1Os artigos abaixo compõem o segundo volume do Dossiê “Alimentação e Políticas Alimentares nas Cidades”, o qual foi organizado no bojo do Projeto de Cooperação Internacional Capes-Cofecub “Sistemas agroalimentares e políticas públicas” (nº do processo 88881.370876/2019-01). O primeiro volume foi publicado em 2023 (nº. 59 da Confins), destacando como o tema da alimentação nas cidades e o papel dos governos locais vinha ganhando espaço e relevância em âmbito internacional e nacional nos últimos 10 anos.

2Corroborando com as evidências já sinalizadas no Dossiê anterior, destacamos que, em 2016, as Nações Unidas estabeleceram a “Nova Agenda Urbana”, por meio da qual os atores governamentais assumiram diversos compromissos com a alimentação, dentre eles a coordenação de políticas de agricultura e de segurança alimentar sustentáveis nas áreas urbanas, periurbanas e rurais (ONU, 2017). Também salientamos que, em 2021 e como um desdobramento da Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares, foi criada a Coalizão de Sistemas Alimentares Urbanos. Facilitada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e pela Aliança Mundial pela Melhora na Nutrição e mobilizando uma diversidade de atores, a coalizão busca apoiar governos nacionais e subnacionais na transformação de seus sistemas alimentares por meio de políticas coerentes e coordenadas e estimular os últimos a participarem nos debates sobre políticas e acordos mundiais relativos ao tema.

3Reforçando essa ênfase nos governos subnacionais, o relatório “O estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no mundo - 2023”, publicado pela FAO, discutiu os desafios trazidos pela urbanização para as questões alimentares; as mudanças e as interações do contínuo rural-urbano e seus efeitos nos sistemas alimentares e na alimentação; e o papel dos governos subnacionais (FAO, FIDA, OMS, PMA e UNICEF, 2023). De acordo com a FAO, FIDA, OMS, PMA e UNICEF (2023), a urbanização está transformando os sistemas alimentares e afetando o acesso a dietas acessíveis e saudáveis ao longo do contínuo rural-urbano. Nesse contexto, os governos subnacionais são agentes importantes para a formulação e implementação de políticas alimentares coerentes, dado o estreito contato com os atores e as particularidades locais (especificidades produtivas, ambientais e de logística; cidades pequenas, médias ou grandes).

4De maneira semelhante, o relatório do IPES-Food “Do prato ao planeta: a alimentação como motor dos governos locais na ação pelo clima” (IPES-Food, 2023) afirma que, enquanto a maior parte dos governos nacionais toma medidas insuficientes, os governos locais assumem protagonismo na construção de políticas pioneiras e ambiciosas nos temas de alimentação e clima. “Os Governos nacionais têm muito a aprender com os municípios, cidades e regiões que estão liderando políticas alimentares integradas e produzindo benefícios climáticos, econômicos e sociais. Em cada continente, as políticas alimentares locais estão ganhando força, compromissadas com a transformação dos sistemas alimentares” (IPES-Food, 2023, p. 18).

5Confluindo com esses debates internacionais, destacamos no Brasil a construção da Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades, anunciada pelo Ministério do Desenvolvimento Social no final de 2023. Essa estratégia busca ampliar a produção, o acesso, a disponibilidade e o consumo de alimentos adequados e saudáveis, priorizando os territórios periféricos urbanos e populações em situação de vulnerabilidade e risco social (Brasil, Presidência da República, 2023). Trata-se de uma política alimentar inovadora por, pelo menos, quatro elementos: i) diferentemente de décadas anteriores, em que as cidades eram vistas como espaços onde os alimentos (que vinham do rural) chegariam e seriam distribuídos, compreende-se que as cidades são espaços de produção (agricultura urbana e periurbana, agricultura vertical, indústria alimentícia) e têm responsabilidades sobre as dinâmicas de abastecimento alimentar por elas mobilizadas (circuitos curtos ou longos, práticas mais ou menos sustentáveis, consideração ou não da alimentação regional, tratamento dos resíduos etc.); ii) explicita-se uma compreensão mais territorializada do abastecimento alimentar, que conecta o rural e o urbano, e que procura dinamizar sistemas alimentares territorializados e circulares; iii) mobiliza referências que visibilizam e procuram dar conta dos principais problemas alimentares contemporâneos: desertos e pântanos alimentares, mudanças climáticas, territórios periféricos urbanos etc.; iv) ainda que seja impulsionada pelo Governo Federal, a estratégia procura fomentar a intersetorialidade e a articulação entre os entes federativos, conferindo protagonismo para as cidades na definição de um plano de ações de médio prazo (Brasil, Presidência da República, 2023).

