1Analisar imagens é um percurso instigante. Portadoras de discursos que engendram sentidos, elas contribuem para a construção de maneiras de ver, relacionadas a imaginários e identidades. Verificaremos, neste estudo, as relações de intericonicidade da imagem da Pietà em obras de fotógrafos contemporâneos. Nossa intenção é perceber quais sentidos são construídos, considerando os elementos visuais como operadores de discurso, e de que maneira tais imagens poderiam atravessar as identidades femininas, principalmente no que diz respeito à maternidade.
2Trabalhamos com o conceito de intericonicidade de Courtine (2011), isto é, com as relações entre imagens. Tal noção pressupõe a inscrição de toda imagem em uma cultura visual, que inclui uma memória de imagens tanto internas quanto externas, as quais são estocadas pelos indivíduos, sejam elas vistas, imaginadas ou impressões de outras imagens. Dessa maneira, uma dada imagem pode evocar outras. Gregolin (2008) destaca que as discussões de Courtine (2011) foram fundamentais na abertura de caminhos para estudos de materialidades não verbais, pois ele lança bases para pensar discursivamente as redes de imagens que constituem a cultura e o imaginário.
- 1 Por questão de direitos autorais, as imagens não estão disponíveis em alta resolução para publicaçã (...)
3Para análise, selecionamos as seguintes fotos: i) “Pietà with Courtney Love” (2007), do fotógrafo estadunidense David LaChapelle, escolhida para capa do livro “Heaven to hell”, o terceiro de uma trilogia publicada pelo autor; ii) a imagem vencedora da categoria “Foto do Ano” do World Press Photo, em 2012, do espanhol Samuel Aranda, produzida para o jornal The New York Times; e iii) “Pietà”, do artista tcheco Jan Saudek (1990)1.
4Todas as fotografias analisadas guardam referência ao episódio de morte mais representado até hoje no mundo da arte, que é o corpo morto de Jesus nos braços de sua mãe, Maria, após a crucificação: a chamada Pietà (piedade). Provavelmente a imagem mais famosa será a escultura de Michelangelo, de 1499, situada na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Essa cena é uma das mais conhecidas representações da morte e da compaixão na história da cultura ocidental e um dos acontecimentos bíblicos mais retratados na arte.
5Apesar de as imagens analisadas nesse artigo pertencerem a diferentes contextos de produção e circulação, o que nos interessa é destacar que a iconografia cristã está integrada no imaginário visual ocidental de tal forma que continua influenciando a produção de sentidos nos dias atuais, tanto no campo artístico como no jornalístico, contribuindo, inclusive, para a formação da identidade feminina, notadamente para o conceito de maternidade.
6Nesse artigo trabalharemos com o conceito “identidade” diretamente vinculado à ideia de “projeto”, algo que se encontra sempre em construção, distanciando-se, pois, da noção que circunscreve o sujeito em torno de referenciais simbólicos e/ou quadros de sentidos supostamente estáveis, homogêneos, coesos e unificados. Essa noção é baseada nas contribuições sobre esse tema de Stuart Hall, Anthony Giddens, Zygmunt Baumman e Michel Foucault.
7Nos seus textos, Hall parte do princípio de que na contemporaneidade “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram a vida social”, estariam em declínio, assim como a ideia de um sujeito unificado. Segundo Hall, até ao advento da modernidade o homem era capaz de definir e localizar suas ações a partir de referenciais políticos, sociais e culturais estáveis. Entretanto, as mudanças estruturais oriundas da globalização e da distorção das noções de tempo e espaço imprimiriam novas configurações para as muitas esferas de sociabilidade, com as quais este passa a interagir, e que intervêm diretamente na produção da sua identidade (HALL, 2001, p.7).
8Michel Foucault irá propor que o homem é um projeto moderno, impossível de existir na “Idade Clássica”. Esse homem “moderno” é criado por saberes, práticas e instituições, de modo que aspetos considerados naturais e biológicos, a identidade inclusive, são formados no seio da cultura e da história. Segundo Foucault, relações de poder e formas de conhecimento não só ajudam a criar as identidades dos sujeitos como também são fundamentais nesse processo (Foucault, 2012, p. 36-37). Trabalhando igualmente na direção de que identidade é uma questão moderna, Giddens traz para a reflexão a ideia de que a origem desse conceito é o individualismo ocidental, já que na Europa Medieval a linhagem, o gênero, o status social e outros atributos relevantes da identidade eram relativamente fixos e a individualidade não era prezada (Giddens, 2002, p. 74).
