11. Há oitenta anos, no segundo centenário do nascimento do filósofo das Críticas, Ortega y Gasset, fundado na contraposição radical que estabelecia entre o alemão, desconfiado burguês do norte, de que Kant seria o mais acabado protótipo, e o confiante e extrovertido homem mediterrânico do sul, sustentava nada haver de mais distante de um kantiano do que um homem de Espanha.

2Não sendo, naturalmente, este o momento e o lugar apropriados para discutir a pertinência, ou não, deste entendimento do filósofo da razão vital, e circunscrevendo-nos a uma pura consideração de carácter histórico ou historiográfico, seríamos quase tentados a concluir que aquela afirmação orteguiana era, pelo menos, tão válida para o nosso País quanto o seria para o dele, já que, entre nós, depois de haver sido deturpado e muito superficial e indirectamente conhecido e ainda mais apressada ou precipitadamente recusado ou criticado, durante sucessivas décadas, o pensamento kantiano só no último quartel do séc. XIX viria a ser relativamente conhecido e razoavelmente compreendido, ainda que não perfilhado, sendo necessário que decorresse mais de um século sobre a morte do autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes para que, através do neo-kantismo germânico e francês, o seu criticismo lograsse encontrar algum eco, se bem que limitado, na reflexão de António Sérgio e Cabral de Moncada.

3Pelo contrário, no Brasil, a recepção da filosofia kantiana iniciou-se muito mais cedo, logo nas primeiras décadas de oitocentos, na obra, longamente inédita, de Diogo António Feijó, apesar de confundido então o criticismo com o inatismo cartesiano ou dele mal distinguido, para vir a ser, depois, uma das principais fontes inspiradoras da reflexão de Tobias Barreto e, em diversa medida, dos outros elementos da "Escola do Recife" e a constituir um dos pilares em que, no nosso tempo, assentaria o culturalismo de Miguel Reale, sem dúvida a mais influente e original corrente do pensamento brasileiro.

42. Em Portugal, nenhuns ecos, ainda que remotos, nem sequer uma singela menção a Kant se conhecem ou surgem até final do séc. XVIII, só nos primeiros anos de oitocentos, mais precisamente no ano anterior ao passamento do especulativo de Königsberg o seu pensamento tendo sido objecto de uma primeira menção ou consideração, embora displicente e fortemente crítica, apoiada num conhecimento, decerto indirecto e claramente insuficiente da filosofia kantiana.

5Com efeito, em nenhuma obra das três figuras que marcaram a especulação ou o ensino filósofo português nas últimas décadas de setecentos – Teodoro de Almeida (1722-1804), Inácio Monteiro (1724-1812), cujo percurso vital coincidiu, em grande parte com o do autor da Crítica da Razão Pura, tendo o primeiro nascido no mesmo ano que ele e o segundo falecido, como ele, em 1804, e António Soares Barbosa (1834-1801) – se encontra qualquer referência, ainda que passageira, de que se possa concluir que algum deles haja chegado a ter notícia da revolução filosófica desencadeada pelo especulativo alemão.

6Tal desconhecimento poderá explicar-se, por um lado, pelo longo domínio exercido pelo eclectismo sensista no pensamento e na cultura portugueses desde a reforma pombalina até quase ao final da primeira metade da centúria seguinte e, por outro, pela exclusiva relação que, na época, a cultura portuguesa mantinha com a França e pelo seu muito raro contacto com a cultura de língua alemã.

7Será, por isso, apenas em 1803, nas Memórias Políticas sobre as Verdadeiras Bases da Grandeza das Nações, e principalmente de Portugal, de autoria do lente de Leis Joaquim José Rodrigues de Brito (1753-1831), pensador da geração seguinte à daqueles três sacerdotes, que, na cultura de língua portuguesa, surgem as primeiras referências, mas de acentuado pendor crítico, à filosofia de Kant, apressadamente aqui confundida ou identificada com o inatismo.

8Naquela curiosa colectânea de estudos ou de ensaios sobre diversos ternas de filosofia prática, ao lado de algumas questões económicas, consideradas de uma perspectiva fisiocrática, ocupam lugar de relevo o tratamento de problemas éticos e uma teoria do direito natural, em que, a uma base empirista e sensista, fortemente crítica da filosofia transcendental kantiana, muito imperfeitamente conhecida e entendida, se associa uma atitude de recorte utilitarista, inspirada em Locke e Condillac, pois, à época, Bentham não havia ainda dado expressão pública ao seu hedonismo social.

