ele permite apreender em uma só olhada a personalidade da região, ao mesmo tempo que sua estrutura; lido nos detalhes, ele revela todas as nuances. (p. 14).

12Na sua primeira tese, sobre Les campagnes toulousanes, Brunet (1965) questiona a explicação determinista difundida de que o clima e as condições naturais eram responsáveis pelo atraso da modernização do campo em uma região delimitada por ele em um raio de cerca de 100 km no entorno da cidade de Toulouse. Ao contrário, Brunet defende que a estrutura social, dominada por uma burguesia fundiária, era a real responsável pelos problemas. Embora Marx não tenha sido diretamente citado no trabalho, fica clara a influência marxista na tese, o que reflete o posicionamento político também pessoal de Brunet. Segundo Brunet:

Tentamos mostrar que a evolução do campo na região de Toulouse é dominado por transformações nas relações sociais e pelo papel que tiveram as classes dirigentes - urbanas como rurais -: acreditamos ter demonstrado que o seu atraso econômico era parcialmente imputável à atitude de um certo tipo de burguesia fundiária, muito mais do que a qualquer maldição natural. (BRUNET, 1965, p. 670).

O objetivo era desafiar a explicação tradicional e preguiçosa desses atrasos como "caprichos do clima". Consegui demonstrar que eles estavam fundamentalmente ligados à história da propriedade rural: a burguesia latifundiária, por meio da meação, havia sugado a mais-valia da produção de trigo, sem investir em atividades produtivas; ela havia impedido qualquer investimento agrícola sério, prendendo os trabalhadores empobrecidos à policultura de autoconsumo. O progresso recente veio de novos influxos de capital, especialmente de "repatriados" do norte da África, e de esforços de cooperação e treinamento, bem como do desaparecimento gradual da meação; eles mostraram que o campo era perfeitamente adequado à produção moderna. (BRUNET, 2023, não paginado).

13Na segunda tese - Les phénomènes de discontinuité en géographie – Brunet (1967b) é novamente propositivo e escapa ao modelo tradicional. No trabalho o autor também busca referências no materialismo histórico e no materialismo dialético e toma como ponto de partida a Geomorfologia (como seus primeiros trabalhos), sendo Jean Tricart amplamente referenciado. Contudo, Brunet transborda suas análises para a Geografia Humana: as descontinuidades são analisadas tanto na natureza quanto nas obras e ações humanas. Na tese, Brunet (2023) afirma que optou

por trabalhar (em 1965) com os fenômenos de descontinuidade, em oposição a outra ideia conhecida, difundida até mesmo entre os melhores geomorfólogos: para eles, uma ruptura em uma evolução só poderia ser exógena, um acidente produzido externamente. Minha ideia, baseada em várias leituras da literatura marxista, era demonstrar que rupturas, e até mesmo reversões e mudanças de qualidade, poderiam vir de simples mudanças progressivas de quantidade em uma evolução contínua. Encontrei muitos exemplos disso, tanto na geografia física (água, clima, vegetação e formas de relevo) quanto na geografia humana (densidades, distância da cidade etc.), e comecei a perceber que a "região", no sentido mais amplo, era uma expressão da descontinuidade dos sistemas espaciais. (não paginado).

14Na segunda tese de Brunet já estão presentes algumas das principais referencias que também serão importantes para a construção da coremática e da sua proposta teórico-metodológica mais ampla para a Geografia presente em Le déchiffrement du monde (1990; 2001; 2017), quais sejam: Bunge (1962), Haggett (1965) e Wiener (1952). A ideia de descontinuidade e, por oposição, de continuidade, também serão importantes para Le déchiffrement du monde e para a coremática: “é a continuidade que cria a descontinuidade”. (1967b, p. 77).

15O reconhecimento de causas semelhantes e da presença recorrente e sistemática da descontinuidade na natureza e na sociedade pode ser identificado como uma influência do estruturalismo no trabalho de Brunet, mesmo que ele não tenha mencionado diretamente a questão. Além disso, outra característica importante na tese de Brunet (1967b) é a proposição de uma Geografia que, além do idiográfico, também esteja amparada pelo nomotético. A defesa de um caráter nomotético para a Geografia fica evidente com a proposição de uma teoria das descontinuidades (p. 76), contudo, possíveis leis geográficas são relativizadas:

[...] a contradição aparente entre ciência nomotética e ciência idiográfica é um falso problema. Baseando-se em monografias e complementando o seu trabalho com monografias, a geografia pode - e deve - identificar tipos e correlações. Mas é evidente que, devido à natureza das coisas, não pode chegar a leis simples e gerais do tipo das obtidas na física clássica - cujo carácter relativo foi, aliás, evidenciado na primeira metade deste século. A procura de tais generalidades é literalmente uma perda de tempo. (p. 97-98).

16A defesa de uma renovação na Geografia Regional também é evidente no trabalho de Brunet (1967b), que defende uma Geografia Regional Sistemática:

Este estudo das descontinuidades em geografia, inscrito num outro conjunto de considerações, inscreve-se numa convicção que adquirimos progressivamente, a crença nas virtudes de uma geografia regional sistemática, baseada na classificação dos tipos de regiões e na sua comparação. (p. 100).

17O mapa, com destaque para a cartografia de síntese regional, também ocupa papel de destaque na proposta de Brunet (1967b), especialmente na identificação das descontinuidades. O autor afirma que é

[...] o mapa que melhor evidencia as descontinuidades espaciais, que são frequentemente o traço de descontinuidades dinâmicas - descontinuidades entre tipos. A esse respeito, a cartografia de síntese regional deveria ser particularmente frutuosa, mas é claro que é sempre um instrumento de trabalho e não um objetivo. (p. 97).

