Introdução

1O ativismo feminista contemporâneo tem-se desenvolvido de forma intrincada no domínio digital, vindo a experimentar uma notável ampliação e disseminação por meio do ciberfeminismo. Ao questionar as representações desiguais das mulheres e a sua relação com a tecnologia (Martinez, 2019; Plant, 1997), num contexto de mobilização e (auto)reflexão no espaço online, o ciberfeminismo não apenas apresenta uma nova esfera de oportunidades, mas também encoraja a construção de vínculos e intercâmbios entre ativistas, constituindo-se como uma ferramenta de resistência e coordenação de movimentos e manifestações que têm expressão numa escala transnacional.

2Nos últimos anos, o ciberfeminismo tem permitido o engajamento de vozes historicamente marginalizadas e estabelecido novas estruturas de interconexão contínua entre o mundo virtual e físico (Fernández et al., 2019). Dessa forma, ao reconhecer as raízes históricas e abordar as questões contemporâneas sob a lente interseccional, o ativismo feminista incorpora uma abordagem abrangente e inclusiva (Zimmerman, 2017).

3À luz deste contexto, a Greve Feminista Internacional, também conhecida como movimento 8M, que ocorre anualmente no dia 8 de março em apoio aos direitos das mulheres por todo o mundo, tornou-se um evento transnacional (Fraser, 2007) que repolizou os movimentos feministas deste século (Arruzza et al., 2019), caracterizando-se pela mobilização através de uma associação entre ativismo digital e de rua (Zimmerman, 2017). Em Portugal, o movimento 8M tem adquirido uma relevância marcante, à medida que mulheres e aliados se unem para promover uma agenda mais progressista e inclusiva (Lamartine & Cerqueira, 2022).

4Neste sentido, considerando o ciberfeminismo como uma ferramenta essencial para a construção deste novo momento dos feminismos que se faz também de hibridade e de heterogeneidade, neste artigo procuramos perceber a interseção entre o ciberfeminismo e o movimento 8M em Portugal através da abordagem netnográfica do perfil no Instagram do coletivo que convoca a greve no país desde a sua primeira edição (Rede 8 de Março). Além disso, atentando para um conhecimento situado (Haraway, 1988), realizamos entrevistas com cinco ativistas feministas do coletivo supracitado para melhor compreender a composição desse ativismo.

5Começamos por refletir sobre os mecanismos pelos quais o ciberfeminismo tem impulsionado o movimento 8M, procurando não apenas enfatizar a influência do ciberfeminismo neste movimento, mas também destacar como esse elo digital (ativismo feminista e espaço digital) reforça o ativismo feminista contemporâneo em Portugal e além das suas fronteiras. Reiteramos, portanto, a pertinência dessa investigação, ao unir um movimento transnacional que é construído de forma híbrida, atuando numa mitigação entre a ação coletiva e a ação conectada (Babo, 2018), que se desenvolve a partir do ciberfeminismo.

Redes digitais: explorando o ciberfeminismo

6O advento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) provocou impactos nos variados formatos de comunicação da sociedade e nos processos de transmissão e receção de informação. É a partir da descentralização da comunicação que os métodos comunicativos se democratizam e adquirem uma lógica mais horizontal. Esta modalidade de comunicação promove a facilitação da adaptação e integração entre repertórios de ação coletiva tanto no âmbito da esfera digital, como fora desse contexto (Fernández-Romero e Sánchez-Duarte, 2019).

7A interação viabilizada pela emergência do ciberespaço levou à formação de redes sociais digitais que se fundamentam nas conexões entre os intervenientes e as suas próprias relações, uma vez que a abordagem em rede se foca na estrutura social, onde os intervenientes sociais e as suas conexões não podem ser isolados (Recuero, 2009). Dessa forma, como refere Castells (2013), o ciberespaço opera como um espaço público híbrido, resultado da fusão entre o espaço físico (de rua) e o digital (online), permitindo que estes atores sociais se tornem narradores das suas próprias vidas.

