1A alimentação e a agricultura tornaram-se temas de grande interesse no século XXI. O abastecimento alimentar de sociedades cada vez mais urbanizadas; a intensificação da fome e da insegurança alimentar e nutricional; o agravamento do sobrepeso, obesidade e suas doenças associadas; às ameaças produtivas provocadas pelo aquecimento global; e o acirramento da desigualdade são alguns dos desafios presentes nas sociedades contemporâneas (Le Coq et alii, 2022; FAO, 2022; Fouilleux e Michel, 2020; Comissão Europeia, 2020; Ipes Food, 2019).

2O Estado é considerado o ator mais poderoso na construção de sistemas alimentares sustentáveis, pois dispõe de recursos e capacidade de intervir, promover, coordenar, regular e monitorar a produção e o consumo sustentável, organizando arranjos políticos de abastecimento alimentar e formas de governança (Sonnino, Spayde e Ashe, 2016; Lang, Barling e Caraher, 2009). Ademais, as demandas por políticas alimentares para a construção de sistemas alimentares sustentáveis têm repercutido em diferentes escalas de governança, desde o âmbito supranacional (Comissão Europeia, 2020) até a escala local (Ipes, 2017). Essa (re)valorização (Daviron et alii, 2017) das cidades e governos locais e regionais decorre, por um lado, em virtude dessa escala ser a esfera primordial de demanda, influência e atuação para ações de apoio à justiça social e, por outro, da permanência do local como espaço de inovação e esforços colaborativos, que podem ser ou não mobilizados na articulação de diferentes atores e setores ajustadas às especificidades territoriais (Reece, 2018; Sonnino, Tegoni e De Cunto, 2019).

3A literatura sobre capacidades estatais, que analisa a capacidade do Estado em produzir e implementar políticas públicas (Centeno, Kohli e Yashar, 2017; Gomide, Pereira e Machado, 2017), mostra-se promissora para pensar as iniciativas locais. Diversos trabalhos discutem a influência das capacidades estatais no desenvolvimento dos países e nas dinâmicas de políticas públicas setoriais (Centeno, Kohli e Yashar, 2017; Evans, 1993). Todavia, são poucos os estudos dedicados à análise das capacidades estatais nas políticas alimentares, e são também poucos os estudos sobre as capacidades dos governos estaduais e municipais na condução de políticas públicas próprias (Segatto, Euclides e Abrucio, 2021; Grin, Demarco e Abrucio, 2021; Lima et alii, 2020; Marenco, Strohschoen e Joner, 2017).

4Este artigo coloca em análise e compara as capacidades estatais de dois municípios brasileiros, metrópoles e capitais de estados, na condução de políticas alimentares. Curitiba, capital do Paraná, e Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, se destacam em virtude do pioneirismo na criação das políticas de abastecimento alimentar em meados dos anos 1980 e em razão da continuidade e da diversidade das ações desenvolvidas. Ambas estão articuladas em redes internacionais, como o Governo Locais pela Sustentabilidade e o Pacto de Milão, que defendem sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis, sendo citadas por organizações internacionais devido às inovações e resultados das políticas alimentares implementadas (Blay-Palmer et alii, 2021; Dubbeling et alii, 2016).

5A metodologia da pesquisa envolveu revisão bibliográfica e documental. Adicionalmente foram realizadas 23 entrevistas semi-estruturadas com (ex)secretários, (ex)gestores e representantes da sociedade civil atuantes nos dois municípios realizadas em 2021, resultando em 25 horas de gravação, que foram analisadas e suas ideias incorporadas neste artigo.

6O artigo está organizado em mais três seções. A próxima apresenta os elementos conceituais e metodológicos sobre capacidades estatais. A terceira seção analisa a trajetória das políticas alimentares em Belo Horizonte e Curitiba a partir das dimensões e indicadores apontados na segunda seção. A quarta seção traz as considerações finais do trabalho e, na sequência, temos as referências bibliográficas.

Capacidades estatais: elementos conceituais

7A literatura sobre capacidades estatais reconhece e valoriza as características, as condições e as dotações dos Estados como variáveis explicativas dos processos de desenvolvimento e da implementação das políticas públicas. É recorrente encontrar na literatura diversas dimensões em análise, como capacidade coercitiva, fiscal, administrativa, relacional, penetração no território e política (Nunes e Perissonotto, 2024; Souza e Fontanelli, 2020; Gomide, Pereira e Machado, 2017; Cingolani, 2013), sendo pergunta central como orientação para a seleção das dimensões em análise a “capacidade para quê?”. Em nosso caso, trata-se fundamentalmente das capacidades para implementar políticas alimentares.

