1No findar da primeira década dos anos 2000, os dados do Censo Demográfico de 2010 já indicavam uma tendência de mudança em relação ao panorama religioso no Brasil, se comparado com o início daquela mesma década: o declínio de praticantes da religião católica e o aumento expressivo de fiéis evangélicos (Somain, 2012). Essa tendência perdurou na última década: se em 2010, 64,63% da população brasileira se identificava como católica, enquanto 22,16% se denominavam evangélicas, dados de 2020 demonstraram que 50% da população se autodeclarou católica, enquanto 31% da população pertencia à alguma das vertentes das religiões evangélicas (Datafolha, 2020).

2Esse aumento expressivo de evangélicos está intimamente ligado ao crescimento massivo dos templos religiosos, com reflexos na ocupação e organização do território por meio do domínio territorial (Mariano, 2004), assim como ligado a presença na política do país (Maia, 2006; Oliveira; Freire Junior, 2022). As religiões evangélicas englobam um conjunto de religiões (neo) pentecostais – como a Assembleia de Deus; O Brasil para Cristo, Congregação Cristã no Brasil, Deus é Amor, Universal do Reino de Deus – e não pentecostais ou históricas – como a Batista, Episcopal, Luterana, Metodista e Presbiteriana (Bohn, 2004, p. 291).

3A expansão das religiões evangélicas no Brasil é um fenômeno relativamente recente, iniciado nos anos 60 e impulsionado nos anos 70. Entre 1970 e 1990, o número de templos evangélicos aumentou em mais de 16 vezes, alcançando um total de 17.033 no final dos anos 90. Embora este avanço tenha sido expressivo, o maior ciclo de crescimento ocorreu nas duas primeiras décadas dos anos 2000. Em 2019, o país abrigava 109.560 templos evangélicos de diversas denominações como pentecostais, neopentecostais e não-pentecostais. Neste mesmo ano, foram abertos 6.356 templos em todo o país, uma média de 17 novos estabelecimentos por dia (Araújo, 2023). Entre os estados brasileiros com maior número de igrejas destacam-se: Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Rondônia e São Paulo, todos eles com mais de 60 templos evangélicos para cada 100 mil habitantes.

4Apesar do aumento no número de fiéis evangélicos, a presença da religião católica no país ainda é expressiva, tendo em vista seu peso histórico que remonta desde o período da colonização europeia. No espaço rural brasileiro, o catolicismo é a religião que agrega maior proporção da população (Almeida; Barbosa, 2015). A trajetória da igreja católica no meio rural é marcada por um catolicismo popular e social, visando o bem-estar da família, e incentivando a vida em comunidade, e as lutas pelos diretos a terra, iniciativas comandadas principalmente pelo Movimento de Educação de Base (MEB).

5O MEB foi um movimento educativo de alcance nacional iniciado em 1961 e ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (Peralta, 2022). O Movimento consistia em uma estratégia pedagógica de alfabetização da população em estado de vulnerabilidade econômica. Criado pela igreja católica na região Nordeste do Brasil fundamentado na filosofia Freiriana, se estendendo para a Amazônia a partir das Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs) (Santo, 2013; Simonetti, 2015).

6A atuação da igreja católica, para além dos princípios cristãos, contemplou aspectos de assistências nas áreas de saúde e educação, bem como o intercâmbio entre diferentes agentes sociais, não apenas pelas ações disseminadas pela Rádio Rural – fundamentais para a difusão dos ideais do MEB nas comunidades que estavam distantes das cidades – mas também nos encontros de setores da igreja organizados pelas prelazias, permitindo a troca de experiências, estabelecendo uma rede de socialização entre as comunidades de diferentes territórios (Simonetti, 2015; Pereira, 2022).

7Embora a igreja católica tenha protagonizado o cenário religioso no país, sobretudo no espaço rural brasileiro, contribuindo para a organização comunitária nas comunidades ribeirinhas da Amazônia Central, observa-se uma tendência de mudança no peso do catolicismo no dia a dia das comunidades, principalmente, pela expansão territorial das igrejas evangélicas no interior da Amazônia.