11Também a distinção ou separação entre o direito e a moral que, "fugindo para princípios cogniscitivos, intelectuais, e independentes da experiência" os kancianistas, como os designava, estabeleciam, se lhe afigurava inaceitável, porquanto, em seu entender, a análise da natureza humana, apoiada na experiência, nos revelaria não só que essa natureza é sempre a mesma, não sofrendo qualquer alteração nem no tempo nem no espaço, como, ainda, que todo o homem tem gravado no seu coração um sentimento interno que o conduz à felicidade e o qual se traduz ou manifesta num desejo e num amor do próprio prazer e interesse e num aborrecimento da dor e de tudo o que reputa prejudicial ao seu ser ou à sua conservação, princípio esse que era o fundamento da moral e do direito, uma vez que era a fonte de todas as regras morais, as quais constituiriam o direito divino natural, ou código moral da razão, sendo, nessa medida, leis naturais da conduta do homem, que a todos obrigam e cuja violação constitui crime.

123. Dez anos após a edição, pela Imprensa Régia de Lisboa, dos dois primeiros volumes das Memórias de Rodrigues de Brito (cuja publicação se concluiria dois anos mais tarde, com o aparecimento do terceiro e último tomo da obra), começava a Imprensa Régia do Rio de Janeiro a dar à estampa os fascículos das Prelecções Filosóficas de um filósofo da geração seguinte à do mestre conimbricense, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), em que se revela idêntica atitude de crítica recusa do pensamento kantiano, bem como do de Fichte e Schelling, expressa agora com sobranceira ironia.

13Sequaz, como Rodrigues de Brito, de uma posição especulativa de inspiração sensista e utilitarista, se bem que de mais sólida consistência e originalidade, afirmava aí o antigo professor do Colégio das Artes que aqueles filósofos germânicos, "e um sem número de outros chefes de seitas da moderna Filosofia", "possuídos de ambição de originalidade", "assentavam que bastava dar a nomes antigos novas e arbitrárias acepções, revestir de novos nomes ideias triviais, umas verdadeiras, outras falsas, para conseguirem as honras da apoteose, a par dos Aristóteles, dos Bacons e dos Leibnizs" (§ 353), não hesitando em sustentar que os dois pontos cardeais da escola kantiana consistiam, precisamente, em dar a antigas palavras novas acepções, que tinha por arbitrárias, e em atribuir novos nomes a ideias por demais conhecidas, alguns deles falsos (§ 353 e índice), como as de ideias transcendentais, formas intelectuais ou razão pura às velhas ideias inatas, que o empirismo sensista do pensador luso frontalmente rejeitava (§§ 878 e segts.).

15A preocupação do filósofo português é a de demonstrar a falsidade da tese kantiana de que "há ideias cuja origem é impossível descobrir na sensação, e sem a preexistência das quais não poderíamos mesmo conceber a existência das sensações" (§ 183). Para tanto, procura demonstrar que, diversamente do que pretende a filosofia crítica, as ideias de ordem, beleza, justo, grandeza, espaço, tempo e eu representam "ideias derivadas da acção dos objectos exteriores sobre os sentidos, ou conhecimentos deduzidos das mesmas ideias por meio do raciocínio", já que, na linha de Locke, pensava serem estas as duas únicas origens das ideias.

16Assim, segundo Silvestre Pinheiro Ferreira, as ideias de bom e de justo não são algo preexistente no nosso espírito, que seja condição de possibilidade da experiência, mas resultam directamente da experiência das consequências agradáveis, úteis ou prejudiciais das nossas acções livres, do mesmo modo que as ideias de beleza e de ordem não preexistem ao prazer ou desprazer, mas resultam do prazer que certas composições provocam nos nossos sentidos ou nas nossas faculdades intelectuais.

