1“Um dos fenómenos mais marcantes da Modernidade foi o aparecimento súbito e inesperado de uma imensidade de máquinas que se acumulam no mundo” (p. 119) que, colocando-se entre uma multiplicidade de acontecimentos e de incrustações históricas, revelam a “emergência da técnica como um terceiro absoluto” (pp. 105–106). Será este o ponto em que se descerra o abismo cujos sintomas são analisados em Constelações: Ensaios Sobre Cultura e Técnica na Contemporaneidade. Abrindo uma fissura na cultura, porque trabalham simultaneamente a natureza e a história, impõe-se pensar as máquinas que fabricam sequências de linguagem: a fotografia, enquanto máquina de produção e reprodução de imagens da natureza e da história, e o arquivo geral, enquanto máquina de re-distribuição do arquivado, desdobrando novas possibilidades de produção e reprodução.

3Na segunda formulação, definitiva como uma sentença, o programa constelar faz pender sobre a história a abertura do arquivo — são as suas refracções. Trata-se de uma maneira, sem dúvida não a única, de fazer ressoar o arquivo no presente, para deixá-lo produzir num caleidoscópio de imagens, de sons e de palavras, o que tomamos por contemporâneo.

4Funcionando sob o signo da constelação e das suas refracções, os ensaios aqui reunidos apresentam a versão final de conferências e textos, alguns deles expandidos, e que dão conta do pensamento de Bragança de Miranda dos últimos anos. Da Constelação, a primeira parte desta coletânea, inicia-se com o ensaio “A Constelação Como Método do Contemporâneo”. Se o real é a fixação de uma ficção — é recuperado um aforismo de Mallarmé para ilustrar o potencial produtivo da inscrição, enquanto estilhaça a possibilidade de se alcançar a totalidade — tal será porque a constelação confere uma produtividade nova ao que está aí, no arquivo geral a que chamamos “história”. Reunindo aquilo que está disperso, capaz de tocar simultaneamente o arcaico e o contemporâneo, a constelação presta-se a “uma certa epocalidade do ‘agora’ [Jetztzeit], o que só é possível quando a história passa de inconsciente a consciente, ou seja, quando é possível considerá-la como um ‘objeto’-total” (p. 46). Será comentando a influência da alegoria da “linha dividida” do livro VI da República de Platão que Bragança de Miranda expõe como a dialética apresentação da História Anterior (Vorgeschichte) e da História Posterior (Nachgeschichte) em Benjamin, vive da potência do “corte” na substância do mundo (Weltsubstanz), onde tem prioridade o presente absoluto. O agora, assim instanciado, revela como nem os conceitos nem as leis podem servir a todo o tempo: o critério para a existência das ideias são as ligações que pendem sobre as coisas.

5Em “O Duplo Movimento da Constelação”, o ensaio seguinte, é com One and Three Chairs (Uma e Três Cadeiras) de Kosuth, que “explode numa constelação, desagregando-se em conceito, em imagem, e no objeto”, que Bragança de Miranda dá conta da “lógica da saturação empírica do conceito” e de como esta será sintoma do “momento pós-hegeliano da arte e à crítica geral da distribuição conceptual do real que erroneamente se confunde com ‘dispositivo’”(p. 78). Mas operar uma reconversão — Umfunktionierung, a proposta do ensaio “O Autor Como Produtor” de Benjamin para um ativismo operante, que assenta em estratégias constelares de montagem, de redistribuição, e também de destabilização — é realizar o duplo movimento da constelação “no objeto que aparece, saturando a produtividade, e na produtividade, que só existe enquanto aquele objeto a sustentar” (p. 84), motivando inúmeras outras que se interoperam imprevisivelmente.

6A “ferida especulativa” que a fotografia desfere na modernidade é tratada em “Fotografia e Arqueologia do Materialismo”, o terceiro ensaio do conjunto. Enquanto acontecimento que dita o fim da lógica simbólica que sustinha a totalidade como cimento ou ligadura, a fotografia vem instalar uma abertura radical. Trata-se de uma viragem metafísica que “está bem longe da pretensão hegeliana do saber absoluto, que subsumia inteiramente a natureza e a história sob o domínio do conceito, do ‘saber’” (p. 92). Sucedendo à rigidez do simbólico, o fluído ou magma potenciador do especulativo esgaça a urdidura que fazia coincidir o pensamento com o real, o chamado “correlacionismo”, afinal um esquema de pensamento que a fotografia veio a perturbar decisivamente — “contra o perspectivismo e o conflito insanável abertos pelos pressupostos humanistas, o novo especulativo visa o Absoluto, baseando-se num fundo que antecede os humanos e permanecerá mesmo quando estes desaparecerem” (p. 92). Eis então o profundo materialismo da fotografia: “perante ela, tudo é ‘fóssil’” (p. 95).