8Dessas constatações sobre o papel da religião na formação e cotidiano das comunidades, bem como sobre o seu papel na concessão da ideia de comum-unidade (Simonetti, 2015), neste artigo analisamos as territorialidades das igrejas evangélicas e sua centralidade nas comunidades tradicionais da Amazônia Central, tendo como estudo de caso o Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro (MBRN), localizado na região norte do país.

9Partindo do pressuposto de que as igrejas são um dos elementos estruturadores do cotidiano das comunidades tradicionais da Amazônia, a hipótese norteadora desta discussão parte do entendimento de que há um processo de consolidação da territorialização das igrejas evangélicas na região do MBRN, processo assentado em estratégias (territorialidades) pautadas na abertura de templos religiosos, mobilidades das lideranças religiosas evangélicas (pastores e pastoras) e sua fixação temporária nas comunidades, fazendo parte do seu dia a dia e influenciando na formação de um amálgama religioso formado por práticas das religiões católica e evangélicas.

Territórios-rede e multiterritorialidades na Amazônia

10O território é um conceito central na matriz epistemológica da ciência geográfica, gerando intensos debates ao longo de décadas sobre sua origem, escala, representação e atuação dos atores, assim como o seu papel como um dos objetos de estudo da Geografia, em muitos casos sendo tratado como sinônimo de espaço (Videira, 2005). Certamente, Raffestin é um dos proeminentes na discussão sobre o território, sua construção teórica continua a ser utilizada como ponto de partida para o entendimento do conceito, mesmo que recentemente tenha recebido atualizações. Segundo o autor,

É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o espaço (Raffestin, 1993, P. 143)

11O conceito de território para Raffestin está alicerçado nas relações de poder exercidas sobre o espaço, no qual o primeiro é um produto gerado a partir do espaço por meio das relações sociais. Como colocado por Haesbaert (2004), a concepção de território de Raffestin e de diversos outros pensadores que seguem a mesma linha de interpretação, tal como o Milton Santos, possui uma conotação jurídico-política, segundo a qual o território é entendido como um espaço delimitado (zonal) e controlado por um poder, especialmente o poder exercido pelo Estado em suas mais diferentes esferas e formas. Além disso, ao colocar o espaço a priori do território, Raffestin imprime a ideia de espaço como recurso, como a matéria-prima a ser transformada, como um elemento a ser superado.

12Diversos Geógrafos (as), Sociólogos (as), Antropólogos (as), entre outros pensadores, já realizaram a empreitada de desvendar as camadas que o conceito de território, assim como o de territorialidade, apresenta de acordo com a epistemologia disciplinar utilizada como ponto de partida de análise. Para este artigo, adotamos a construção teórica concebida por Haesbaert, sobretudo a construção elaborada pelo autor sobre os conceitos de território (enquanto territórios-rede) e multiterritorialidade. O autor é referência nacional e sul-americana no que se refere a ambos os conceitos (Fuini, 2017), principalmente por atribuir a eles um caráter mais holístico, para além da sua dimensão jurídico-política.

13Para Haesbaert (2004), o território é multidimensional, sendo constituído tanto por relações de poder que se expressam em diferentes escalas espaço-temporais, quanto por processos de (re)apropriação imateriais (culturais) que produzem identidades, subjetividades e símbolos em um dado recorte territorial, construindo laços de pertencimento (lugar). Na visão integradora do autor, o território engloba as dimensões natural, político-jurídica (das relações de poder, sobretudo dos Estados), cultural/simbólica e econômica (Haesbaert, 2002). Haesbaert defende que não há território sem resistência, na medida em que o exercício do poder é constituinte e indissociável nas relações sociais, assim como na sua espacialidade que conformam territórios (Haesbaert, 2013).

14As territorialidades – ou multiterritorialidades como Haesbaert propõe – envolvem a construção de identidades e relações sociais que transcendem os limites territoriais tradicionais e que são construídas a partir de redes sociais, culturais e econômicas que se estendem além desses limites, capazes de lidar com as múltiplas escalas em que as práticas territoriais ocorrem, considerando tanto as dimensões locais quanto as globais.

15Na esteira da multiterritorialidade contemporânea, a lógica territorial zonal (característico da territorialidade jurídico-política do Estado), ganha novos atributos a partir das redes, articulando territórios-zonas em redes, surgindo o que Haesbaert (2004; 2014) denomina de territórios-rede que tem em sua constituição “nós”, pontos e linhas (Fuini, 2017).