17Quanto às ideias de tempo e de espaço, são concepções do nosso espírito, formadas a partir da consideração das relações de vários objectos entre si e não também algo anterior a toda a experiência sensível e que dela seja condição de possibilidade. Finalmente, no que respeita à ideia de eu, considerada por Kant c seus discípulos como base preexistente de todas as outras ideias, entendia o pensador português, apoiado aqui expressamente na autoridade de Condillac, que também ela provém dos sentidos ou das sensações.

18Por outro lado, notava o autor do Essai que não há pensamento sem palavras, não há uma faculdade de raciocinar independente de toda a linguagem e esta tem origem na experiência sensível comum aos vários membros de uma mesma comunidade, pelo que uma razão pura, independente de qualquer ideia fornecida pelos sentidos, seria também e necessariamente uma razão destituída de linguagem, o que se lhe apresentava como uma grosseira contradição ou uma total impossibilidade.

19Assim, e retomando a tese que sustentara treze anos antes nas suas lições fluminenses, o nosso filósofo concluía, de novo, que as noções de razão pura e ideias transcendentais mais não seriam do que as velhas ideias inatas, pelo que apenas na terminologia, que não na substância, o pensamento de Kant seria inovador, reafirmando o pensador a sua conclusão, que era também o seu ponto de partida gnosiológico, de que "não há ideia, noção ou conhecimento que não pertença a uma das duas classes da sensação ou do raciocínio" (§ 240), nenhuma, portanto, preexistindo à experiência mas antes todas, directa ou indirectamente, dela provindo.

204.Pela mesma época em que, no Rio de Janeiro, Silvestre Pinheiro Ferreira proferia as suas Prelecções Filosóficas, perto de São Paulo, na vila de Itu, o padre Diogo António Feijó (1784-1843), no curso de filosofia racional e moral que aí ministrava, seguia urna orientação especulativa muito diversa da adoptada pelo futuro ministro de D. João VI, assumindo uma posição, quanto ao pensamento kantiano, consideravelmente diferente da que, até então, prevalecia na reflexão em língua portuguesa.

22Revertendo a Diogo António Feijó, cumpre começar por notar que o diálogo que manteve com o pensamento kantiano se circunscreveu ao domínio gnosiológico, pois, no que respeita à moral, as ideias expressas nos Cadernos de Filosofia, editados só um século e meio após a sua redacção, se situam na directa continuidade da tradição anterior, nelas nenhum eco ou sinal se encontrando da ética do filósofo da Crítica da Razão Prática ou da Metafísica dos Costumes.

23Quanto ao primeiro aspecto, porém, como bem observou o seu primeiro e até hoje mais inteligente e compreensivo intérprete, Miguel Reale, é digna de registo a circunstância de, no início do séc. XIX, quando na Europa, fora da Alemanha, o pensamento kantiano era ainda muito mal conhecido e, no Rio de Janeiro, um filósofo tão viajado e culto como Silvestre Pinheiro Ferreira revelava um conhecimento tão pouco rigoroso da obra do grande especulativo germânico, nas cercanias de São Paulo, o futuro Regente do Império mostrava haver apreendido muitos dos aspectos essenciais do criticismo do mestre de Königsberg.

265. Em Portugal, a consolidação do regime liberal, a partir de meados da década de 30 do século XIX, irá permitir a necessária actualização cultural e o início de uma reflexão mais serena acerca da urgente reforma e ampliação do sistema de ensino, cujos resultados mais imediatos serão a criação dos liceus e das Academias Politécnicas e das Escolas Médicas de Lisboa e do Porto e a transformação das velhas Faculdades de Cânones e de Leis na Faculdade de Direito, em 1836.

27No que respeita ao ensino filosófico, foi, no entanto, assaz limitado o âmbito da reforma setembrista, que, embora haja substituído, no ensino secundário, a velha disciplina de Filosofia racional e moral por duas cadeiras de índole especulativa, Ideologia, gramática geral e lógica e Moral universal, acabou por nada alterar efectivamente, já que os compêndios adoptados para o seu ensino continuaram a ser os de Genovesi, Heinécio e Job, os mesmos que a reforma pombalina impusera sessenta anos antes.

