Amor pela tua beleza, amor pelo planeta! — Yanbal
Quanto mais bio-beleza, mais futuro para a floresta. — Natura
Cuidamos hoje da beleza de amanhã. — O Boticário
Gostarias de ganhar dinheiro tornando outras mulheres mais bonitas? Junta-te à Avon. — Avon
1Estes slogans ilustram a forma como as empresas, nomeadamente as grandes marcas de cosméticos latino-americanas, integram o discurso da sustentabilidade nas suas estratégias de comunicação quando se relacionam com os seus públicos e com a sociedade em geral. Embora estas organizações assumam o compromisso e a responsabilidade social para com o futuro ambiental e social, a utilização destes slogans, entre outras mensagens diversas de empresas de cosméticos, constitui um corpus convincente para um estudo crítico da comunicação da sustentabilidade numa indústria intrigante, como a de cosméticos que apesar de promover ideais sustentáveis, depende de matérias-primas que consomem muitos recursos e contribui para uma cultura de consumo excessivo.
2A evidência científica é convincente: resta pouco mais de uma década para impedir que o aquecimento global ultrapasse o limite de 1,5 °C estabelecido no Acordo de Paris de 2015, para evitar cair na pior situação possível. Este cenário tem implicações significativas, não só a nível ambiental, mas também relativamente às suas consequências sociais, económicas e muitas outras, como salientado no sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (The Core Writing Team et al., 2023). Além disso, enquanto ainda há tempo, a solução reside num desenvolvimento resiliente ao clima que integre medidas de adaptação às alterações climáticas e ações de redução ou mitigação das emissões de gases com efeito de estufa. Para isso, o Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas afirma que o comportamento transformador deve estar alinhado com os nossos valores, perspetivas e conhecimentos e, devemos acrescentar, com o nosso propósito de vida ou missão organizacional.
3Neste contexto, embora a indústria de cosméticos esteja a adotar cada vez mais práticas sustentáveis para atender às preocupações dos consumidores, ainda enfrenta desafios assinaláveis, como a poluição e o aumento das emissões de gases com efeito de estufa. Os consumidores procuram cada vez mais alternativas mais naturais, ecológicas e orgânicas. Além disso, existe uma consciência dos desafios sociais inerentes à indústria, como o trabalho infantil, bem como preocupações ambientais relacionadas com ingredientes sintéticos, desflorestação e exploração animal (Martins & Marto, 2023). Para compreender como as principais marcas de cosméticos da América Latina divulgam as suas iniciativas de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial (RSE), realizamos as seguintes questões de investigação (QI)
QI1: de que forma é que os públicos das redes sociais interagem com o conteúdo de sustentabilidade comunicado pelas principais marcas de cosméticos na América Latina?
QI2: que discursos e estratégias narrativas adotam essas marcas para demonstrar o seu compromisso com a sustentabilidade?
QI3: que tensões e contradições estão presentes nos discursos de sustentabilidade e de RSE dessas marcas?
4Para responder a estas questões, recorremos à literatura sobre a comunicação da sustentabilidade e concentramos a nossa análise em quatro marcas líderes da indústria de cosméticos da América Latina: Avon, Natura, O Boticário e Yanbal. A nossa abordagem segue uma metodologia dupla que reflete a natureza dos processos de comunicação. Em primeiro lugar, através de um teste de Mann-Whitney, realizámos uma análise quantitativa das características mais importantes da produção e receção de mensagens nas redes sociais. Além disso, efetuámos uma análise crítica do discurso para explorar as mensagens de forma mais profunda, incidindo particularmente nos discursos subjacentes à sustentabilidade. Ao combinar estas duas metodologias, procuramos explicar as tensões inerentes aos discursos de sustentabilidade no setor da beleza.
5Do ponto de vista conceptual, baseamos nossa análise na literatura sobre RSE, sustentabilidade e empresas motivadas por propósitos. Com base na RSE, as empresas devem contribuir para a melhoria da sociedade (Matten & Moon, 2004). Do ponto de vista neoclássico, a RSE pressupõe essencialmente a criação de emprego e o pagamento das contribuições fiscais. As teorias mais contemporâneas da RSE, tais como a das partes interessadas, a do contrato social e a da legitimidade, defendem um espetro mais vasto de responsabilidades que englobam a conduta ética, a proteção do ambiente e o envolvimento proativo na resolução de questões sociais (Moir, 2001).
6Do ponto de vista da comunicação, a teoria das partes interessadas melhora consideravelmente a nossa compreensão da RSE. Esta teoria sugere que as empresas interagem e gerem relações com diversas partes interessadas que podem influenciar ou ser afetadas pelas suas operações. Segundo Morsing e Schultz (2006), este envolvimento implica estratégias de comunicação que foram evoluindo. Inicialmente centradas na divulgação de informações, estas estratégias passaram a abordagens comportamentais, progrediram para práticas de envolvimento destinadas a promover o diálogo e a participação das partes interessadas e, por fim, evoluíram para estratégias de sensibilização e de transmissão de sentido. É neste último conjunto de estratégias que o presente artigo pretende centrar-se, ou seja, nos quadros discursivos que influenciam os processos de criação de sentido relacionados com a sustentabilidade.
7De acordo com Verk et al. (2021), a evolução do conceito de “RSE” passou por várias fases, cada uma delas representando enquadramentos comunicacionais únicos. Os autores identificam três fases distintas: (a) diferenciação, que consiste em examinar o papel da comunicação no relato de informações sobre as iniciativas sociais e ambientais que as empresas realizam; (b) mobilização, que expande o âmbito para abranger o envolvimento das partes interessadas e casos de negócios específicos; e (c) proeminência, uma fase em que a RSE desperta uma atenção significativa tanto na academia como nas organizações, mas também regista uma maior fragmentação na sua conceptualização, na medida em que a interação digital introduz complexidade e ambiguidade.
8Embora o conceito de “sustentabilidade” tenha surgido historicamente após o de “RSE”, este abrange um quadro mais amplo que inclui não só práticas responsáveis adotadas pelas empresas em prol da sociedade, mas também um modelo de desenvolvimento. Este modelo visa satisfazer as necessidades ambientais, sociais e económicas atuais sem comprometer o acesso das gerações futuras aos recursos (Livesey, 2002). Académicos como Signitzer e Prexl (2007) consideram a sustentabilidade como uma evolução da noção de “RSE”. Independentemente da relação histórica entre estes dois conceitos, ambos sublinham o papel dos indivíduos, das empresas, dos governos e da sociedade em geral na construção de um futuro sustentável. Sublinham a responsabilidade coletiva de equilibrar o crescimento económico com a preservação ecológica e a equidade social.