16Para Haesbaert, o atributo mais importante das redes

é seu efeito concomitantemente territorializador e desterritorializador, o que faz com que os fluxos que por elas circulam tenham um efeito que pode ser ora de sustentação, mais ‘interno’ ou construtor de territórios, ora de desestruturação, mais ‘externo’ ou desarticulador de territórios (Haesbaert, 2004, p. 294)

17Nesse sentido, territórios-rede se conformam por meio de territorializações de atores (empresas nacionais e multinacionais, igrejas, grupos sociais, entre outros) que ocorre de forma espacialmente descontínua no espaço, criando nós conectados entre si por meio de fluxos materiais e virtuais. As estratégias (territorialidades) usadas por atores na construção de territórios-redes são, ao mesmo tempo, propriedade sine qua non desses territórios e condição para efetivação. Como colocado por Videira (2005, p.427), “essas redes, circuitos e fluxos cimentam as instituições e relações”.

18Os territórios dos povos tradicionais latino-americanos tais como os povos que historicamente vivem na Amazônia, são definidos e construídos ao longo de processos históricos-geográficos específicos de organização socioespacial e resistência (Haesbaert, 2020). São territórios que têm como atributo a multiplicidade de sujeitos e a pluralidade de práticas e vivências que os marcam (Haesbaert, 2020). Como colocado por Brum (2021), não há “ou” na vida dos povos-floresta, mas sim “e”. Há uma somatória de lugares, práticas e criatividades que compõem os sujeitos, suas multiterritorialidades e territórios.

19Na conformação de multiterritorialidades e territórios-redes na Amazônia, a mobilidade é uma das estratégias de vida fundamental no viver das comunidades tradicionais (D’Antona, 2023), sendo uma estratégia de enfrentamento das vulnerabilidades encontradas e um dos aspectos centrais da vida contemporânea (Alves; D’Antona; Marandola Jr., 2020; Côrtes et al., 2022). De forma dialética, a permanência das populações tradicionais nas comunidades está relacionada com a mobilidade dos membros das famílias. Os deslocamentos para as cidades ocorrem para a aquisição de itens básicos do cotidiano (denominado como rancho na região) e para o uso de serviços públicos (saúde, benefícios sociais, educação etc.) e privados (bancos e lojas). Essa mobilidade, que é desigual a depender da localização das famílias e da renda doméstica, é um dos fatores que possibilita que as famílias permaneçam nas comunidades, mesmo com algumas adversidades, tal como a falta de políticas públicas direcionadas às populações tradicionais.

Materiais e métodos

Área de Estudo

20O Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro (MBRN) é um conjunto de 15 Unidades de Conservação que somam mais de 8 milhões de hectares (Alves; Corrêa, 2023), localizado entre os estados do Amazonas e Roraima (Figura 1). Conta com seis categorias de UCs que possuem regras específicas quanto à ocupação territorial e o uso dos recursos naturais, sendo quatro Áreas de Proteção Ambiental (APA), dois Parques Estaduais (PAREST), dois Parques Nacionais (PARNA), quatro Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), duas Reservas Extrativistas (RESEX) e um Parque Municipal. O MBRN é banhado por dois rios importantes para a região, os rios Negro e Solimões, sendo seu nome em homenagem ao primeiro.

21O MBRN está localizado em uma região economicamente estratégica na Amazônia, sobretudo no estado do Amazonas. Incluído a Zona Franca de Manaus, está inserido em centros urbanos importantes na hierarquia urbana, como Manaus, Manacapuru, Iranduba, Novo Airão (ao sul-leste do MBRN), Presidente Figueiredo (ao norte) e Tefé (ao oeste). Além disso, é uma área que possui uma cobertura florestal relativamente bem preservada, sendo um território protagonista para a contenção do desmatamento que paulatinamente avança pelo sul e leste do estado do Amazonas em direção ao core do estado.