28Por seu turno, quanto ao ensino universitário, só nas Faculdades de Teologia e de Direito marcava alguma presença, nesta última na cadeira de Direito Natural, enquanto a Faculdade de Filosofia se limitava ao estudo das ciências da natureza, a ela não regressando a solitária cadeira de Filosofia Racional e Moral que a reforma de 1772 aí conservara, mas que, vinte anos depois, dera lugar a uma mais utilitária cadeira de Botânica.

29Contra este estado de coisas se ergueram algumas oportunas e respeitadas vozes críticas, entre o final da década de 30 e o início da seguinte, pondo em destaque o evidente anacronismo e desactualização cultural de que padecia o nosso ensino filosófico.

326. Seria, precisamente, um amigo e companheiro de Herculano, Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886) que, como lente da cadeira de Direito Natural, viria a operar a renovação do ensino filosófico em Portugal, a partir da revisão do seu programa a que procedeu em 1844, visando actualizá-lo, de acordo com as mais recentes orientações prevalecentes sobretudo na Alemanha e procurando fundir o pensamento de Krause, conhecido indirectamente, através da versão que lhe haviam dado dois dos seus discípulos belgas, Heinrich Ahrens e Guillaume Tiberghien, com a Metafisica dos Costumes kantiana.

33Como seria de prever, a síntese que o mestre conimbricense procurou fazer entre as duas doutrinas acabou por conduzi-lo a fundar o seu conceito de direito em dois princípios de diversa e contraposta índole, um subjectivo, a razão prática e o outro objectivo, a natureza humana, e por tentar uma impossível combinação ou harmonização do ser com o dever ser, do momento empírico com o momento racional, aqui radicando ou daqui partindo as maiores dificuldades com que o jusfilósofo se irá debater.

35Apesar de esta definição do direito apontar, com clareza, para um conceito marcadamente material, que exigiria, para seu pleno esclarecimento, a determinação do conteúdo e extensão das condições, tanto internas corno externas, a que a mesma se refere, o individualismo que caracterizava o liberalismo de Ferrer levava-o, um tanto contraditoriamente, a atribuir-lhe um sentido apenas formal, e a identificar o direito com a "esfera jurídica" individual e a entendê-lo como mera condição de exercício da liberdade de cada sujeito, cujo único limite seria o respeito pelos direitos alheios e pela esfera de acção livre dos outros sujeitos jurídicos, conferindo, assim ao direito um conteúdo essencialmente negativo e fazendo do neminem laedere o seu princípio fundamental.

377. Diferentemente, do que ocorreu em Portugal – em que a reacção contra o empirismo sensista e utilitarista foi desencadeada a partir do pensamento de livre inspiração krausista que, sobretudo através do magistério de Ferrer e Joaquim Maria Rodrigues de Brito (1822-1873), iria ter inegável influência na formação filosófica de Cunha Seixas e de Antero de Quental e na reflexão autónoma que cada um deles empreenderia depois, ao mesmo tempo que não deixou também de marcar profundamente as duas primeiras décadas do Curso Superior de Letras e o ensino liceal de filosofia quase até ao final de Oitocentos – no Brasil, a presença do krausismo, na versão que Ferrer lhe deu, limitou-se às duas Faculdades de Direito, vindo a caber ali ao pensamento de Maine de Biran e ao eclectismo de Cousin e Jouffroy o papel principal na superação do empirismo mitigado perfilhado por Silvestre Pinheiro Ferreira e frei Francisco de Mont'Alverne (1784-1858), nela tendo ocupado posição cimeira dois médicos que em terras gaulesas fizeram parte da sua formação científica e filosófica, o baiano Eduardo Ferreira França e o fluminense Domingos Gonçalves de Magalhães, em cujas obras, contudo, nenhum eco, traço ou sequer notícia da filosofia kantiana se encontra.

38Se os dois próceres brasileiros da reacção contra o sensismo e iniciadores de um novo espiritualismo pensaram inteiramente à margem de Kant, não o tendo sequer em conta para o criticar, como, no âmbito do sensismo, anteriormente o fizera Silvestre Pinheiro Ferreira, em Portugal, as três mais destacadas figuras de paralela restauração do espiritualismo, Amorim Viana (1822-1901), Cunha Seixas (1836-1895) e Antero de Quental (1842-1891), não deixaram de se deter, com desigual atenção e demora reflexiva, por vezes crítica, na consideração do pensamento do grande especulativo germânico.