9A sustentabilidade engloba várias dimensões, incluindo aspetos económicos, sociais e ambientais. Estas dimensões são exploradas a partir de diversos pontos de vista, tais como modelos económicos sustentáveis e modelos de negócio que visam o impacto triplo (Barroso, 2021), o papel da comunicação na promoção de uma perspetiva relacional e política baseada na sustentabilidade (Krohling-Kunsch, 2015; Krohling-Kunsch & Oliveira, 2009), e a abordagem decolonial, que preconiza a recuperação de conhecimentos antigos e das perceções do mundo dos povos indígenas, organizações sociais ou situações negligenciadas (Álvarez-Nobell et al., 2022).
10No contexto da sustentabilidade, a ideia de empresas com propósito tem-se tornado cada vez mais relevante para o mundo empresarial. Nas empresas com propósito, as ações das organizações seguem um compromisso de aumentar o seu triplo impacto positivo. Neste sentido, de acordo com Barroso (2021), as empresas com propósito assumem características como dinamismo, responsabilidade, fiabilidade, transparência, inovação, entre outras. Estão associadas a valores pró-socioambientais como a justiça (social e ambiental), a cooperação, a solidariedade, o respeito e a proteção. O que as distingue das empresas tradicionais são atributos como um propósito definido, um interesse contínuo em gerar um impacto social e ambiental positivo, um modelo de negócio motivado pelo impacto e as suas contribuições para os desafios globais e locais. Estas empresas podem também inspirar-se na natureza, aplicando a “biomimética”, um conceito introduzido por Benyus (1997/2012), no domínio da comunicação.
11No estudo dos comportamentos pró-ambientais entre o público, que examina as motivações subjacentes às ações amigas do ambiente, foram identificadas quatro perspetivas-chave por Otálora et al. (2022):
Preocupação ambiental e comportamentos pró-ambientais;
O papel das organizações na promoção de comportamentos pró-ambientais promotores de mudança social;
Ações éticas e políticas individuais e coletivas; e
Normas sociais, padrões de consumo e comportamento voluntário.
12Além disso, como as pessoas são bombardeadas com informações, tornou-se essencial para as marcas estabelecerem uma identidade empresarial forte e coerente, capaz de inspirar confiança. É aqui que a imagem empresarial se torna um ativo intangível estratégico (Capriotti, 2009). No entanto, é importante referir que todas as organizações, pelo simples facto de existirem e serem visíveis, comunicam, intencionalmente ou não, mensagens ao seu meio envolvente (Chaves, 2005). Capriotti (2009) salienta ainda que estas expressões de identidade empresarial já não são apenas produzidas a partir do interior da organização (comunicação empresarial), mas refletem o próprio comportamento da organização e a sua evolução diária, que também comunica.
13No domínio dos papéis organizacionais, em particular no contexto das empresas como catalisadoras do ativismo cívico, as empresas com propósitos emergiram como um setor distinto, frequentemente considerado o “quarto setor” da economia. Estas organizações distinguem-se das empresas tradicionais por operarem no setor privado com fins lucrativos, abordando simultaneamente questões sociais e ambientais (Elkington, 2019; Honeyman & Jana, 2019; Sabeti, 2011). Este quadro de ação constitui uma evolução para além da abordagem tradicional da RSE, na medida em que vai além de ações responsáveis específicas. Dentro deste novo quadro, os propósitos sociais e ambientais tornam-se a própria essência de uma organização (Barroso, 2015, 2021; Suárez Monsalve & Álvarez-Nobell, 2022).
14Embora não sejam propriamente consideradas empresas com propósito, as marcas de cosméticos têm desenvolvido recentemente ações sustentáveis relevantes. De facto, é possível analisar o impacto e a relação do setor da beleza com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Por exemplo, em relação ao ODS3, que se refere à saúde e bem-estar global, a indústria da beleza e dos cuidados pessoais contribui diretamente para o bem-estar físico e emocional dos indivíduos através de produtos e serviços relacionados com a saúde e os cuidados pessoais. Quanto ao ODS12, que concerne a produção e consumo responsáveis, as empresas de cosméticos têm adotado diversas práticas ecológicas, e estão igualmente empenhadas no ODS15 — vida na terra — ao contribuírem para a preservação da biodiversidade.
15No entanto, apesar de as empresas de cosméticos abraçarem estes objectivos e transmitirem o seu compromisso, o público e a sociedade ainda mantêm algum ceticismo ao depararem-se com casos de greenwashing, SDG-washing e várias outras formas de práticas enganosas. Estes comportamentos dificultam o acesso à informação essencial de que os indivíduos necessitam para fazerem escolhas bem informadas e sublinham a importância crescente de as empresas abordarem as questões da sustentabilidade. É neste quadro geral de comunicação que situamos o estudo de investigação que aqui apresentamos.
16Para compreender como as principais marcas de cosméticos da América Latina comunicam as suas iniciativas de sustentabilidade e responder às nossas QI, realizamos um estudo aprofundado de quatro marcas de cosméticos proeminentes, como Avon, Natura, O Boticário e Yanbal. Seguindo uma abordagem semelhante à adotada por outros investigadores (Dalmarco et al., 2015; Kenalemang-Palm et al., 2021; Ourahmoune et al., 2014), a seleção dessas marcas assentou em três critérios: (a) âmbito e alcance, tendo em conta que as quatro têm uma extensa cobertura de mercado e reconhecimento de marca em vários países da América Latina; (b) políticas de sustentabilidade, uma vez que estas marcas são reconhecidas pelo seu compromisso com a sustentabilidade e práticas empresariais responsáveis; e (c) representação diversificada, na medida em que as quatro marcas demonstraram interesse em abordar um leque diversificado de questões sociais e ambientais na América Latina, onde o seu mercado é mais forte.
17Segundo a classificação do Monitor Empresarial de Reputação Corporativa (ver Tabela 1), o principal órgão de controlo empresarial na América Latina que avalia a reputação das empresas desde 2000, três das marcas selecionadas como estudos de caso estão entre as 10 mais reputadas na América Latina. Além disso, no caso de O Boticário, na Merco Brasil, ocupa o segundo lugar no setor “cosméticos e perfumaria”, precedido pela Natura e seguido pela Avon.