22Segundo os dados do Censo Demográfico de 2010, o MBRN conta com uma população de cerca de 100 mil pessoas, distribuídas desde bairros e distritos urbanos até comunidades tradicionais nas margens dos principais rios e igarapés, o que demonstra a multiplicidade de formas de ocupação territorial na região (Alves; Corrêa, 2023). Para dar conta de toda essa complexidade referente à dinâmica urbana, econômica, formas de ocupação e os seus desdobramentos para o uso e cobertura da terra, fenômenos que ultrapassam os limites de uma única UC, foi aprovada a criação do MBRN em 2010, por meio de um processo iniciado em 2006 a partir da participação de um edital de financiamento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

23A criação do MBRN tem por objetivo a gestão integrada do território, por meio de uma rede composta por organizações governamentais e não-governamentais, representantes da sociedade civil e moradores das comunidades das UC’s que compõem o MBRN. A própria concepção de mosaico explicita a articulação em rede entre os atores responsáveis pela gestão do território e àqueles que residem e vivem nos territórios (Mwangi; Wardell, 2012).

Fonte dos dados

24Os dados utilizados são derivados de trabalhos de campo realizados nas comunidades tradicionais das UCs que compõem o MBRN. No total, foram realizados cinco trabalhos de campo pela equipe que compõem o projeto de pesquisa intitulado “Populações tradicionais em áreas protegidas: dinâmicas socioambientais e gestão de Unidades de Conservação no Mosaico Baixo Rio Negro, no Amazonas” (FAPESP 20/08242-7) ao longo dos meses de fevereiro a outubro de 2022. Do total de 15 UCs, foram visitadas 10 UCs e coletados dados de 119 comunidades, o que representa uma amostra de quase 50% do total de comunidades. A aplicação de questionários foi realizada com a liderança comunitária, geralmente o presidente ou vice-presidente.

25Utilizando uma amostragem de cerca de 30% em 22 das 119 comunidades, foram aplicados dois questionários em cada um dos 327 domicílios visitados, um questionário para cada um dos dois chefes responsáveis. Os questionários domiciliares foram aplicados apenas nas comunidades banhadas pelo rio Negro, setor leste do MBRN. Em estudo anterior, apresentamos de forma mais aprofundada a metodologia adotada, destacando o uso de geotecnologias no trabalho de campo (D’Antona; Alves, 2023).

26Tendo como base os questionários aplicados com as lideranças comunitárias, foram utilizadas para este artigo as variáveis “Lideranças Comunitárias”, “Número de templos religiosos”; “Vertente religiosa” e “Famílias que chegaram nos últimos 05 anos”. Já as variáveis “Religião” e “Gênero” foram utilizadas com base nos questionários domiciliares.

27Para a análise das igrejas evangélicas, foi utilizada uma classificação entre templos e lideranças católicas e evangélicas, esta última composta por uma miríade de tradições religiosas evangélicas (Evangélicos da Assembleia de Deus, Adventistas, Batistas, Presbiterianos, entre outros). Vale ressaltar que nos trabalhos de campo realizados nas comunidades, bem como na bibliografia sobre a região, não foram encontrados templos de outras matrizes religiosas. Embora haja essa ausência da instituição em si, não se pode afirmar que práticas religiosas diversas não sejam cultuadas nas comunidades.

A centralidade das igrejas evangélicas nas comunidades tradicionais

28As igrejas são um dos elementos que estruturam a vida cotidiana das comunidades, são espaços que ultrapassam a dimensão religiosa e que influenciam a organização socioespacial das mesmas. Na Amazônia, a religião católica possuiu um papel central na conformação das comunidades tal como conhecida atualmente. A ideia de comunidade surgiu a partir das Movimentos Eclesiais Base (MEB) na efervescência sociopolítica dos anos 1960 com base nos pressupostos da Teologia da Libertação, movimento progressista da Igreja Católica (Simonetti, 2015).

29As comunidades situadas no MBRN, assim como muitas comunidades da região amazônica, tiveram sua fundação influenciada pela Igreja Católica, especificamente pelo MEB (Simonetti et al., 2016). Inicialmente as ações do MEB se voltavam exclusivamente para formação e alfabetização das comunidades, posteriormente o movimento passou a focar suas ações na formação de lideranças, e agentes eclesiais, com propósito de formar sujeitos políticos aptos a refletir sobre e mudar sua própria realidade (Peralta, 2022).

