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Para além das metrópoles globais: a atuação de investidores financeiros nas cidades médias brasileiras

Beyond the global cities: the role of financial investors in Brazil's medium-sized cities
Au-delà des métropoles globales : le rôle des investisseurs financiers dans les villes moyennes du Brésil
Maira Magnani et Lucia Shimbo

Résumés

Après la crise des subprimes en 2008, la littérature sur le rôle du capital financier dans la production de l'espace urbain s'est considérablement développée. Cependant, cette production s'est principalement concentrée sur le processus de financiarisation dans les grandes villes, rendant rares les analyses sur les villes de taille moyenne. Cette étude vise à combler cette lacune. Nous soutenons que la financiarisation de ces villes n'est pas une simple extension du phénomène observé dans les métropoles, mais un processus distinct avec ses propres caractéristiques. La recherche identifie deux facteurs principaux qui influencent cette différenciation : la nature des investisseurs et leurs critères de décision. Comme nous l'avons constaté, dans le cas des villes moyennes, les investisseurs financiers ont tendance à être plus enclins à prendre des risques et à privilégier la diversification des investissements par segment immobilier et par localisation régionale. Sur la base de l'analyse de ces facteurs, nous avons pu regrouper en quatre dimensions ce qui caractérise le processus de financiarisation des villes globales et des villes moyennes, avec ses particularités. Il s'agit des flux d'investissement, de la nature des acteurs financiers, de l'échelle géographique des investissements et des utilisations et segments immobiliers résultant des investissements. La méthodologie comprend plus de 40 entretiens semi- structurés, l'analyse de documents de presse et des recherches sur les portefeuilles immobiliers des investisseurs institutionnels, fournissant ainsi une base empirique solide pour les discussions présentées.

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Texte intégral

1Após a crise de 2008, um representativo número de estudos nos campos da geografia, arquitetura e urbanismo, planejamento territorial e áreas afins se dedicou a compreender os efeitos trazidos pelo crescente fluxo de capital financeiro, suas técnicas e atores, na produção do espaço.

2Esse debate sobre os processos de financeirização urbana ficou majoritariamente concentrado no estudo das principais metrópoles dos países capitalistas centrais e periféricos. Uma quantidade menor de estudos se dedicou às metrópoles denominadas como secundárias no mercado global de investimentos ou, ainda, às cidades médias. Nesse sentido, este artigo procura contribuir para essa última tendência buscando analisar os critérios de decisão mobilizados por investidores financeiros ao investir nas (assim chamadas por esses atores) “cidades secundárias” ou “mercados secundários”.

3Tendo em vista a necessidade de um estudo aprofundado sobre o processo de financeirização das cidades médias, buscamos oferecer nesse artigo uma interpretação da financeirização de cidades médias não somente como um processo de expansão da fronteira desse fenomeno das cidades globais para cidades médias, mas também como resultado de um processo distinto de financeirização, com peculiaridades próprias. Como argumentamos, a compreensão dos fatores que tornam distinto o processo de financeirização em cidades globais e médias é essencial. Nesse sentido, identificamos que (1) a natureza do investidor e (2) seus critérios de decisão quanto a um investimento direcionam nossa compreensão sobre o peculiar processo de financeirização. A natureza do investidor financeiro se apresenta como relevante aspecto pois, diferentemente dos mercados tradicionais (considerados como “core” pelos investidores), os investimentos feitos em cidades médias são realizados por investidores mais propensos ao risco, tais como, empresas de capital aberto (property companies) e seletos fundos de investimento imobiliário que possuem maior capacidade organizacional. Esses investidores, como mostramos, adotam critérios de decisão que priorizam a diversificação dos investimentos por segmentos (ligados aos usos dos edifícios) e a localização regional, em detrimento de localizações intra-urbanas.

4A partir da compreensão desses dois fatores, analisamos em quatro dimensões como o processo e financeirização ocorre em cidades globais e cidades médias. A primeira dimensão são os fluxos de investimento que são direcionados para esses dois loci de financeirização; a segunda, a natureza dos atores financeiros que ancoram seu capital nas cidades globais e cidades médias; a terceira, a escala geográfica dos investimentos; e a quarta, os usos e produtos imobiliários resultados dos investimentos.

  • 1 A coleta de dados e os resultados desse artigo são resultados de dois projetos de pesquisa já final (...)

5Para desenvolver esse artigo, utilizamos de um material empírico denso, fruto da realização 1) de mais de 40 entrevistas semiestruturadas realizadas desde 2019 com uma gama de atores envolvidos no processo de investimento imobiliário no Brasil — como gestores de fundos de investimento imobiliário, property companies, fundos de pensão; desenvolvedores imobiliários; consultorias imobiliárias; reguladores e etc.; 2) de análise de material de imprensa; e 3) pesquisa documental em portfólios imobiliários de investidoresinstitucionais (fundos de pensão, fundos de investimento imobiliário e property companies)1.