Tabela 1. Empresas com melhor reputação na América Latina em 2021
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Posições
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Marca
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1
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Unilever
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2
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P&G
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3
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Natura
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4
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J&J
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5
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L’Orèal
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6
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Kimberly Clark
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7
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Avon
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8
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Colgate Palmolive
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9
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Yanbal
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Nota. Informação retirada de Monitor Empresarial de Reputação Corporativa (https://www.merco.info)
18Dentro deste grupo de marcas e atendendo a que o nosso principal enfoque é a comunicação, abordámo-la como um processo complexo que implica produção, mensagem e consumo por parte de uma audiência. Para explorar as características gerais da produção de mensagens e a sua receção nas redes sociais, adotámos uma abordagem quantitativa. Para aprofundar o conhecimento sobre as características destas mensagens — em particular os discursos subjacentes à comunicação sobre sustentabilidade — utilizámos uma abordagem qualitativa. Nesta secção, explicamos de que modo realizámos a nossa análise através do exame de três corpos de textos organizacionais distintos (Atkinson et al., 2008): as publicações no Facebook de cada uma das quatro marcas estudadas, as políticas de sustentabilidade também partilhadas por estas empresas nos seus sites e os conteúdos audiovisuais apresentados nos seus canais do YouTube. Como explicaremos a seguir, analisámos estes dados quantitativa e qualitativamente.
19Para responder à primeira QI, ou seja, examinar como o público das redes sociais interage com o conteúdo de sustentabilidade comunicado pelas principais marcas de cosméticos da América Latina, realizámos uma análise estatística das publicações nas redes sociais que a Avon, a Natura, O Boticário e a Yanbal fizeram entre 31 de julho de 2019 e 31 de julho de 2023 sobre o tema da sustentabilidade em sentido amplo, ou seja, incluindo suas dimensões ambiental, social e económica. O Facebook surgiu como o principal foco de análise da comunicação sobre sustentabilidade em virtude tanto do número considerável de utilizadores da plataforma quanto do envolvimento proativo das organizações, que levou à predominância da sua presença no Facebook (Capriotti et al., 2019).
20Utilizámos a ferramenta de análise Crowdtangle para recolher esses dados e adquirir perceções relativamente a métricas de envolvimento, tendências e interações no Facebook para a Avon, a Natura, O Boticário e a Yanbal. Essas perceções permitiram-nos explorar o conteúdo da comunicação e as interações entre essas quatro marcas e os seus públicos no Facebook. Para garantir essa abordagem ampla da sustentabilidade, aplicámos termos de pesquisa na plataforma Crowdtangle que abrangiam diversas facetas da sustentabilidade, incluindo “sustentabilidade”, “sustentável”, “sustentabilidade social”, “ambiental” e “equidade”. Para realizar a análise estatística, utilizámos a linguagem de programação R.
21Paralelamente, e à semelhança do que foi feito noutros estudos (Hartono et al., 2022), realizámos também uma análise qualitativa que complementou a visão geral fornecida pelo estudo quantitativo, e que nos permitiu abordar as outras duas questões orientadoras do nosso estudo — nomeadamente, explorar os discursos utilizados por estas marcas para demonstrar o seu compromisso com a sustentabilidade, e identificar as tensões e contradições dentro desses discursos. Esta abordagem qualitativa contemplou não só a avaliação das publicações no Facebook, mas também a inclusão de dois conjuntos de dados suplementares: as políticas de sustentabilidade publicadas pelas empresas nos seus sites e os conteúdos audiovisuais apresentados nos seus canais do YouTube.
22Para cada um destes três tipos de textos organizacionais, aplicámos as seguintes amostras: analisámos as quatro políticas de sustentabilidade de cada uma das marcas estudadas. Todas elas foram acedidas através dos seus sites na mesma data (27 de julho de 2023) para garantir uma recolha de dados equitativa. Os conteúdos audiovisuais foram selecionados independentemente do seu formato (promocional, formação, webinars, etc.) e da sua duração.
23No entanto, dado o número substancial de conteúdos e o objetivo qualitativo desta metodologia, seguimos um critério de amostragem intencional para selecionar os vídeos mais pertinentes para as nossas QI. No total, examinámos minuciosamente 20 vídeos representativos — cinco de cada empresa — até atingirmos a saturação metodológica, de modo que os diferentes conteúdos demonstraram tendências discursivas evidentes. Os vídeos disponíveis no canal do YouTube de cada marca foram acedidos numa data específica (13 de julho de 2023), para identificar materiais relacionados com a sustentabilidade (utilizámos o mesmo conjunto de termos de pesquisa utilizados para a amostra quantitativa). Por fim, seguindo o mesmo critério de amostragem intencional, analisámos as publicações do Facebook e os respetivos comentários relevantes para a segunda e terceira QI.
24Após a recolha das políticas e vídeos de sustentabilidade, bem como das publicações relevantes no Facebook e respetivos comentários, transcrevemos o conteúdo para proceder à respetiva análise do discurso, cujo principal objetivo era examinar criticamente os sistemas de significado que esses textos organizacionais criavam e reproduziam. A partir de um ponto de vista metodológico crítico (Merrigan et al., 2009), procurámos desconstruir as contradições existentes nos discursos de sustentabilidade das marcas estudadas. Considerando a natureza multifacetada dos discursos e a sua emergência a partir de contextos diversos e contraditórios, centrámo-nos na análise das tensões que os moldam (Tracy & Geist-Martin, 2014). Esta abordagem inscreve-se no paradigma mais vasto dos estudos do paradoxo, que engloba conceitos como “tensão”, “contradição”, “dualismo”, “dualidade” e “dialética” (Baxter & Braithwaite, 2008; Putnam et al., 2016).
25Destacamos especialmente as tensões como um quadro analítico para desconstruir os discursos sobre sustentabilidade. A análise dessas tensões é crucial na medida em que estudos anteriores (Chang, 2011; Leonidou et al., 2011) indicam que os consumidores, mesmo que ambientalmente conscientes, tendem a ser céticos relativamente a produtos rotulados como “verdes” devido a preocupações com o greenwashing. No entanto, a investigação também demonstra que este ceticismo pode ser contrariado com base na conceção (tanto na forma como no conteúdo) da mensagem na comunicação sobre sustentabilidade. Por conseguinte, a nossa atenção centra-se na conceção destas mensagens e nas tensões subjacentes que podem amplificar ou atenuar esse ceticismo.