6Ao encontro dessas evidências e ações internacionais e nacionais e na continuidade do primeiro volume publicado em 2023, esse dossiê contribui com os temas de alimentação nas cidades e políticas alimentares urbanas a partir de sete artigos. Partindo de contextos empíricos diversos - Alemanha, França, Haiti, Curitiba, Belo Horizonte, Manaus, Belém e São Paulo - e de distintas entradas analíticas e quadro conceituais - desertos alimentares, democracia alimentar, assistência alimentar, capacidades estatais, abastecimento alimentar em contexto de crise, sistemas agroalimentares alternativos, perspectiva multinível das transições etc. –, todos os artigos reforçam a relevância das problemáticas e das políticas alimentares urbanas.

7O primeiro artigo, de Marina Sutile, intitulado “Desertos alimentares e a sua espacialização na metrópole de Curitiba, Brasil”, trata de um tema que tem ganhado destaque quando se discute a alimentação em sociedades contemporâneas urbanizadas. A pesquisa aborda diferentes aspectos dos desertos alimentares, tais como a distância entre estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis e domicílios; proporção de estabelecimentos de venda de alimentos em relação à quantidade de habitantes e em relação à área. Os resultados do estudo, que derivam da dissertação da autora e que são apresentados em interessantes mapas, indicam que os desertos alimentares da metrópole de Curitiba se manifestam tanto em áreas centrais de alta renda e ampla infraestrutura como em regiões periféricas de população mais pobre e de menos infraestrutura. Ao capturar as nuances e complexidades do tema, a autora conclui que “o processo de produção da cidade e do espaço urbano desempenha um papel relevante na conformação dos desertos alimentares, pois se soma a uma série de precariedades que são características da realidade urbana e metropolitana do Brasil, com condições de segregação socioespacial, desigualdade, precarização e periferização”.

8O segundo artigo, de Camila Lago Braga e Cristiane Cavalcante Lima, discute o tema da democracia alimentar entre populações em situação de vulnerabilidade social, analisando o caso de duas cozinhas solidárias (“Boca da Mata” e “Arte na Cozinha”) em Manaus, Amazonas. A partir de entrevistas com atores chaves, a pesquisa aponta para a contribuição dos casos estudados para a democracia alimentar, sendo que em ambas as inciativas há uma participação ativa dos atores envolvidos nas decisões tomadas. Mesmo em um contexto marcado pela diversidade do público atendido e pelo fato de que o serviço é prestado por pessoas envolvidas em ativismos e familiarizadas com a realidade das comunidades atendidas, as autoras apontam para alguns desafios, sobretudo em termos da origem dos alimentos, que representam um obstáculo para a oferta de refeições que promovam a sustentabilidade do sistema alimentar.

9Abordando outra temática que segue ganhando importante destaque nos estudos agroalimentares, o artigo “Alimentação Escolar e Alimentos da Agricultura Familiar em Região Metropolitana na Amazônia Brasileira”, de autoria de Riziane Portal, estudou os processos de aquisição e fornecimento de alimentos da agricultura familiar para atender a alimentação escolar em Instituições Federais de Ensino Superior situadas em Região Metropolitana de Belém. A pesquisa conclui que, no local pesquisado, se tem avançado na aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, sendo um exemplo concreto da intersetorialidade na formulação e implementação de políticas públicas. Não obstante, algumas limitações seguem presentes, sobretudo no planejamento da produção, no cumprimento da agenda de solicitações, na baixa participação nas chamadas públicas e no entendimento da legislação vigente.