6O artigo encontra-se estruturado em cinco partes, além dessa introdução. Na primeira, recuperamos o debate internacional sobre a financeirização urbana, para então, focalizar na escola brasileira de financeirização da produção do espaço, marcada por duas ondas de estudo. A segunda parte apresenta as estratégias metodológicas para se analisar a atuação de investidores financeiros no mercado imobiliário comercial. A terceira e quarta parte apresentam a discussão dos resultados empíricos da pesquisa, centrados nos tipos de atores que investem em cidades médias e nos seus critérios de investimento. Por fim, nas considerações finais, trabalhamos quatro aspectos que distinguem a financeirização em cidades médias e globais.

A financeirização urbana: seus objetos e suas ondas de estudo

7Diferentes objetos e espaços do ambiente construído (habitação, infraestrutura, edifícios comerciais, setor de logística etc.) passaram a ser financiados por circuitos dos mercados de capitais, envolvendo diferentes atores e instrumentos, a partir dos anos 1980. Embora adquiram traços particulares em diferentes países e regiões e segmentos (infraestrutura, residencial e comercial) algumas tendências comuns foram destacadas com relação ao segmento comercial, foco desse estudo.

Um segmento negligenciado: o imobiliário comercial

8Os estudos urbanos dedicados aos processos de financeirização apresentaram, desde a crise de 2008, grande foco sobre a habitação (Aalbers, 2012; Fields, 2018; Fix, 2011; Shimbo, 2012; Rolnik, 2015), a infraestrutura (Hebb & Sharma, 2014; Hagerman & Hebb, 2009; O’Neill, 2013); e aquilo que ficou reconhecido como grandes projetos urbanos (Savini & Aalbers, 2016; Theurillat & Crevoisier; 2013; Halbert & Rouanet, 2014)

9Um número significantemente menor de estudos procurou compreender as mudanças envolvidas com o mercado imobiliário comercial, que engloba escritórios, shoppings center, condomínios logísticos, residencial para renda, hotéis, universidades, entre outros equipamentos (Halbert, 2010; Halbert & Attuyer, 2014; Sanfelici, 2018). As mudanças ocorridas nesse mercado estão relacionadas, principalmente: 1) ao seu crescimento com a demanda das empresas ocupantes e o funcionamento dos mercados globais de propriedade (Lizieri, 2009); 2) à mudança no padrão de posse da propriedade (locação versus propriedade direta) dos grandes grupos econômicos (Halbert, 2013); 3) ao envolvimento dos investidores institucionais e financeiros como investidores no mercado imobiliário comercial (Sanfelici & Magnani, 2023; Theurillat et al, 2010; Van Loon & Aalbers, 2017; Sanfelici & Halbert, 2019).

10Este artigo procura contribuir para essa última tendência da literatura nacional e internacional que analisa o envolvimento de investidores financeiros de diferentes naturezas — fundos de pensão, fundos de investimento imobiliário, bancos, etc. — no mercado imobiliário comercial. De forma geral, esses atores apresentam um comportamento seletivo na condução de seus investimentos, direcionando capital principalmente para as chamadas “cidades globais” (Martin & Minns, 1995; Theurillat et al, 2010) e para ativos imobiliários de alto padrão construtivo (Sanfelici & Magnani, 2023; Tapp & Weber, 2023).

11Esse comportamento pode ser explicado tanto pelo denominado “viés de familiaridade" (familiarity bias) (ver mais em Henneberry & Mouzakis, 2013) como também pelas redes de contato (social networks) que facilitam — ou não — o investimento em determinadas cidades (ver mais em David & Halbert, 2013). Como reflexo desse olhar altamente seletivo sobre o quê e onde “vale o investimento” para esses investidores, cidades médias e “não atrativas” passaram a ser consideradas secundárias tanto nas tomadas de decisões de investidores como na agenda de pesquisa sobre financeirização urbana.

As duas ondas de estudo no Brasil e a extensão para as cidades médias

  • 2 Esse item se baseia principalmente no argumento desenvolvido por Shimbo e Sanfelici (2023a).

12As transformações nos setores da habitação, infraestrutura, projetos urbanos e imobiliário comercial no Brasil foram flagradas em duas ondas de estudo que acompanharam os ciclos econômicos e políticos do país e, consequentemente, os períodos de elevação e de crise no mercado imobiliário e na construção civil2.