8Os movimentos sociais contemporâneos emergem de redes informais, fundamentando-se em pontos ideológicos comuns que refletem um sentido de solidariedade e identificação coletiva (Della Porta, 2006). A expansão proporcionada pelo ciberespaço, integrada à cibercultura, facilita a promoção de ações coletivas que visam transformações sociais, independentemente das limitações geográficas e territoriais (Fernández et al., 2019). No contexto dos feminismos, isso tem resultado numa maior disseminação do debate entre e sobre as mulheres.

9O movimento feminista rapidamente reconheceu o potencial das redes sociais digitais para difundir os seus ideais e discursos (Bernal-Triviño e Sans-Martos, 2020), a fim de ampliar e problematizar papéis sociais, representações e representatividades das mulheres. Isso conduziu a um questionamento das numerosas desigualdades de género na esfera da ciência e tecnologia, originando o que compreendemos como ciberfeminismo (Martinez, 2019).

10Este conceito surge ainda na década de 1990, frequentemente atribuído à filósofa Sadie Plant (1997), que questionou a relação entre as mulheres e as novas tecnologias como uma possível ferramenta emancipatória, uma aliança que busca a libertação das mulheres. Também se atribui ao coletivo feminista australiano VeNuS Matrix, conhecido por VNS Matrix, devido à publicação do Manifesto Ciberfeminista, um tributo ao trabalho da filósofa Donna Haraway e à sua conceção do corpo ciborgue.

11Inicialmente, o ciberfeminismo emergiu como um conjunto de ações político-estéticas, abrangendo a distribuição de cartazes, zines — algo mais analógico — e manifestos digitais, além de incorporar jogos de computador, códigos, outdoors, eventos, performances e instalações artísticas. A ideia era problematizar a forma pela qual as TICs afetavam ou defendiam a criação de espaços com base nas novas formas de participação ativista (Abreu, 2017).

12A estruturação do ciberespaço oferece ao movimento feminista uma oportunidade de rejeitar conceitos e epistemologias obsoletas, bem como práticas políticas enraizadas em burocracias rígidas (Martinez, 2019). Portanto, essa estruturação possibilita a renúncia a uma organização política ou teórica específica, já que a natureza virtual da organização dificulta a censura devido à complexidade na identificação de lideranças.

13Conforme postulado por Abreu (2017), o ciberfeminismo introduziu uma camada de complexidade às lutas e agendas feministas, expandindo-se além das fronteiras convencionais do debate de género, vindo a abraçar uma visão mais abrangente da cibercultura. Neste âmbito, o ciberfeminismo não só se propôs a contestar as manifestações sexistas que relegaram as mulheres a uma margem cultural e tecnológica, mas também a examinar as intrincadas interações entre a construção do género e o domínio do ciberespaço.

14Assim, podemos perceber que o ativismo feminista adota uma abordagem abrangente e inclusiva com uma lente interseccional (Zimmerman, 2017). Preocupa-se, portanto, com a diversidade e pluralidade, na fomentação da participação de diferentes vozes com distintos “lugares de fala” (Ribeiro, 2019).

15Além disso, a relevância intrínseca do ciberfeminismo nas redes sociais digitais é amplamente evidenciada (Lamartine e Cerqueira, 2023). A sua capacidade para incorporar e adaptar os repertórios de ação das mulheres confere uma nova dimensão à formação de organizações de caráter híbrido, tal como sublinhado por Fernández-Romero e Sánchez-Duarte (2019).

16Desta perspetiva, emerge, portanto, o ciberfeminismo como uma força aglutinadora de considerável magnitude, que fomenta uma participação que ultrapassa as fronteiras geográficas frequentemente marginalizadas na compreensão dominante da internet. Este encontro de elementos gera um novo vigor na inclusão das vozes outrora silenciadas, estabelecendo uma (re)formulação paradigmática das estruturas que permeia a interseção contínua entre o espaço virtual e o mundo físico (Fernández et al., 2019; Lamartine e Cerqueira, 2022).