Em ambas as teses Brunet usa exaustivamente elementos gráficos, reafirmando a importância que o autor confere à linguagem gráfica e à cartografia. São incontáveis os mapas sistemáticos, mapas temáticos, mapas sinóticos, diagramas, esquemas, perfis geomorfológicos, gráficos (inclusive com exploração estatística), diagramas e esquemas. A gráfica, com destaque para a cartografia, é parte integrante do processo de pesquisa, discurso e comunicação dos trabalhos do autor. Sobre a importância do mapa, Brunet (1965) afirma

[...] nós concedemos uma confiança crescente na virtude dos mapas e o concebemos tanto como um instrumento indispensável de pesquisa quanto o mais elegante meio e exposição. Ninguém duvida que o mapa substitui, na Geografia, a experimentação, tal como outros pesquisadores podem fazer. [...] queremos apenas que este trabalho tenha igualmente como tese demonstrar como é frutífero recorrer constantemente ao mapa, incluindo, talvez principalmente, o mapa de síntese.

O mapa permite, antes de tudo, fazer descobertas, apresentar questões, orientar novas pesquisas. (p. 18)

[...]

Portanto, nós concebemos a parte cartográfica deste trabalho não como uma ilustração, menos ainda como uma descontração para o leitor, mas como um dos três métodos de pesquisa dos quais nós podemos dispor, e como um dos três meios de expressão à nossa disposição, ao lado do texto e das tabelas estatísticas e dos diagramas. (p. 19).

18Em 1969 Roger Brunet publica o artigo Le quartier rural, structure régionale. No artigo o autor utiliza os conceitos de sistema e principalmente de estrutura para defender a existência dos quartiers ruraux, que existem independente da vontade consciente de ações humanas ou até mesmo de características naturais; trata-se, portanto, de um princípio explicitamente estruturalista. Para Brunet (1969)

• 6 Lalande. Vocabulaire philosophique, pp. 1010-1011.

Esses quartiers são, como dizem os filósofos, “sistemas interligados”, e não agrupamentos fortuitos de dados que variam no espaço, de forma que a modificação de um dos dados mudaria somente o aspecto exterior do conjunto, a forma, sem influenciar os outros dados. Não são simples combinações, e a fortiori justaposição de elementos, eles são “um todo formado por fenômenos solidários, de tal forma que um depende do outro e não pode ser o que é em e por sua relação com os outros”6; no espaço, esse todo se distingue das outras totalidades que são os quartiers vizinhos.

Conhecemos então, exatamente, a definição clássica de uma estrutura. A palavra, e seus derivados, são atualmente empregados excessivamente. Não se trata aqui de vestir a região à moda atual. Porém, na presença de um vasto movimento de pensamento que renovou diversas disciplina e que permite estabelecer entre elas largas pontes, a geografia tem o dever de sair do isolamento semântico e epistemológico no qual ela permanece passivamente. Há muito tempo fala-se em complexos em relação aos fatos geográficos e A. Cholley desenvolveu eficazmente essa noção: constatemos, por enquanto, que eles correspondem precisamente ao que se tem descrito alhures sob o termo de estruturas, e que os quartiers ruraux lhes pertencem, mesmo se isso signifique dizer que, desde há muito tempo, o geógrafo pratica o estruturalismo sem saber – ou, ao menos, sem dizer.

Esses quartiers são formados por elementos concretos, dos quais podemos conhecer as formas e a extensão espacial. Mas o quartier não é o terroir, mais os estabelecimentos agropecuários, mais as famílias, mais os lotes, etc... Não há, por ele próprio, existência concreta: ele só existe como sistema de relações – e o conhecimento de sistemas é justamente a origem de toda explicação geográfica, enquanto que o conhecimento das formas tomadas pelos elementos em relação é a origem da descrição geográfica. (p. 83-84)

[...]

• 7 J. Piaget, Le structuralisme. Paris, P.U.F., coll. Que Sais-Je? n^o 1311, p. 7.

O quartier é um sistema autorregulável; ele não está definido, mas se transforma por rupturas sucessivas de equilíbrio. Essas três características – sistema de interações, autorregulável, em transformação – correspondem precisamente às exigências da definição de estrutura segundo Piaget7. (p. 89).

19A citação acima é inequívoca quanto a vinculação do trabalho de Brunet (1969) ao estruturalismo. No mesmo artigo, Brunet também articula a questão dos quartiers com a geografia regional, sendo uma proposição que vai além da Geografia Regional Tradicional e que indica a possibilidade de trazer os conceitos e princípios dos sistemas e das estruturas para uma renovação da Geografia Regional.

20Preocupado em representar cartograficamente os quartier ruraux como sistemas de relações e não como simplesmente porções delimitadas do território, Brunet propõe alguns princípios da modelização gráfica, segundo ele, naquele momento, já apresentados na segunda versão de Le croquis de géographie régionale et economique (Brunet, 1967a). Segundo Brunet (1969) uma solução é

[...] deixar de lado o problema dos limites e representar as próprias estruturas no mapa com, eventualmente, direções de expansão das estruturas dominantes. Chegamos em um mapa mais abstrato, mas que mostra melhor as dinâmicas e relações. (p. 95).

21Em Les nouveaux aspects de la recherche géographique: rupture ou raffinement de la tradition (Brunet, 1972a) demonstra sua aderência ao movimento da Geografia teórica e quantitativa, com origem na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Canadá, e que passa a influenciar a Geografia francesa. Segundo Brunet (2011) “até os anos 1960, aproximadamente, a geografia humana e regional era essencialmente descritiva e monográfica. Ela podia usar números em abundância, mas esquecia de elaborar conclusões a partir deles” (p. xiv). Brunet vê nas técnicas avançadas de estatística e matemática a possibilidade de passar de uma Geografia literária, intuitiva e qualitativa para uma Geografia mais científica: “o domínio das técnicas estatísticas evita as falsas interpretações, indubitavelmente erros que aos quais levam uma comparação grosseira e puramente intuitiva dos dados” (p. 76). Tais abordagens estatísticas e matemáticas ampliariam as perspectivas de generalização, muito reduzidas com as monografias. Brunet também faz referência à teoria geral dos sistemas proposta pelos geógrafos anglo-escandinavos e escreve que:

A hipótese que formulamos é que a adoção de uma abordagem científica não somente implica na reflexão sobre as técnicas, mas mais ainda, e sobretudo, acerca dos próprios sistemas, de modo a ordenar os dados e tratá-los de outra forma que não demasiadamente empiricamente. (p. 76).

