1O acesso à alimentação saudável nas cidades brasileiras tem sido tema de notáveis pesquisas nas áreas de saúde pública e nutrição, já há tempos avançadas sobre questões como a fome e insegurança alimentar. Visando mitigar esses problemas e compreendê-los de maneira mais concreta no espaço urbano, surgiram abordagens em outras áreas do conhecimento que tradicionalmente não dialogam com o tema do acesso à alimentação, como os estudos urbanos. Este artigo se propõe a explorar a espacialização dos desertos alimentares - fenômeno espacial já bastante explorado em contextos urbanos norteamericanos que muito diferem das cidades brasileiras - sob a ótica urbana na metrópole de Curitiba.

2Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa de mestrado que originou a dissertação “Desertos Alimentares em Curitiba: Espacialização do fenômeno na Metrópole”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR em 2022 (Lima, 2022). A pesquisa se concentra sobre os desertos alimentares como um fenômeno urbano e avalia sua espacialização na metrópole de Curitiba a partir de seis investigações espaciais. Neste artigo foram exploradas apenas três dessas investigações. A pesquisa, e consequentemente este artigo, partem da compreensão de que os desertos alimentares são áreas onde o acesso físico ou econômico à compra de alimentos saudáveis é desigual e reduzido no território – há omissões e falhas na distribuição e comercialização de alimentos, contribuindo para as disparidades na dieta e na saúde da população e relacionando-se diretamente com a insegurança alimentar (Beaulac, Kristjansson e Cummins, 2009; Davies, Frausin e Parry, 2017; Honorio, 2020; Duran, 2013).

3As escolhas alimentares da população são influenciadas pela disponibilidade de alimentos nas proximidades dos domicílios, de modo que as áreas onde as opções não saudáveis predominam são também onde as dietas domésticas tendem a serem piores. A compreensão da espacialização dos desertos alimentares pode contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas de planejamento urbano visando melhorias no acesso a alimentos saudáveis e redução de índices inadequados de saúde e bem-estar urbano (Davies, Frausin e Parry, 2017 e Duran, 2013).

4As pesquisas já realizadas no Brasil apontam a necessidade de adequação do conceito e das metodologias internacionais ao contexto brasileiro, bem como de mapeamentos e estudos locais mais aprofundados (CAISAN, 2018; Davies, Frausin e Parry, 2017; Honorio, 2020; e Matozinhos et al., 2015). Nesse sentido, a perspectiva dos estudos urbanos sobre o tema ainda foi pouco explorada, assim como a identificação de desertos alimentares nas metrópoles brasileiras. O presente artigo vem ao encontro de preencher essa lacuna ao tratar da espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba.

Estratégias metodológicas para a identificação dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba

6Além da perspectiva espacial, é importante destacar que os desertos alimentares encontram suas causas também no âmbito social, econômico e cultural, portanto as investigações contemplaram o perfil econômico dos núcleos familiares e o fato de possuírem ou não um automóvel próprio – algo que foi considerado crucial para garantir acesso ao alimento saudável em alguns contextos urbanos (USDA, 2009). Além disso, fatores como raça, etnia, gênero, renda e o nível de escolaridade da população são características socioeconômicas associadas ao fenômeno da insegurança alimentar e, consequentemente, dos desertos alimentares (PENSSAN, 2021).

7Uma vez identificados esses elementos relacionados à espacialização dos desertos alimentares (chamados de variáveis), foram realizadas três investigações espaciais que combinam e avaliam de maneiras diferentes estas informações. Cada uma dessas investigações toma como base uma metodologia para identificação dos desertos alimentares, de forma a adaptá-las ao contexto brasileiro e aos dados disponíveis. A Investigação 1 analisa as redes de acesso aos estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis a partir do uso de diferentes modais de transporte, utilizando a metodologia de Jiao et al. como base (2012). A Investigação 2 analisa a densidade de estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis em relação à quantidade de habitantes, tomando como base a metodologia utilizada na pesquisa da CAISAN (2018). E por fim, a Investigação 3 trata da densidade de estabelecimentos que vendem alimentos saudáveis, não-saudáveis e mistos por área, a partir da metodologia de Gordon et al. (2011).