7A essência da técnica enquanto Ge-stell, ou seja, enquanto dispositivo absoluto que tudo captura, é problematizada no ensaio que fecha a primeira parte. Em “A Constelação da Técnica em Heidegger”, sairá desarticulada a estrutura que Heidegger pensara em “A Questão da Técnica”, ensaio tardio onde reflete com as maiores reservas sobre técnica moderna. Como diz Bragança de Miranda, “de nada serve recuar da ‘natureza’ para a Physis e desta para o ‘Ser’, ou fazer o caminho inverso do ‘esquecimento do ser’ para a ‘física’ e desta para o Ge-stell” (p. 141), quando a natureza sempre nos excede, e a técnica humana, enquanto produção, será sempre “uma espécie de prolongamento da natureza dentro da história” (p. 130). Lembrando Benjamin (1928/2013) quando diz que “a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade” (p. 68), ou Simondon (2014), para quem a técnica surge como o terceiro termo que medeia a relação entre humanos e natureza, as inquietações de Heidegger revelam um sentido ilusório de controlo. Ainda assim conserva-se de Heidegger, neste ensaio, o potencial agregador da técnica como Ge-stell, que traça com nitidez a produtividade geral suscitada pela ligação de todos os particulares, numa constelação técnica que a noção de “dispositivo” deixa intuir.

8A segunda parte, Refracções, que trata da plasticidade dos materiais que habitam o arquivo geral, inicia-se com o ensaio “Entre Próximo e Distante, Lógicas da Apropriação”. Apresentar a estrutura da “aura” é fazer notar como esta corresponde à saída de uma teologia política — univocamente simbólica e regida na transcendência do eixo alto-baixo — e de como o velamento aurático se abre na modernidade à experiência imanente do próximo-distante. Nem sublime nem divino, está agora em causa a tensão entre o privado, distante e intocável, e o comum, próximo e alcançável. Mas proibindo o toque, a estrutura da aura incita ao desejo — não impedindo estratégias de apropriação (como a montagem) ou operações de re-distribuição (como a reprodução). No fundo, perante a aura, a sua “profanação, definida como regresso do separado ao comum” (p. 166).

9Será com “O Fim da Distância: A Emergência da Cultura Telemática” que se problematizam os efeitos mais recentes do encurtamento que Paul Valéry (1928/1960) percebera ao vaticinar que as coisas já não estarão somente nelas mesmas mas onde quer que um aparelho esteja. Numa arqueologia das distâncias, Bragança de Miranda nota como a impossibilidade de aproximação que a aura instala é afinal alcançável por uma economia do comum: o objeto aurático é subsumível numa rede medial “que dissimula a sua pertença à lógica da propriedade” (p. 192). É uma forma de os libertar, permitindo a sua circulação livre. Contudo, algo erraticamente, isso fez surgir “a consciência de uma nova leveza dos objetos e dos sujeitos, dando a sensação de que tudo é possível” (p. 203). Isto não é só um traço do esquema constelar, como também tem a maior consequência para as refracções do arquivo: nem próximas nem distantes, “é esta coexistência aparentemente caótica que parece ser a forma final da ‘tele-relação’ que constitui a experiência” (p. 201).

10Em “A Interatividade: Da Mímesis Tecnológica”, Bragança de Miranda evidencia uma leitura diferente daquela que se tem vindo a assumir para as artes interativas: enquanto formações simulacrais que tendem a recuperar a ideia de uma obra de arte total — totalmente percebida e participável — sai desvirtuada a estratégia, quando “a crescente integração das tecnologias num dispositivo cada vez mais imaterial” quer determinar, pela mimetização técnica, “a constituição da experiência na sua totalidade” (p. 207). Tal empreendimento é, como sabemos, inalcançável. Mas não há motivo para lamentar este erro metonímico: que se retrace a linha e que se reprenda a interatividade às suas materialidades — “os ‘imateriais’ só não são ‘matéria’ para quem vê a matéria como algo ‘denso’, ‘opaco’, ‘resistente’, ou seja, de acordo com a velha hylé grega” (p. 209, Nota 12). Viabilizar a ligação para uma obra única, ou para a interatividade total, caso exista, só pode ser caleidoscópica e dilatável a todas as materialidades, radicalizada na apóstrofe dos documentos do arquivo geral no momento vertical, ou corte, em que transformam o espectador passivo num operador ativo.

11Fecham-se por fim as refracções do arquivo, problematizando a sua permanente actualização. Em “Da Virtualização do Arquivo”, e concretizando uma epistemologização do método constelar, Bragança de Miranda revê a sua dilatação do digital como um esquema refém do seu delineamento clássico quando “o fenómeno decisivo é o da crescente indiferenciação entre arquivo e vida, entre ação já feita e ação a fazer, entre o efémero e o perdurável” (p. 248). Fazer desabar a hierarquização histórica da memória sobre o arquivo, é reconhecer uma outra ontologia na exterioridade absoluta: uma mutação da técnica reticulariza já a restância do por vir.