10Morgane Retière e Paulo E. Moruzzi Marques também discutem as políticas de alimentação escolar, mas para o caso da metrópole parisiense, onde estão presentes quadros legislativos que abordam o abastecimento sustentável da alimentação escolar como ferramenta para fortalecer as agriculturas alternativas (local, orgânica, familiar). Dado o interesse particular dos autores em compreender a capacidade de manobra dos governos municipais em termos de transição para sistemas alimentares urbanos mais sustentáveis, eles examinam a implementação da lei Grenelle 1, que estabelece que, no mínimo, 20% da demanda dos estabelecimentos escolares deve ser garantida com produtos orgânicos e de baixo impacto ambiental. A partir da realização de entrevistas com atores-chave, esta pesquisa demostrou que os circuitos alimentares alternativos dependem, em grande parte, do apoio político local e do esforço constante dos gestores locais. Entretanto, dada as limitações de recursos financeiros e humanos desses últimos, há um desequilíbrio de forças entre o regime agroindustrial e os sistemas de abastecimento alternativos, indicando a complexidade de implementação de iniciativas de desenvolvimento territorial sustentável, mesmo quando estas estão regulamentadas em lei.

11O papel dos governos municipais na implementação de políticas alimentares também é o foco do artigo de Silvia Zimmermann, Catia Grisa e Adriana Aranha, centrando-se nas capacidades estatais de duas metrópoles brasileiras (Curitiba e Belo Horizonte) para a condução de políticas alimentares. Partindo de algumas questões contemporâneas (urbanização das sociedades, as ameaças à produção provocadas pelo aquecimento global e o acirramento da desigualdade e insegurança alimentar nutricional), o artigo olha para a trajetória das políticas alimentares que existem a cerca de 30 anos nas duas cidades. Conforme o estudo aponta, diversos fatores contribuíram para a construção e continuidade das políticas alimentares nas cidades estudadas, com destaque para o “ativismo institucional e a estruturação burocrática, somada a capacitação em segurança alimentar e nutricional e a incorporação dos princípios de eficiência e inovação pública, assim como o reconhecimento das políticas alimentares pela população local e o reconhecimento nacional e internacional dos temas alimentares”. Para concluir, as autoras argumentam acerca da importância das capacidades estatais para o fortalecimento das políticas públicas, dado que nas duas metrópoles a burocracia governamental foi capaz de ativar e potencializar os programas alimentares, principalmente durante o agravamento das problemáticas alimentares contemporâneas.

12Joana Ortega de Lima Amorim e Marta Cristina Marjotta-Maistro, por sua vez, analisam outros formatos de relacionamento entre agricultores e consumidores (ou co-agricultores) a partir de comunidades que sustentam a agricultura, conhecidas como CSAs. As autoras, a partir da análise de nove CSAs, sendo cinco atuantes na Alemanha (conhecidas como SoLaWi) e quatro no estado de São Paulo (Brasil), observam as práticas e relações das CSA nos aspectos ambientais, os quais foram analisados a partir de distintos indicadores qualitativos construídos através de uma combinação de metodologias. Os resultados indicam efeitos positivos das CSAs na dimensão ambiental, apontando para diferentes potenciais destas iniciativas, com destaque ao fato de que são “modelos de produção agroecológicos que buscam garantir a saúde do ambiente e das pessoas envolvidas na atividade agrícola, consumidores e agricultores”.

13A última contribuição do dossiê, de autoria de John Osthe e Valdemar J. Wesz Junior, tem como foco a República do Haiti, país que tem enfrentado, historicamente e na atualidade, problemas de ordem econômica, social, política, humanitária e climática. Estas variadas, simultâneas e interrelacionadas crises têm impactado o abastecimento alimentar de maneira intensa e direta. A partir de entrevistas com diferentes atores ligados ao tema agroalimentar, o artigo explora os espaços, os atores e as dinâmicas de abastecimento alimentar no país, focando de maneira específica no pequeno município de Saint-Raphaël (Departamento Norte), onde o mercado agrícola municipal exerce grande centralidade. Mas, tanto em termos locais como nacionais, grande parte da dinâmica de abastecimento perpassa as madan sara, mulheres empreendedoras individuais independentes que compram a produção das famílias agricultoras locais e levam para as cidades maiores, trazendo no retorno outras mercadorias, com destaque aos produtos importados. “Elas estabelecem uma conexão vital entre as áreas rurais e urbanas, sendo chaves para a circulação de produtos e para o abastecimento alimentar do Haiti, com enorme capacidade de resistência e resiliência mesmo em um contexto nacional marcado por múltiplas crises”.

14Desejamos a todos e todas uma ótima e inspiradora leitura, seja para estimular estudos em outras políticas alimentares, cidades e contextos, seja para impulsionar novas questões de pesquisa e aprofundamentos teóricos-analíticos.