8A pesquisa, realizada com dados da RAIS de 2019, focou nos dados dos empregadores formais que declararam informações neste ano. Não abrangeu, portanto, comércios informais, ambulantes, nem o comércio de alimentos por aplicativos de entrega, embora reconheça a influência dessa dinâmica no acesso a alimentos, saudáveis ou não, nas cidades e metrópoles brasileiras.

11O AP de Curitiba, com população estimada em cerca de 3,54 milhões de habitantes (IBGE, 2021), é um território em transformação, sujeito a dinâmicas que geram desigualdades intrametropolitanas e intraurbanas. A maior parte dos municípios do recorte está integrada fisicamente por meio de uma mancha urbanizada contígua, gerando um desenho de ocupação insular, em que as áreas mais densas dos municípios estão próximas da divisa com Curitiba e até mesmo afastadas de suas sedes administrativas, devido à conurbação com a capital (COMEC, 2006). Além de integração física, a metrópole apresenta diversos fluxos de movimentos pendulares, a maior parte envolvendo a cidade-polo, mas também alguns entre municípios menores. Atualmente, as regiões sul e sudeste apresentam os maiores vetores de crescimento populacional (Araucária, Fazenda Rio Grande e São José dos Pinhais), seguidos das regiões leste e noroeste (Piraquara, Quatro Barras e Itaperuçu).

12Desde os anos 1990, Curitiba passou por um processo de especialização do comércio e indústria, o que gerou a oferta de moradias populares nos municípios vizinhos. Isso fomentou novas atividades econômicas nessas áreas, transformando a estrutura urbana de centro-periferia para um modelo mais disperso, acompanhado de desigualdades sociais e do processo de periferização. Essa dinâmica transformou a estrutura espacial da metrópole – antes monocêntrica, agora policêntrica, com surgimento de novos subcentros metropolitanos, sugerindo uma independência social e econômica do núcleo de Curitiba e reduzindo a insularidade dos municípios (Silva, 2012; Silva, 2014).

13Segundo o IBEU – Índice de Bem Estar Urbano, em comparação com outras regiões metropolitanas brasileiras, a metrópole de Curitiba está acima da média quanto à mobilidade urbana, condições habitacionais e serviços coletivos, mas abaixo da média em relação às condições ambientais urbanas e infraestrutura urbana (Firkowski et al., 2014). Todas essas dinâmicas foram sintetizadas e utilizadas como ferramenta de análise das investigações a serem apresentadas a seguir neste artigo.

14A compreensão das relações entre os municípios na metrópole curitibana reforça a premissa de que os desertos alimentares devem ser investigados com base no recorte metropolitano pois dessa forma a pesquisa se assegura de resultados que correspondem à realidade do fenômeno estudado. É preciso, portanto, lançar olhar sobre o todo e considerar as dinâmicas sociais, econômicas e de deslocamento que caracterizam a realidade metropolitana em questão.

Causas e associações dos desertos alimentares: análise para uma metrópole brasileira

15Com base nas pesquisas que subsidiaram a construção do referencial teórico deste artigo, é possível afirmar que os desertos alimentares têm como suas principais causas e associações:

1. Grandes distâncias entre domicílios e estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis em áreas habitacionais, intensificada pela falta de infraestrutura urbana e pelo não acesso a um automóvel próprio;

2. Escassez de estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis em detrimento de estabelecimentos não-saudáveis;

3. Baixa renda domiciliar;

4. Pouca variedade de produtos disponíveis para venda;

5. Pouca densidade de lojas e, portanto, baixa concorrência;

6. • 7 Refere-se aos diferentes aspectos existentes no entendimento da vulnerabilidade social no Brasil - (...)