Movimento 8M: emergência e contexto

17Diversos acontecimentos históricos estão ligados à origem do Dia Internacional das Mulheres. Entre esses, destacam-se o trágico incêndio que vitimou operárias de uma fábrica têxtil em Nova Iorque e a significativa greve de mulheres durante a Revolução Russa de 1917.

18Ainda que esses eventos tenham sido associados à génese deste dia emblemático, apenas em 1975, durante o Ano Internacional da Mulher, é que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu oficialmente o dia 8 de março (Cerqueira & Cabecinhas, 2015). Inicialmente, essa data passou a estar vinculada aos movimentos laborais na Europa e na América do Norte. Ao longo do tempo as manifestações que caracterizavam esse dia cederam lugar, progressivamente, a gestos simbólicos, como ofertas de flores e presentes, que frequentemente homenageavam as mulheres de forma desligada do seu contexto político e apagavam as origens da efeméride. Estas formas de celebração foram também descritas como futilidades “de mau gosto que despolitizavam aquele marco” (Arruzza et al., 2019, p. 22).

19O movimento recente de greve feminista surge em 2016 na Polónia, onde se assistiu a uma série de manifestações com a participação de mais de 100 mil mulheres, estas que se opunham diretamente à ilegalização do aborto. Em simultâneo, na Argentina, surgiram protestos em desacordo ao trágico assassinato da jovem Lucía Perez. Estes acontecimentos despoletaram a aparição de ações a nível nacional que rapidamente se transformaram em ações, também, internacionais, culminando num movimento transnacional (Fraser, 2007).

20Assim, o feminismo transnacional despreza as imposições fronteiriças devido ao ciberespaço, na união entre o global e o local, e reconfigura a justiça de género por enquadrar a enunciação do problema a um nível tridimensional, isto é, integrar a redistribuição, o reconhecimento e a representação de forma equilibrada (Fraser, 2007). Por isso, com a inserção da internet, constatamos uma transformação na maneira como os movimentos sociais operam, no caso específico do movimento feminista, observa-se uma reformulação da agenda feminista, muito mais energizada e politizada, que desconstrói a abordagem do pós-feminismo (Shiva e Kharazmi, 2019).

21Neste contexto, o movimento 8M assume a forma de uma frente de greve feminista que se ergue contra as desigualdades que afetam as mulheres na sociedade, bem como as diversas violências a que estão sujeitas. Como destacado por Verónica Gago (2019), este movimento não apenas abraça a luta feminista como um todo, mas também reserva espaço para o luto, sem, contudo, se submeter por completo a um estado de luto.

22As mulheres fizeram greve e estiveram nas ruas em mais de 50 países no dia 8 de março de 2017, cujas agendas englobaram uma resistência às políticas neoliberais e de extrema-direita que surgiam, a exemplo da Marcha das Mulheres em Washington, nos Estados Unidos (Litter & Rottenberg, 2020), contra o então presidente americano Donald Trump. Esta resistência fundamentou-se na perspetiva de que este tipo de governo mina os direitos e liberdades das mulheres e outras minorias sociais, como a população LGBTQIAP⁺, além de negar a autonomia das mulheres sobre seus corpos ao promover um protecionismo familiar tradicionalista e conservador.

23O ano seguinte “parou” o mundo. Só em Espanha, cinco milhões de manifestantes juntaram-se ao movimento 8M, garantindo uma maior visibilidade para a greve e para o próprio movimento feminista, o que surpreendeu os meios de comunicação internacionais devido ao inesperado sucesso da manifestação (Campillo, 2019).

24A autora Nuria Varela (2020) defende que isto foi um “golpe audaz” que (re)politizou o Dia Internacional das Mulheres, invocando as raízes das manifestações de mulheres e da classe trabalhadora do século XX pela justiça social, vindo a demonstrar a capacidade de poder político dos feminismos deste século (Arruzza et al., 2019; Varela, 2020).