23Como exemplo, Brunet (1972b) realiza um exercício de modelização da organização urbana do Massif Central francês. Em um primeiro momento ele apresenta um modelo localizado, que ele afirma ser um mapa mais esquemático possível, mas que guarda formas e distâncias, inclusive com uma escala gráfica. Nesse mapa ele representa, de forma esquemática, os principais elementos da organização urbana segundo sua análise. Em seguida, o autor apresenta o modelo depurado/simplificado do mesmo tema e da mesma região, mas que tem informações mais generalizadas e cuja forma territorial é substituída pelo círculo. A depuração da primeira imagem para se chegar na segunda é um processo de experimentação:

Fazemos algo diferente quando se trata da generalização, tentando eliminar o contingente, mesmo que se trate de nossas formas comprovadas de tratar a geografia geral assim como a análise regional explicativa ou, de outra lado, as novas técnicas de análise fatorial? O que faz o físico ou o químico quando ele varia as condições de sua experiência? O mapa, para o geógrafo, não pode ser mais do que uma imagem, um instrumento e experimentação? (p. 47).

24Em Structure et dynamisme de l’espace français: schéma d’un système, Brunet (1973) elabora uma representação gráfica que ele chama de schéma de l’espace français. É o primeiro exercício de modelização para a França, mas Brunet apresenta no artigo apenas o modelo específico; os modelos elementares do exercício só aparecerão em Brunet (1980, p. 256). A representação é um misto de mapa-modelo e croqui, mas o exercício analítico é muito mais próximo da coremática. É um exercício analítico cujos fundamentos de elaboração são aqueles que posteriormente estarão presentes nas obras em que Brunet apresenta de forma sistematizada a coremática. Trata-se, conforme o próprio título anuncia, da busca das estruturas e dos sistemas geográficos da França.

25Sobre os procedimentos metodológicos relacionados à cartografia, o Brunet (1973) afirma que

Certos meios de expressão são particularmente bem adaptados à pesquisa e à exposição desses princípios; é o caso do que podemos chamar de cartografia lógica ou cartografia dos sistemas.

Nossa proposta, nessa perspectiva, é de tentar identificar e mapear os princípios fundamentais da organização do espaço francês: quer dizer, alguns mecanismos simples que dão conta do essencial. (p. 249).

26Já sobre o método de interpretação, o autor diz haver a necessidade de utilização tanto da abordagem indutiva quanto da dedutiva, que seriam indissociáveis para o exercício analítico:

Para este fim nós podemos, em teoria, escolher entre uma abordagem indutiva e uma abordagem dedutiva. A primeira consiste em analisar um grande número de dados de base, por exemplo, mapas temáticos detalhados, e em abstrair, pouco a pouco, os elementos que pareçam essenciais. A segunda consiste em formular algumas hipóteses de partida sobre os mecanismos fundamentais da organização do espaço e em verificar se o modelo funciona corretamente. Na realidade, nos parece evidente que as duas abordagens são indissociáveis; não podemos induzir fingindo ignorar os grandes princípios da organização do espaço; não podemos elaborar um modelo dedutivo fora deste conhecimento do real; a interação dialética é constante entre as duas abordagens. (p. 249).

27Quando analisa a Medina de Tunes, Brunet (1975a) introduz os conceitos de modelo específico e de modelo geral, apresentando de forma inicial o processo de composição de modelos e o processo de modelização:

Nós propomos nomear modelo específico a representação de um espaço particular. O modelo específico é sempre o resultado da composição original de vários modelos gerais de organização do espaço e, eventualmente, de acidentes locais. Sua adição não é apenas superposição: ela cria distorções, ou “transformações”, e novos fenômenos em certos pontos de contato. (p. 44).

28Em Spatial systems and structures: a model and a case study Brunet (1975b) deixa claro sua referência à teoria dos sistemas e à cibernética. No artigo, o autor apresenta um modelo geral dos sistemas espaciais e introduz a ideia de sistema de energia do espaço geográfico. Ambos serão ajustados e apresentados de forma definitiva em Le déchiffrement du monde, sendo importantes para compreender a coremática.

29É no texto de 1979 intitulado Systèmes et approche systèmique en géographie que Roger Brunet irá expor de forma mais direta a sua influência a abordagem sistêmica na Geografia e atrelar a abordagem sistêmica à renovação da Geografia Regional. Brunet (1979) afirma que

As implicações da abordagem sistêmica são de natureza à conduzir uma revisão do estudo regional. (p. 399).

[...] a abordagem sistêmica é a única ferramenta que permite [...] resolver a contradição entre o nomotético e idiográfico, o geral e o particular, o conjunto do globo e o indivíduo local. Se a geografia é a ciência da organização e da diferenciação do espaço terrestre, é necessário que ela conheça, de uma só vez, de um lado, os sistemas e subsistemas e, de outro lado, os processos e sua diferenciação. (p. 400-401).

30Cronologicamente, nas publicações de Brunet, é nesse artigo de 1979 que aparece pela primeira vez a palavra corema:

Em outros termos, a organização do espaço, ao mesmo tempo produto e agente, parte e envoltório da estrutura, forte restrição para o sistema; uma organização que podemos representar por um modelo, ele mesmo decomponível em modelos elementares de organização do espaço – que sugiro nomear coremas [...]. (p. 403).