398. O autor da Defesa do Racionalismo (1866), para além de, expressamente, incluir o filósofo alemão, ao lado de Platão, Espinosa e Leibniz, entre as referências fundamentais da sua reflexão, naquela obra prossegue, de certo modo, a atitude espiritual de A Religião nos Limites da Simples Razão (1793), embora com ela não venha a coincidir no essencial e defenda posições filosóficas significativamente diferentes das kantianas.

40Com efeito, o racionalismo cuja defesa o filósofo-matemático empreende baseia-se num conceito de razão de feição ainda iluminista que, diversamente do kantiano, a considera em comunicação directa com Deus dentro dos limites que lhe são próprios, do mesmo passo que pensa que, pelo sentimento moral, anterior a todo o discurso racional, é dado ao homem alcançar uma comunicação directa e natural com o ser divino e que a fé, sendo uma revelação interior, uma iluminação superior do entendimento, não difere da comunicação racional.

41Deste modo, o conceito de razão de Amorim Viana vem a ser o de urna razão que, partindo das ideias inatas ao próprio espírito ou das que adquire pela experiência ou pelo raciocínio, opera pela decomposição analítica dessas mesmas ideias, para daí concluir, logicamente, uma verdade, mas sem que, por essa via, alcance captar a essência de cada coisa ou de cada ser.

439. Na geração seguinte à de Amorim Viana, Cunha Seixas será o primeiro a ter na devida conta o pensamento do filósofo de Könisberg, a cuja reflexão dedicou diversas páginas em mais de uma das suas obras de intenção especulativa, a começar pela que publicou logo após o insucesso no concurso para professor de Filosofia do Curso Superior de Letras, a Galeria de Ciências Contemporâneas (1879).

45Prosseguindo esta sua caracterização geral da filosofia kantiana, o filósofo pantiteísta afirmava que, embora tal filosofia concedesse bastante ao sensismo, ao admitir que todo o conhecimento começa pela experiência sensível, que, no entanto, não explica tudo, objectava-lhe que o conhecimento do mundo exterior ao espírito está dependente e condicionado pelas intuições de tempo e espaço e o das restantes realidades pelas categorias do entendimento e pelas ideias da razão, aqui encontrado o seu fundamento a posição assumida por Kant ao negar o Ser Supremo no plano da razão teórica.

49Submetendo, depois, o conceptualismo criticista de Kant a uma apreciação crítica, o nosso filósofo considerava assentar ele em "bases falsas e arbitrárias", que fazem que a classificação das categorias que propõe acabe por não respeitar as exigências lógicas, vindo, por isso, a revelar-se insuficiente.

52Assim, no ensaio crítico sobre A Filosofia da Natureza dos Naturalistas (1886), o filósofo açoriano por duas vezes afirmará que, depois de Kant e da primeira das suas Críticas, "a acção e a autoridade da ciência na filosofia" é uma realidade que nenhum pensador poderá deixar de reconhecer e aceitar, pelo que qualquer filosofia terá de ser uma teoria geral do desenvolvimento, concebida esta como uma filosofia da evolução, advertindo, porém, que a ideia de evolução a ter em conta em tal teoria é algo que excede em muito a capacidade e as possibilidades das ciências da natureza, porquanto excede "os limites e o alcance do puro espírito científico", o que equivale a afirmar, com decidida clareza, que só à actividade especulativa representada pela filosofia será possível dar corpo àquela ideia.

54Será, porém, no final da primeira parte do seu mais extenso e significativo estudo filosófico, as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890), que o malogrado pensador mais longamente se ocupará da obra e do pensamento kantianos, propondo dele uma interpretação amplificante, à luz da sua própria reflexão.

55Comparando o papel desempenhado, na modernidade, por Kant com aquele que, no pensamento antigo, coube a Sócrates, Antero recusa, com firmeza, as interpretações que vêem no criticismo do filósofo germânico urna nova forma de cepticismo, sustentando, pelo contrário, que ao proceder a uma sondagem das bases do conhecimento humano e ao avaliar, ponderadamente, cada uma das faculdades da razão, o autor da Critica da Razão Pura, longe de proscrever toda a especulação metafísica, lhe conferiu novo vigor, obrigando-a a regressar à sua origem, o que lhe permitiu conseguir "uma maior intimidade com os seus próprios princípios, uma maior compenetração de si mesma", que lhe conferiram uma mais ampla capacidade de compreensão e penetração que, projectada sobre o mundo objectivo, possibilitou que este parecesse "ampliado e como que outro".

56Ao sujeitar a rigoroso exame as tendências metafísicas do pensamento moderno e ao sondar a razão nos seus elementos últimos, Kant, na interpretação anteriana, vem a depurar e ampliar a mesma razão, convergindo, assim, com o sentido geral do pensamento moderno. Ao pretender assentar as bases da certeza do conhecimento humano, o filósofo alemão conclui que é no espírito e apenas nele que tais bases se encontram, do que resultará, então, que o espírito é o verdadeiro noumenon, o ser tipo, medida de todas as coisas e revelação da sua natureza mais íntima, sendo, por isso, as suas leis as mesmas leis do Universo na sua forma mais perfeita, pelo que só partindo do espírito é possível conhecer o mundo objectivo. A filosofia kantiana aparece-lhe, então, como a mais enérgica afirmação da autonomia da força e da sua imanência, assim como, do mesmo passo, o Universo vem a refluir para a consciência e nela se abisma para, num segundo momento, dela sair análogo ao espírito ou idêntico com ele.

57Antecipando, de certo modo, a conhecida distinção sergiana entre o "kantismo real" e o "kantismo ideal", ao distinguir no pensamento de Kant "os propósitos do filósofo, o que ele julgava fazer e provar, e aquilo que realmente fez, o alcance das suas ideias", que em grande parte, não terá compreendido devidamente, sustentava Antero que o verdadeiro significado histórico do kantismo se encontraria no realismo transcendental de Schelling e Hegel.

58Assim, tal como o filósofo-poeta o interpretava, o mais fundo e coerente sentido do criticismo kantiano era o haver reconhecido ou entendido a identidade do ser e do saber, o ter aportado a um idealismo realista que sujeita todos os seres às leis da razão e considera a razão e suas leis como algo latente em todos os seres, por mais elementares que se apresentem, assim generalizando o espírito a todo o Universo.

6011. Filósofo da mesma geração de Antero, que desempenhou, na cultura e na filosofia brasileiras, papel em larga medida idêntico ao que, em Portugal, coube ao pensador açoriano, Tobias Barreto (1839-1889), indiscutível cabeça do que se convencionou designar por "Escola do Recife", que reagiu, criticamente, contra o espiritualismo personificado na obra e no pensamento de Gonçalves de Magalhães, em nome das novas ideias filosóficas, científicas, jurídicas e literárias, em que, ao lado do cientismo, do positivismo, do naturalismo e do evolucionismo, ocupava lugar de relevo uma nova consideração do pensamento de Kant, se, por um lado, retoma, meio século depois, em novos ou renovados termos, a solitária, incompreendida e ignorada lição de Diogo António Feijó, por outro vai dar fecundo início a uma das mais interessantes, originais, ricas e persistentes orientações especulativas brasileiras, o culturalismo.

61Embora coincida ou concorde com Antero no considerar que regressar a Kant é progredir, no ver na indagação dos limites do órgão do conhecimento que é a razão humana o grande feito filosófico do autor da Metafísica dos Costumes, no interpretar o seu pensamento como um realismo e no recusar­-lhe a qualificação de cepticismo, no pensar que a evolução é desenvolvimento e no entender que há conciliação e não conflito entre a filosofia e as ciências naturais, sem que daí possa concluir-se que a primeira deva conformar-se com todas as induções das segundas ou que estas devam circunscrever-se ao domínio que aquela lhes definir, porquanto não está vedado ao naturalista contemplar, filosoficamente, o seu próprio campo de observação nem ao filósofo adentrar-se no mundo da natureza, Tobias Barreto afasta-se, decididamente, dele no modo de julgar o idealismo alemão e de conceber a metafísica.

62Enquanto, na linha do magistério krausista, a filosofia anteriana veio a configurar-se como um pensamento de Absoluto e uma metafísica espiritualista assente numa teleologia decididamente ética, o pensamento tobiático reduz a filosofia a uma teoria do conhecimento que sustenta não só que os objectos cognoscíveis são determinados ou condicionados pela própria natureza do sujeito cognoscente como ainda que os conhecimentos que o sujeito alcança não representam a verdadeira e absoluta essência da realidade, teoria a que aparece, no entanto, associada uma concepção metafísica e ontológica de assumido cariz monista e evolucionista, dinâmico e teleológico, que recusa um acanhado e limitado naturalismo, mas se vem a revelar corno um insuperável dualismo, ao admitir dois princípios antagónicos e entre si inconvertíveis, a causalidade e a finalidade e ao conter em si duas realidades tão radicalmente diversas como são a natureza e o domínio do mecanismo, e a cultura e o reino da liberdade.

6412. Discípulo de Tobias Barreto na Faculdade de Direito do Recife e segunda figura da Escola que nele se originou, Sílvio Romero (1851-1914), conferindo, como o mestre, decisiva importância ao pensamento de Kant, que amiúde é convocado na sua obra especulativa, acabará por inflectir o seu culturalismo do plano filosófico para o domínio sociológico, iniciando uma linha doutrinária que, de certo modo, Gilberto Freyre virá a retomar e ampliar, em novos ou renovados termos e com um suporte epistemológico mais exigente e rigoroso.

72Quanto à ética, pensava Deusdado ter ela como núcleo as ideias dc liberdade, dever e progresso. Relativamente à primeira, entendia o pensador que a liberdade moral coincide com o livre arbítrio, o qual tem na vontade a causa das acções humanas, pelo que a liberdade seria a faculdade de praticar ou deixar de praticar um acto. Mas se a vontade é a causa única das acções humanas e a sede última da liberdade, são o entendimento e a sensibilidade que lhe fornecem os motivos das suas volições.

7414. Pensador da mesma geração de Ferreira-Deusdado, o cearense Raimundo de Farias Brito (1862-1917), como Sílvio Romero discípulo dc Tobias Barreto, se, no primeiro estádio da sua evolução espiritual e da sua demanda especulativa, acolheu as principais posições filosóficas do mestre sergipano, corno o relativismo gnosiológico, o monismo, o naturalismo, o evolucionismo e o teleologismo, não deixou, contudo, de manifestar já alguma discreta oposição a aspectos essenciais do pensamento tobiático, seja concedendo primordial importância à problemática psicológica e às questões éticas, seja concebendo a liberdade como consciência da acção e procurando lançar as bases filosóficas de uma religião naturalista, a partir de uma ideia não sobrenatural de Deus e de uma teologia filosófica igualmente naturalista.

75A evolução espiritual do filósofo nordestino, que o irá levar da inicial teleologia naturalista a uma final filosofia do Espírito ou a um novo espiritualismo, que, a mais de um título, retoma, a apressadamente preterida linha especulativa de Gonçalves de Magalhães, conduzi-lo-á, no terceiro e último volume da trilogia Finalidade do Mundo, iniciada em 1895 e concluída um decénio depois, à demorada e reflectida critica do princípio, de matriz neo-kantiana, da relatividade de todo o conhecimento, um dos tópicos essenciais do ideário da Escola do Recife, considerando-o tanto no que pensava ser a sua expressão objectiva, o positivismo, como no que reputava ser a sua versão subjectiva, o criticismo kantiano, vendo em ambos a forma moderna do cepticismo, nisto conver­gindo com Cunha Seixas mas apartando-se, com firmeza, do juízo valorativo que, do pensamento de Kant, anteriormente haviam feito Antero e Tobias Barreto.

78Com efeito, sendo o método dedutivo um método que parte de definições e axiomas, o mesmo é dizer, de conceitos devidamente limitados, com vista a explicar os casos particulares, é uma mera análise do conhecimento adquirido, um método de verificação e de prova e não de descoberta e de busca inovadora. Ora, para estudar a realidade na sua significação objectiva, é necessário considerá-la tal como se apresenta à consciência, onde ela só se lhe manifesta por casos particulares, pelo que o método adequado ao respectivo conhecimento é, unicamente, o que parte do exame dos factos para deles induzir as leis e estabelecer a ordem de sucessão dos fenómenos em que consiste a ciência.