Uniendo a mujeres separadas por océanos, montañas y continentes, así como por fronteras, alambradas de púas y muros, dan un nuevo sentido al lema «La solidaridad es nuestra arma». Rompiendo el aislamiento de las paredes domésticas y simbólicas, las huelgas demuestran el enorme potencial político del poder de las mujeres: el poder de aquellas cuyo trabajo remunerado o no remunerado sostiene el mundo. (Varela, 2020, p. 100).

25Portanto, o surgimento e desenvolvimento do 8M — Greve Feminista — não se deu de maneira isolada, muito pelo contrário, estruturou-se gradualmente ao longo dos anos, tornando-se uma força motriz de alcance internacional (e transnacional) sem precedentes para o movimento feminista (Gago, 2019).

26Numerosos estudos académicos sobre o 8M emergem de vários campos de conhecimento (e.g. Arruzza et al. 2019; Fernández et al. 2019; Campillo 2019; Fernández-Romero e Sánchez-Duarte 2019; Mason-Deese 2020; Lamartine e Cerqueira 2022), levando em consideração as particularidades de cada envolvimento com geografias culturais específicas — tendo em conta o conhecimento situado (Haraway, 1998) — e destacando o significado do 8M para o movimento feminista internacional contemporâneo.

Movimento 8M em Portugal

27Nos primórdios das celebrações do Dia Internacional das Mulheres em Portugal havia uma concentração nas reivindicações por direitos políticos e legais, com o objetivo de buscar a melhoria da qualidade de vida, tanto a nível pessoal como profissional. Com o passar do tempo, também Portugal começou a assinalar o dia de forma desligada do seu contexto político (Cerqueira & Cabecinhas, 2015). Importa referir que o movimento feminista português enfrentou abrupto silenciamento devido ao período ditatorial salazarista, o que para Tavares (2011) acabou por atrasar os esforços de promoção das questões de género em relação aos demais países europeus.

28No entanto, com o advento do espaço digital, percebe-se um rejuvenescimento no movimento feminista do país, considerando tanto níveis legislativos quanto sociais, como a despenalização do aborto, por exemplo, o que está em analogia ao movimento internacional. As pautas feministas passaram a englobar tópicos relacionados à violência doméstica, participação política, igualdade de género e direitos laborais (Cerqueira & Cabecinhas, 2015; Simões e Amaral, 2020; Cabrera, 2021; Lamartine e Cerqueira, 2022), incluindo oportunidades, qualificações e remuneração — inclusive no questionamento do trabalho não pago.

29As primeiras manifestações do movimento 8M em Portugal ocorreram ainda em 2017, sendo convocadas pelo coletivo Assembleia Feminista. Mas foi somente em 2019 que o movimento ganhou, de facto, força grevista e passou a ser convocado pela Rede 8 de março, um conglomerado de coletivos que surgiu ainda em 2011, e continua a convocar a greve até o presente.

30Este coletivo foi responsável, neste mesmo ano, pela realização da maior edição do movimento 8M no país até os dias de hoje. Mais de 30 mil mulheres aderiram à greve portuguesa, distribuídas em 13 diferentes cidades (Albufeira, Amarante, Fundão, Aveiro, Braga, Coimbra, Ponta Delgada, Lisboa, Porto, Vila Real, Covilhã, Chaves e Viseu).

31No ano seguinte, 2020, o 8M marcou a última manifestação de rua do país que proclamou estado de emergência já no dia 19 de março, devido à iminência da Covid-19, pandemia que se alastrava pelo mundo. A partir deste momento, as ativistas tiveram de se reorganizar e se concentrar somente a partir das redes sociais digitais.