30A influência dos movimentos católicos na formação e organização das comunidades também reverberou nos nomes das comunidades da região, seja homenageando uma santa ou santo católico ou alguma passagem/elemento encontrado na Bíblia. Alguns exemplos de nomes encontrados são: Bom Jesus, Monte Sinai, Nossa Senhora, Matuzalém, Santa Isabel, Santa Luzia, Santa Helena, São Francisco, São João Batista, São Paulo, São Pedro, São Tomé, Terra Santa, entre muitos outros. Geralmente, o nome da comunidade é seguido pela sua localização espacial: São Francisco (lago do Aruaú), São Francisco do Bujaru, São Francisco do Cubuá, São Francisco do Igarapé do Chiita, São Francisco do Lago do Aruaú, São Francisco do Mapitirini e São Francisco do Solimoezinho.

31A igreja, assim como o centro comunitário, o campo de futebol e a escola, se configura como um elemento central na organização socioespacial das comunidades. As comunidades rurais, apresentam esses aspectos estruturantes, que as definem como território coletivo, e representam uma forma de ordenamento político e territorial para os residentes.

32As ações do MEB na calha do rio Solimões, estado do Amazonas, por exemplo, permitiram a integração de uma rede de colaboração entre diferentes municípios da região, integrando socialmente a população mobilizada por rede de paróquias ligadas à prelazia de Tefé. Como resultado dessa frente de atuação junto às comunidades, tem-se hoje um conjunto de arranjos organizacionais como os movimentos de preservação dos lagos e zoneamentos de áreas de uso dos recursos naturais, dos quais culminaram no modelo de organização centrado no propósito de conservação da natureza e uso coletivo dos recursos naturais (Pereira, 2022; Peralta, 2022). No que se refere aos ideais conservacionistas iniciados pelos movimentos de preservação dos lagos de manejo comunitário, mantém-se o direito de guardar lagos de forma coletiva para uso das comunidades, predominante no zoneamento das áreas de usos das unidades de conservação de uso sustentável, como citados anteriormente (Peralta, 2022).

33Com o pluralismo religioso e expansão das igrejas evangélicas na região, a igreja católica deixa de ser a detentora desse ordenamento, e os templos evangélicos se expandem no território sob novas frentes de ocupação espacial. Nos trabalhos de campo, foram identificadas uma pluralidade de templos católicos e evangélicos (Figura 2) que, em muitos casos, coexistem em uma mesma comunidade.

34Do total de entrevistados na amostra de domicílios realizada no baixo rio negro (n=576), 289 responderam que pertencem a uma das religiões evangélicas (o que representa 50% do total), 249 na religião católica (43%) e 38 se disseram ateu ou sem religião (7%). Não foram encontradas diferenças expressivas a partir do recorte de gênero em relação à religião declarada pelos moradores.

35Dentre os que responderam professar uma das religiões evangélicas, destaca-se os que pertencem à Assembleia de Deus, com 122 respostas. Embora nossa amostra seja pequena em relação à população total do MBRN, ela traz um resultado bem próximo ao encontrado nas UCs da região. Segundo o Plano de Gestão da RDS Rio Negro de 2016, 58% da população se declarou católica, enquanto 42% se declararam evangélicas (Amazonas, 2016).

36Já na RDS Amanã, localizada no outro extremo do MBRN, segundo seu Plano de Gestão de 2020, 44% das pessoas se autodeclararam católicas, 36,7% autodeclararam evangélicas, 18,8% não informaram a religião que seguia e 0,5% se declararam ateus/sem religião. Entre os evangélicos também se destacam seguidores da igreja Assembleia de Deus, representando 64,3% da população evangélica, além dos frequentadores das igrejas Adventista do 7º Dia (18,2%) e Deus é Amor (5,8%) (Amazonas, 2020), resultado semelhante ao encontrado na região do rio negro, principalmente, pela presença ativa da igreja Assembleia de Deus.

37Os templos religiosos estão presentes em quase todas as comunidades, em sua maioria há mais de um templo religioso que agrega diferentes vertentes do cristianismo. No total, foram identificados cerca de 300 templos religiosos nas comunidades visitadas. Em termos comparativos, no mesmo conjunto de comunidades foram identificadas 95 escolas, 29 postos de saúde, 85 centros comunitários, 76 comércios e 104 campos de futebol. O número de templos se aproxima da somatória de todas as outras infraestruturas citadas, o que reafirma tanto a importância da religião na formação e cotidiano das comunidades, quanto o interesse em ocupar e controlar esses territórios, como uma área em disputa.

38Do total de templos identificados, 35% foram classificados como católicos e 65% como evangélicos. Há comunidades em que existem 1 templo católico e 4 evangélicos coexistindo no mesmo território. Dentre o conjunto de templos religiosos evangélicos citados pelos entrevistados destacam-se os das vertentes Assembleia de Deus e Adventista do Sétimo Dia. Outras igrejas mencionadas são a Presbiteriana, Batista (Alto da Videira e Missões), Pentecostal e Deus é Amor. Em uma das entrevistas realizadas com uma das lideranças locais, foi citado que “todos congregam juntos no mesmo templo”. Essa fala é importante pois abre margem para uma discussão que demonstra a complexidade e o híbrido religioso da região entre as diferentes vertentes do cristianismo (Rodrigues, Moraes Jr., 2018).

39Os festejos religiosos são datas importantes no dia a dia das comunidades, há toda uma preparação física para a sua realização, a qual mobiliza toda a comunidade em sua organização, atraindo moradores de outros locais nos dias de festejos. Comumente, eles são realizados em homenagem ao padroeiro (a) de uma comunidade que, em muitos casos, coincide com a data de sua formação. É interessante notar que, embora sejam festejos tradicionalmente católicos, praticamente todos os moradores da comunidade participam tanto da sua preparação quanto no momento do festejo, mesmo aqueles que seguem uma das religiões evangélicas (que tradicionalmente não cultuam santos e santas).

40Entre os festejos religiosos, destacam-se os de Santo Antônio (13 de junho), Nossa Senhora de Fátima (13 de maio), São Francisco (5 de outubro), Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (27 de junho), Santa Maria (30 de maio), entre outros. Na RDS Amanã, por exemplo, foram identificados 41 festejos católicos e 24 comemorações de aniversário de igrejas evangélicas (Amazonas, 2020).

41A organização e participação de festejos religiosos católicos por parte dos evangélicos nas comunidades demonstra que vão se criando híbridos religiosos nesses espaços, onde as populações “absorvem, interiorizam e ressignificam a religiosidade evangélica” (Rodrigues, Moraes Jr., 2018, p.909). A construção desse amálgama religioso – muitas vezes controverso para uma visão ortodoxa – compõe as territorialidades adotadas pelas igrejas evangélicas para expandir espaço-socialmente sua atuação nas comunidades. Esse resultado indica que a atuação das igrejas ganha contornos particulares a depender do contexto no qual ela está inserida, o que faz com que certas práticas continuem a ser realizadas pelos moradores.

42As igrejas adotam estratégias espaciais de pulverização de templos religiosos nas comunidades, resultando na existência de mais de um templo em um mesmo local. Ao mesmo tempo há uma relativa fluidez na participação de membros de uma igreja em outra, indicando que há uma tendência menos centralizadora de dominação socioespacial de uma determinada igreja (Silva Júnior, Enoque, Saraiva, 2023).

43Contudo, embora haja uma ressignificação da religiosidade, formando um amalgama religioso, a religião também é vista como um fator conflitante no processo de organização entre as comunidades. Na RDS Amanã, o surgimento de novas comunidades tem forte relação com as questões religiosas (e políticas), como o caso da comunidade Monte Jeresim fundada por moradores que saíram da comunidade Boa Vista do Calafate; e da comunidade Nova Canaã, fundada por moradores que migraram da comunidade Matusalém. Pantoja (2005) associa tais momentos de criação das comunidades a uma nova dinâmica que passa a obedecer a um conjunto de determinações, muitas delas de difícil controle como: conflitos entre famílias vizinhas e moradores que podem passar a residir duas comunidades; diferenças religiosas que podem provocar rupturas entre os moradores e o surgimento de novas comunidades aglutinadas em torno de congregações independentes.

44A dispersão espacial dos templos religiosos no território decorre de uma organização interna que permite a criação de uma rede que conecta diferentes territórios a partir de uma lógica organizacional que possibilita a conexão, comunicação e o estabelecimento de um conjunto de normas que garantem o seu funcionamento, tal como apresentado por Meneses (2021). O conjunto de territorialidades adotadas por essas igrejas geram territórios-redes em uma escala nacional, e em muitos casos em uma escala internacional. Esses territórios-redes são alimentados por fluxos imateriais (normativos) e materiais a partir da mobilidade espacial das lideranças religiosas, fiéis e missões de evangelização e construção de infraestruturas.