31Essas são as principais referências de Roger Brunet às estruturas e aos sistemas em suas obras desde o início de sua carreira até o ano de 1979. Na maior parte dos seus trabalhos Brunet não deixa claro quais obras ou autores utiliza como referência para elaborar suas propostas, mas não os esconde. Entendemos que trata-se de um estilo de escrita característico não só dele, mas também identificado em outros autores franceses e, por isso, talvez não seja algo importante para eles tal explicitação – esta parece ser uma cultura acadêmica na Geografia francesa. Contudo, na tradição acadêmica brasileira, é necessário deixar tudo muito claro e referenciado. Parte do trabalho realizado na França foi desvendar essas referências de Brunet, as quais apresentaremos mais à frente. O importante até aqui é saber que, como anunciado no objetivo central deste artigo, de fato, os conceitos de estrutura e de sistema são determinantes no trabalho de Brunet até aqui analisado, o que justifica a busca pela influência do estruturalismo e da abordagem sistêmica na construção da coremática. A seguir, veremos como essas duas orientações de interpretação aparecem na proposta estruturada a coremática.

A proposta da coremática

33Brunet (1980) apresenta um primeiro inventário de coremas relacionados a processos espaciais de controles territoriais, tropismos e dinâmica espacial. São eles: 1) controles territoriais = a) o modelo centro-periferia; b) os caminhos; c) os pavimentos/blocos; 2) tropismos = a) os modelos relevantes da gravidade; b) os modelos de ruptura; c) os modelos de agregação/segregação; d) os modelos de dissimetria; 3) dinâmica espacial. Para Brunet (1980) o número de coremas seria limitado a cerca de duas ou três dezenas. Posteriormente, em Brunet (1986), no célebre quadro de coremas, ele estabelece o número de 28.

34Os objetivos no artigo de Brunet (1980) são de

[...] esboçar a teoria e um método de pesquisa correspondentes, método experimental que se fundamenta no emprego de modelos espaciais, a composição de modelos elementares em modelos específicos e suas relações com os modelos teóricos e gerais: trata-se de um caminho para a solução da contradição entre métodos dedutivos e métodos indutivos, entre abordagens nomotéticas e abordagens idiográficas. (p. 253).

35Com relação ao conceito de modelo, Brunet (1980) referencia-se diretamente nos trabalhos de Alain Badiou (1969) Le concept de modèle, de Richard Chorley e Petter Haggett Models in geography (1967) e Peter Haggett, Andrew Cliff e Allan Frey Locational models (1977). Trata-se, no caso dos dois últimos trabalhos, da influência da abordagem modelística e sistêmica da Geografia britânica, que terá muita influência sobre a proposta de Brunet, assim como teve sobre outros autores da Geografia francesa.

36Para definir os coremas, caracterizados como estruturas elementares, Brunet recorre à Gestalt, para definir o sentido de “formas fortes”, referenciando-se nas discussões de Pierre Delattre Système, structure, fonction et évolution (1971) e de Paul Guillaume La psychologie de la forme (1937). Além disso, na definição dos Coremas o autor também se referencia na linguística e na semiologia. Seguno Brunet (1980), a síntese dos coremas constituiria uma linguística geográfica

Esses coremas aparecem como signos e permitem constituir a base de uma semiologia da organização do espaço. Eles têm uma face de significante (o arranjo discernível), escondendo e revelando uma face de significado finalmente forte e claro (uma estratégia de colonização, de dominação, exploração de uma renda de posição, etc.), ainda que a polissemia não seja excluída (o modelo aureolar tem vários significados), em razão de fenômenos de convergência. (p. 362).

37A gramática da coremática constitui na identificação dos coremas pertinentes e

[...] a representação da realidade por um modelo específico não é de forma alguma arbitrária e não depende somente do talento ou da ideologia do pesquisador. [...] [Trata-se] de um método experimental. É necessário testar sucessivamente este ou aquele modelo para decifrar a realidade, este palimpsesto. A arte ou o jogo da modelização consiste em pesquisar, por uma escolha consciente e fundamentada, por uma experimentação guiada por hipóteses, como podemos representar da maneira mais eficaz, quer dizer, a mais fiel e a mais potente ao mesmo tempo, uma organização espacial. Não podemos resumir ao acaso, esquematizar sem princípios, nos contentarmos em desenhar uma linha reta onde o real parece impreciso e sinuoso: teremos mutilado, e não representado. O método é ao mesmo tempo simples e exigente. Ele consiste em procurar, em função de hipóteses sobre o objeto, por ensaios e erros, quais coremas estão em combinação e como eles se combinam. (p. 262).

[...]

Em seguida, como todo método experimental, a construção de um modelo específico exige a solução dialética da contradição entre indução e dedução. Não podemos nos contentar em observar e tatear ao acaso. É necessário um vai-e-vem constante entre um estoque de hipóteses e a observação da realidade. [...] Se o método proposto tem um interesse, é sobretudo na ideia de composição: não de “tramas”, nem de elementos, mas de coremas, quer dizer, de arranjos fundamentais das coisas no espaço, representados por modelos elementares. (p. 263).

38Brunet (1980) afirma que a coremática se beneficia da modelização, da abordagem sistêmica e do estruturalismo, contudo, é necessário tomar cuidado com as analogias com a linguística e a semiologia, já que as organizações espaciais não surgiram com o objetivo de comunicar, portanto, de significar.

40Como referências teóricas, Brunet (1986) apresenta autores/obras que já tinha citado no artigo de 1980: Chorley e Haggett (1967) e Haggett, Cliff e Frey (1977). No artigo, o autor utiliza como exemplos de modelização gráfica dois de seus exercícios: da França e de Hokkaido. Essas duas propostas vão aparecer em vários outros trabalhos de Brunet, que também vai ressaltar a Medina de Tunes. Sobre os procedimentos metodológicos, Brunet (1986) escreve:

1) Tomamos uma superfície de trabalho, a mais neutra possível. A melhor, geralmente, é o círculo, que isotrópico, mesmo que ele valorize o centro e expulse os vizinhos. O hexágono, neste sentido, é mais adequado, pois ele se encaixa com os vizinhos. O quadrado é útil quando queremos destacar a situação de fachadas distintas e ângulos agudos.

[...]
2) Procuramos em seguida quais princípios de base podem estar em jogo. No arsenal de coremas, o que aparece comumente – mas diferentemente segundo os temas - : gradientes e dissimetrias em latitude (de ordem climática, notadamente), ou em relação aos ventos, às fronteiras, às influências; distinção entre centro e periferias; eixos; escalonamento em altitude; etc.