26Por último, é importante sublinhar que, recorrendo ao conceito de “relativismo metodológico” de Potter (1996), a nossa análise não pretende avaliar a consistência entre a realidade e o discurso. Por outras palavras, não tentamos verificar se as alegações de sustentabilidade feitas pelas marcas de cosméticos correspondem efetivamente às suas ações. Centramo-nos sobretudo na dimensão discursiva para explorar as tensões manifestadas na comunicação.
27Conforme exposto, para examinar como o público interage com o conteúdo de sustentabilidade publicado no Facebook por marcas como a Avon, a Natura, O Boticário e a Yanbal, analisámos as publicações nas redes sociais através do Crowdtangle. Surpreendentemente, conseguimos recolher 113 publicações durante o período analisado, das quais 106 consideradas válidas para análise estatística. Este resultado é curioso, dado o forte compromisso com a sustentabilidade que estas marcas exibem e comunicam através de outros canais, como discutiremos na secção seguinte. No entanto, este número limitado de publicações não diminui a viabilidade da nossa amostra para análise estatística. Cumpre com sucesso o objetivo preliminar do nosso estudo, uma vez que nos permite ter uma visão geral da abordagem à sustentabilidade. Além disso, como discutiremos, a própria comunicação nas redes sociais, comparativamente modesta, é um aspeto digno de nota, por contrastar com outras plataformas.
28Entre as quatro marcas analisadas, a Natura destaca-se como a que mais ativamente comunica a sustentabilidade, com 53% do total de publicações no Facebook. Depois da Natura, a Yanbal representa 20%, a Avon contribui com 17% e O Boticário representa 10% das publicações. Os vídeos representam 59% do conteúdo partilhado, enquanto os restantes 41% apresentam imagens relacionadas com a sustentabilidade. A Figura 1 apresenta o tipo de sustentabilidade que essas marcas preferem comunicar.
Figura 1. Tipo de sustentabilidade comunicada
29Como é possível observar, grande parte das publicações (61%) é dedicada à sustentabilidade ambiental, ou seja, à preocupação em minimizar o impacto ecológico da indústria de cosméticos. A sustentabilidade social é destacada em 30% das publicações, abordando temas como as condições equitativas para a promoção do bem-estar, dos direitos humanos e da qualidade de vida das gerações atuais e futuras. Curiosamente, 9% do conteúdo relaciona temas de sustentabilidade ambiental e social. Importa referir que nenhuma das mensagens aborda diretamente a sustentabilidade económica. Esta omissão pode dever-se à relutância das marcas em discutir abertamente as suas estruturas económicas, que contribuem para o crescimento a longo prazo, a estabilidade e a gestão eficiente dos recursos.
30O público atribui um valor significativo à comunicação destas marcas, em parte devido às anteriores perceções positivas sobre as mesmas. No entanto, ao contrário dos resultados de outros estudos sobre a comunicação de sustentabilidade através das redes sociais (Angel, 2023), a nossa análise da Avon, da Natura, de O Boticário e da Yanbal não demonstrou reações negativas dos consumidores relativamente às mensagens de sustentabilidade quando as suas opiniões sobre a marca que as transmitia eram desfavoráveis.
31Aliás, entre os 1.898 comentários analisados no Facebook, 8% deles foram positivos, no sentido em que os utilizadores escreveram mensagens otimistas sobre o conteúdo específico comunicado pelas marcas; 82% dos comentários também foram positivos, mas estas respostas não estavam diretamente ligadas à publicação específica, antes sim às perceções favoráveis dos utilizadores sobre as marcas ou ao seu papel como consultores envolvidos na venda de catálogos (como iremos desenvolver mais tarde); apenas 2% dos comentários foram negativos, ao acusarem as empresas de defenderem causas ambientais quando utilizam demasiadas embalagens e desperdício de papel; e, finalmente, 8% dos comentários não estavam relacionados com a publicação ou com a marca, apresentando-se como ícones não relacionados, respostas não contextualizadas ou entradas em branco.
32Para além das métricas disponibilizadas pelo Crowdtangle, introduzimos duas novas variáveis: o “tipo de sustentabilidade comunicada” (como “ambiental”, “social” e “económica”) e a “natureza do conteúdo de sustentabilidade” (se as empresas comunicam a sustentabilidade por receberem “prémios”, por comemorarem datas ou “eventos” relevantes relacionados com a sustentabilidade, por mostrarem “iniciativas” sustentáveis ou por participarem em “iniciativas pedagógicas” com as audiências).
33Pretendemos, assim, perceber se existia uma relação entre estas novas variáveis e a nossa variável dependente, ou seja, o envolvimento das audiências com as publicações. Considerámos a variável “over-performing” (desempenho acima do esperado; fornecida pelo Crowdtangle) como a melhor métrica para o envolvimento das audiências, uma vez que resume todas as outras métricas de envolvimento (ou seja, partilhas, comentários, emoções, gostos, etc.). Esta métrica é positiva quando o envolvimento da publicação está acima da média, negativa quando está abaixo da média e zero para publicações com envolvimento médio.
34Devido à natureza numérica da nossa variável dependente, o primeiro passo foi realizar um teste de normalidade. Utilizámos o teste de Shapiro-Wilk (Royston, 1982), cuja hipótese nula é a de que a amostra segue uma distribuição normal. O resultado desse teste foi a forte rejeição da hipótese nula (W = 0,49149, valor-p < 2,2 x 10-16). Portanto, podemos afirmar com segurança que a variável “over-performing” não segue uma distribuição normal. Com esta informação e tendo em conta que as nossas variáveis independentes são categóricas, procedemos à utilização do teste de Mann-Whitney (Wackerly et al., 2014), cujo principal objetivo é detetar se existe uma diferença nas medianas entre duas populações.
35Para a primeira relação, considerámos o tipo de sustentabilidade (categorizada como “ambiental” e “social”). A relação na nossa amostra entre essa variável e o “over-performing” (variável dependente) é apresentada na Figura 2, onde é possível verificar que, em geral, as publicações “ambientais” têm melhor envolvimento do que as “sociais”.