   Vulnerabilidade social em todas as suas particularidades7;

7. Fatores como raça, etnia, gênero e nível de escolaridade.

16Devido a esses fatores, os desertos alimentares têm maior propensão a surgirem em situações socioeconômicas desfavorecidas, de segregação espacial e de escassez de infraestrutura urbana. Contudo, é possível encontrar situações de deserto alimentar em áreas bem estruturadas também, como apontam os resultados das investigações a seguir. Isso se deve ao fato de, em determinadas áreas, existirem proporcionalmente mais estabelecimentos que vendem alimentos não-saudáveis do que os que vendem alimentos saudáveis.

17Portanto, para identificar a espacialização dos desertos alimentares, afim de gerar ferramentas práticas para o planejamento urbano, deve-se avaliar as relações de distância entre domicílio e estabelecimentos de venda de alimentos; de infraestrutura urbana disponível nas regiões; de poder aquisitivo e renda domiciliar da população; de possibilidade de locomoção; de densidade de estabelecimentos de venda de alimentos; e da predominância ou não dos pontos de venda de alimentos saudáveis sobre os não-saudáveis.

18As metodologias internacionais adotam os supermercados como principais pontos de compra de alimentos pela população e estabelecem os fatores raça e etnia como questões associadas à segregação espacial e, portanto, bastante presentes na dinâmica dos desertos alimentares. Como foi possível verificar por meio da pesquisa da CAISAN (2018), a maior parte dos estabelecimentos de venda de alimentos no Brasil é de pequeno porte, de até 9 funcionários, o que diverge do padrão norte-americano e deve ser incorporado nas pesquisas brasileiras. Além disso, a questão da segregação racial e étnica também é muito presente no Brasil, mas a segregação socioespacial das cidades brasileiras está também atrelada às questões de renda, principalmente, e gênero da população.

Investigações sobre a espacialização e identificação do fenômeno na metrópole de Curitiba

19Com o intuito de desenvolver investigações de base documental e bibliográfica, reuniu-se uma base de dados confiável para posterior análise e elaboração de mapas temáticos sobre a espacialização dos desertos alimentares. A aplicação desses dados às variáveis e metodologias selecionadas deu suporte à identificação da espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba, reunindo argumentos para sua contextualização sob o ponto de vista urbano e metropolitano.

20No Quadro 02 é possível verificar quais são as variáveis que baseiam as investigações realizadas, suas fontes de dados, unidade territorial e algumas observações. Destaca-se que todas essas variáveis foram identificadas nos estudos e metodologias que embasaram o desenvolvimento das investigações e que, neste momento, foram adaptadas à realidade brasileira e à disponibilidade de dados no momento da pesquisa.

21As variáveis apresentadas no Quadro 02 foram combinadas e analisadas de forma a gerar três frentes de investigação sobre a espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba. O Quadro 03 indica quais são essas investigações, as variáveis que estão envolvidas em cada uma delas e quais foram as análises realizadas. As investigações realizadas foram ilustradas em mapas, possibilitando uma análise espacial dos resultados sobre o território estudado.