8Com base nessa literatura, este artigo trata as capacidades estatais como variáveis explicativas e coloca ênfase em duas dimensões que influenciam a implementação das políticas alimentares: as capacidades técnico-administrativas e as capacidades político-relacionais. A primeira refere-se às características e às competências dos agentes do Estado para levar a efeito suas políticas públicas, bem como aos recursos financeiros e tecnológicos, infraestruturas e dispositivos técnicos que permitem a coordenação intra e intergovernamental, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas. A segunda refere-se às habilidades da burocracia do Executivo de gerenciar canais interlocução e negociação com os diversos atores sociais (Gomide e Pires, 2014) e os mecanismos de interação dessa burocracia com diferentes atores do sistema político-representativo, canais institucionalizados de participação da sociedade, e articulação com os órgãos de controle interno e externo (Gomide, Pereira e Machado, 2017).

9Apesar da distinção entre as duas dimensões, ressaltamos o caráter político de ambas. Por exemplo, compreendemos o indicador coordenação intra e intergovernamental de políticas públicas como um processo técnico e político (Repetto e Fernandez, 2012). Técnico, na medida em que são fundamentais os dispositivos para implementar de forma conjunta, eficiente e eficaz as políticas públicas. Político, dado que a coordenação demanda enfrentar restrições e resistências, e exige a cooperação e negociação com diversos atores governamentais e não governamentais. Ademais, incorporamos na análise as alianças políticas e as dinâmicas interpartidárias que contribuem para a implementação/continuidade das políticas alimentares em municípios. Por um lado, diversos estudos pontuam a descontinuidade das políticas públicas nos governos subnacionais provocada por dinâmicas eleitorais e mudanças na configuração político-partidária (Nogueira, 2006; Spink, 1987). Por outro, alguns estudos (Heredia et alii, 2012; Leal, 1975) destacam o modo como os sistemas de reciprocidade entre os atores do executivo local e seus correligionários do mesmo partido e as articulações entre diferentes tendências ou partidos são determinantes nas políticas públicas locais. Essas reflexões, somadas aos resultados das entrevistas, nos estimularam a incorporar o indicador “alianças políticas e dinâmicas partidárias” na análise. A Figura 01, abaixo, sumariza os indicadores que orientam a análise das políticas alimentares em Belo Horizonte e Curitiba, apresentadas na seção seguinte.

Capacidades estatais em políticas alimentares de Belo Horizonte (MG) e Curitiba (PR)

10Antes de adentrar na análise das capacidades estatais na condução das políticas alimentares em Belo Horizonte e Curitiba, é necessário apresentarmos brevemente alguns elementos que marcam estas experiências, surgidas em meados dos anos 1980, em um contexto de elevação do custo da cesta básica e de dificuldades de acesso aos alimentos.

11Em Belo Horizonte, a Prefeitura Municipal criou em 1983 um Departamento de Abastecimento, vinculado à Secretaria de Indústria, Comércio e Abastecimento, considerado o início da trajetória local em políticas alimentares (Mafra, 2004; Aranha, 2000). Em 1993 foi criada a Secretaria Municipal de Abastecimento, integrando diretorias de produção, comercialização e consumo alimentar, além de um amplo conjunto de políticas alimentares (Aranha, 2000). Três reformas administrativas marcam a trajetória desta secretaria. A primeira no início dos anos 2000, que subordinou esta à Secretaria de Coordenação de Políticas Sociais, reduzindo sua autonomia decisória e peso político em relação às outras secretarias, destacando a área de assistência alimentar em detrimento das áreas de distribuição e produção dos alimentos (Braga, 2019; Aranha, 2000). A segunda em 2011, quando a Secretaria passou a ser denominada de Secretaria Municipal Adjunta de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), e a terceira, em 2017, quando foram retomados serviços da década de 90 (Caisan, 2019), com a criação da Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania e, nela, a Subsecretaria de SAN. Embora a ocupação de um lugar inferior na estrutura institucional, considera-se que a área recuperou espaço político e orçamentário, sendo reconhecida pelas diversas políticas públicas que executa.

12Em Curitiba, a Secretaria Municipal do Abastecimento foi criada em 1986, sugerida pelo Plano de Ação para 1983-1987, que destacava a necessidade de o município desenvolver estratégias para reduzir o custo da cesta básica (Uchimura e Bosi, 2003; IPPUC, 1984). A partir da experiência inicial do Mercadão Popular, logo a Secretaria ganhou importância e, em 1995, administrava a Feira Livre Volante, supermercado municipal de Curitiba, feira especial de produtos da época, programa Direto da Roça e do Mar, Varejões Municipais e diversas feiras temáticas (Carvalho, 2017). Em 2001 a Secretaria passou por uma reestruturação, momento que três Departamentos e novas institucionalidades foram estabelecidas, como o Conselho Municipal de SAN, a Câmara Intersetorial (Caisan) e Conferências Municipais (Ribeiro, 2020). Em 2017 estava prevista a fusão da mesma com a Secretaria de Meio Ambiente, o que, segundo os entrevistados, gerou reações negativas na burocracia governamental. Propostas de reformulações nas políticas públicas, o compromisso com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a gestão política e estratégica feita pelo Secretário, sobretudo pelo apoio político do Prefeito, contribuíram para que a Secretaria mantivesse sua missão explícita de promoção da SAN. Houve a troca de nome para Secretaria Municipal de SAN, em 2019, com maior protagonismo e atuação nas problemáticas alimentares contemporâneas, como obesidade, mudanças climáticas, agricultura urbana, agroecologia, etc.

Recursos Humanos

13Em 1993 em Belo Horizonte o abastecimento alimentar foi definido como prioridade do governo, o que foi crucial para a mobilização de recursos e envolvimento dos setores governamentais (Aranha, 2000). A Secretaria foi composta por uma equipe multidisciplinar, que possuía habilidades técnicas, inserção política e reconhecimento acadêmico (Mafra, 2004, Aranha, 2000), sendo que parte da equipe trazia o que podemos chamar de ativismo institucional (Abers, 2021; Cayres, 2016) nos temas da produção, alimentação e SAN e a experiência na execução de políticas de abastecimento em outros municípios. Nutricionistas, bioquímicos, administradores, economistas e geógrafo foram alguns dos profissionais concursados para ampliar a capacidade de ação e regulação das políticas alimentares. Havia empenho na capacitação da burocracia em termos técnicos e nos temas de abastecimento alimentar, sendo que vários desses profissionais em 2021 ocupavam cargos de direção importantes em outras áreas da Prefeitura. A aquisição de alimentos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tornou-se atribuição da Secretaria em 1994, o que contribuiu com o reforço burocrático e financeiro que dispunha. Em 2017, o Prefeito Kalil nomeou para a Secretaria uma assistente social, com experiência na assessoria parlamentar em temas da SAN e economia solidária, rearticulando uma equipe experiente remontando as ações dos anos de 1990. Isso reanimou, junto com outros elementos, o ativismo institucional, promovendo a criatividade da burocracia governamental, que se manifestou na criação e fortalecimento de institucionalidades (Caisan e Conselho Municipal de SAN) e na emergência de novas políticas públicas. Em 2021 a subsecretaria contava com 96 profissionais concursados, 70 profissionais em cargos comissionados, oito estagiários e 290 profissionais terceirizados.

14No caso de Curitiba, em 1986 não havia concurso público e os (poucos) funcionários contratados e requisitados de outras instituições públicas eram bastante “militantes” no tema ou, em outras palavras, faziam forte ativismo institucional no abastecimento alimentar. À medida que novos programas e ações foram sendo estabelecidos, a Secretaria cresceu e, no início dos anos 2000, já contava com 449 funcionários (Sabbag, 2003). Em 2021 a Secretaria tinha aproximadamente 1000 colaboradores, sendo cerca de 700 terceirizados, 300 concursados e cinco em cargos comissionados. Esta equipe técnica envolve agrônomos, nutricionistas, contadores, advogados, entre outros. Alguns gestores têm trajetória em diferentes secretarias e órgãos públicos do município, do Estado e Governo Federal, o que lhes proporciona experiência em diferentes setores e a compreensão da promoção da intersetorialidade da SAN. Destacam-se os processos de capacitação da burocracia da Secretaria a partir de 2001, para a elaboração do Plano Estratégico para o período de 2001-2004, o qual revisou os objetivos e metas da secretaria, incorporando o conceito de SAN da ONU (Sabbag, 2003); e o curso Master in Business Administration (MBA) de “Gestão Estratégica e Formação de Lideranças”. Assim, desde meados dos anos 2000 ganhou espaço na Secretaria o modelo do novo gerencialismo, pautado pela eficiência da gestão pública e inovação, em vista de um “servidor público empreendedor” com habilidades diversas, entre estas a incorporação de mecanismos digitais no gerenciamento das atividades e de soluções com menor custo. A Secretaria conta com gestores dedicados ao marketing e à comunicação local, nacional e internacional, empenhados para conquistar Editais para Prêmios e Concursos, dando visibilidade às ações locais.

Infraestrutura física e tecnológica

15Em Belo Horizonte historicamente destaca-se a habilidade e a criatividade da equipe burocrática em aproveitar as estruturas públicas disponíveis, que nem sempre estavam sendo utilizadas ou mobilizadas pela prefeitura, e em construir parcerias público-privadas e/ou em mobilizar/articular recursos próprios e/ou de outras escalas de governança, sobretudo no período de 2003 e 2011. Em 2021, a Secretaria contava com um amplo conjunto de equipamentos públicos e infraestruturas que oportunizaram o desenvolvimento de diversas ações focadas em problemáticas alimentares contemporâneas, como acesso aos alimentos, alimentação saudável, geração de renda e práticas sustentáveis. Estima-se 557 unidades escolares; 90 abrigos, albergues, instituições de longa permanência para idosos e unidades de acolhimento institucional; quatro restaurantes populares e um refeitório municipal; um Banco de Alimentos; 223 hortas institucionais e escolares; 39 hortas coletivas/comunitárias; quatro território sustentáveis; uma Central de Abastecimento da Agricultura Familiar e Urbana; 20 equipamentos do Programa Abastecer; 14 feiras de produtos orgânicos; 38 pontos do Direto da Roça; 50 feiras livres; duas feiras modelos/gastronômicas; três mercados públicos, entre outros (Susan, 2021).

16Em Curitiba, a infraestrutura física e tecnológica da Secretaria passou por mudanças ao longo dos anos, mas basicamente manteve e ampliou uma estrutura inicial. Em 2021, a Secretaria contava com dois Mercados Públicos, com 222 empresários cadastrados; 89 Feiras Livres na cidade, envolvendo 388 empresários; 34 Armazéns da Família; 14 Sacolões da Família; cinco Restaurantes Populares; 100 Hortas Urbanas, totalizando cerca de 176 hectares; uma Fazenda Urbana; três espaços de Mesa Solidária; um Banco de Alimentos, que movimenta cerca de 81 Toneladas de alimentos doados; os Jardins de Mel, com cerca de 21 caixas de abelhas nativas sem ferrão espalhadas na cidade, entre outros. Ademais, três processos vêm sendo intensificados ao longo das gestões municipais de Curitiba em termos de infraestrutura física e tecnológica: i) a terceirização da execução dos programas, a exemplo dos restaurantes populares, da alimentação escolar desde o final dos anos 1990 e dos Armazéns da Família em 2015/2016; ii) o incremento das parcerias públicos-privadas, sendo destaque a criação do Programa Mesa Solidária em 2019; iii) a digitalização dos processos e a construção de uma economia 4.0, a exemplo da criação de um sistema para renovação dos concessionários das feiras, de uma plataforma digital para as feiras, mercados e sacolões da família, do cadastro digital das famílias beneficiárias do Armazém da Família, e do sistema “inteligente” para os restaurantes populares. Esses processos visam otimizar os recursos humanos e as infraestruturas física e tecnológica da Secretaria, para garantir maior eficiência.

Recursos financeiros

17Em ambas as cidades estudadas, três fontes garantem os recursos financeiros acionados pelas secretarias: os recursos orçamentários municipais; os recursos federais; e receitas próprias das Secretarias. Em Belo Horizonte, no orçamento municipal o percentual de recursos gastos pela Secretaria era pequeno comparado ao orçamento geral do município, em torno de 0,8% a 1,2%, até final dos anos 90 (Aranha, 2000). Já as receitas próprias são compostas pelas taxas públicas pagas pelos permissionários e as receitas advindas do Restaurante e do Cestão Popular. Destaca-se que desde 1997 foi estabelecido o Fundo Municipal de Abastecimento Alimentar, renomeado em Fundo Municipal de SAN em 2017, que juntamente com os recursos próprios da secretaria revelam-se elementos importantes para a sustentação e continuidade de diversos programas. A partir de 2017, além de retomar o “peso” político, a Secretaria passou a contar com maior orçamento, sendo ilustrativa a complementação realizada pela Prefeitura ao PNAE, na ordem de 20 milhões de reais em 2020. No que concerne aos recursos federais, são importantes os recursos direcionados para o PNAE e a execução do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), além de outros recursos que foram mobilizados para ações específicas, como os equipamentos para os restaurantes populares.

18Em Curitiba nos últimos anos, o orçamento anual da Secretaria foi, em média, de 14 milhões de reais, sendo que em 2021, a Secretaria conseguiu 32 milhões de reais. O aporte atípico ocorreu devido ao novo Programa gerenciado pela Secretaria, criado para atender a população vulnerável durante a pandemia da Covid-19, que ofertou, durante seis meses, uma renda de setenta reais de crédito para 35 mil famílias vinculadas aos Armazéns da Família. As entrevistas mencionam que o reconhecimento da SAN como um modelo estratégico de desenvolvimento urbano contribui para minimizar as limitações financeiras da Secretaria. Ademais, a partir de diálogos com a Câmara Municipal de Vereadores e a Frente Parlamentar de SAN ocorreram complementações por meio de emendas parlamentares e a construção de parcerias público-privadas na realização das políticas alimentares. Soma-se a isso recursos próprios do Fundo do Abastecimento Alimentar de Curitiba, criado em 1990, para operar os Programa Armazém da Família, Sacolões da Família e apoiar ações de agricultura urbana. A Secretaria também conta com recursos do Governo Federal, notadamente para o PAA e o PNAE.

Coordenação inter e intragovernamental

19Em Belo Horizonte a coordenação intergovernamental ocorre a partir da implementação de ações em conjunto entre Diretorias, por meio de reuniões, uso comum de espaços, equipamentos públicos e do alinhamento/coerência das políticas para promoção da SAN no município. A coordenação intragovernamental ocorre por meio de interações com diversas secretarias, a exemplo da Secretaria Municipal de Educação, Secretaria de Meio Ambiente, Secretaria de Assistência Social e Secretaria de Saúde. Em 2018 a Caisan incorporou ainda a Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão, a Secretaria Municipal de Cultura, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, a Fundação de Parques Municipais e Zoobotânica e a Empresa de Turismo de Belo Horizonte (Caisan, 2019). Além de reuniões regulares para pactuação de Diretrizes, a Caisan articula Comitês de Trabalhos em torno de políticas e ações específicas, contribuindo para a articulação e coordenação de políticas públicas. O Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte e a Política Integrada de SAN (Plano Metropolitano RMBH, 2011) têm fortalecido as interações e trocas de experiência entre os municípios da região. As ações de coordenação/articulação são menos evidentes e pouco recorrentes no que diz respeito ao Governo Estadual. A coordenação com o Governo Federal ocorre, basicamente, na execução do PNAE e do PAA, e outras ações pontuais por meio de convênios e de acordos, como os apoios realizados para os restaurantes populares e articulações para a promoção da agricultura urbana e perirubana. Destaca-se o período 2003-2011, quando diversos (ex)gestores que atuaram no município assumiram o Governo Federal e havia maior afinidade política entre os grupos políticos do executivo municipal e federal.

20Em Curitiba, a Secretaria atua em quatro áreas consideradas estratégicas: o mercado comum metropolitano, a agricultura urbana, o acesso alimentar e a “conexão” que articula as ações desenvolvidas pelas Diretorias em parceria com demais atores. Para isso, a Secretaria organiza reuniões semanais das Diretorias, Secretário e Secretários Regionais. Essas interações se fortaleceram nas duas últimas gestões, por meio do Contrato de Gestão, que pactua, anualmente, os objetivos, as metas, os projetos e indicadores a serem alcançados. Diversas ações executadas pela Secretaria perpassam ações e interações com outras secretarias, sendo o discurso da intersetorialidade da SAN mobilizado por diversos entrevistados. Conforme novas configurações de políticas alimentares vão sendo estabelecidas, novas dinâmicas de coordenação intragovernamental mais específicas são institucionalizadas, de forma que a Caisan (criada em 2014) tem sido preterida em relação aos arranjos formados nestes casos. Ademais, diversas ações perpassam arranjos na região metropolitana. Por exemplo, a expansão dos Armazéns da Família e o Pró-Metrópole, que articula 29 municípios do entorno, na perspectiva da construção de um mercado comum metropolitano, envolvendo cooperativas da agricultura familiar e entidades de representação no campo da produção, distribuição (mercados) e consumo. Há uma expectativa de que a região metropolitana curitibana possa se tornar um modelo de implementação do Sistema Nacional de SAN, de políticas integradas e macroregionalizadas, inspirando outras regiões metropolitanas no país. Curitiba ainda chama atenção por ser um dos poucos municípios do país a ter uma Secretaria Municipal de SAN e também ser sede de uma Secretaria de Estado de Abastecimento. De acordo com entrevistados, a composição dessas secretarias com base em gestores com perfil mais técnico a partir de 2005/2006 e o trânsito institucional entre as duas instâncias fortaleceram as interações e contribuíram para as políticas alimentares municipais. Exceto nos casos do PAA e PNAE, foi relatada pouca interação e coordenação com o Governo Federal nas políticas alimentares. Ao longo do período estudado, a Prefeitura Municipal de Curitiba geralmente configurou-se como grupo político de oposição ao governo federal, dando preferência à valorização de inovações locais, que recebem visitas técnicas de gestores federais para conhecer as iniciativas locais.

Relações com o executivo e o legislativo

21Diversas entrevistas relatam a prioridade e o ativismo conferidos por Patrus Ananias às temáticas alimentares, sendo este apoio fundamental para a fundação da Secretaria e para o fortalecimento de diversas políticas alimentares em Belo Horizonte. A partir do reconhecimento nacional e internacional das ações em curso e das demandas da população belo-horizontina, todas as gestões seguintes deram continuidade às políticas alimentares, ainda que com diferentes graus de apoio político e financeiro e produção de inovações. No legislativo, embora certas resistências quanto ao formato, o desenho e o orçamento iniciais da Secretaria foram aprovados pela Câmara de Vereadores, de modo geral, não havendo bloqueios ou resistências para a atuação da Secretaria. Sua relação com a Câmara de Vereadores é bastante institucional, havendo um grupo de parlamentares defensores dos temas da SAN, resultando em boa aceitação das propostas.

22Também em Curitiba o apoio de Roberto Requião na estruturação da Secretaria e das primeiras políticas alimentares é considerado fundamental. Requião teria dado respaldo para estruturar uma equipe de militantes para construir políticas alimentares. Em anos posteriores, a Secretaria recebeu maior ou menor apoio do executivo, e a partir de 2007 assumiu um perfil mais técnico e menos político. Em 2017 a Secretaria passou a ocupar maior centralidade na gestão municipal e a receber reconhecimento do Prefeito. Esta mudança é, também, creditada às inovações e projetos gestados pela Secretaria, inclusive pela pandemia que a colocou em destaque. Ainda, os vereadores, sejam da base ou da oposição ao executivo municipal, recebem bem os temas da Secretaria. Em 2019 houve a criação da Frente Parlamentar de SAN, que apesar de ser presidida por uma vereadora de partido de oposição ao Prefeito, tem uma boa relação com as ações da secretaria.

Alianças políticas e dinâmicas interpartidárias

23Apesar da fragmentação das coalizões, a trajetória da política de Belo Horizonte é caracterizada por certa continuidade, seja na composição política, seja no apoio às políticas alimentares. Em 1992 Patrus Ananias, vinculado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi eleito Prefeito e, com isso, avançou na institucionalização de ideias sobre abastecimento alimentar defendidas pelo Partido e experienciadas em outros municípios brasileiros (Grisa, Elias e Thies, 2020). Sua gestão contou com o apoio de alguns partidos, dentre eles o Partido Socialista Brasileiro (PSB), com Célio de Castro como vice-prefeito. Na eleição seguinte, Célio de Castro assumiu a Prefeitura com apoio do PT, mas logo se afastou e quem assumiu foi o vice-prefeito do PT. Após duas gestões do PT na cidade, o partido apoiou a candidatura de Márcio Lacerda. Ainda que com diferenças no ativismo do executivo nas questões alimentares, diferentes configurações institucionais e perfis distintos dos Secretários de Abastecimento e SAN, essas alianças permitiram a continuidade das políticas alimentares na cidade. Ademais, as confluências partidárias entre o município e o Governo Federal permitiram o fortalecimento de certos programas, sobretudo aquelas relativas à assistência alimentar. Essas alianças locais foram rompidas a partir das eleições municipais de 2012, quando Patrus Ananias e Márcio Lacerda disputaram o pleito, sendo o segundo eleito para o período 2013-2016. Diversas entrevistas relatam este período como de maior fragilidade da Secretaria, manifesta, por exemplo, em cinco alterações na sua Direção. Em 2016, embora a coligação capitaneada pelo PT tenha disputado as eleições com Alexandre Kalil, este eleito manteve a área de SAN na condição de Subsecretaria, e estruturou uma equipe a partir de diálogos e indicações do Patrus Ananias, buscando resgatar o ativismo institucional dos anos 1990 e fortalecer políticas públicas e espaços institucionais.

24Em Curitiba a Secretaria foi criada na gestão de Roberto Requião, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), primeiro prefeito eleito em eleições diretas após o período ditatorial, derrotando por curta margem de votos o candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT) Jaime Lerner. Requião atuou em diversas frentes, sendo uma delas o abastecimento alimentar, que permaneceu como legado para as gestões seguintes (Nazareno, 2005). Jaime Lerner assumiu a Prefeitura no pleito seguinte e estabeleceu um perfil, considerado nas entrevistas, mais técnico e menos político para a Secretaria. Sua gestão foi marcada pela aprovação da Lei Orgânica 7671/1991, que reduziu o número de secretarias e reestruturou as coordenações regionais no município, mantendo, contudo, a Secretaria do Abastecimento considerada estratégica. Os anos seguintes são marcados pela continuidade em administrações do PDT e com proximidade e trânsito institucional de gestores do governo estadual. As duas gestões do Cassio Taniguchi receberam forte influência de atores políticos presentes na gestão estadual, pois sua reeleição se fundamenta numa ampla coalizão de apoio não só municipal, mas paranaense (Nazareno, 2005). Dando continuidade à coalizão, ainda que sob a liderança de outro partido, Beto Richa assumiu a gestão no período de 2005-2010, logo Luciano Ducci, vice-prefeito, assumiu a prefeitura no período 2010-2012 devido ao afastamento de Beto Richa para eleição estadual. Disputas eleitorais em 2012 colocaram o PDT na liderança da gestão municipal, ainda que com uma coligação partidária distinta daquela de períodos anteriores. Por sua vez, as eleições de 2016 marcaram o retorno de Rafael Greca vinculado inicialmente ao Partido da Mobilização Nacional e, posteriormente, ao Partido Democratas. Apesar das inúmeras reconfigurações políticas, o reconhecimento da importância das problemáticas alimentares contribuíram para a continuidade e fortalecimento das políticas alimentares no município.

Mecanismos de participação social

25Em 1994, em Belo Horizonte, foi criado o Conselho Municipal de Abastecimento, de caráter consultivo e composto por 1/3 de representantes de entidades vinculadas à produção de alimentos; 1/3 vinculado aos consumidores, trabalhadores e moradores; e 1/3 com representantes do Poder Público. A experiência aos poucos foi esvaziada e o Conselho foi desativado. No período, outros mecanismos foram mobilizados para garantir a participação social, por exemplo, o orçamento participativo (as prioridades do abastecimento foram definidas em assembleias populares em 1999), o Conselho Municipal de Alimentação Escolar, entre outros (Mafra, 2004). Em 2000 foi criado o Conselho Municipal de SAN, cuja composição, em 2021, contava com seis representantes do poder executivo, oito da sociedade civil e seis do setor de alimentos, tendo caráter deliberativo no âmbito de sua competência e consultivo nos demais casos. Desde o seu reestabelecimento foram realizadas quatro Conferências Municipais, as quais dão subsídios para a atuação da Caisan. A partir de 2017 a Secretaria Executiva do Conselho passou a contar com quatro servidores de carreira, foram estabelecidas novas rotinas de trabalho e nova composição. A Secretaria também conta com espaços mais ou menos formalizados no âmbito de políticas públicas específicas (alimentação escolar, agricultura urbana), e instâncias de diálogos com pesquisadores, a exemplo dos Seminários Internacionais (realizados em 2019 e 2021), Seminário Municipal de SAN (realizados em 2017, 2018, 2019 e 2021) e o Fórum de Pesquisadores de SAN. Esses últimos, em particular, asseguram proximidade entre pesquisa e ações desenvolvidas pela Secretaria.

26No caso de Curitiba, a Prefeitura já tinha criado no início dos anos 2000 espaços de participação social nas regiões administrativas do município, a exemplo das Audiências Públicas Orçamentárias, ainda que em um formato de cima para baixo (Horochovscki e Clemente, 2012). Apesar das limitações, eram espaços para a população se manifestar e discutir questões referentes à saúde, educação, assistência social, entre outros temas. Em 2017, foi criado o Programa “Fala Curitiba” em que, por meio de reuniões nos bairros e participações on line, a população contribui na definição das diretrizes orçamentárias do município. Em 2003, a Prefeitura Municipal estabeleceu o Conselho Municipal de SAN de Curitiba, que passou, a partir de 2014, a ter uma movimentação maior de atividades, com reflexões sobre sua composição e configurações do Regimento Interno, integrando mais representantes da sociedade civil e organizações envolvidas com as questões alimentares (Pastorais, Casas Lares, entre outras). Nas entrevistas foi mencionada maior abertura para diálogos do Conselho com as três últimas gestões municipais, bem como maior reconhecimento do Conselho pelo atual Secretário de SAN. Com efeito, se reconhece (ainda que com certas resistências e enfrentamentos) influência do Conselho no programa de Hortas Urbanas, PAA, PNAE, Mesa Solidária, na ampliação da concepção de SAN e na própria renomeação da Secretaria. Em 2021 o Conselho contava com 21 membros (sete representantes governamentais e 14 da sociedade civil), que se reúnem mensalmente e, eventualmente, em reuniões extraordinárias. Estabelecido o Conselho, a Secretaria avançou na realização de Conferências Municipais (2011, 2015 e 2019) e, após a adesão ao Sistema Nacional de SAN, na construção de Planos Municipais de SAN (I Plano 2016-2019; II Plano 2020-2023). Alinhados com o Plano Diretor do Município e com o Plano de Governo dos dois últimos mandatos, os Planos envolveram a Caisan, o Conselho de SAN, metodologias participativas com a sociedade civil, e com o monitoramento realizado pelo Conselho. Ademais, foi relatado nas entrevistas que diversas demandas alimentares da população chegam à Secretaria por meio do dispositivo Fala Curitiba. Nota-se que embora existam todos esses espaços formalmente constituídos, diversas entrevistas apontaram a fragilidade da participação social nas políticas alimentares curitibanas.

Considerações finais

27As políticas alimentares em Curitiba e Belo Horizonte surgiram em períodos e contextos mais ou menos similares. O retorno das eleições nos governos estaduais e municipais, a redemocratização do país e o agravamento da inflação alimentar e da dificuldade de acesso aos alimentos foram elementos que contribuíram para a criação das Secretarias de Abastecimento nas capitais estudadas, além de um amplo conjunto de políticas alimentares em ambas as cidades. Belo Horizonte tornou-se, também, referência entre as primeiras prefeituras administradas por partidos progressistas após a abertura política. Considerando o desmantelamento de diversas políticas alimentares nacionais na década de 1980 e a redução de políticas sociais no início dos 1990 (Menezes, Porto e Grisa, 2015), ambas as gestões municipais decidiram fazer frente às problemáticas alimentares locais e avançar na criação de políticas alimentares e capacidades estatais para implementá-las. Em ambos os municípios, os entrevistados manifestam conhecimento e orgulho da trajetória e das inovações construídas.

28Ao retomarmos as trajetórias de cerca de 30 anos das duas experiências municipais observamos que as capacidades estatais estão imbricadas nas trajetórias institucionais e políticas dos governos (Centeno, Kohli e Yashar, 2017), cujas dinâmicas influenciam de modo distinto as diferentes dimensões e indicadores analisados, ora fortalecendo uns, ora enfraquecendo outros (ou mesmo desmantelando-os). Essas trajetórias, nem sempre lineares, dos meios (capacidades) que oportunizam e, por sua vez, das próprias políticas alimentares que oscilam de acordo com as configurações societárias e as reproduções/mudanças nas alianças e coalizões políticas locais, influenciadas (mais ou menos) por reconfigurações nas relações de poder em âmbito estadual e nacional. Nota-se que em ambas as Secretarias não houve relato sobre disputas por grupos políticos dentro da Prefeitura para execução de um tipo específico de política alimentar, tampouco as políticas adotadas no campo de gestão dos mercados alimentares parecem ter gerado conflitos significativos com atores políticos locais, que por ventura buscassem mudar o rumo das ações das secretarias estudadas. As ações de coordenação intergovernamental (notadamente com o governo estadual e federal), as relações com o legislativo, os recursos financeiros e os mecanismos de participação social parecem ser particularmente mais vulneráveis às mudanças políticas vivenciadas nos contextos locais. Nessas dinâmicas políticas, encontra-se a burocracia governamental – ora mais próxima ou mais distante da sociedade civil, ora com maior ou menor respaldo, apoio político e autonomia dado pelo Executivo e Legislativo – sendo ativista para manter, ativar ou inovar nas capacidades estatais. Nas duas metrópoles, aproveitando as novas configurações políticas, econômicas e sociais presentes nas duas últimas gestões municipais, a burocracia governamental foi capaz de ativar e potencializar as capacidades estatais para fortalecer as políticas públicas, principalmente durante o agravamento das problemáticas alimentares contemporâneas. Por fim, destacamos que nosso estudo não pretendeu esgotar o assunto, mas trazer reflexões a partir da abordagem das capacidades estatais, sendo necessários novos estudos para trazer ainda mais profundidade a cada um dos indicadores descritos.