[...]

Reiteramos as operações até que tenhamos obtido uma representação suficiente da realidade. (p. 4).

41Seguindo sua tradição de enfatizar a importância da cartografia para a ciência geográfica, em 1987 Brunet publica sua segunda obra dedicada à cartografia: trata-se de La carte, mode d’emploi Brunet (1987). O livro é um manual de cartografia articulado com uma série de considerações teórico-metodológicas sobre como fazer, como usar e acerca da natureza e da importância da cartografia para a pesquisa e para o discurso geográfico. Um dos capítulos do livro é dedicado à coremática: La carte et les modèles (p. 188-222). A principal contribuição da obra para entender a coremática é a explicação, detalhamento e exemplificação que Brunet dá em relação às sete grandes categorias de coremas, que designam as linhas do quadro dos 28 coremas.

42Em 1990 é publicada a Geografia Universal, obra coletiva coordenada por Roger Brunet. O primeiro volume, intitulado Mondes nouveaux, é composto por dois livros: o primeiro é de Roger Brunet (1990): Le déchiffrement du monde; o segundo livro, Le système monde, é de Olivier Dollfus (1990), com a colaboração de François Durand-Dastès, Robert Ferras e Rémi Knafou.

43Em Le déchiffrement du monde Brunet (1990) apresenta sua proposta teórico-metodológica mais ampla para a Geografia (francesa), na qual está inserida, de forma indissociável, a coremática. A compreensão das bases teóricas e de método de Le déchiffrement du monde permite identificar as bases implícitas da coremática. Neste sentido, tentaremos aqui identificar as principais influências da teoria dos sistemas e do estruturalismo na citada obra de Brunet. Le déchiffrement du monde teve outras duas edições, essas como obras individuais, sendo uma em 2001 e outra em 2017. Essas edições foram revisadas e aprimoradas por Brunet e, por isso, analisaremos a última edição, de 2017.

44O primeiro aspecto que avaliaremos em Brunet (2017) é a concepção de espaço. Na obra, há três aspectos importantes a serem destacados sobre a concepção de espaço de Brunet. O primeiro é a definição do espaço como um produto social e condição para a reprodução social, o que não possui base no estruturalismo nem na teoria dos sistemas, mas tem sua raiz, provavelmente, no pensamento de Henri Lefebvre, na obra La prodution de l’espace, tomada igualmente como referencia por Milton Santos no livro A natureza do espaço, como analisamos em Girardi (2014). O segundo aspecto é o espaço geográfico tomado como um sistema e o terceiro é a ênfase na abordagem nomotética com adoção de princípios de leis no espaço.

45Para Brunet (2017), toda sociedade produz, dentre outras coisas, o espaço, que, segundo ele, é

[...] o espaço material, visível, tangível nas suas implantações, seus equipamentos, suas estradas, suas paisagens; o espaço de organização, não diretamente visível, salvo certos signos às vezes, em suas distribuições, suas relações e suas estruturas. Obra humana, o espaço geográfico é, pois, produto, mas não apenas um produto. Ele é feito todos os dias, por grandes e pequenas ações e, às vezes, por grandes projetos planejados. Ele é fruto da prática. Resultado em grande parte involuntário, mas não um desses subprodutos que esquecemos e jogamos fora: ele é quotidianamente reincorporado na prática social, sobre a qual ele pesa e às vezes pressiona. O espaço é assim produção social e condição da reprodução social. (p. 21).

46O espaço geográfico possui, para Brunet (2017, p. 23), quatro domínios maiores das necessidades e da ação humana sobre a terra: habitar/abrigar-se/instalar-se; apropriar-se/possuir/alugar; trocar/comunicar; explorar/apropriar/produzir; e um quinto domínio para organizar, coordenar e reproduzir. Todos esses fundamentos da vida social e produção do espaço geográfico estão relacionados.

47Essa perspectiva de espaço geográfico, oriunda do espaço social de Lefebvre, é geografizada e operacionalizada por Brunet.

Todo espaço geográfico particular é, portanto, uma configuração, percebida em uma dada escala por um conjunto de lugares identificados, distantes uns dos outros, caracterizados por atributos e associados por um sistema de relações sobre uma extensão determinada. (p.15)

[...]

O espaço geográfico em geral não é nem o espaço abstrato, homogêneo, isotrópico, continuo e infinito as teorias econômicas, nem o espaço físico (dito natural). Ele é habitado, percorrido, humanizado. Ele é feito o conjunto das populações, de suas obas, de suas relações localizadas, se seu meio de vida, quer dizer, consideradas em sua extensão e seus lugares. Ele não pode ser confundido com os objetos que o povoam: se ele os contém, ele os localiza, os organiza e os supera. Ele nasce com o trabalho das sociedades e só terminará com elas. Nada justifica que ele seja confinado a um modo de produção, menos ainda a um de seus “estágios”. (p. 15-16).

[...]

O que o espaço geográfico propõe de original é tanto a realidade dos lugares diferenciados, tomado no conjunto de suas relações e de suas interações, e o jogo de leis próprias à extensão, ao espaçamento, à distância, essas relativas à natureza e à organização das sociedades que aí desenvolvem suas atividades e que o produzem. Essa representação tem suas consequências, mesmo no nível da teoria: ela implica em conceber o espaço geográfico como produto atravessado por campos de forças, constitutivamente anisotrópico, e mesmo fundamentalmente dissimétrico. (p. 17).

48Brunet (2017) concebe o espaço produzido pela sociedade como um sistema e propõe uma interpretação de como as ações humanas se relacionam com a natureza na produção do espaço. Aqui, a visão sistêmica é determinante.

O jogo de atores da vida social se exprime sobre o terreno por sistemas de produção de espaço geográfico. Uma hipótese é que a energia desses sistemas corresponde à ação das grandes forças produtivas, tomadas no sentido amplo: forças de trabalho, capital, informação, recursos. Sua localização está no centro da reflexão geográfica e da ação humana. Sua interação define os sistemas locais, lhes dá vida, contradições e desordem, permanências e degradações. A estrutura geral desses sistemas parece mais circular do que hierárquica. (p. 82).