9Bauman irá acrescentar que na contemporaneidade a identidade “nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto”, desenvolvendo a ideia de que a identidade deve ser entendida não como algo a ser produzido, inclusive ativamente, na medida em que o eu é visto como um projeto reflexivo pelo qual ele (o próprio indivíduo) é responsável. Essa reflexividade do eu seria contínua, de maneira que, a intervalos não necessariamente regulares, o indivíduo seria instado a interrogar-se em termos do que está acontecendo, realizando um monitoramento reflexivo mais geral da sua ação (Bauman, 2005, p.21-22).
10Também consideraremos nesse texto que o mundo fora do ser humano não pode ser vivido de forma direta, sendo filtrado pela linguagem, e que esta nos fornece quadros de sentido para traduzir o mundo fora de nós. Essa ideia, que encontra apoio teórico na semiologia de Ferdinand Saussure e na semiótica de Charles S. Peirce, considera que a linguagem funcionaria como uma espécie de “filtro”, constituído por categorias de tradução baseadas em signos, representações imperfeitas do real, que acabam por constituir o sistema de crenças desse indivíduo, os seus quadros de sentido. Dessa maneira, se por um lado o homem usa a racionalidade para guiar seu projeto reflexivo, por outro ele é dependente de estruturas fornecidas pela cultura, por meio da linguagem.
- 2 O reconhecimento de que a linguagem é fundamentalmente constitutiva de nossas experiências do mundo (...)
11Por essa perspetiva – a de o processo de criação da identidade estar vinculado a um processo de autorreflexão –, é a cultura que fornece ao indivíduo, por meio da linguagem, sistemas de classificação através dos quais esse sujeito irá traduzir sua experiência empírica e desenvolver seu projeto reflexivo. Assim, a linguagem não só descreve e “traduz” as experiências que o sujeito tem da realidade ou as suas experiências interiores (como fantasias e lembranças) como também forma a realidade.2 A linguagem se baseia em sistemas classificatórios que orientam a apreensão do mundo pelos cidadãos e estabelecem hierarquias. No entanto, não possui uma estrutura fixa, o que significa dizer que os sistemas de classificação não são estanques. À medida que o sujeito vai estranhando o mundo à sua volta ele pode rever seu sistema de classificação e até mesmo reconfigurá-lo.
12Na medida em que certa iconografia permanece através dos séculos, essas imagens e os discursos por ela veiculados vão acabar por integrar os quadros de sentido dos sujeitos. Assim, a presença constante na mídia de imagens que dialogam com a iconografia cristã tem grande potencial para influenciar a forma como os sujeitos percebem o mundo e constroem suas subjetividades. A relevância dessa constatação fica mais evidente quando se considera que o conjunto de crenças existentes no imaginário de uma sociedade tende a atuar de forma coercitiva nas interpretações dos sujeitos, e que esse imaginário é afetado pelo uso das imagens veiculadas nos meios de comunicação de massa.
- 3 Fotos voltadas prioritariamente aos aspectos artísticos e estéticos, sem objetivos publicitários, d (...)
13Na obra de LaChapelle, está explícita a referência à imagem de Maria sustentando o corpo morto de Jesus. No entanto, a fotografia retrata a cantora Courtney Love, amiga do autor e viúva do cantor Kurt Cobain, morto em 1994, segurando um homem cuja fisionomia se parece com a de Kurt. LaChapelle é conhecido por sua estética hiper-realista combinada com mensagens sociais. Desde 2006, ele tem direcionado seu trabalho fotográfico para a Fine Art3. Em suas produções, há várias releituras de obras de arte consagradas e de cenas bíblicas, às quais ele confere um caráter surreal, com fotos saturadas, cores fortes e um ambiente que mistura a fantasia, a beleza e o bizarro.
- 4 No início da carreira, LaChapelle fotografou para a revista Interview, de Andy Warhol.