32Em 2021, ainda em período pandémico, o 8M não pôde ocorrer nas ruas. Foi a primeira vez que as ativistas tiveram de realizar uma manifestação com recurso aos meios digitais disponíveis, já que as medidas de segurança impediram diversas atividades de preparação e convocação, para além da aglomeração de pessoas nas ruas no dia do evento. Houve um pequeno agrupamento na rua que foi transmitido em direto pelo Instagram, através da ferramenta de live, além de um encontro online em plataformas de reunião.

34Em 2022 o 8M volta as ruas com bastante força, dessa vez, a evoluir a partir da interação entre o ativismo digital e o presencial. As mulheres voltam a reivindicarem os seus direitos e atentarem, especialmente, à questão do trabalho ligado à esfera dos cuidados, que ficou tão evidente durante o período de isolamento.

35Assim, a estratégica utilização das alianças e diálogos presenciais, agora também adotados no meio digital, não excluindo um em detrimento do outro, mas coexistindo, emergiu como um fator essencial para fomentar a continuidade do movimento 8M não só em Portugal, mas no mundo (Fernández-Romero e Sánchez-Duarte, 2019; Lamartine e Cerqueira, 2023).

Ciberfeminismo em ação: caminhos metodológicos

36A questão que nos importa colocar, a partir do movimento 8M, é de que forma o ciberfeminismo tem sido fundamental para a amplificação e conexão da Greve Feminista Internacional em Portugal. O ano de 2021 foi o primeiro ano em que, obrigatoriamente, as ativistas tiveram de recorrer às redes sociais digitais para a realização do movimento. Por este motivo, optamos por fazer uma análise comparativa do 8M português entre o ano de 2020 (realização presencial) e 2021 (realização híbrida) durante os quatro primeiros meses de cada ano, o que nos permite compreender a organização, convocação, realização e encerramento das atividades relacionadas com o 8M.

37Considerando os anos de escolha, e tendo em conta que o coletivo Greve Feminista PT se origina somente em 2021, decidimos explorar apenas a Rede 8 de Março, também por estar à frente da manifestação desde os seus anos iniciais.

40A abordagem netnográfica é naturalista, permitindo a investigação de expressões sociais espontâneas no espaço online. Além disso, é imersiva, proporcionando uma compreensão profunda do objeto de estudo. Ela também é descritiva, capturando a realidade em toda a sua complexidade. A sua natureza multimétodos permite a combinação de diversas ferramentas e técnicas de pesquisa, enquanto a sua adaptabilidade permite a análise de uma variedade de instrumentos de comunicação mediados por computador (Kozinets, 2019).

41Além disso, para melhor compreender as estratégias de comunicação da organização, realizamos entrevistas exploratórias semiestruturadas com cinco ativistas da Rede 8 de março. É necessário esclarecer que a organização funciona por meio de trabalho voluntário e, portanto, não existe uma estrutura hierárquica no planeamento e execução das atividades desenvolvidas.

42As entrevistadas foram contactadas através da página do Instagram analisada, onde foi explicada a pesquisa, e enviado o pedido de consentimento informado a fim de garantir as questões éticas. As entrevistas foram realizadas tanto presencialmente quanto através da plataforma Zoom. Ainda que seja pequeno grupo, este é formado por mulheres diversas, oriundas de diferentes zonas do país e imigrantes da América Latina. Importa referir que todas as ativistas aqui entrevistadas se autoidentificam como mulheres cisgénero e brancas.

Convergência digital: como o ciberfeminismo impulsiona o movimento 8M português?

43Na nossa análise constatamos um crescimento considerável em termos de publicação da página do Instagram de um ano para o outro. Em 2020 foram 73 publicações, enquanto 2021 apresentou o total de 105 publicações. Aumento também verificado em relação ao número de seguidores, que passou de pouco mais de quatro mil para mais de cinco mil seguidores.