13A primeira onda de estudos se concentrou no momento de elevação das atividades imobiliárias que ocorreu entre 2009 e 2014. Como demonstram Klink e Souza (2017), esses estudos se concentraram em quatro tendências principais: 1) os novos circuitos de capital e as inovações financeiras no mercado imobiliário (Fix, 2011; Sanfelici, 2013; Rolnik, 2015); 2) as grandes incorporadoras e construtoras de capital aberto na bolsa de valores com atuação no setor habitacional, com dependência em relação aos fundos públicos e semi- públicos (Royer, 2009; Shimbo, 2012; Sanfelici & Halbert, 2016); 3) a privatização das infraestruturas urbanas (Britto & Rezende, 2017); e 4) as parcerias público-privadas e os mecanismos financeiros para o desenvolvimento urbano (Klink & Stroher, 2017; Pereira, 2016).

14Essa onda identificou a financeirização como o vetor de transformação estrutural do mercado imobiliário nacional justamente devido à sua aproximação com o mercado de capitais. Em termos teóricos, a economia política foi a principal abordagem escolhida. Além disso, o foco prioritário dos estudos foi a habitação, pois foi o segmento que mais se alterou no período.

15A segunda onda de estudos examina o período de 2015 a 2022, marcado tanto por uma redução inicial das atividades imobiliárias seguida de uma retomada quanto pelos avanços incrementais da financeirização urbana, com a difusão de novos instrumentos financeiros e pela expansão para setores econômicos até então pouco próximos das finanças.

16Uma tendência dessa segunda onda diz respeito especificamente ao mercado imobiliário comercial. Ela focaliza o papel dos investidores institucionais e dos consultores imobiliários (Magnani & Sanfelici, 2022; Shimbo & Sanfelici, 2023b), que foi fundamental para o aumento de instrumentos financeiros lastreados no imobiliário comercial. Parte desses estudos deu enfoque aos fundos de investimento imobiliário e o seu papel na configuração urbana das principais metrópoles do país (Sanfelici & Halbert 2019; Nakama & Rufino, 2022).

17Apesar da concentração de estudos sobre as metrópoles, alguns autores vão tratar, com mais ênfase, a crescente difusão territorial das práticas e dos agentes ligados à financeirização em cidades médias e pequenas (Zamboni et al., 2019; Friendly, 2019; Abreu, 2016). Como mostram esses estudos, o processo de financeirização nessas cidades abriga características peculiares que não podem ser analisadas e compreendidas a partir, somente, do arcabouço teórico e conceitual já desenvolvido pelo debate da financeirização nas metrópoles principais do Brasil. Melazzo et al. (2021), por exemplo, mostram que o crescimento dos Créditos de Recebíveis Imobiliários (CRI) lastreados em créditos habitacionais contribuiu para que as técnicas e veículos financeiros que antes centralizavam suas operações em cidades grandes se difundissem por todo o território nacional brasileiro.

18Contudo, e é aqui que se insere nossa análise, cabe avançar na compreensão dos fatores que tornam distinto o processo de financeirização em cidades globais e médias. Acrescentando importantes elementos nessa análise, propomos neste texto uma adicional contribuição a essa diferenciação sugerindo um olhar mais atento aos critérios que atores financeiros mobilizam no momento de investir em cidades médias e à natureza desses atores. Como resultado desses dois fatores decorrem quatro aspectos que diferenciam o processo de financeirização em cidades globais e cidades médias: (1) os fluxos de investimento que são direcionados para esses dois loci de financeirização; (2) a natureza dos atores financeiros que ancoram seu capital nas cidades globais e cidades médias; (3) a escala geográfica dos investimentos; e (4) os usos e produtos imobiliários resultados dos investimentos.

19A seguir, nas seções 4 e 5 exploramos os dois fatores. Nas considerações finais trabalhamos os quatro aspectos que distinguem financeirização em cidades médias e globais.

Como capturar a fotografia do investimento nas cidadesdias brasileiras: estratégias metodológicas adotadas

20Antes de partimos para os resultados empíricos dessa investigação, cabe destacar a metodologia empregada nesse estudo. Conforme resultado por Halbert (2021) compreender as estratégias de investimento de investidores financeiros é uma tarefa que exige grande esforço metodológico.

21Diante dessa dificuldade, este artigo faz parte de uma investigação travada desde 2019 que resultou em um material empírico denso sobre o investimento de investidores financeiros no mercado imobiliário comercial brasileiro.

  • 3 O termo fotografia é utilizado como uma imagem/abstração que diz respeito a materialidade sica, u (...)