14É interessante que, apesar de buscar muitas referências em obras de arte renascentistas, a fotografia de LaChapelle, cujo tratamento digital lhe confere um aspeto de tela, traz em si muitas caraterísticas da pintura barroca, num entrecruzamento de referências e numa relação de discursos vários. Entre os elementos barrocos, podemos citar a escolha de cenas em seu momento de maior intensidade dramática e a opção por uma luz projetada para guiar o olhar do espectador ao acontecimento principal (a luz que entra pela diagonal incide diretamente sobre a face de Courtney). E isso faz todo sentido, se lembrarmos que o barroco aproveitou alguns elementos da Renascença, transformando-os. Nesta obra de LaChapelle, podemos identificar traços da oposição barroca entre mundo material e espiritual, bem como a concomitância de temas religiosos e sensualidade. Há também a presença de cores quentes e da gradação da claridade, elementos que reforçam a sua expressividade. Além disso, não há como negar a influência da cultura pop em seus trabalhos4.
15A obra é uma fotografia de arte contemporânea, cujos efeitos de ficção (Mendes, 2004) são muito intensos, principalmente pela atmosfera de fantasia, reforçada pelas cores fortes e pela composição, e pela escolha de um tema de ampla recorrência nas artes, conferindo-lhe ainda um efeito de gênero pintura. Já o fato de ser uma foto de pessoas que existem no mundo material (inclusive de uma celebridade) concede-lhe um estatuto fatual. Aliás, a semelhança do homem que faz o papel de Jesus com Kurt Cobain gerou polêmica entre os fãs do cantor, que acusaram a esposa de se promover às custas da morte do marido. Outro aspeto que contribui para um efeito de realidade são os ferimentos associados à crucificação, que, na obra de LaChapelle, remetem para o uso de drogas por Cobain, numa espécie de transgressão do imaginário católico. O cenário é rico em detalhes, que podem conduzir a várias leituras: bebidas e remédios espalhados nas mesas do quarto remetem para o uso de drogas; uma bíblia, um peixe e uma taça de vinho conduzem ao imaginário cristão; os cubos de letras integram o universo infantil em oposição ao trágico da morte retratada; a criança com cabelos loiros cacheados lembra anjos barrocos ou imagens do menino Jesus. Há uma série de referências diversas que formam a complexidade do quadro, no qual se cruzam textos, discursos e imagens, entre outros.
16A foto jornalística de Aranda apresenta Fatima al-Qaws embalando seu filho Zaved, de 18 anos, vítima dos efeitos de gás lacrimogêneo após participar de uma manifestação nas ruas de Sanaa, no Yemen, durante a chamada Primavera Árabe. O poder da imagem, vencedora de um dos mais prestigiados concursos internacionais de fotojornalismo, está tanto em seus aspetos estéticos quanto em seu conteúdo, que remetem para a figura renascentista da Pietà, numa clara relação de intericonicidade. A dramaticidade do quadro e sua referência à cena bíblica contribuem para reforçar o imaginário da dor e da piedade maternas, e da mãe como aquela que sustenta, que ampara. A primeira associação ao olhar para a foto de Aranda é com uma mulher – mãe ou esposa – que embala um corpo; logo, a partir dos imaginários partilhados coletivamente, é com a compaixão, que está na essência da ideia da Pietà bíblica.
17Ao contrário da foto de LaChapelle, que subverte imaginários cristãos de piedade ao mesclá-los com sensualidade e outros universos – como drogas e fantasia –, a Pietà de Aranda os reforça, reitera – assim como a representação, naturalizada em vários discursos ao longo do tempo, da figura materna e do amor de mãe. Tais aspetos podem ser destacados na imagem pela nudez, pela pele branca e pela magreza do corpo do homem, assemelhando-o às representações de Jesus nessa cena. Ressaltamos que o plano escolhido, ao focar a ação de amparar e os gestos de dor, pode reforçar elementos patêmicos, como proximidade e identificação, que, por sua vez, se associam aos imaginários de maternidade e compaixão (este último fortalecido pela referência à paixão de Cristo). Tais elementos são fortes o suficiente para evocar a cena bíblica, apesar de o homem da foto não apresentar quaisquer ferimentos aparentes.