44Este aumento também foi apontado pelas entrevistadas como uma decorrência da própria pandemia, motivo pelo qual elas tiveram de reaprender a comunicar-se, e a desempenhar, com mais ênfase, o ativismo digital. “Hoje em dia não dá para não ter [redes sociais digitais]. Acho que obviamente a Rede tem que existir nesse espaço, e claro, é uma forma de criar envolvimento, chamar participação, especialmente durante o período pandémico”, explicou uma das entrevistadas.

45À vista disso, durante o dia 8 de março de 2021, a manifestação decorreu online, através da ferramenta live, em direto da concentração realizada que juntou pouco mais de 100 pessoas, promovendo assim estruturas que fazem a ponte entre os movimentos de rua e digitais (Castells, 2013; Fernández et al., 2019; Lamartine & Cerqueira, 2022).

46Em relação à aplicabilidade do conteúdo das publicações, em 2020 a grande maioria dizia respeito à convocatória e postagens informativas. No ano seguinte, as postagens informativas e de divulgação ficaram em primeiro lugar. Esta diminuição mostra uma maior preocupação em tornar o movimento ainda mais abrangente, o que é ainda mais evidente quando olhamos para a questão da temática.

47Os temas abordados estão de acordo com as agendas do movimento internacional, o que confirma o 8M como um movimento, de facto, transnacional (Fraser, 2007). Os mais evidenciados foram a convocatória para o 8M, seguido das informações e conflitos acerca da Covid-19, enfatizando a questão da violência doméstica e do acesso à habitação, pontos bastantes frisados pelas associações feministas na altura. Aqui também podemos pensar acerca do conceito de conhecimento situado (Haraway, 1998), uma vez que as temáticas mais latentes são as que aparecem especificamente no contexto português. “O contexto social tem um impacto muito grande. Na pandemia, a preocupação maior era a nível do escasso doméstico e profissional das mulheres. E tivemos de falar sobre isso” referiu uma das entrevistadas.

48É importante referir, contudo, que esperávamos a existência de temáticas mais plurais, uma vez que a premissa interseccional, ponto fulcral neste novo momento do movimento feminista (Zimmerman, 2017), está não só concebida, mas também enraizada como preocupação central na agenda da organização como corroborado pelas entrevistadas: “Há preocupação de incluir outras representações, eu diria que muita até. Mas também há ignorância da nossa parte e privilégio, claro”.

49Neste ponto, salientamos, por exemplo, a falta de representatividade de mulheres trans e lésbicas. Na nossa análise, estas representações identitárias apareceram apenas cinco vezes em ambos os anos analisados, não tendo oportunidade nem espaço para exercerem os seus lugares de fala (Ribeiro, 2019).

50A utilização das hashtags foram constantes em todas as publicações, especialmente a #8mPortugal e #grevefeministaportugal, prática comum de movimentos sociais no âmbito digital, como por exemplo o #MeToo, #NiUnaaMenos e no país, o emblemático #VermelhoemBelém. Nesta senda, em 2021, as ativistas realizaram uma campanha digital acerca do trabalho ligado à esfera dos cuidados, ponto importante da greve que visa redefinir este conceito desafiando a divisão hierárquica entre trabalhadores e desempregados a partir da noção de remuneração e salários (Gago, 2019).

51A #PenduraoAvental uma das estratégias utilizadas pelas ativistas foi a realização de uma campanha digital a fim de difundir a conceção do cuidado enquanto uma atividade passível de ser objeto de greve. Esta campanha incentivava as seguidoras a exibir o avental de cozinha e partilhar fotografias nas suas redes sociais digitais, erguendo, dessa forma, ações coletivas que transcendem barreiras geográficas.

52Percebe-se, portanto, que a plataforma Instagram é utilizada como uma ferramenta que é estratégica na disseminação e compreensão das dinâmicas de género no espaço digital e na sociedade portuguesa, ao entoarem questões significativas e relevantes no âmbito político e social do país (Lamartine e Cerqueira, 2023).