Figura 2. Over-performing por tipo de sustentabilidade
36Os resultados do teste Mann-Whitney (W = 1,885, valor-p = 3,709 x 10-6) confirmam que, de facto, existe uma diferença no pós-envolvimento entre os dois tipos de sustentabilidade. As estimativas estatísticas permitem-nos afirmar que as publicações relacionadas com a sustentabilidade ambiental atingem, em média, 3 pontos a mais de desempenho em comparação com as dedicadas à sustentabilidade social (com um intervalo de confiança de 95% de [1,6; 3,9]). Talvez o maior envolvimento relacionado com o ambiente se deva ao facto de promover um maior sentido de identificação, uma vez que o planeta constitui uma preocupação partilhada. Por outro lado, a sustentabilidade social é mais direcionada para as mulheres, como explicaremos na próxima secção.
37Para a segunda relação, considerámos o conteúdo da sustentabilidade (categorizado como “prémios”, “eventos”, “ação” ou “pedagogia”) e utilizámos o mesmo tipo de gráfico para visualizar a relação entre a variável “over-performing” e o tipo de conteúdo da nossa amostra. Na Figura 3, é possível constatar que, em geral, as mensagens relacionadas com “ação” tendem a ter um melhor envolvimento do que as mensagens relacionadas com “evento”.
Figura 3. Over-performing por tipo de conteúdo de sustentabilidade
38Neste caso, os resultados do teste Mann-Whitney (W = 1.453,5, valor-p = 0,0065) também confirmam que existe uma diferença no pós-envolvimento entre os dois tipos de conteúdo de sustentabilidade. Apesar de termos verificado que a diferença é estatisticamente significativa (1,3 com um intervalo de confiança de 95% de [0,3; 2,9]), este nível de diferença é irrelevante para a comunicação da sustentabilidade.
39Embora a análise quantitativa tenha apresentado dados importantes sobre a dinâmica de produção e consumo das mensagens, debruçamo-nos agora sobre as próprias mensagens e, mais especificamente, sobre os discursos de sustentabilidade que estas comunicam. Assim, realizámos uma análise qualitativa do discurso, não só das publicações no Facebook e dos comentários dos utilizadores, mas também das políticas de sustentabilidade apresentadas nos sites das marcas e dos conteúdos audiovisuais dos seus canais no YouTube. Como referido, realizámos uma análise discursiva destes textos organizacionais para identificar as tensões discursivas inerentes. Neste sentido, considerámos os vocabulários utilizados nos diferentes textos organizacionais como “ecrãs terminísticos” (Burke, 1969), que não só transmitem visões do mundo e valores distintos, mas também refletem as dinâmicas de poder e as tensões que influenciam as operações organizacionais (Manuti, 2005; Mumby, 2001). Estas terminologias refletem ideologias distintas integradas em contextos organizacionais (Deetz, 2003).
40Para identificar as tensões subjacentes ao discurso de sustentabilidade das marcas estudadas, seguimos a abordagem sugerida por Seo et al. (2004), que afirmam que as tensões podem ser interpretadas de quatro formas, incluindo seleção, separação, integração e transcendência. Uma tensão abordada através da seleção implica a rejeição de um polo da dicotomia, favorecendo involuntariamente a alternativa. A gestão da tensão através da separação implica o reconhecimento de ambos os polos da dicotomia, mas separando-os em diferentes níveis de análise. A integração equilibra as duas extremidades do processo contínuo como legítimas ao mesmo tempo, mas não satisfeitas na sua totalidade. A transcendência implica a reformulação de uma dicotomia como um todo, criando uma síntese.
41Os discursos de sustentabilidade da Avon, Natura, O Boticário e Yanbal são construídos sobre a tensão da integração, onde elementos potencialmente contraditórios coexistem como legítimos. Especificamente, após a leitura de todos os textos organizacionais descritos, realizamos uma análise detalhada de grupos para categorizar as tensões identificadas nos textos organizacionais. A partir de um conjunto inicial de sete tensões, foi possível reduzi-las através da identificação de sobreposições e semelhanças, refinando assim um conjunto de tensões mais específico. Este processo sistemático convergiu para três pares de tensões distintas, mas inter-relacionadas: sustentabilidade versus capitalismo, impacto empresarial versus agência do consumidor e empoderamento versus papéis de género. Estes destacaram-se como os mais pronunciados nos nossos dados, evidenciados por padrões recorrentes que descreveremos a seguir.
42Nas marcas analisadas, a sustentabilidade é comunicada no contexto da tensão do modelo capitalista subjacente às suas práticas de produção e consumo. Essa tensão é evidente no discurso dessas marcas, que enfatizam a procura, a ação e o apelo à responsabilidade no presente para proteger o futuro, ao mesmo tempo que reconhecem a necessidade de operar num contexto capitalista baseado na maximização da produção e do consumo. No fundo, estas marcas apoiam firmemente a sustentabilidade, mas este apoio surge a par das exigências naturais do capitalismo.
43Evidentemente, essa tensão reflete os resultados de pesquisas anteriores que demonstram que um aspeto fundamental do discurso da sustentabilidade reside na necessidade das empresas de comunicar uma harmonia entre a sua prosperidade material e o desenvolvimento sustentável (Markkula & Moisander, 2012). O excerto do vídeo do YouTube da Natura Colombia (2021a) que se segue exemplifica a tensão entre sustentabilidade e capitalismo no contexto da indústria de cosméticos: “mais beleza, menos desperdício” (00:01:08). A frase incorpora a dicotomia: por um lado, “mais beleza” incentiva o consumo de produtos cosméticos, inerentemente associado ao modelo capitalista, enquanto, por outro lado, “menos desperdício” aponta para o imperativo da responsabilidade ambiental e da redução de resíduos. Esta tensão revela-se à medida que as marcas persistem no lançamento de novos produtos cosméticos, o que levanta questões sobre o equilíbrio entre o seu compromisso com a sustentabilidade e a promoção do consumo consciente.