Quadro 02 – Variáveis que dão suporte às investigações

VARIÁVEIS	FONTE DOS DADOS	UNIDADE TERRITORIAL	OBSERVAÇÕES
RENDA MÉDIA DOMICILIAR PER CAPITA	IVS (IPEA, 2015)	UNIDADE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO	Corresponde às áreas de vulnerabilidade social alta ou muito alta em relação ao indicador que compõe o Subíndice IVS Renda e Trabalho: Proporção de pessoas com renda domiciliar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo - Melhor Situação = 0 e Pior Situação=100;
COR OU RAÇA	CENSO 2010 (IBGE, 2012)	SETORES CENSITÁRIOS	Cor ou raça declarada pela maioria da população para o setor censitário;
MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA	IVS (IPEA, 2015)	UNIDADE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO	Corresponde às áreas de vulnerabilidade social alta ou muito alta em relação ao indicador que compõe o Subíndice IVS Capital Humano: Percentual de mães chefes de família, sem fundamental completo e com pelo menos um filho menor de 15 anos de idade, no total de mães chefes de família - Melhor Situação = 0 e Pior Situação=35,5;
TAXA DE ANALFABETISMO			Corresponde às áreas de vulnerabilidade social alta ou muito alta em relação ao indicador que compõe o Subíndice IVS Capital Humano: Razão entre a população de 15 anos ou mais de idade que não sabe ler nem escrever um bilhete simples, e o total de pessoas nesta faixa etária, multiplicada por 100 - Melhor Situação = 0 e Pior Situação=42,1;
AUTOMÓVEL PRÓPRIO			Variável proxy que corresponde às áreas de vulnerabilidade social alta ou muito alta em relação ao indicador que compõe o Subíndice IVS Infraestrutura Urbana, do IPEA (2015). É o percentual de pessoas que vivem em domicílios com renda per capita inferior a meio salário mínimo e que gastam mais de uma hora até o trabalho no total de pessoas ocupadas, vulneráveis e que retornam diariamente do trabalho - Melhor Situação = 0 e Pior Situação=17,8;
LOCALIZAÇÃO DE ESTABELECIMENTOS DE VENDA DE ALIMENTOS	RAIS 2019; Levantamento das feiras livres, Armazéns da Família, Restaurantes Populares, Sacolões da Família;	LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DOS ESTABELECIMENTOS	A base da RAIS contém o endereço completo dos estabelecimentos. Com base nessas informações, foi possível georreferenciar os estabelecimentos de venda de alimentos. Foram incorporadas a essa base as feiras livres e outros equipamentos de segurança alimentar. Foram selecionados 17 tipos de atividades econômicas que comercializam alimentos no varejo.
DENSIDADE POPULACIONAL	CENSO 2010 (IBGE, 2012)	SETORES CENSITÁRIOS	Número de habitantes por hectare;
VULNERABILIDADE SOCIAL	IVS (IPEA, 2015)	UNIDADE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO	Índice de Vulnerabilidade Social. Média aritmética dos índices Subíndices Infraestrutura Urbana, Capital Humano e Renda e Trabalho (Variável IVS_2010). Segundo o IPEA, o IVS é um índice que varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo a 1, maior é a vulnerabilidade social de uma região;

Fonte: elaboração da autora (2022).