[...]

A hipótese fundadora é que existem espaços distintos, dotados de uma estrutura espacial particular, e que essa diferença é produzida e mantida por um sistema de ações regulado, com ciclos de retroação suficientes para manter a estrutura ou a desenvolver. O geógrafo não pode querer conhecer um espaço analisando apenas a organização espacial, mas ele precisa também analisar o sistema de atores e de ações, o próprio modo de produção. A abordagem aqui privilegiada, e que foi experimentada frutiferamente por vários geógrafos, aplica ao espaço geográfico o encontro de vários conjuntos teóricos distintos: sistêmico, estrutura, modo de produção, teorias da ação e da comunicação. Em algumas de suas implicações extremas, ou de sua rigidez, eles podem às vezes se opor; por outro lado, podem ser amplamente compatíveis, associados, e parecem de tal natureza a propiciar à compreensão dos espaços geográficos os esclarecimentos que eles merecem. (p. 84).

49Para Brunet (2017) a energia do sistema é o trabalho dos homens e das mulheres sob todas as formas. Para explicar o sistema de energia de um espaço geográfico Brunet (2017) elabora um esquema (p. 87) que relaciona fontes de energia na produção do espaço via trocas com o ambiente, quais sejam: população, recursos, informações e capitais. O comando do sistema é feito por um “organismo cibernético que governa, regula e guia assim a sua reprodução: um ‘comando’ no sentido amplo” (p. 124).

50A referência sistêmica continua com a proposição do géon, que é “um espaço estruturado do qual podemos definir um sistema” (p. 135). Brunet propõe um esquema que representa o “sistema geral de produção dos espaços geográficos” (p. 137) e as hipóteses são de que: “[...] à todo ‘géon’, espaço geográfico particular, corresponde um sistema de energia que é implantado no local e o reproduz; à todo espaço geográfico corresponde um arranjo espacial, que revela a estrutura e a organização do espaço considerado.” (p. 136).

51O terceiro destaque importante quanto a concepção sistêmica de espaço de Brunet é a adoção de leis no espaço:

Tão simples sejam os atores, tão complexos sejam as ações, tão desfocadas sejam as imagens que se formam e que guiam as decisões, a produção do espaço não ocorre na falta de forma e na desordem. O espaço geográfico é organizado, ele tem suas leis, suas estruturas e suas regras de transformação. As leis fundamentais do espaço geográfico são a distância e o espaçamento: distância em relação aos centros e lugares de ação; espaçamento de pessoas e de atividades. Elas fazem perceber os princípios de uma relatividade geral do espaço geográfico, até nas suas flutuações e transformações. Essas leis são o produto das práticas sociais do espaço, e em alguma medida, elas as guiam. (p. 193).

52A adoção de princípios estruturalistas na concepção da produção do espaço pode ser visto no trecho abaixo:

Por meio do seu trabalho diário, por sua imaginação e por suas decisões, os homens fazem a geografia, mas eles não sabem que a fazem. Em parte livres e em parte “geridos” por estruturas, instituições e ideias, que eles ou seus predecessores produziram, eles criam, alteram e recriam essas estruturas, essas instituições, essas ideias com seus espaços e seus lugares. (p. 396).

53Até o capítulo 5 de Le déchiffrement du monde Brunet (2017) utiliza a abordagem sistêmica como principal referência para a conceituação do espaço geográfico. Já nos capítulos 6, 7 e 8 o autor voltará sua argumentação, também para conceituar o espaço geográfico, para a abordagem estruturalista: trata-se dos capítulos onde a coremática é tratada. O capítulo 6 é o principal dos três (6, 7 e 8), pois é nele que Brunet sintetiza a proposta da coremática. O seguinte trecho demonstra a forte base estruturalista a coremática e também a influência a linguística estrutural:

O estudo do espaço mostra figuras recorrentes e, atrás do seu desenho, vemos que se apresentam estruturas simples. Uma hipótese fecunda é que os atos fundamentais da produção do espaço ocorrem segundo essas estruturas elementares, as produzem e produzem sua organização. A própria organização, a estrutura da estrutura, é igualmente reveladora dos atos de produção do espaço e, finalmente, da própria da sociedade [...]. Que fique claro que, se as analogias que possamos fazer com certas abordagens da linguística tenham me ajudado a prosseguir com a hipótese, essas são apenas analogias, e a linguística não está em questão: as configurações espaciais não foram criadas para comunicar, tampouco as paisagens, com algumas exceções. Em revanche, o que é comum nesta reflexão e às abordagens comparáveis de outras ciências, é a ideia de estrutura, e não se trata mais aqui de analogias, mas de um fundo comum, sob a condição de não separar a ideia de sistema e a ideia de produção. (p. 227-228).

[...]

A linguagem tem suas regras e seus códigos, que permitem fazer um texto que não se parece com nenhum outro, com palavras arranjadas em proposições e feitos de sinos convencionados. O espaço tem também suas regras e códigos, e cada espaço é feito de uma organização particular de figuras elementares. O espaço não é feito para comunicar, não tem uma mensagem para entregar, não tem sequer um sentido geral, mas ele é rico em significações. Seus signos têm significados, que levam à ação humana e são exercidos a partir e sobre heranças. Eles revelam estruturas elementares. Eles variam infinitamente menos na escala do Mundo do que os signos das linguagens, provavelmente porque eles são em grande parte involuntários. (p. 228).

54Brunet (2017) afirma que, para representar o espaço por meio da coremática, utilizando-se do conceito de corema e representando-os através de modelos gráficos, é necessário uma semiótica do espaço, considerando-se a relação dialética entre a abordagem dedutiva e indutiva. Segundo ele

O corema é o elo que faltava na teoria geográfica entre o espaço geral e os espaços particulares, e que desvenda a contradição clássica entre o nomotético e o ideográfico, a ciência do espaço e o conhecimento dos lugares particulares. (p. 229).