- 5 Charaudeau (2006b) chama de “imagem sintoma” aquela imagem que reenvia a outras imagens, seja por a (...)
18Vale a pena observar que a visão renascentista da Pietà, apesar de poder enquadrar-se com o que Charaudeau (2006b) denomina “imagem-sintoma”5, é ocidentalizada, ligada a representações que se configuram no contexto de uma igreja católica romana. Assim, é interessante que tal imagem também seja incorporada em uma situação que retrata uma mãe islâmica, num cruzamento de discursos que remetem para uma espécie de universalidade da identidade feminina da maternidade, que posiciona a mãe como dedicada, capaz de sacrifícios pelos filhos, a despeito da singularidade de cada mulher em diferentes culturas e contextos. Isso pode ser mais bem compreendido ao percebermos a situação de produção da imagem, feita por um fotógrafo espanhol – inserido, portanto, em uma cultura na qual a iconografia cristã marca forte presença.
19Uma questão a ser observada é o fato de uma das personagens ter o corpo e o rosto velados, o que pode adicionar certa ambiguidade à imagem. Sabemos que se trata de uma figura feminina apenas pelo contexto e pela memória visual do uso da burca por mulheres islâmicas. Ao mesmo tempo, ao não se mostrar, o rosto torna-se anônimo, generaliza, podendo dizer respeito a qualquer um que passe por esse tipo de dor e sofrimento, inferindo-se que as emoções humanas não possuem fronteiras religiosas, culturais ou geográficas.
20Outras leituras, ancoradas em outros imaginários, também podem ser evocadas, ao observarmos o corpo nu do homem nos braços da mulher completamente coberta, levando a construções binárias como masculino/feminino, desvelado/velado, sujo/limpo, vulnerabilidade/proteção. A figura da mulher-mãe é aquela sem corpo, que não se mostra, portanto ligada ao não-corpo, ao não-desejo, ao sagrado. A evidência da maternidade está no filho, que, na imagem de Aranda, guarda semelhanças com o corpo martirizado de Cristo – um modelo de corpo que tem origens medievais, e por isso submetido a restrições.
21Embora pouco conhecido em vários países, Jan Saudek é o fotógrafo mais famoso da República Tcheca e um dos grandes nomes da fotografia contemporânea. Seu trabalho é notório pela maneira ambígua como aborda questões atuais relativas à identidade, ao poder e à sexualidade. É comum que ele nos apresente, numa mesma foto, corrupção e inocência, perfeição e decadência, sugerindo imagens que instigam à desalienação do desejo e à busca da expressão individual (Mendes, 2012). Os aspetos revolucionários da sua obra, no contexto de um país que pertencia à Cortina de Ferro, forçaram-no a trabalhar escondido em sua casa, sem divulgar abertamente o que criava durante boa parte do período comunista. Devido à natureza transgressora das suas fotos, sofreu perseguição pelo governo tcheco no final dos anos 70 e no início dos anos 80. Apesar de ter começado a fotografar em 1950, apenas em 1984 recebeu autorização do Estado para poder exercer oficialmente a profissão de “artista”.
22O porão da sua casa foi o lugar escolhido para o desenvolvimento do trabalho, no qual, desde o início, não utilizou modelos profissionais. As pessoas que posam para os seus “quadros” não têm com ele qualquer vínculo empregatício, sendo o seu “staff” formado por amigos e conhecidos. Ao longo dos anos, tem sido para esse porão, escondido das autoridades civis (e dos costumes), que ele tem levado seus modelos, despindo-os diante da câmera e dispondo deles da maneira que acha mais conveniente. Ali, longe da censura do Estado e da moral cristã, Saudek tem liberdade para misturar corpos, desvelando-lhes a sensualidade e o erotismo, tendo como testemunha apenas uma parede mal rebocada e objetos kitsch, como chapéus e panos, que se repetem em várias fotos.
23Dentre as várias referências que Saudek trabalha, a iconografia cristã tem muita influência no seu trabalho. Em 1990, ele produziu a imagem aqui analisada, na qual uma jovem mulher segura em seus braços o corpo desfalecido de um homem. O enquadramento apresenta um plano de conjunto no qual podemos perceber que a jovem está em pé, sustentando sem muito esforço o corpo do homem, remetendo à Pietà – sugestão confirmada pelo título da foto: “Pietà”. Apesar da semelhança, essa imagem apresenta uma série de elementos que não correspondem à imagem da iconografia cristã. Saudek optou por posicionar a jovem mulher de pé, sustentando sozinha o peso do corpo masculino, esticado (artificialmente) na posição horizontal.
24O modelo (que é o próprio Saudek) tem um corpo jovem e saudável, a pele branca e os cabelos escuros, mas, ao contrário dos corpos apolíneos tradicionalmente representados, tem suas pernas cobertas por pelos. Está nu, coberto apenas por uma túnica branca (colorizada em pós-produção). Esse corpo aparentemente perfeito possui marcas vermelhas na mão direita e na sua lateral, sugerindo os ferimentos infligidos a Cristo durante a crucificação e evocando seus tormentos físicos. A cabeça pendida para trás esconde o rosto, ao mesmo tempo que sugere sua morte. A posição da cabeça do modelo difere da pose tradicional, em que a face do Salvador é vista de frente ou em três quartos. O mesmo ocorre na imagem de Aranda, em que o rosto do homem se encontra quase todo encoberto ao aconchegar-se ao colo materno. Tais posições não estão de acordo com a tradição das imagens de Cristo no colo de sua mãe, conforme pode ser visto nas representações em que Maria abraça seu filho, como na “Lamentação” de Giotto (1305) ou na de Bellini (1505). Nessas representações clássicas, o rosto morto de Jesus é apresentado de maneira clara, para que seja provocada uma resposta emocional mais efetiva. Na foto de Saudek, ao interditar-se o rosto de Cristo, nossa atenção tende a se concentrar toda na mulher que o sustenta.
25No rosto dessa modelo é possível identificar um olhar triste, em direção ao corpo que está sustentado pelos seus braços. Sua expressão é piedosa, mas sem muito exagero, de acordo com a tradicional fácies de nobre resignação que acompanha a representação das Virgens Marias ao longo dos séculos. Apesar dessa semelhança, outros aspetos relevantes da composição são diferentes dos usuais. Tradicionalmente, Maria é representada coberta de panos, de acordo com a própria moral cristã, que não vê com bons olhos a nudez, enquanto que a Maria de Saudek está nua. A representação cristã é de certa forma retomada na imagem de Aranda, por meio do tecido da burca.
26Na imagem em que as duas personagens estão despidas, a pele branca sugere uma unificação visual pela semelhança de cor. Ao mesmo tempo que unifica a forma, cria um contraste com o fundo, escuro. Esse contraste entre figura e fundo não se dá apenas na cor, mas também na textura: a pele dos modelos é lisa, sem marcas (a não ser a sugestão de sangue), enquanto a parede ao fundo é rugosa e cheia de imperfeições. A disposição de ambas as personagens contribui para acentuar uma gestalt da imagem da cruz, que já havia sido sugerida pela unificação da cor. Segundo o princípio da boa continuação, de acordo com o qual elementos próximos entre si costumam ser vistos agrupados, o corpo do modelo masculino, que representa Cristo, forma o eixo horizontal, enquanto o corpo da mulher, que representa Maria, forma o eixo vertical. A cruz é um dos principais símbolos do cristianismo e representa a ressurreição e a transfiguração de Cristo, destacando-se assim um caráter religioso na representação.
27A imagem da Virgem revela um corpo jovem, cheio de força, com a pele branca e o cabelo claro e liso – um corpo dentro dos parâmetros ocidentais clássicos de beleza. Seu corpo nu evoca juventude e força, além de um toque de sensualidade devido à sua nudez e ao fato de o seio esquerdo estar visível, como se estivesse sendo oferecido a Cristo e ao espectador. O corpo de Cristo, como referido representado pelo próprio fotógrafo, segue o mesmo ideal contemporâneo de beleza.
28Segundo Sturgis e Clayson (2002), o objetivo da imagem da Pietà na iconografia católica é inspirar meditação sobre a morte de Cristo e sobre o sofrimento de Maria. Por meio da expressão da dor, procura-se despertar no leitor respostas emocionais que evoquem a culpabilidade – porque, afinal, Jesus deu sua vida para nos salvar dos nossos pecados. Enquanto as tradicionais representações da Pietà apresentam Maria como uma mulher frágil que sofre pelo filho que morreu crucificado, as representações de Saudek e LaChapelle seguem outra orientação, mostrando-nos uma mulher que pode ser mãe mas que também pode ser a esposa do homem que carrega no colo. Em Saudek, além da nudez da virgem, a disposição dos modelos e, sobretudo, a escolha dos corpos e a exibição de sua nudez/sensualidade evocam uma série de sensações que não são esperadas relativamente a uma Pietà.
29Ainda em Saudek, a disposição dos modelos, apesar de acentuar a ideia da cruz, tem algo de “falso”, na medida em que é bastante improvável que aquela mulher, apesar de possuir um corpo jovem e rijo, seja capaz de sustentar sozinha o peso do corpo do homem. Mesmo considerando a rigidez que adviria do rigor mortis, a perfeita linha horizontal que forma a perna do modelo também não é verossímil. Para perceber melhor a artificialidade, basta comparar essa fotografia com a imagem de Cristo na “Deposição de Cristo”, de Van der Weyden (1435), ou mesmo com “O enterro” (1507), de Rafael.
30A escolha por imagens que reinterpretam a iconografia católica tradicional utilizando uma estética “falsa” pode ser uma maneira de questionar a validade dessa iconografia e, por dedução, de revisar a iconografia católica – e, especificamente, a identidade criada para a mulher na sociedade ocidental, baseada no conceito da Virgem Maria. Essa pode ser uma leitura possível tanto para a foto de LaChapelle quanto para a de Saudek. Já a fotografia jornalística de Aranda reitera essa identidade da mãe cuidadora. É interessante observar como o corpo pode atuar como suporte, material e instrumento da e para a arte, e como uma realidade significante passível de desenvolver dimensões críticas, sociológicas, sociais ou políticas. Há sentidos vários a serem descortinados (LACHAUD, 2008).
31As três fotos recorrem a uma cena que remete para imaginários sociodiscursivos da maternidade, da ternura materna e da relação umbilical de amor, bem como da dor e da compaixão, além de possuírem forte componente patêmico (Charaudeau, 2006a, 2007). Porém, enquanto as obras clássicas retratam a cena bíblica de Maria com Jesus morto em seus braços, levando o espectador a uma associação com o discurso religioso e com o imaginário da mãe que sofre pelo filho, as fotos analisadas fazem releituras da cena, em situações diferentes e inusitadas, conduzindo a sentidos variados.
32A Pietà de Aranda segue pela via tradicional, reafirmando a identidade da mulher como mãe, divulgada pelo culto mariano, na qual a mãe/esposa é pensada como “uma mulher pia, virtuosa, protetora, materna”, contrária às representações associadas a Eva, associada ao pecado, à tentação e ao mal (Paiva, 2002). Nessa imagem, a referência à cena bíblica é praticamente reproduzida, com pequenas diferenças nos gestos e no enquadramento, e há ainda que recordar a vestimenta da mãe, que, apesar de ser uma burca, remete de certa forma para o manto de Maria. Mesmo que possamos encontrar rastros de outras possíveis leituras, parece-nos que a tendência, nesta foto, é de reforço do imaginário cristão, onde a identidade da mãe, como mulher protetora e abnegada, é reforçada e universalizada.
- 6 Kurt Cobain foi fundador, vocalista e guitarrista da banda Nirvana. Casado com a cantora Courtney L (...)
33No caso de LaChapelle, a escolha da cantora Courtney Love para fazer o papel de Maria dá nova dimensão ao sofrimento e à tragédia que acompanham a iconografia tradicional. É sabido que o marido de Courtney, o também músico Kurt Cobain, cometeu suicídio ainda jovem, evocando-se aqui, mais do que a dor da mãe, a dor da esposa que perdeu o marido num episódio trágico6. Apesar de LaChapelle ter dito em entrevistas que não era sua intenção sugerir tal semelhança, o ator que faz o papel de Cristo lembra muito Cobain. Se analisarmos a fundo a dados de apoio paraimagéticos, descobriremos que o fotógrafo, ao produzir a obra, estava intensamente impressionado com a morte de um amigo, vítima de drogas. A presença no cenário de vários objetos que se associam a estas, além de os ferimentos no braço do homem se assemelharem a picadas, são elementos que reforçam a aproximação ao meio musical e ao uso de drogas, dando outra dimensão para a compaixão e o sofrimento diante da tragédia sugeridos pela iconografia tradicional da Pietà.
34A “Pietà” de Saudek tensiona a iconografia convencional construída pela Igreja por meio do culto mariano. A Maria de Saudek, além de mais forte do que as outras analisadas, incorpora na sua figura a sensualidade. Essa incorporação aponta para a possibilidade de se pensar que a relação entre as personagens também pode ser de marido e esposa ou de companheiro e companheira (e não apenas de filho e mãe) –, e essa relação entre homem e mulher pode ser percebida também na imagem de LaChapelle. Na representação proposta por Saudek – e, em certa medida, naquela proposta por LaChapelle –, a imagem da Virgem Maria (maternidade) estaria fundida à de Eva (sensualidade) e também à da mitológica Lility (força). Nessas duas representações visuais, a mulher não seria aquela que ficaria sob a supervisão do homem/marido/companheiro, mas sim a que, inclusive, teria força suficiente para sustentar seu companheiro (ou a relação). Ao acentuar a sensualidade da mulher e a sua postura forte, essas imagens também podem sugerir que os homens acabam se relacionando com suas mulheres projetando nelas a figura materna e que esperam delas o mesmo aconchego e suporte que teriam de suas mães.
35Para a maioria dos pensadores da contemporaneidade, como Hall, Foucault ou Bauman, a identidade não é algo dado; não se baseia apenas nas origens biológicas, mas, principalmente, nas origens históricas, sociais e culturais. Isso implica dizer que a forma como vivemos nossas identidades também é mediada pelos significados culturais que são produzidos pelos discursos circulantes – ou seja, a identidade é construída e negociada dia-a-dia, assim como as categorias de análise utilizadas nesse processo de entendimento do mundo são modificadas de acordo com as experiências particulares das pessoas. Assim, toda a interpretação e todas as práticas sociais são marcadas pela tradução realizada pelas categorias que nos são apresentadas pela cultura e por meio das quais damos sentidos às nossas próprias posições (Woodward, 2008).
36As imagens veiculadas na mídia possuem grande alcance social e se constituem em centros propositores de ideias que ajudam a ordenar, antecipar ou questionar valores e padrões de comportamento por meio de imaginários que podem ser formados, reforçados ou transgredidos (Foucault, 2005). Sendo assim, imagens que representam a Pietà interferem diretamente na circulação e na apropriação de modelos disponíveis, organizando o processo de socialização e contribuindo intensamente para a formação e fixação das identidades.
37O produtor do discurso jornalístico, por se dirigir a um público vasto e heterogêneo, precisa recorrer a universos de conhecimento e a crenças partilhados, para que a troca comunicativa se efetive com “eficácia”. Ao optar, consciente ou inconscientemente, por imaginários sociodiscursivos mais cristalizados, como, por exemplo, este da maternidade, o sujeito produtor de discursos aumenta a possibilidade de atingir seus objetivos junto à instância recetora/interpretativa. Uma estratégia discursiva que deseja o máximo de eficácia pode – e no caso dos jornais é o que comumente ocorre – recorrer a imagens que sejam familiares para o público leitor como forma de criar entendimento e empatia.
38Se no campo jornalístico, por um lado, há uma tendência para a veiculação de imagens de mães ligada ao discurso cristão, contribuindo para a fixação de um modelo milenar de ser mãe e mulher, por outro lado o campo artístico procura dialogar de maneira crítica com a essa iconografia, buscando tensionar o modelo tradicional de ser mãe e mulher na sociedade ocidental. Essa postura é muito importante porque o contato contínuo com imagens que não nos desafiam pode produzir uma acomodação e uma naturalização das formas e das relações de poder com as quais lidamos cotidianamente, levando a uma reiteração dos discursos qualificados como verdadeiros e a uma conformação perante eles – no caso, aquele sobre a ideia de maternidade que é veiculado pelo discurso cristão. O tensionamento desse modelo de maternidade tradicional permitirá a manifestação de outras possibilidades de esta se viver.