	INVESTIGAÇÕES A PARTIR DAS VARIÁVEIS	DESCRIÇÃO	FONTE	VARIÁVEIS ENVOLVIDAS	ANÁLISES REALIZADAS
1	REDES DE ACESSO AOS ESTABELECIMENTOS DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS	Medições das redes de acesso dos estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis por meio de diferentes modais (de carro, transporte público, a pé e de bicicleta), a fim de identificar áreas sem acesso de acordo com um tempo máximo de viagem;	Com base na metodologia elaborada por Jiao et al., 2012	Redes de acesso dos estabelecimentos de alimentos saudáveis (in natura + mistos); Áreas de baixa renda; Áreas em que a população não tem automóvel próprio; Cor ou raça; Mulheres chefes de família; Taxa de analfabetismo.	Desertos Alimentares Leves - Áreas dentro de perímetro urbano e fora das redes de acesso de todos os modais; Desertos Alimentares Moderados - Áreas dentro de perímetro urbano, fora das redes de acesso a pé e de bicicleta e onde a maioria da população não possui automóvel próprio; Desertos Alimentares Graves - Áreas dentro de perímetro urbano, fora das redes de acesso a pé e de bicicleta, onde a maioria da população não possui automóvel próprio e de população de baixa renda; Cruzar a localização das redes de acesso com as variáveis cor ou raça, mulheres chefes de família e taxa de analfabetismo, a fim de verificar relações de segregação socioespacial e vulnerabilidade.
2	DENSIDADE DE ESTABELECIMENTOS SAUDÁVEIS POR HABITANTE	Quantidade de estabelecimentos de venda de alimentos existentes por habitante, por setor censitário	Com base na metodologia elaborada por CAISAN, 2018	Quantidade de estabelecimentos de alimentos saudáveis (in natura + mistos) por setor censitário; Densidade Populacional;	Cálculo da quantidade de estabelecimentos saudáveis existentes em cada setor censitário, normalizados pela quantidade de habitantes existentes naquele setor. Os setores que ficam no grupo de percentil 25 são considerados Desertos Alimentares Leves. Os Desertos Alimentares Moderados correspondem aos setores que ficaram no grupo de percentil 25 e que estão localizados no perímetro urbano. Os Desertos Alimentares Graves correspondem aos setores que ficaram no grupo de percentil 25, que estão localizados no perímetro urbano e coincidem com áreas de baixa renda.
3	DENSIDADE DE ESTABELECIMENTOS SAUDÁVEIS, NÃO-SAUDÁVEIS E MISTOS POR ÁREA	Quantidade de estabelecimentos de venda de alimentos existentes por setor censitário; concentração de estabelecimentos de venda de alimentos existentes;	Adaptado da metodologia elaborada por Gordon et al., 2011	Quantidade de estabelecimentos de alimentos in natura por setor censitário; Quantidade de estabelecimentos de alimentos mistos por setor censitário; Quantidade de estabelecimentos de alimentos ultraprocessados por setor censitário;	As áreas analisadas são raios de 400m a partir dos centros geométricos dos setores censitários. A depender da quantidade e tipos de estabelecimentos existentes em cada setor hexagonal, foi atribuída uma pontuação, podendo cada um deles variar de 3 a 9 pontos. Quanto menor a pontuação, mais grave a situação de deserto alimentar. Desertos Alimentares Leves - 5 pontos Desertos Alimentares Moderados – 4 pontos Desertos Alimentares Garves – 3 pontos;

FONTE: elaboração da autora (2022)

22Os tópicos a seguir consistem na construção e análise das investigações, com o objetivo metodológico de contextualizar os mapas temáticos elaborados, buscando compreender o fenômeno estudado sob a ótica urbana e metropolitana e auxiliar a interpretação e síntese sobre os desertos alimentares na metrópole de Curitiba.

23São três investigações que tratam de diferentes aspectos dos desertos alimentares e que indicam escalas de gravidade do fenômeno, ou seja, áreas consideradas como desertos graves, moderados ou leves. Essa proposta busca contemplar o fato de que, assim como a insegurança alimentar, os desertos alimentares não são concretos e absolutos.

Investigação 01 - Redes de acesso aos estabelecimentos de alimentos saudáveis

25Para a rede de acesso de carro, atendendo ao tempo de viagem máximo de 10 minutos e à velocidade média de deslocamento de 25km/h, considerou-se que a distância linear média percorrida é de cerca de 4,2km. No entanto, devido à grande dimensão do recorte analisado e à grande quantidade de pontos de venda, tornou-se inviável realizar a análise das redes de acesso de cada um dos estabelecimentos de venda de alimento. Portanto adotou-se a estratégia de simplificar as redes de acesso e transformá-las em raios de acesso. Dessa forma, considerou-se que a rede de acesso de 4,2km corresponde a um raio de 3,5km.

26A análise real da rede de acesso do sistema de transporte público demandaria uma quantidade de informações e dispêndio de tempo que não seriam adequados frente ao objetivo desta pesquisa. Portanto o raio de acesso do transporte coletivo também foi simplificado: foi constatado que as linhas de ônibus mais rápidas oferecem viagens de até 3km em 10 minutos, portanto seria considerado um raio de 1,5km de acesso. No entanto, essa distância ficaria muito próxima do raio de 1,6km, que já será analisado mais adiante. Dessa forma, será analisado somente o raio de acesso de 1,6km.