22Trata-se de uma abordagem qualitativa de pesquisa que seguiu diferentes métodos e técnicas3. Quarenta e três entrevistas semiestruturadas foram realizadas com uma gama de atores envolvidos no processo de investimento imobiliário de investidores institucionais brasileiros — como gestores de fundos de investimento imobiliário, property companies, fundos de pensão; desenvolvedores imobiliários; consultorias imobiliárias; reguladores e etc. Foram direcionadas perguntas relacionadas a escolha de segmentos e localizações para a tomada de decisão sobre os investimentos e as relações existentes entre a miríade de atores que participam do desenvolvimento do imobiliário comercial.

23Para além das entrevistas, foi desenvolvida uma análise de mais de 200 matérias coletadas na imprensa brasileira que investiga majoritariamente assuntos econômicos, como InfoMoney, Valor Econômico, Investidor Institucional e afins. Conjuntamente a esse material, foram coletadas e analisadas livestreams de diferentes canais, como Clube FII e GRI Club.

24Como o foco de investigação se centrou em fundos de pensão, fundos imobiliários e property companies — os três atores financeiros com um portfólio considerável de imóveis comerciais no Brasil, — foi realizada uma pesquisa documental que levantou os seus investimentos utilizando os relatórios disponibilizados em seus websites e no cadastro geral da CVM. Com o portfólio desses grandes investidores, nos foi possível verificar a localização, segmento e características arquitetônicas e financeiras dos principais imóveis da carteira. Com esses dados, conseguimos cruzar dados que dizem respeito às estratégias de atuação de investidores financeiros no imobiliário comercial no Brasil bem como, mais especificamente, às características dos investidores que atuam em cidades médias e aos critérios de decisão que esses investidores utilizam.

Quem são os investidores financeiros que investem em cidadesdias?

25Consideramos que a natureza dos investidores financeiros configura-se como o um fator responsável pela distinção do processo de financeirização em cidades globais e médias.

26A primeira grande condição a ser observada quando analisamos quem são os investidores que “se aventuram” em regiões consideradas não atrativas ao investimento financeiro é a sua propensão ao risco e a sua estrutura de financiamento. Seguindo a argumentação e a tipologia de investidores institucionais brasileiros propostas por Sanfelici & Magnani (2023), alguns atores financeiros possuem maior propensão a investir em ativos imobiliários não convencionais ao mercado financeiro — seja pela sua localização ou característica. Como apontado pelos autores, empresas de capital aberto (property companies) e fundos de investimento imobiliário são os dois principais investidores que investem em propriedades comerciais nas cidades médias.

27Os fundos de investimento imobiliário recentemente incorporaram no Brasil nichos e segmentos específicos do mercado de propriedades comerciais em suas estratégias de investimentos. Esses novos fundos foram criados para atrair diferentes tipos de investidores interessados em incluir classes de propriedades comerciais consideradas mais “alternativas”, tanto em segmentos — como hospitais, universidades, hotéis e logística —, como em regiões metropolitanas consideradas menos convencionais ao investimento, como Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, bem como em cidades médias.

28Já com relação às property companies, os autores apontam que empresas como Multiplan, BR Malls, BR Properties, São Carlos e outras, são mais propensas a empregar estratégias de investimento mais arriscadas. Dentro dessa gama diferenciada de estratégias de investimento, essas empresas, que em sua maioria também são operadoras de shopping centers, acabam investindo e desenvolvendo propriedades comerciais em geografias menos seletivas, incluindo cidades de médio porte.

29Complementando as características apontadas por Sanfelici & Magnani (2023), observamos que esses dois tipos de atores financeiros, em especial dos fundos imobiliários, necessitam de expertise interna e redes de contato (social networks) para realizar investimentos em cidades médias. Com relação à expertise interna, as entrevistas realizadas sugerem que os gestores de ativos não se sentem aptos, muitas vezes, a levar a cabo um investimento em cidades cujas dinâmicas econômicas, sociais e imobiliárias não são de seu completo entendimento. Esse desconhecimento se une também ao fraco desenvolvimento de redes de contatos com atores locais, como construtores, governo local, incorporadores etc., o que impede ou dificulta a ancoragem de capital financeiro (Crevoisier & Rime, 2020; Theurillat & Crevoisier, 2013; Bardet et al., 2020) nessas cidades. Nas palavras de um gestor financeiro que evita o investimento em regiões “não-core” por não se sentir integrado nas dinâmicas dessas regiões:

Quando você vai para Belém, é um mercado muito diferente de um mercado [como] de São Paulo e Rio de Janeiro. Todos os atores são diferentes [e] você vai ser sempre o estrangeiro. O [ator] local sempre vai ter uma vantagem em cima de você. Porque ele conhece a política, ele conhece as pessoas, ele conhece os varejistas, ele conhece para onde estão indo essas pessoas [] Então existe um jogo de poder com as pessoas com quem você vai interagir em que a gente tem uma dificuldade muito maior de fazer sem conhecer melhor o mercado. Por isso a gente tem uma preferência para ficar aqui na cidade de São Paulo. Porque a gente conhece, a gente está aqui todo dia. Eu consigo conhecer as demandas antes mesmo delas existirem, justamente por estar em contato com essas pessoas. O contato direto não é uma ligação telefônica ou, no caso, hoje em dia uma conversa por Zoom [...]. Mas eu cruzo com o cara passeando na Faria Lima, eu marco de almoçar. Então essas coisas acontecem até de maneira informal e a gente fica sabendo das coisas. [...] Eu vou saber que estão discutindo uma mudança no plano diretor [...]. Consigo me antecipar aos movimentos de vetor de crescimento da cidade. (Diretor de relação com investidores de Property Company; julho, 2020)

30Considerando que as redes locais de contato, a sociabilidade e o conhecimento sobre o mercado de cidades médias impõem limites à atuação de investidores financeiros, ao examinarmos o panorama dos investimentos nessas localidades, observamos atores com uma estrutura organizacional mais desenvolvida, o que lhes permite contornar esses obstáculos

31Nesse sentido, os fundos de investimento imobiliário de grandes casas de investimento, como Credit Suisse, BTG Pactual, Kinea etc., acabam tendo destaque em cidades médias. Isso se deve, dentre outras questões, 1) à capacidade interna que essas grandes casas possuem para investir na sua capacidade organizacional, por exemplo, estruturando áreas que visam formular teses de investimento exclusivas para cidades médias e; 2) à existência de áreas “complementares”, como setores de desenvolvimento de infraestruturas, que auxiliam não somente na compreensão das dinâmicas locais de cidades médias, como também permitem ganhos de escala na conjugação de investimentos em infraestrutura e em imobiliário.

32A seguir exploramos quais são os critérios de investimento que esses agentes mobilizam no momento de investir em propriedades comerciais localizadas em cidades médias.

Quais os critérios mobilizados pelos investidores financeiros para investir em cidadesdias?

33O segundo aspecto que entendemos ser essencial para a compreensão dos processos distintos de financeirização nas cidades globais e médias é a seleção dos critérios de investimento levados a cabo pelos investidores mencionados anteriormente.

34Quando analisamos os critérios mobilizados por esse grupo de investidores que “aceitam o risco” de investir em regiões consideradas por eles como “não prioritárias”, vemos que esses atores incluem alguns critérios diferentes daqueles comumente utilizados quando o investimento é direcionado para capitais e regiões “core”.

35O primeiro critério que difere substancialmente é a maior preocupação com o tipo de locatário, sua atividade central e sua saúde financeira. Apesar da literatura já ressaltar a importância da qualidade do locatário (Sanfelici, 2018; Sanfelici & Magnani, 2023) , quando o investimento é feito em uma cidade média, a análise desse é ainda mais cautelosa e detalhada devido à preocupação com vacância e liquidez. Como comenta um entrevistado, a vacância em mercados “não core” é muito mais preocupante já que “Amanhã sai um locatário e [então] você tem um problema porque vai demorar sabe-se lá Deus quanto [tempo] pra repor [o locatário]” (Gestor de ativos imobiliários; dezembro, 2021).

36Essa preocupação não se reflete somente na tentativa de firmar contatos atípicos e à natureza da empresa (multinacionais, empresas de varejo etc.), mas também recai em uma observação cuidadosa do uso que esse locatário fará da propriedade em questão, ou seja, se a propriedade será usada e se ela centralizará operações fundamentais da empresa locatária.

37O segmento da propriedade comercial também é fator essencial quando analisamos a inserção de investidores financeiros em cidades médias. Como demonstram nossos resultados, os gestores de fundos imobiliários e property companies apresentam uma geografia de investimento moderadamente menos concentrada nas grandes cidades brasileiras. Isso se deve ao investimento que se concentra em segmentos como o de logística (Magnani et al., 2024) e de shopping centers.

38Ao contrário de mercados como o de lajes corporativas em São Paulo, os investimentos desses atores em cidades médias são impulsionados pelo desejo de diversificar seus investimentos em segmentos imobiliários, priorizando mais essa diversidade do que a localização dos empreendimentos em si. De acordo com nosso material empírico, é possível levantar a hipótese de que, no caso de cidades médias, a intencionalidade do investimento perpassa, em primeiro lugar, o tipo de segmento e, em segundo lugar, a cidade que ancora esse investimento. Em outras palavras, a decisão em investir em cidades médias não envolve, somente, o critério de diversificação territorial dos investidores financeiros. Na realidade, esses investidores procuram investir em diferentes segmentos comerciais e, em seguida, passam a analisar e considerar as regiões ou cidades que se mostram atrativas para investimento. É de importante ressalva que colocar em segundo plano a seleção da localização não é, de nenhuma forma, dizer que a escolha da localização é algo descartável, mas que ela é algo secundário no processo decisório e que segue parâmetros distintos daqueles mobilizados quando o investimento é feito em metrópoles globais.

39A noção de escalas da rede urbana é fundamental para compreender como a localização é, em última análise, selecionada. Uma imagem didática que podemos trabalhar para ilustrar essa seleção é a de um investidor com um mapa do Brasil em suas mãos. Esse investidor irá procurar onde investir em um galpão logístico. Ele selecionará, primeiramente, onde está a maior concentração de mercado consumidor no país. Focando seus olhos na região sudeste, esse investidor dará maior atenção para onde, dentro dessa região, está localizado grande parte desse mercado. A cidade de São Paulo será, portanto, o foco. Sabendo que existe pouca possibilidade de construir um galpão no meio de uma cidade altamente densa e com elevado preço fundiário, esse investidor direcionará seu olhar para as cidades que circundam territorialmente o centro consumidor. Essas são, na visão dos investidores, as cidades médias, o “mercado secundário”. Dentro dessa seleção, o investidor observará quais cidades apresentam boas vias de acesso para o mercado consumidor. Selecionadas as cidades onde passam as rodovias que conectarão o produto que será estocado com o mercado consumidor, o investidor selecionará uma localização na escala regional.

40Essa ilustração do processo decisório revela que a localização, quando o investimento é realizado em cidades médias, não é selecionada na escala intra-urbana, mas sim em uma escala regional que compreende o que esses investidores entendem como mercados secundários e cidades médias. Essa forma de seleção difere consideravelmente do processo de escolha feito para investimentos em metrópoles globais. Quando um investimento em propriedades comerciais é realizado nas principais metrópoles, até a rua que essa propriedade estará é digna de discussão e negociação. Ter um investimento em um edifício corporativo na Avenida Faria Lima em São Paulo carrega não somente o prestígio do nome, mas também o peso de uma avaliação — tanto em termos discursivos, como em termos de avaliações de preço por consultorias imobiliárias — positiva e mais favorável do que um investimento em uma rua a alguns quilômetros de distância.

41No caso de logística, a localização do empreendimento é selecionada a partir de alguns critérios. O galpão investido ou que será construído deve (1) ficar a poucos metros antes de um pedágio da rodovia (para economizar com as idas e vindas dos caminhões); (2) estar instalado onde já existam outros galpões para que sejam feitos ganhos de escala que envolvem, por exemplo, o reaproveitamento de vias de acesso para as rodovias e de câmeras de monitoramento da atividade ao redor dos galpões e do trânsito das rodovias; (3) ser construído onde haja terrenos disponíveis que já tenham sido, ou estão em vias de serem, legalizados; (4) estar idealmente localizado em um município que apresente vantagens competitivas, ao conceder isenção fiscal, por exemplo, e, (5) onde o investidor já possui redes de network pré-estabelecidas, seja com o governo local, seja com desenvolvedores que possuem bancos de terras ou galpões desenvolvidos. Nesse cenário, encontrando uma localização que abrigue alguns desses critérios, pouco importa em qual avenida o galpão estará, dentro ou fora da cidade.

42O mapa abaixo ilustra a aproximação dos galpões logísticos (em vermelho) da principal via de acesso do município de Extrema (Minas Gerais), a Rodovia Fernão Dias BR-381 (em rosa). Em amarelo, representamos, de maneira aproximada, a principal área urbana do município.

Mapa 1 - Galpões logísticos da cidade de Extrema (2023)

Mapa 1 - Galpões logísticos da cidade de Extrema (2023)

Fonte: elaboração de Otto Princigalli com o uso de Google Earth Pro

43Já para os shopping centers, outro importante segmento comercial que atrai investidores financeiros em cidades médias, a lógica de seleção da localização é simples: onde há consumo, há um shopping center. Assim, para os investidores, as cidades médias que possuem um número considerável de habitantes e uma dinâmica econômica que comporta um consumo local são consideradas passíveis de investimento. A seleção da localização do imóvel, portanto, também é feita dentro de uma escala regional: “quais cidades médias 'comportariam' um shopping center?” Apesar da decisão do investimento contar, como supomos, com um pouco mais de cuidado com relação às dinâmicas intra- urbanas se comparado aos investimentos no segmento de logística, o nível escalar do qual parte a análise e decisão de investimento quanto à localização de um shopping center é mais ampliada ao que ocorre na decisão de localização de um imóvel comercial em metrópoles globais.

44Nesse caso, são as property companies os investidores que mais são responsáveis pelo início do processo de ancoragem de investimento. Vale lembrar que faz parte da estratégia dessas empresas ampliar seu mercado, mas, ao mesmo tempo, se ater às suas atividades principais. Assim, prezando por suas capacidades organizacionais, essas empresas mantêm estratégias conservadoras que envolvem o investimento em shopping centers. A possibilidade de aumentar sua diversificação de portfólio de investimento, portanto, é feita através da ampliação territorial para cidades médias.

45A imagem a seguir é um exemplar da estratégia de uma property company. O Ribeirão Shopping é o maior shopping center da cidade de Ribeirão Preto que hoje conta com aproximadamente 728 mil habitantes. Na época de sua construção, em 1981, a Multiplan instalou o empreendimento visando atrair clientes da própria cidade e oriundos de outros mercados consumidores em potencial de um raio de até 100 km (MULTIPLAN, n.d), como Bebedouro, Franca e São Carlos.

Mapa 2: Ribeirão Shopping (property company, Multiplan) e distância de cidades médias com potenciais consumidores

Mapa 2: Ribeirão Shopping (property company, Multiplan) e distância de cidades médias com potenciais consumidores

Fonte: elaboração própria com o uso de Google Earth Pro

ntese: fluxos, atores, escalas, usos e produtos imobiliários no processo de financeirização urbana em cidades médias

46Nesse artigo identificamos que o processo de financeirização urbana em cidades médias se distingue daquele observado em cidades globais devido à dois fatores: a natureza dos investidores e os critérios de investimento. Decorrem desses dois fatores quatro aspectos principais que diferenciam essas distintas formas financeirização. A Tabela 1 a seguir sintetiza esses aspectos.

Tabela 1: Diferença do processo de financeirização nas cidades médias e globais

Tabela 1: Diferença do processo de financeirização nas cidades médias e globais

Fonte: autoras.

47O primeiro deles se refere aos fluxos de investimento, que são mais altos e com ritmo mais constante nas cidades globais, tendo em vista que, nas cidades médias, esses fluxos dependem das estratégias de seletos investidores. Por sua vez, os investidores que decidem atuar em cidades médias provêm, majoritariamente, de grandes casas de investimento que estruturam FIIs e de property companies, ao passo que há uma grande variedade de investidores nacionais e internacionais nos mercados core. Portanto, e esse é o segundo aspecto, os tipos de atores financeiros são diferentes dependendo da natureza da cidade (grandes ou médias). O terceiro aspecto diz respeito à escala geográfica: a escolha das cidades médias faz parte de uma análise na escala regional (que considera eixos rodoviários e concentração de centros de consumo) enquanto a escala intra-urbana é fundamental nos investimentos em cidades globais. Por último, mas não menos importante, os produtos imobiliários e seus usos se diferenciam: há uma diversidade de segmentos nas cidades globais e uma concentração em apenas dois usos principais nas cidades médias – logística e shopping centers.

48Portanto, devemos considerar que essa diferenciação gera impacto (1) na forma como circuitos financeirizados co-existem, superam, ou perpassam os circuitos tradicionais (como de investidores não-institucionais participantes do mercado local) de financiamento de propriedades comerciais nessas cidades; (2) na paisagem urbana das cidades médias, afetada graças à inserção de propriedades comerciais que reproduzem estéticas e padrões das propriedades de “cidades globais”; (3) na legislação urbanística e fiscal dessas cidades que, na tentativa de apresentar vantagens competitivas em relação a outras cidades da mesma categoria, podem passar a incorporar legislações tendencialmente “pró-mercado”.

49Tendo em vista as mudanças trazidas pela inserção desses atores financeiros em cidades médias, reforçamos também que reconhecer sua natureza — propensão ao risco, principais características, meios pelos quais levantam capital para investimento etc. — nos permite, como cidadãos e pesquisadores, resistir e nos contrapor às formas com que esse capital se ancora nas cidades em que vivemos. Isso é especialmente importante porque as cidades médias que atraem investidores financeiros como FIIs e property companies têm passado por mudanças sócio-econômicas que geram impactos tanto positivos, como aumento de vagas de emprego, mas, especialmente, negativos, como a escassez de moradia acessível (Brigatti, 2022) e a criação de bairros periféricos e sem infraestrutura com migrantes e imigrantes que são atraídos pelos empregos (Bertolotto, 2019).

50Adicionalmente, analisar o processo de financeirização em cidades médias é analisar o investimento financeiro em certos segmentos imobiliários. Sem o intuito de generalizar e tendo em vista que os investidores financeiros encontram continuamente diferentes formas e espaços urbanos para ancorar seu capital, as observações que expusemos aqui mostram que os segmentos de shopping centers e logística são os que mais atraem investimentos financeiros em cidades médias. Posto isso, é necessário um esforço teórico, metodológico e empírico para compreender não somente o loci da financeirização — as cidades médias e suas dinâmicas sociais, econômicas e imobiliárias — mas também a financeirização de diferentes segmentos imobiliários. Ainda carece nos estudos sobre a financeirização não somente um olhar mais clínico sobre as cidades médias, mas também uma diferenciação mais clara e diagnóstica dos processos de financeirização que incidem sobre diferentes segmentos imobiliários. Reconhecer essas diferenças nos permite entender quais dinâmicas e “que tipo de financeirização” ocorre em cada um dos segmentos imobiliários e em diferentes naturezas de cidade.

51Finalmente, a noção de escala geográfica que inserimos nesse artigo pode ser aprofundada por geógrafos interessados em compreender, a dimensão escalar da produção do espaço urbano. A sinalização que levantamos de que os agentes financeiros realizam sua decisão de investimento em cidades médias observando a localização de um empreendimento comercial no âmbito da escala regional revela a necessidade de compreender as dinâmicas imobiliárias — mas também, sociais, econômicas e políticas — dessas cidades a partir do reconhecimento de que os investimentos ancorados nesses espaços buscam conexão e diferenciação interregional. Como conexão, entendemos que os investidores financeiros buscam localizar seus investimentos em pontos do espaço regional onde há, por exemplo, acesso a infraestruturas e melhor conectividade com metrópoles principais. Como diferenciação, quando vários pontos do espaço regional se mostram suficientemente conectados com dinâmicas econômicas de metrópoles principais, os investidores selecionam aquelas localizações do espaço geográfico regional que ampliem seus ganhos financeiros, ou seja, que demonstrem maior competitividade (menores preços fundiários, melhores incentivos fiscais, governos locais alinhados com investimentos externos, etc.). Como apresentamos, essas diferenças tangenciam a escala utilizada na seleção da localização do empreendimento, o segmento imobiliário priorizado e, também, a natureza do investidor financeiro e sua propensão ao risco do investimento em mercados “não core”.

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Notes

1 A coleta de dados e os resultados desse artigo são resultados de dois projetos de pesquisa já finalizados, sendo um coordenado pelo Prof. Daniel Sanfelici (Investidores institucionais e intermediários financeiros no mercado imobiliário comercial: uma tipologia analítica das práticas de investimento e seus impactos territoriais, Programa Jovem Cientista do Nosso Estado JCNE / 2021) e outro pela Prof. Lucia Shimbo (O novo valor dos territórios urbanos: os papéis concorrentes das autoridades locais, dos avaliadores de imóveisblicos e dos consultores imobiliários, Acordos de Cooperação / UdL - Université de Lyon / UdL - Projeto de Pesquisa - Regular).

2 Esse item se baseia principalmente no argumento desenvolvido por Shimbo e Sanfelici (2023a).

3 O termo fotografia é utilizado como uma imagem/abstração que diz respeito a materialidade sica, usos e inserção geográfica dos empreendimentos imobiliários comerciais presentes nas cidades médias.

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Table des illustrations

Titre Mapa 1 - Galpões logísticos da cidade de Extrema (2023)
Crédits Fonte: elaboração de Otto Princigalli com o uso de Google Earth Pro
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/59907/img-1.png
Fichier image/png, 1,8M
Titre Mapa 2: Ribeirão Shopping (property company, Multiplan) e distância de cidades médias com potenciais consumidores
Crédits Fonte: elaboração própria com o uso de Google Earth Pro
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/59907/img-2.png
Fichier image/png, 579k
Titre Tabela 1: Diferença do processo de financeirização nas cidades médias e globais
Crédits Fonte: autoras.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/59907/img-3.png
Fichier image/png, 30k
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Pour citer cet article

Référence électronique

Maira Magnani et Lucia Shimbo, « Para além das metrópoles globais: a atuação de investidores financeiros nas cidades médias brasileiras »Confins [En ligne], 65 | 2024, mis en ligne le 12 décembre 2024, consulté le 16 juin 2025. URL : http://journals.openedition.org/confins/59907 ; DOI : https://doi.org/10.4000/130iv

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