53Através do ciberfeminismo, a passagem entre o domínio virtual e o espaço tangível das vias públicas desenrola-se de modo a entrelaçar e coexistir essas duas modalidades comunicativas distintas: a interação interpessoal direta, face a face, e aquela intermediada pelas tecnologias (Babo, 2018), sobretudo porque, no caso do movimento feminista, a ocupação da rua é primordialmente simbólica. Portanto, não nos referimos a uma distinção entre a ação coletiva e a ação conectada, mas uma mitigação destas lógicas onde “a transição entre a rede e a rua processa-se quer entremeando quer coexistido os dois tipos de comunicação” (p. 237), um espaço público que é, definitivamente, dotado de hibridismo (Castells, 2013).

54Estas ações, para além de operarem num espaço virtual, almejam concretas alterações sociais, constituindo-se como um exemplo de mobilizações que visam impactos tangíveis na realidade, não somente no ciberespaço (Fernández et al., 2019). Além disso, emergem como um elemento impulsionador essencial para a persistência do movimento 8M que atua como uma força motriz para o espectro dos feminismos (Gago, 2019; Fernández-Romero & Sánchez-Duarte, 2019; Lamartine & Cerqueira, 2022).

Considerações finais

55 O enlace entre o ciberfeminismo e o movimento 8M em Portugal revela uma estrutura inovadora e eficaz de mobilização feminista, cuja combinação de ativismo híbrido, abraçando tanto o espaço digital como as ruas, reflete a capacidade de adaptação às dinâmicas contemporâneas de protesto e ação política, o que tem fortalecido a luta por igualdade de género no país.

56A interconexão entre o ambiente virtual e presencial desenha-se como uma malha coesa e fluida, onde as ações presenciais e tecnologicamente mediadas entrelaçam-se harmoniosamente. Este tecido multifacetado não apenas desafia uma divisão rígida entre ação coletiva e conectada, mas promove uma convergência frutífera entre ambas as dimensões.

57No contexto dos feminismos, essa abordagem reconfigura a busca pela justiça de género, enquadrando a problemática em uma perspetiva tridimensional que abrange redistribuição, reconhecimento e representação de maneira equilibrada. Dessa forma, o feminismo hegemónico surge sob escrutínio, dado o seu papel na marginalização de outras representações identitárias. Este cenário suscita a urgência da inclusão de correntes como o feminismo negro, o transfeminismo e o feminismo lésbico, por exemplo.

58Neste sentido, percebemos uma hegemonia branca no âmbito do movimento em Portugal, seja pelas próprias entrevistadas, seja pelo conteúdo que, na maioria das vezes, não procura ser inclusivo. Todavia, é de salientar a reivindicação da interseccionalidade, e consequentemente, do reconhecimento do privilégio de criar espaços para vozes ainda marginalizadas. Este aspecto é de extrema importância e deve ser analisado com profundidade em estudos posteriores.

59O movimento 8M em Portugal alinha-se com o movimento feminista internacional, sendo transnacional e glocal, através da matriz do ciberfeminismo, trazendo ao debate público, através também das plataformas digitais, questões que são muitas vezes invisíveis ou ignoradas pela sociedade e pelos media tradicionais, especialmente neste novo momento dos feminismos onde se fala de uma nova vaga.

60Fica então por analisar esta nova vaga do movimento feminista — a quarta vaga — e sua relação com o ciberfeminismo e com o próprio movimento 8M. Para além disto, intentamos também analisar o ano de 2022, considerando que, devido ao fim da pandemia, a manifestação poderia acontecer de forma presencial e qual o impacto que esta (re)formulação causou nas ativistas, seja a nível de organização, planeamento e comunicação.

61A simbologia profundamente enraizada na ocupação das ruas pelo movimento feminista acrescenta um elemento emblemático para o impacto resultante dessa conexão. Este estudo, ao examinar a manifestação desse impacto, destaca a vitalidade e relevância da interseção entre o ciberfeminismo e o Movimento 8M, que confere uma nova dimensão à luta feminista contemporânea em Portugal.

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