27Para a rede de acesso dos deslocamentos realizados com bicicleta, considerou-se que a distância média percorrida numa viagem de 10 minutos é de 3,2km. Isso corresponde a um raio de 2,5km, aproximadamente. E para a rede de acesso a pé, foi considerado que em 10 minutos é possível percorrer 800m.

29Áreas consideradas Desertos Alimentares Leves foram identificadas nos municípios de Campo Largo, Rio Branco do Sul, Araucária, Balsa Nova e São José dos Pinhais. Os Desertos Alimentares Moderados foram identificados em Rio Branco do Sul e Araucária e os Desertos Alimentares Graves foram identificados em menor área em Campo Magro, Colombo, Araucária, Mandirituba, Fazenda Rio Grande e Itaperuçu e em maiores áreas em Almirante Tamandaré, Curitiba, Piraquara, Rio Branco do Sul e Campina Grande do Sul. Na Figura 04 é possível visualizar as áreas classificadas como Desertos Alimentares e suas respectivas escalas de gravidade.

30Também foi avaliada a localização das três escalas de Desertos Alimentares frente à espacialização das outras variáveis “internas”, tais como Cor ou Raça da população; Mulheres Chefes de Família; e Taxa de Analfabetismo. Foi possível constatar que os Desertos Alimentares estão majoritariamente localizados em setores censitários de maioria da população não branca, exceto em Curitiba e Araucária. As áreas vulneráveis em relação ao percentual de mães chefes de família (vulnerabilidade média, alta e muito alta) coincidem em sua totalidade com a localização dos desertos alimentares. Ainda, em relação à taxa de analfabetismo, os desertos alimentares incidem sobre áreas de vulnerabilidade média, alta ou muito alta. Isso indica que a existência de desertos alimentares pode estar associada ao gênero da chefe de família, quando mulher, ao nível de escolaridade da população e à raça declarada, o que corrobora com os resultados obtidos pela PENSSAN (2021), que indicam que essas condições individuais afetam negativamente a segurança alimentar.

31Ao identificar áreas urbanas que não oferecem acesso físico a estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis, a Investigação 01 indica a espacialização de desertos alimentares justamente em regiões de atual expansão urbana, nos vetores de maior crescimento populacional, como a região norte (Almirante Tamandaré, Itaperuçu, Rio Branco do Sul) e a região sul (sul de Curitiba e Araucária). Existem também grandes áreas a leste, nos municípios de Campina Grande do Sul e Piraquara, classificadas da mesma forma.

32As áreas em atual expansão urbana, por estarem ainda em desenvolvimento, podem apresentar carências de infraestrutura e abastecimento pelo fato de ainda não estarem consolidadas. Ao mesmo tempo, algumas dessas áreas já estão ocupadas há mais tempo e já deveriam possuir diversidade de uso do solo e autonomia quanto aos serviços corriqueiros de alimentação. A existência de desertos alimentares nessas regiões serve como um alerta para a administração pública e para o setor de venda de alimentos como locais de demanda não atendida.

Investigação 2 - Densidade de estabelecimentos saudáveis por habitante

35Ao tomar como foco as áreas de mais baixa proporção de estabelecimentos saudáveis em relação à densidade populacional, a Investigação 2 destacou grandes setores censitários municípios centrais como desertos alimentares graves, moderados e leves (Figura 06). Saltam aos olhos as áreas à oeste de Curitiba, nas regiões de divisa com Araucária e Campo Largo, assim como os desertos alimentares identificados em Rio Branco do Sul, Piraquara, Almirante Tamandaré, São José dos Pinhais e Fazenda Rio Grande – municípios em processo de subcentralização ou sujeitos à dinâmica de crescimento populacional da metrópole. Isso corrobora com a ideia de que os processos de formação de desertos alimentares e a metropolização estão associados. Essa investigação também aponta para diversas pequenas áreas classificadas como desertos alimentares graves e moderadas espalhadas por regiões reconhecidamente bem estruturadas ou de alta/média renda de Curitiba, Campo Largo, São José dos Pinhais, Colombo, Araucária e Almirante Tamandaré.