[...]

Assim, considera-se a indispensável dialética interativa da abordagem dedutiva, que apresenta, em relação a um dado espaço, hipóteses sobre os coremas esperados em função da própria natureza deste espaço, e comparar o modelo imaginado com a representação que se pode ter desse espaço; e da abordagem indutiva, que consiste em representar primeiramente a organização do espaço em questão, em identificar seus coremas e em voltar ao seu próprio significado. Assim se fundamenta a indispensável semiótica do espaço. (p. 229-230).

55Sobre a natureza dos coremas, Brunet ressalta que

Esses coremas expressam ações, projetos e resultados: eles compreendem a assinatura das sociedades. Encontramos neles as leis do espaçamento, da distância e da atração, e todas as ações sociais de apropriação, de exploração, de comunicação, de habitação-habituação e de gestão. (p. 230).

[...]

Os coremas, enquanto estruturas, são abstrações. Eles não têm uma forma: eu posso representar um cruzamento por um símbolo qualquer, a letra C, ou X, um ponto rosa, um coração, segundo meus gostos e minhas inspirações, ou por um círculo, o que me aproximaria das rotatórias. Nós não desenhamos uma estrutura, mas sim um modelo que se esforça para representá-la. Basta escolher um símbolo e lhe dar um código. Contudo, a comunicação geográfica, e mais particularmente a cartográfica, tem seus costumes, algumas regras, suas lógicas e suas restrições, assim, ganha-se, na expressão das estruturas, em se aproximar das figuras que são habitualmente ligadas à cartografia, pois nós compreendemos melhor certos arranjos. (p. 233)

56A influência do estruturalismo também fica muito evidente na formulação do conceito de corotipo. Como vimos, os coremas – estruturas elementares – são recorrentes e em número limitado, segundo a proposta de Brunet. Contudo, a composição dessas estruturas elementares na configuração de um espaço é infinita. Um corotipo é uma estrutura composta específica que, mesmo com a infinidade de possibilidades composição os coremas, se repetem no processo de produção do espaço. O capítulo 7 de Le déchiffrement du monde é dedicado à análise de vários corotipos. Vejamos a definição dada por Brunet (2017):

Estruturas compostas da mesma natureza existem por todo o mundo: em condições vizinhas, sociedades com estruturas e motivações não muito diferentes encontram as mesmas “melhores” respostas, desenvolvem as mesmas organizações, que copiam ou reinventam. Assim, existem modelos de ocupação piemontês, modelos de organizar de regiões de estuários, modelos da cidade medieval europeia ou modelos da cidade islâmica, modelos de surgimento e transformação de redes a partir de um litoral ou de um porto, que são simples artefatos, ou modalidades de exploração de certas configurações naturais em dadas condições socioeconômicas. Essas configurações recorrentes têm seu lugar em um esquema sistêmico as formas geográficas.

Eu propus a denominação “corotipo” a essas formas de tipo espacial. Um corotipo traduz a existência de uma solução comum a problemas de organização particulares, mesmo de grande complexidade e grande extensão. (p. 258).

57Os trechos e observações até aqui apresentados neste artigo demonstram as claras ligações de Roger Brunet com a teoria dos sistemas e com o estruturalismo, especialmente na proposição da coremática e na sua proposta mais ampla, presente em Le déchiffrement du monde: ambos, como já salientado, são indissociáveis, e é nessa indissociabiliade entre teoria da Geografia e representação carto(gráfica) do espaço que reside a originalidade e a maior contribuição de Roger Brunet para a Geografia; é nessa forma de entender a representação (carto)gráfica como inerente à pesquisa e ao discurso geográfico que buscamos elementos de Brunet para contribuir para a nossa proposta da Cartografia Geográfica Crítica. É por isso que precisamos entender melhor as bases teóricas e de método de Brunet. A seguir apresentamos uma lista dessas referencias teóricas, a serem estudadas doravante em nossas pesquisas.

As referências estruturalistas e sistêmicas (e adjacentes) de Roger Brunet na construção da coremática

58Em 2011 Brunet publica o livro Sustainable geography (Brunet, 2011), exclusivamente em inglês. O livro é composto de versões revisadas de artigos e extratos de livros publicados pelo autor, além de ter partes inéditas. Uma das características do livro é que nele Brunet deixa mais claras suas referências teóricas e referências de método. Ele escreve:

As influências no meu trabalho são obvias: uma cultura marxista de base; treinamento e formação em geomorfologia; o pensamento sobre sistemas, estruturas e cibernética dos anos 1960; algumas das críticas “radicais” dos anos 1970; os esforços da chamada geografia teórica e quantitativa; minha associação com outras ciências sociais; trabalho “aplicado” com arquitetos, planejadores e gestores ministeriais e; inúmeros e constantes encontros por meio da revista L’Espace Géographique, a Géographie Universelle, o Trupo Dupont, GIP RECLUS, etc. (p. 209)

59Brunet esquece, contudo, de citar a influência que talvez seja a mais importante do seu trabalho: a cartografia. Trata-se de uma cartografia pensada a partir da Geografia e para a Geografia que, para além dos modelos gráficos, deu origem a dois de seus principais trabalhos Le croquis de géographie régionale et économique (Brunet, 1962; 1967a) e La carte, mode d’imploi (Brunet, 1987).

60Apresentamos a seguir a lista de referências bibliográficas/teóricas que identificamos na obra de Roger Brunet no processo de construção da coremática. Trata-se especificamente das referências do estruturalismo e da abordagem sistêmica, que são as bases de método da coremática. Algumas das obras apresentadas são adjacentes, ou seja, são obras que, mesmo que não se inscrevam no estruturalismo ou na abordagem dos sistemas, foram utilizadas por Brunet para fundamentações de conceitos relacionados aos modelos, estruturas e sistemas.

61Ressaltamos que, pela indissociabilidade entre a coremática e a proposta teórico-metodológica mais ampla para a geografia francesa apresentada por Brunet em Le déchiffrement du monde, essa bibliografia também é parte de tal proposta mais ampla do autor. Nem todas as obras abaixo foram referenciadas diretamente pelo autor em suas obras, mas influenciaram Brunet, como podemos identificar em nossas leituras e em entrevistas que realizamos com diversos geógrafos franceses, inclusive com o próprio Roger Brunet. Contudo, ressaltamos que é de nossa responsabilidade a investigação e a conclusão de que, de fato, essas são influências que pautaram a construção da coremática.

62Abler, R.; Adams, J. S.; Gould, P. Spatial organization.

63Badiou, A. Le concept de modèle.

64Berry, B. J. L. Geography of market centers and retail distribution.

65Bertalanffy, L. von. Théorie générale des systèmes.

66Bertrand, G.; Bertrand, C. Une géographie traversière: l’environnement à travers territoires et temporalités.

67Bunge, W. Theoretical geography.

68Chorley, R. J.; Haggett, P. Models in geography.

69Delattre, P. Système, structure, fonction et évolution.

70Gould, P. The geographyer at work.

71Gould, P.; Olsson, G. A search for common ground.

72Gould, P. Becoming a geographer.

73Guillaume, P. La psychologie de la forme.

74Hägerstrand, T. Innovation diffusion as a spatial process.

75Haggett, P. Geography: a modern synthesis.

76Haggett, P.; Cliff, A. D.; Frey, A. E. Locational analysis in human geography: locational models.

77Lévi-Strauss, C. Anthropologie structurale.

78Olsson, G. Birds in Egg, Eggs in Bird.

79Piaget, J. L'épistémologie génétique.

80Piaget, J. Épistémologie des sciences de l'homme.

81Piaget, J. Le structuralisme.

82Saussure, F. de. Cours de linguistique générale.

83Thom, R. Paraboles et catastropes.

84Tricart, J. La terre, planète vivante.

85Tricart, J. L'épiderme de la Terre.

86Wiener, N. The human use of human beings: cybernetics and society.

Conclusões

87Parte do nosso trabalho futuro é analisar como cada uma das obras acima contribuiu para a formulação da coremática e de que forma podemos utilizar esses fundamentos para a Cartografia Geográfica Crítica. Além desses trabalhos, durante a pesquisa na França recolhemos centenas de artigos, livros e capítulos de livros sobre a coremática e que ajudarão nesta tarefa: trata-se, de fato, de um trabalho de decodificação.

88Até o presente momento chegamos à conclusão de que a coremática tratou-se de um processo de modernização da Geografia Regional francesa e do papel/natureza do croqui, com a adoção de elementos do estruturalismo e da teoria dos sistemas. Mas que fique claro: a coremática não é a Geografia Regional e os modelos gráficos não são os croquis.

89É necessário dizer que em praticamente todos os textos citados neste artigo Roger Brunet tratou da questão da Geografia Regional. Por não ser este o objetivo do presente texto, não nos atemos à forma como Brunet propõe uma modernização da Geografia Regional francesa, mas é exatamente isso que ele faz em seus textos. Se tomarmos o conjunto da obra de Brunet que relaciona-se com a coremática e com Le déchiffrement du monde, podemos dizer que a proposta de Brunet constitui o mais recente bastião da Geografia Regional francesa; trata-se da corrente mais atual e, por enquanto, a última, que tem como foco a região. Álvarez (1998) apresenta uma interpretação semelhante.

90A cartografia e a representação (carto)gráfica do espaço é um vasto capítulo na obra de Brunet, que requer a elaboração de alguns artigos específicos para serem abordadas. Já deixamos claro neste artigo a relação direta do trabalho de Brunet e a representação (carto)gráfica do espaço, contudo, o tema foi tratado apenas de forma introdutória; há muito a ser aprofundado. Trata-se, também, de uma questão que está em nosso programa de pesquisas futuras.

91Por fim, há uma questão de método importante em Brunet que torna-se um desafio se optarmos por uma linha de interpretação que admita a vinculação de um autor a um só método. Fica claro que Brunet não vê o método como um limitador, de forma que em seu trabalho convivem, além do estruturalismo e da teoria geral dos sistemas, referências interpretativas vinculadas ao materialismo dialético e ao materialismo histórico, como pode ser visto na citação abaixo, que é parte da sua definição do espaço geográfico:

Toda obra humana se torna, desde sua criação, elemento do meio de seus criadores, e de seus sucessores, e se impõe às suas novas ações. O estatuto geral do espaço é o mesmo que aquele dos outros produtos: obra social, contribuindo para a reprodução social e a condicionando mais ou menos, na conservação ou na mudança. O espaço geográfico procede às vezes por acumulação, substituição e transformação: ele é cheio de velharias, que ele deixa de lado, contorna, combate ou reincorpora e às vezes amplifica; ele recebe todos os dias coisas novas; ele apaga todos os dias alguns resquícios. No ato de reprodução social, não é nem a história, nem a cultura, o direito ou os meios de produção que agem. Muito menos o espaço. São as pessoas. Nenhum desses produtos é agente; todos são instrumentos e meios. Todos, até certo ponto, se impõem aos grupos que agem.

Quando o espaço parece ter propriedades particulares, essas propriedades só existem através das relações sociais. Há aquelas que os homens emprestam ao espaço em um dado momento, como o valor para a mercadoria. É por isso que criticamos às vezes um certo fetichismo do espaço, como Marx estigmatizou o fetichismo da mercadoria: o que faz tomar o fetiche pelo ator, e o espaço reificado por um fetiche. Falar do espaço pode fazer esquecer o social [...]. (BRUNET, 2017, p. 486).

92O fato é que Brunet transita por vários métodos de interpretação e a questão que fica, neste momento, é se essa característica trata-se de uma qualidade, de um problema ou deve ser considerada apenas uma possibilidade normal de uma ciência livre do método como limitador? No momento, não temos a resposta para tal questão e respondê-la é um desafio para a continuação da nossa pesquisa.