A mobilidade das lideranças religiosas e seu protagonismo nas comunidades tradicionais

45A mobilidade das lideranças religiosas (pastores e pastoras) e sua presença nas comunidades como moradores são dimensões centrais nas territorialidades das religiões evangélicas na Amazônia Central. A partir das conversas realizadas nos trabalhos de campo foi possível identificar o papel da mobilidade na conformação de uma rede institucional das igrejas evangélicas, da mesma forma que foi possível identificar como a presença física desses líderes é fundamental para a expansão e consolidação das religiões evangélicas nas comunidades.

46Com base nos questionários aplicados, foram identificadas um total de 710 lideranças comunitárias, entre as lideranças citadas estão os presidentes e vice-presidentes, líderes religiosos, parteira, agente comunitário, agente de saúde, entre outros. Desse total, foram identificadas 122 pastores (as) e 79 catequistas, totalizando 201 lideranças religiosas (cristãs). O número é maior do que a somatória de Presidentes (100 citados) e Vice-Presidentes (93 citados) relatado pelos entrevistados como lideranças formais das comunidades (associações comunitárias). Esses dados trazem indícios sobre a presença e o papel que as lideranças religiosas exercem nas comunidades. Não foram identificados padres católicos citados como lideranças religiosas que residem nas comunidades. Geralmente, os padres moram em uma das cidades da região e se locomovem até as comunidades para realizar missas esporadicamente e para participar dos festejos católicos.

47A ausência de padres católicos nas comunidades é um fator crucial para a expansão das religiões evangélicas na região. Os (as) pastores (as) assumem um papel de representante religioso que outrora foi representado pela figura do padre católico. Sua presença e atuação na comunidade é fundamental para o seu reconhecimento e aceitação. A participação em atividades no cotidiano reafirma o seu papel enquanto uma liderança na comunidade, bem como tende a atrair os moradores para os cultos.

48Constatou-se que há uma distinção espacial no número de lideranças religiosas se comparado a região do rio Negro com a região de Amanã. Na primeira região, que fica mais próxima de Manaus e outros centros urbanos (Novo Airão, Iranduba, Manacapuru), lideranças religiosas – pastores (as) somam 92 citações, enquanto há 28 citações de catequistas. Já no outro extremo, é o oposto, foram citadas 51 catequistas e 30 pastores (as). Infere-se que as comunidades mais próximas aos grandes e médios centros urbanos, possuem uma tendência maior de crescimento de religiões evangélicas e maior interesse dessas instituições de assumirem posições nesses espaços. No Plano de Gestão da RESEX do Rio Unini, das nove comunidades que compõem a UC, sete são católicas, uma mista, embora tenha uma tendência mais forte ao catolicismo, e uma evangélica (Brasil, 2014).

49Esses dados demonstram que a atuação das igrejas evangélicas é espacialmente desigual. As estratégias utilizadas para a expansão territorial priorizam, pelo menos no cenário atual, as comunidades localizadas mais próximas aos centros urbanos em detrimento daquelas mais distantes. Os centros urbanos regionais são os principais polos catalisadores da expansão das igrejas evangélicas, sendo nós importantes de uma rede que interliga as comunidades e outras regiões do país na dimensão da religiosidade.

50Observou-se que as lideranças religiosas evangélicas possuem uma mobilidade espacial que é característica da sua atividade. Tanto nos questionários aplicados com os presidentes das comunidades quanto nas entrevistas realizadas com os moradores (quando o morador entrevistado era o pastor/a), observou-se que essas lideranças chegaram mais recentemente nos locais. Considerando a região do rio Negro, do total de pastores (as) (n=92), 63 se mudaram para a comunidade nos últimos dez anos (sendo que 15 chegaram nos últimos três anos). Já na região de Amanã, do total de pastores (as) (n=30), 27 chegaram nos últimos dez anos (sendo que 11 chegaram nos últimos três anos).

51Nas entrevistas com parte dessas lideranças religiosas, foi comentado que há uma mobilidade de pastores entre as comunidades tradicionais, realocação que é realizada de acordo com a instituição no qual exerce a atividade. Foi informado que há um prazo de permanência em uma dada comunidade antes de ser transferido para outra. Observa-se, portanto, que a figura do líder religioso (pastor/a) é fixa na comunidade, enquanto que quem exerce a atividade é “efêmero”, ou seja, a função é exercida localmente por um determinado período.

52A mobilidade é um pilar doutrinário que compõem a religião evangélica, as missões de evangelização para expansão religiosa estão na gênese do protestantismo (Rodrigues, Moraes Jr., 2018). Além da mobilidade dos líderes religiosos, nos trabalhos de campos foram presenciados momentos de missões em que mutirões de membros de uma determinada igreja se deslocaram para uma comunidade com vistas à construção de templos, centro comunitário e limpeza desses locais. Como colocado por Rodrigues e Moraes Jr. (2018, p.904), religiões evangélicas são ‘on the move’, ou seja, com forte mobilidade geográfica de fiéis, igrejas e missionários”. A Figura 3 apresenta um exemplo desses momentos de mobilidade.

53Na fotografia, registrada ao final de um dia de domingo, podemos observar a chegada de uma embarcação com moradores de comunidades próximas. São fiéis que se deslocaram para uma comunidade da APA Margem Esquerda do Rio Negro-Setor Aturiá-Apuauzinho para acompanhar para uma atividade religiosa na igreja Assembleia de Deus, a vertente que mais possui igrejas na região. O número de pessoas bem acima da capacidade da embarcação, assim como o deslocamento dos fiéis até a comunidade, indica a força de atração que a igreja evangélica possui na região, independente da vertente. Indicam também que sua abrangência espacial está para além dos limites da comunidade, chegando a influenciar moradores de outras áreas.

Considerações finais

54Buscamos identificar os elementos que compõem as territorialidades das religiões evangélicas nas comunidades tradicionais da Amazônia Central e como essas territorialidades culminam em territórios-redes que são angulares para a expansão e consolidação das religiões evangélicas. A análise possibilitou identificar três elementos que fundamentam as territorialidades das religiões evangélicas: a mobilidade das lideranças religiosas, a construção de templos religiosos e a sua permanência nas comunidades vivenciando o seu cotidiano.

55À luz dos conceitos de territorialidades e territórios-rede, observou-se que as territorialidades adotadas pelas igrejas evangélicas para expandir seu controle territorial na região dos rios Negro e Solimões, isto é, a mobilidade de lideranças evangélicas na região, construção de templos e presença da figura do líder na comunidade, viabilizam a territorialização das religiões evangélicas. Nos últimos anos, as comunidades tradicionais se apresentaram como um importante território a ser ocupado por essas igrejas, principalmente pelo esvaziamento da presença física da religião católica, fazendo com que as comunidades se tornassem nós de uma rede articulada para além das fronteiras locais.

56Apesar da tendência de mudança na composição religiosa das comunidades tradicionais destacada neste texto, ainda predomina uma estrutura de organização em comunidades que remonta aos moldes do MEB, movimento social iniciado pela igreja católica, no qual as práticas e ações coletivas se mantêm, assim como a existência de lideranças comunitárias (presidente, vice-presidente, líder religioso).

57Vale reforçar que a análise sobre a expansão e consolidação das religiões evangélicas na Amazônia Central, sobretudo no MBRN como estudo de caso, não tem o intuito de estabelecer uma concepção valorativa referente ao fenômeno, mas sim analisá-lo à luz da sua dimensão socioespacial. É um tema central na pauta política, econômica e espacial contemporânea e que deve ser estudado de forma mais aprofundada considerando contextos socioespaciais particulares. Portanto, a análise aqui realizada não se exaure, pelo contrário, abre caminhos para um conjunto de investigações sobre a influência da expansão das religiões evangélicas para o cotidiano das comunidades tradicionais na Amazônia e sua organização comunitária.

Agradecimentos

58Agradecemos a FAPESP e a FAPEAM pelo financiamento do projeto “Populações tradicionais em áreas protegidas: dinâmicas socioambientais e gestão de Unidades de Conservação no Mosaico Baixo Rio Negro, no Amazonas”. Processo N.º 2020/08242-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo N.º 01.02.016301.00266/2021, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).