36Essa constatação é um indício de que os desertos alimentares não existem somente em área de baixa renda sem infraestrutura. A falta de acesso a alimentos saudáveis ocorre também em contextos urbanos centrais, de ampla infraestrutura urbana e de maior renda domiciliar. A existência de áreas centrais de desertos alimentares sinaliza dois padrões: ou a população que mora nessas regiões depende do carro e de viagens mais longas para realizar a compra de seus alimentos saudáveis; ou essa mesma população faz suas compras em estabelecimentos considerados não-saudáveis, mais próximos de suas casas.

Investigação 3 - Densidade de estabelecimentos in-natura, ultraprocessados e mistos por área

38Dessa forma, o mapa obtido a partir desse sistema indica a existência de Desertos Alimentares Graves e Moderados na região periférica de Curitiba (norte, sul e oeste), em São José dos Pinhais, Campo Largo, Almirante Tamandaré, Colombo, Piraquara, Balsa Nova, Mandirituba e Contenda, conforme Figura 07. Destacam-se também as grandes áreas classificadas como Desertos Alimentares Leves, que correspondem a maior parte dos setores de Campo Largo, Piraquara, Quatro Barras, Campina Grande do Sul, Colombo, Almirante Tamandaré, Araucária, Rio Branco do Sul e Itaperuçu.

39Se destacam novamente os municípios de Curitiba e São José dos Pinhais, ambos com três áreas classificadas como desertos graves (Figura 07). Piraquara, Campina Grande do Sul, Campo Largo e Mandirituba tiveram todos uma área classificada da mesma forma. Os desertos moderados foram identificados em diversas áreas nos municípios citados e também em Colombo, Almirante Tamandaré, Contenda e Balsa Nova.

40Se destacam as regiões oeste e sul de Curitiba, nas áreas fronteiriças entre a capital, Campo Magro, Campo Largo, Araucária (assim como na Investigação 2), Fazenda Rio Grande e São José dos Pinhais. Se sobressaem também as várias áreas identificadas como desertos leves em praticamente todos os municípios que fazem divisa com Curitiba, exceto Campo Magro.

41Cabe ressaltar que em todos os municípios foram identificadas áreas de desertos leves e somente em três não foram identificados desertos moderados – Campo Magro, Fazenda Rio Grande e Itaperuçu. Isso reforça a probabilidade da população da metrópole de Curitiba não ter acesso facilitado a estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis em seu cotidiano.

Síntese e perspectivas sobre a espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba

42Os desertos alimentares da metrópole de Curitiba estão presentes em maior peso e em maior gravidade em áreas sujeitas a processos intrínsecos à metropolização, tais como conurbação, integração devido a movimentos pendulares, periferização e subcentralização. O fato de Curitiba e outros municípios populosos que da metrópole apresentarem desertos alimentares graves contribui para a compreensão de que o fenômeno está associado a contextos urbanos minimamente dotados de infraestrutura, mas, contraditoriamente, que não proporcionam acesso econômico e físico ao alimento saudável. Do ponto de vista do planejamento urbano, além de não existirem infraestruturas e equipamentos suficientes, os que existem não dão conta de atender com qualidade a população que reside em seu entorno.