44Conforme analisado nas suas políticas de sustentabilidade, estas marcas adotam diferentes estratégias nas suas abordagens de produção, incluindo a implementação de energias renováveis (oBoticário, s.d.), ecodesign (Yanbal, s.d.) e a adoção de embalagens “recicláveis, reutilizáveis ou compostáveis” (Avon, s.d. para. 11). Ao mesmo tempo, é dado um destaque significativo à comunicação do papel da reciclagem como um caminho fundamental para a sustentabilidade entre os consumidores. Este destaque para a reciclagem revela, no entanto, uma tensão com a dinâmica do capitalismo, uma vez que implica um excedente de resíduos gerados por uma produção excessiva. Por exemplo, num vídeo do YouTube, o Boticário (2019) apresenta o seu programa de reciclagem como
o Boti Recicla existe desde 2006 e é hoje o maior programa de reciclagem em pontos de coleta do Brasil. A gente está falando de 3.700 pontos em 1.750 cidades, com mais de 30 cooperativas homologadas e cerca de 28.000 pessoas operando em prol do meio ambiente. (00:00:20)
45Embora as iniciativas de reciclagem sejam passos positivos, podem não abordar totalmente o ciclo de vida do produto se estiverem constantemente a ser produzidos novos produtos. Até os consumidores apontam diretamente para esta tensão entre consumo e sustentabilidade, como ilustra o seguinte comentário no Facebook a uma publicação da Natura: “digo isto com todo o respeito, mas é um absurdo o tamanho das caixas que utilizam para enviar produtos tão pequenos”. Embora as empresas de cosméticos promovam constantemente a recolha de embalagens vazias, o facto de terem de o fazer sugere que ainda há um problema de excesso de produção e geração de resíduos. O foco na recolha de embalagens pode não resolver completamente o problema principal, mas pode ser considerado uma abordagem ao sintoma do desperdício, em vez de lidar diretamente com a causa subjacente da produção excessiva.
46De acordo com a tipologia explicada anteriormente (Seo et al., 2004), esta primeira tensão segue o padrão de integração, uma vez que a sustentabilidade e o capitalismo são ambos legitimados no discurso das marcas. Curiosamente, o financiamento de projetos sociais e ambientais surge como um elemento unificador que concilia os dois polos em tensão. Assim, as marcas comunicam a sua intenção de resolver problemas ambientais ou sociais que não são os resultados diretos das suas ações, mas sim questões secundárias que pretendem mitigar. Esta mudança de discurso desvia a atenção dos desafios ambientais ou sociais que as empresas de cosméticos podem desencadear para outras questões relacionadas com as quais contribuem para ajudar. Num vídeo promocional do YouTube, por exemplo, Yanbal (2021) explica como,
na América Latina e nas Caraíbas, aproximadamente 43 milhões de meninas e adolescentes vivem em extrema pobreza. A falta de educação e a desigualdade de género colocam-nas em desvantagem e reduzem as suas oportunidades de superação. Por isso, a Yanbal criou o projeto Mujer Es Poder [Mulher É Poder], que procura conferir poder a meninas e adolescentes colaborando com [as organizações] Care Peru, Woman for Woman e a Fundación Juanfe, numa iniciativa conjunta que procura reforçar a sua autoestima numa etapa crucial das suas vidas. (00:00:01)
47Neste excerto de vídeo, é possível constatar como a empresa investe os seus recursos no projeto Mujer Es Poder para conferir poder às meninas e adolescentes desfavorecidas na América Latina e nas Caraíbas. O foco numa questão social diferente implica uma mudança estratégica no discurso que destaca uma iniciativa secundária não relacionada com as potenciais consequências das práticas de extração de recursos da Yanbal. Este redirecionamento do foco sugere uma mudança de discurso no qual a ênfase é colocada na resolução de um problema social diferente, e não no envolvimento direto com as preocupações que poderiam estar associadas às práticas da própria empresa ou aos impactos em ambientes locais.
48Uma segunda tensão surge quando se estuda o discurso sobre a sustentabilidade das marcas de cosméticos, desta vez entre o impacto empresarial e a agência do consumidor. Neste contexto, a comunicação da sustentabilidade implica uma tensão entre as iniciativas realizadas pelas empresas de cosméticos para garantir um futuro sustentável e a agência atribuída aos consumidores no discurso, tornando-os responsáveis por esses esforços sustentáveis. Assim, o discurso segue a narrativa na qual as empresas, utilizando o pronome “nós”, destacam orgulhosamente a sua dedicação à salvaguarda do futuro, enquanto os consumidores, referidos como “vós”, assumem um papel significativo no cumprimento desse compromisso.
49Há duas formas de discurso que exemplificam esta transferência de responsabilidade: os discursos que convidam os consumidores a reciclar e aqueles que sublinham que o consumo de produtos cosméticos gera fundos adicionais para apoiar iniciativas sociais como o projeto Mujer Es Poder, abordado na secção anterior. Já examinámos o foco na reciclagem, discursivamente apresentada como a solução para a produção excessiva. No contexto dessa tensão, a reciclagem é retratada como a principal forma de as empresas responsabilizarem os consumidores pela sustentabilidade.
50No seu canal no YouTube, por exemplo, O Boticário apresenta diversos vídeos que convidam e informam os consumidores sobre a reciclagem. Num dos vídeos (o Boticário, 2019), por exemplo, uma mulher olha para um expositor da loja da marca e expressa a sua surpresa ao ver um grande recipiente com embalagens vazias e usadas de cosméticos. Mais adiante, o vídeo explica que esse expositor faz parte da campanha de reciclagem de O Boticário. Este vídeo ilustra o foco da empresa no envolvimento do consumidor, uma vez que incentiva uma mudança na atenção do espetador do potencial impacto ambiental da marca para o papel individual na reciclagem. Além disso, conforme confirmado pela nossa análise estatística inferencial, vídeos como este são altamente apelativos. Não só as marcas de cosméticos comunicam assuntos relacionados com a sustentabilidade ambiental de forma mais extensiva — e os utilizadores envolvem-se mais ativamente com estas questões — como as marcas também dedicam uma parte importante da sua comunicação a encorajar os consumidores a reciclar, e capitalizam esse esforço.
51Os discursos que retratam o envolvimento das empresas de cosméticos em projetos sociais também ilustram esta tensão e, mais precisamente, a delegação de agência nos consumidores. Embora as empresas selecionem e supervisionem ativamente esses projetos, o discurso destaca os consumidores, que são incentivados a continuar a consumir para facilitar o financiamento e os esforços de colaboração associados a essas iniciativas. Esta dinâmica está patente num vídeo promocional da Natura Colombia (2022), onde o narrador afirma que: “também você e os seus clientes podem fazer parte deste belo sonho [ajudar a Amazónia colombiana] cada vez que compram um produto Ekos Natura, o mundo fica mais bonito consigo” (00:01:49). Esta ênfase em dirigir-se diretamente ao público como “você” exemplifica a delegação de agência na qual é devido às ações do “cliente” que a Natura pode ajudar a Amazónia e pode tornar o mundo mais bonito.
52Este discurso também está presente na comunicação da sustentabilidade nas redes sociais, como ilustra a seguinte publicação no Facebook: “com cada compra de produtos #NaturaCrerParaVer, você investe nos projetos para melhorar a qualidade e a equidade da educação. Porque o mundo será mais bonito quando todas as meninas, meninos e jovens estiverem na escola” (Natura, 2022a). Com este discurso, a Natura posiciona os consumidores não apenas como clientes de produtos, mas como participantes ativos em causas sociais e ambientais mais abrangentes.
53Como demonstrado pela nossa análise quantitativa, as marcas examinadas privilegiam sobretudo a sustentabilidade ambiental na sua comunicação. No entanto, concebem a sustentabilidade num contexto mais amplo que ultrapassa as ações ambientais. A indústria de cosméticos sublinha os seus esforços no empoderamento das mulheres, facilitando a sua independência financeira através de oportunidades como a de se tornarem consultoras de vendas por catálogo. O discurso segue a narrativa de que as marcas de cosméticos conferem poder às mulheres ao permitir que elas se tornem consultoras de vendas, promovendo assim a autonomia financeira. No entanto, este discurso também apresenta uma tensão, segundo a qual, embora as marcas de cosméticos confiram poder às mulheres, este empoderamento pode inadvertidamente reforçar certos papéis de género. A Yanbal (2019) articula este facto da seguinte forma:
a frente social é, de facto, muito fácil para nós; é inerente; foi desde a nossa criação que começámos na frente social; temos uma força de vendas nos 10 países em que operamos de 500.000 mulheres. 500.000 consultoras e empreendedoras, das quais 12.00 são empreendedoras, e temos colaboradores a nível empresarial, um número de 5.000. (00:04:27)
54A Avon (Avon Colombia, 2019) coloca a questão da seguinte forma:
gostarias de fazer parte da empresa que mais investe na prevenção e tratamento do cancro da mama no mundo? Gostarias de ajudar as mulheres a alcançar a independência financeira? Gostarias de ganhar dinheiro tornando outras mulheres mais bonitas? Junta-te à Avon. (00:00:01)
55Portanto, embora dê poder às mulheres enquanto trabalhadoras, este discurso pode reforçar os papéis convencionais de género ao retratar as mulheres em papéis tradicionais como vendedoras, cuidadoras e portadoras de beleza na sociedade. Mensagens do YouTube como as da Avon e da Yanbal podem involuntariamente perpetuar a noção de que o empoderamento das mulheres ocorre principalmente dentro de limites específicos predefinidos, reforçando as normas sociais em vez de desafiá-las.
56No que toca à representação de género na comunicação da sustentabilidade social por parte das marcas de cosméticos, observámos como a noção de beleza se torna matizada e complexa. Em primeiro lugar, está predominantemente associada às mulheres, das quais se espera frequentemente que personifiquem a beleza. Em segundo lugar, a sua construção está intrinsecamente ligada ao conceito de “natureza”. É interessante notar que a referência à natureza cria uma ponte entre a ideia de beleza e dois campos semânticos distintos: ambiente e autenticidade. No primeiro caso, a beleza é associada à harmonia, pureza e equilíbrio ecológico, enquanto no segundo, a beleza é conotada com a beleza artificial. Consequentemente, surge desta vez uma subtensão entre a noção de “beleza autêntica” e o consumismo necessário para atingir esse ideal de beleza.
57A referência da Natura (2022b) à “bio-beleza” (biobelleza) exemplifica esta tensão: “mais bio-beleza para o futuro da floresta” (00:00:14) ou “a beleza só é beleza para mim se for também beleza para o mundo. Esta ideia está mais forte do que nunca. E Ekos [Natura] é agora bio-beleza” (Natura Colombia, 2021b, 00:00:00). A promoção de uma nova fragrância de O Boticário também brinca com esses diferentes vocabulários de campos semânticos distintos:
uma vez que a velocidade aumenta, é difícil desacelerar. Até que você descobre, a pausa. Novo “Arbo Forest”. Sinta a energia da natureza renovar a sua. A fragrância que recria a sensação de um banho de floresta que renova a sua energia e seu bem-estar. Agora com refil! “Arbo Forest” é O Boticário. (o Boticário, 2022, 00:00:03)
58Embora estes discursos destaquem o conceito de “beleza interior”, a promoção de produtos de beleza reforça simultaneamente a associação entre a beleza e a utilização de produtos externos. Os vídeos como os acima citados não só apelam às emoções dos consumidores, como também sugerem uma ligação harmoniosa entre as suas ações individuais e a visão mais ampla que estas marcas procuram promover. Ao associar a beleza interior ao consumo dos seus produtos, as marcas de cosméticos apresentam os seus produtos como uma forma de aumentar o bem-estar pessoal e, ao mesmo tempo, promover a preservação do ambiente.
59Por outro lado, as marcas reproduzem a ideia de que a beleza autêntica — que paradoxalmente requer produtos artificiais — promove uma autoestima feminina mais robusta, como ilustra o seguinte excerto:
porque só valorizando-se a si próprias e conhecendo o seu direito à igualdade é que podem atingir os seus objectivos de vida. Porque uma menina com uma autoestima sólida torna-se uma mulher empoderada e uma mulher empoderada pode não só mudar o seu próprio futuro, como também pode mudar o mundo. (Yanbal, 2021, 00:00:31)
60Este discurso associa subtilmente a noção de “beleza autêntica” ao cultivo da autoestima e ao impacto social, pois baseia-se na interação entre o consumo de cosméticos, o bem-estar pessoal e o empoderamento. Por outro lado, como estudos anteriores demonstraram, esta tensão também ilustra como a aparência das mulheres é construída como um projeto individual no qual as mulheres têm de trabalhar continuamente (Kenalemang-Palm et al., 2021). Este fenómeno serve um propósito ideológico ao reforçar a ideologia neoliberal de autogestão e autoaperfeiçoamento para alcançar beleza, saúde e sucesso (Chen & Eriksson, 2022). De modo geral, esta forma de comunicação da sustentabilidade reitera a conceção de um projeto de autoidentidade individual que exige esforço contínuo para ser mantido (Coupland, 2009).
61Após concluir esta análise, podemos afirmar que o discurso de sustentabilidade das principais marcas de cosméticos da América Latina, como Avon, Natura, O Boticário e Yanbal, revela uma interação complexa entre o seu compromisso com o bem-estar ambiental e social. Também evidencia as limitações dos sistemas capitalistas, o empoderamento do consumidor e a evolução dos papéis de género. Através de análises qualitativas e quantitativas, os resultados obtidos permitem-nos identificar as tensões decorrentes da tentativa das empresas de cosméticos em conciliar a procura do lucro com a promoção do desenvolvimento sustentável.
62Mais concretamente, argumentamos que o discurso sobre a sustentabilidade das principais marcas de cosméticos na América Latina é particularmente apelativo para o público quando destaca preocupações ambientais e menos quando se refere à sustentabilidade social. A análise da dinâmica de envolvimento no Facebook proporcionou uma visão abrangente de como as mensagens de sustentabilidade das principais marcas de cosméticos latino-americanas são comunicadas. Revelou as formas que essas mensagens assumem, o conteúdo que apresentam e as respostas que geram nas suas comunidades online. A análise revela um cenário complexo no qual o público apresenta diferentes graus de envolvimento com diversos tipos de temas e conteúdos de sustentabilidade.
63Além disso, demonstramos uma interação complexa de tensões que incluem a justaposição de três relações dialéticas neste discurso de sustentabilidade: a tensão entre sustentabilidade e capitalismo, entre o impacto empresarial e a agência do consumidor, e entre empoderamento e papéis de género. A primeira tensão, ou seja, entre sustentabilidade e capitalismo, sublinha como o discurso das marcas de cosméticos analisadas corresponde ao que académicos como Ferns e Amaeshi (2019) descrevem como um discurso “fraco” de sustentabilidade, que preconiza a mudança, mas no contexto de um paradigma pró-crescimento e baseado no mercado. São esses polos opostos que a tensão tenta conciliar ou integrar, ao contrário de um discurso “forte” de sustentabilidade, que é mais radical, visando a mudança estrutural.
64A segunda tensão, desta vez entre o impacto empresarial e a agência do consumidor, demonstra como, ao alinhar o seu consumo com as iniciativas da empresa, as consumidoras são posicionadas para se sentirem capacitadas, uma vez que as suas compras são apresentadas como necessárias para efetivar uma mudança social positiva. Assim, o convite para as clientes viabilizarem estes projetos através das suas compras sublinha a noção de que o consumo pode contribuir para um objetivo maior facilitado pela agência do consumidor (Pelenc et al., 2015).
65Por último, a tensão entre empoderamento e papéis de género demonstra como a comunicação de sustentabilidade das marcas de cosméticos, ao realçar a responsabilidade ambiental e o empoderamento das mulheres, pode inadvertidamente reforçar os papéis tradicionais de género e perpetuar as normas sociais. Este discurso também evidencia a complexa relação entre os ideais de beleza, o consumismo e os projetos de autoidentidade, moldando as perceções de beleza e os papéis das mulheres na sociedade.
66O nosso estudo oferece dois contributos para a literatura. Em primeiro lugar, seguimos o apelo de autores que convidam os académicos a transcender o estreito foco doméstico na análise da comunicação de sustentabilidade e a abraçar uma perspetiva mais global ou transnacional (Leonidou et al., 2011). Para responder à crescente preocupação internacional com o desenvolvimento sustentável, estudamos o papel das principais marcas multinacionais do setor da beleza nos seus esforços de colaboração para salvaguardar o ambiente. Mais especificamente, situamos o nosso estudo no contexto da América Latina, uma região não apenas pouco estudada, mas também uma região considerada um dos pulmões do planeta, convocada para contrabalançar a pegada de carbono das grandes empresas do Norte. Paradoxalmente, este pulmão do planeta serve também como fonte primária de matérias-primas para a indústria cosmética, aspeto que desenvolvemos na nossa análise.
67A perspetiva crítica, defendida por vários académicos (Angel, 2022; Ferns & Amaeshi, 2019; Mumby, 2016), constitui o nosso segundo contributo. Abordamos as potenciais contradições do discurso de sustentabilidade das empresas de cosméticos e desafiamos os pressupostos de um compromisso genuíno, visando uma melhor compreensão das formas discursivas que as marcas utilizam para se relacionar com os seus públicos, utilizando retóricas específicas que, por sua vez, podem implicar tensões intrínsecas. Primordialmente, adotamos uma postura ética (Oe & Yamaoka, 2022), que preconiza que o greenwashing não deve ofuscar a ambição genuína do desenvolvimento sustentável. Por último, ao examinar as tensões nos discursos de sustentabilidade, visamos contribuir para a compreensão mais profunda e para a identificação de desafios e oportunidades enfrentados pelas marcas ao conciliar objetivos orientados para o lucro com práticas responsáveis (Chang, 2011). Estudos futuros poderiam explorar se diferentes contextos fora da América Latina geram tensões distintas na comunicação de sustentabilidade. Através de uma abordagem comparativa, os académicos poderiam avaliar se as três tensões aqui identificadas são relevantes para outros setores além da indústria da beleza. Esta abordagem poderia oferecer uma perspetiva mais abrangente sobre as práticas de sustentabilidade e estratégias de comunicação em diferentes setores empresariais. Além disso, ao empregar metodologias quantitativas, estudos futuros poderiam avaliar a eficácia das estratégias de comunicação digital das marcas de cosméticos, especialmente no que diz respeito à abordagem das tensões percebidas pelos consumidores como conteúdo contraditório.
68Álvarez-Nobell, A., Arzuaga-Williams, M., Guillén, G., Pagani, G., & Vásquez Donoso, C. (2022). Escuchando lo silenciado: Explorar y aprender con las poblaciones, organizaciones y problemáticas invisibilizadas. Memorias del tercer encuentro de la Red Latinoamericana de Investigación en Comunicación Organizacional (RedLAco). Red Latinoamericana de Investigación en Comunicación Organizacional; Universidad Católica del Uruguay.
Este estudo foi financiado pela Universidade de Manizales-Colômbia e pelo “Proyecto ReBiCom B2-2022_01 - Universidad de Málaga, Espanha”.
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