43A identificação e espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba traz alertas para a área do planejamento urbano e gestão urbana, sobretudo porque os resultados obtidos indicam que o fenômeno abrange todo o território, em todas as escalas de gravidade estabelecidas. Dado que os desertos alimentares são um fenômeno espacial, econômico e social, as áreas mais afetadas são periféricas, com pouca infraestrutura urbana e qualidade de ocupação do espaço: onde não há diversidade de uso do solo e de ocupação da malha urbana; com pouca mobilidade urbana; onde o desenho urbano não promove a caminhabilidade e a ciclomobilidade; onde os instrumentos do planejamento urbano ainda não foram capazes de incentivar e atrair novos equipamentos urbanos de venda de alimentos saudáveis.

44Em se tratando desses contextos extremos, há ainda grupos socioeconômicos mais prejudicados que outros no âmbito da insegurança alimentar. São mulheres chefes de família, analfabetos, negros, pardos e indígenas. Nesse sentido, os desertos alimentares identificados nessa pesquisa referem-se a espaços sem acesso à alimentação saudável, mas também ao local de moradia desses grupos afetados. É sobre essas áreas que o planejamento urbano deve atuar de forma prioritária, em cooperação com outros setores, com o objetivo de melhorar o acesso à alimentação saudável para essas pessoas.

45Os desertos alimentares da metrópole de Curitiba se manifestam em todo o território metropolitano, tanto em áreas centrais, de alto valor da terra e de maior renda, como em regiões periféricas, de população mais pobre, de menos infraestrutura e acesso à cidade. Ainda, as áreas que denotam maior gravidade são aquelas sujeitas à periferização e recente subcentralização, de forte integração com a metrópole e de alta densidade populacional. Devido a esses resultados, pode-se concluir também que o processo de produção da cidade e do espaço urbano desempenha um papel relevante na conformação dos desertos alimentares, pois se soma a uma série de precariedades que são características da realidade urbana e metropolitana do Brasil, com condições de segregação socioespacial, desigualdade, precarização e periferização.

46A inserção urbana e socioeconômica dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba se assemelha, em parte, à dinâmica identificada em estudos anteriores, como os realizados pela CAISAN (2018) e USDA (2009). Nesses estudos, o fenômeno não demonstra uma associação direta com a renda da população, sugerindo que as áreas com acesso limitado a alimentos saudáveis não são necessariamente as mais pobres. Por exemplo, a pesquisa conduzida em Belo Horizonte (Honorio, 2020) revelou que os desertos alimentares na cidade estão localizados em regiões carentes de serviços essenciais e com índices socioeconômicos mais baixos. De maneira similar, o estudo do CDC (2017) apontou uma tendência de que indivíduos com menor renda tenham dietas menos saudáveis, não apenas devido a restrições espaciais, mas também por questões econômicas e sociais. Além disso, a pesquisa realizada por Davies, Frausin e Parry (2017) indica que os desertos alimentares são encontrados em centros urbanos independentemente do tamanho da cidade, destacando que a variedade de alimentos, especialmente frutas e verduras, é maior em estabelecimentos mais sofisticados e menor em armazéns e pequenos mercados.

47Portanto, ao trazer uma análise escalonada da gravidade dos desertos alimentares, esta pesquisa consegue capturar as nuances e complexidades do fenômeno, enfatizando sua natureza gradativa. Mais do que comparar dinâmicas de inserção desses desertos em diferentes contextos urbanos, a proposta deste trabalho é utilizar os achados de estudos realizados em diferentes localidades para identificar com maior precisão a situação dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba.

48Frente aos resultados obtidos e ao panorama geral de insegurança alimentar no Brasil, é notória a necessidade da inclusão do sistema alimentar como parte da pauta e do escopo do planejamento urbano, sob a ótica da produção, distribuição e comercialização de alimentos saudáveis. Esse olhar pode contribuir para o desenvolvimento de boas práticas na redução do desperdício de comida, promover dietas saudáveis, fortalecer as cadeias curtas de produção e melhorar a infraestrutura de áreas de deserto alimentar - elementos cruciais para um desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras.