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Trabalhadores e periféricos: identidades em (des)construção nas periferias de São Paulo*

Workers and Peripherals: Identities Under (De)Construction in São Paulo’s Outskirts
Leonardo Fontes

Resumos

Este artigo analisa a formação e as transformações nas identidades de moradores das periferias de São Paulo, no Brasil, nas últimas décadas. Propõe-se entender a identidade de forma relacional e histórica. Desse modo, ela é construída a partir da costura entre os discursos, práticas e processos que produzem subjetividades. A partir de um trabalho etnográfico realizado em dois bairros da periferia de São Paulo, o texto argumenta que, nas décadas de 1970 e 1980, a identidade de “trabalhadores” foi formada em oposição aos “patrões” e aos “bandidos” e foi base de um projeto coletivo de integração dos trabalhadores à sociedade salarial e ao mundo dos direitos de cidadania. Com a reestruturação produtiva e as mudanças sociais nas décadas de 1990 e 2000, essa identidade se desintegrou e deu lugar à identidade de “periféricos”, forjada partir da mobilização cultural em torno de movimentos e coletivos culturais em oposição às “elites” e como resposta ao estigma que recai sobre essas regiões.

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Notas da redação

Revisto por Sofia Silva

Artigo recebido a 04.05.2021
Aprovado para publicação a 19.01.2022

Texto integral

Introdução

  • * Este artigo é resultado de um trabalho de investigação financiado por uma bolsa da Fundação de Ampa (...)

1Este texto se debruça sobre a formação e as transformações nas identidades de moradores das periferias de São Paulo ao longo das últimas décadas, abarcando três gerações de residentes dessas regiões. Para tanto, serão analisadas as mudanças observadas no âmbito do mundo do trabalho, mas também os deslocamentos pelos quais passaram a sociabilidade cotidiana no nível dos bairros periféricos da cidade e o engajamento desses sujeitos em lutas políticas e movimentos sociais.

2Identidade é, possivelmente, um dos conceitos mais controversos das ciências sociais. Nas últimas décadas, tornou-se comum o argumento de que essa categoria estaria em crise, uma vez que sequer uma ideia de sujeito de cunho mais sociológico, isto é, construído a partir de um processo social interativo, daria conta de apresentar uma identidade minimamente coerente.

3De acordo com os defensores da ideia de que a identidade teria perdido sua função explicativa e sociológica, teríamos passado por duas mudanças, uma de cunho social/estrutural e outra de cunho teórico/filosófico que teriam, combinadamente, colocado em xeque a possibilidade de se falar em identidades contemporaneamente. Resumidamente, de um ponto de vista estrutural, no fim do século XX, teríamos assistido a um processo de fragmentação das paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que haviam nos fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Assim, nenhuma identidade singular, como aquela cristalizada na ideia de classe social, poderia alinhar todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra”, na qual seria possível basear seguramente uma atuação política (Hall, 2004).

4Ao mesmo tempo, no que se refere às mudanças no campo teórico, cinco grandes avanços na teoria social teriam contribuído para o que Hall (ibidem) chama de descentramento do sujeito, isto é, a perda de um “sentido de si” que estaria afetando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essas mudanças podem ser resumidas de forma esquemática nos seguintes pontos: 1) o deslocamento da noção de agência individual operada pelo marxismo; 2) a descoberta do inconsciente pela psicanálise; 3) a “virada linguística” trazida por Ferdinand Sausurre, que define a língua como um sistema social e não individual e, desse modo, a impossibilidade do falante individual fixar os significados de forma final, incluindo o significado de sua identidade; 4) a genealogia do sujeito moderno desenvolvida por Foucault a partir da ideia de um “poder disciplinar”, preocupado com a regulação não só de populações inteiras, mas também do indivíduo e de seu corpo; e 5) a emergência da “política de identidade” a partir dos anos 1960 como base para a mobilização de movimentos sociais, em especial do feminismo, que abriu novas arenas de contestação, em especial a esfera doméstica, e politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação ao questionar como somos formados e produzidos enquanto sujeitos “generificados” (Hall, 2004: 34-45).

5Sendo assim, estaríamos assistindo contemporaneamente a uma proliferação de identidades, o que teria feito com que o conceito perdesse seu poder analítico. Afinal, se a identidade está por toda parte, não estaria em lugar algum. Desse modo, as identidades funcionariam muito mais como uma categoria prática do que como categoria analítica e não devem ser reificadas ou naturalizadas (Brubaker e Cooper, 2000).

6Se é fato que a identidade é “uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga” (Hall, 2014: 104), ela segue, porém, sendo útil para o entendimento de diversos processos sociais. Assim, é preciso analisá-la de forma relacional e histórica, a partir de uma construção simbólica e social (Woodward, 2014). Fundamentalmente, sem a noção de identidade, a temática da agência e da política tornam-se de difícil formulação.

7Tendo em vista que os sujeitos participam de múltiplas configurações (Elias, 2008), é imaginável que elas possam, eventualmente, produzir formas de identificação distintas, uma vez que as relações travadas em cada uma delas são formadas por práticas e discursos diferentes. Assim, o conceito de identidade utilizado neste texto não tem a pretensão de buscar aquele “eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros eus [...] que um povo, uma história ou uma ancestralidade mantém em comum”, tampouco “um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural a uma ‘unidade’ imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças – supostamente superficiais (Hall, 2014: 108). Identidades são cada vez mais fragmentadas e fraturadas e são multiplamente construídas ao longo de discursos e práticas. Portanto, “as identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação” (ibidem).

8Dessa maneira, qualquer identidade deve ser entendida contemporaneamente como uma espécie de costura entre os discursos e as práticas que nos convocam a assumir nossos lugares como sujeitos sociais e os processos que produzem subjetividades. É preciso, portanto, compreender a identidade como um fenômeno social e que se manifesta em diferentes formas de solidariedade, em disposições compartilhadas ou na consciência de interesses e problemas comuns e, eventualmente, em ações coletivas. Ao mesmo tempo, ela deve ser vista como um produto da ação política e social, a partir do desenvolvimento processual e interativo do tipo de autocompreensão coletiva, de solidariedade ou de agrupamento que pode tornar a ação coletiva possível. Em oposição a qualquer essencialismo da identidade, deve-se pensá-la de forma estratégica e posicional. Afinal, trata-se de algo nunca completo, mas sempre “em processo” e que nunca é inteiramente determinado, podendo sempre ser sustentado ou abandonado (Hall, 2014).

9Na base da discussão a respeito da identidade está a questão da identificação, pois ela é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum ou de características partilhadas, ou ainda a partir de um mesmo ideal. E é sobre essa fundação que ocorre o fechamento que dá base para a solidariedade e fidelidade do grupo em questão. Uma vez que essa identificação opera por meio da diferença ou da oposição, ela envolve, necessariamente, um trabalho discursivo de fechamento, de marcação de fronteiras simbólicas, o que denota encontrar as semelhanças internas ao grupo, mas principalmente as diferenças externas, isto é, as oposições em relação a um outro. É apenas por meio da relação com o outro, da relação daquilo que não é ou com o que falta, que o significado “positivo” de pertencer identitariamente a um grupo pode ser construído (ibidem).

10No entanto, a identidade “tem a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’” (Gilroy apud Hall, 2014: 109). Ou seja, o tema da identidade traz intrinsecamente uma possibilidade de projeto político a ser reivindicado por uma determinada coletividade.

11Recapitulando, o conceito de identidade, será entendido aqui: a) de forma relacional e histórica e, desse modo, elaborada a partir da costura entre os discursos, práticas e os processos mais estruturais que produzem subjetividades; b) a partir da identificação de características comuns ou compartilhadas, mas principalmente de diferenças externas em relação a um “outro”; c) como um elemento que se manifesta em diferentes formas de solidariedade, em disposições compartilhadas ou na consciência de interesses e problemas comuns e, eventualmente, em ações coletivas; d) e trazendo intrinsecamente uma possibilidade de um projeto político coletivo.

  • 1 Os nomes dos personagens utilizados nesse texto foram trocados ou omitidos para preservar a privaci (...)

12Identificar os discursos, práticas e processos históricos por meio dos quais as identidades foram forjadas e transformadas nas periferias de São Paulo e quais possíveis projetos políticos estas identidades podem apresentar é objetivo deste artigo. Para isso, o texto está embasado em uma pesquisa etnográfica que realizo desde 2015 em dois distritos da cidade de São Paulo: Brasilândia, na zona norte, e Jardim Ângela, na zona sul. Além de entrevistas em profundidade, com mais de 80 interlocutores de pesquisa,1 realizei também observação participante em espaços selecionados, em especial locais de sociabilidade e organização política, como saraus de poesia, conselhos comunitários e fóruns em que se reúnem movimentos sociais dessas regiões.

13No caso de etnografias em espaços urbanos, é comum que a pesquisa se concentre majoritariamente na análise de depoimentos, sendo a entrevista o material empírico privilegiado, o que faz com que a análise do discurso ganhe importância crescente (Durham, 1986). É preciso, contudo, saber valorizar a observação e a participação junto a esses sujeitos (Cardoso, 1986). Assim, a observação participante e a realização de conversas informais com interlocutores constituem-se como importantes complementos para as entrevistas, seja por conta de assuntos que nem sempre são falados abertamente, seja para verificar eventuais distorções narrativas, bem como para a aprendizagem da “linguagem” dos interlocutores (Becker e Geer, 1957). Afinal, “para entender a cultura do ponto de vista do sujeito que fala, atua e pensa, o antropólogo precisa se valer tanto da representação quanto da ação, esta também reprodutora e transformadora a um só tempo” (Zaluar, 1986: 122). A partir destes espaços de observação, portanto, procurei estabelecer relações com alguns potenciais interlocutores e seguir suas trajetórias e espaços de sociabilidade de modo a entender o presente para seguir em direção ao passado (Whyte, 2005).

14Tendo em vista que o sentido da fala depende do extralinguístico, ou seja, de constrições e restrições relacionadas ao contexto social em que a fala ocorre (Zaluar, 1986), faz-se necessário mais do que uma simples transcrição de falas ou a narração de situações. Assim, o método etnográfico depende necessariamente de uma “descrição densa” que é essencialmente interpretativa daquilo que é essencial em cada fala ou situação (Geertz, 2008).

15O texto se divide em três partes, além desta introdução e de uma breve conclusão. Na primeira, é analisado o processo de formação da identidade dos migrantes que se mudaram para São Paulo em busca de melhores condições de vida, e a identidade que forjam a partir de então. Neste período, elementos como a busca pelos direitos associados ao trabalho urbano, as relações dentro das indústrias, a aspiração à ascensão social como projeto familiar e a formação de uma visão de si enquanto “trabalhador” em oposição à figura do “bandido” são fundamentais.

16Na segunda parte, trato da desconstrução dos elementos relacionados ao mundo do trabalho e da expansão do mundo do crime, que embaralham e enfraquecem a identidade de “trabalhador” formada anteriormente. Finalmente, na terceira parte, busco trazer elementos que têm emergido a partir do aumento das possibilidades de mobilidade social e do processo de estigmatização dos moradores dos bairros periféricos de São Paulo e que têm oposto, de um lado, aqueles que pretendem fugir desse estigma por meio da mobilidade geográfica e de uma pretensão a um estilo de vida próximo ao das classes médias e, de outro, aqueles que têm procurado valorizar suas identidades territoriais, identificando-se positivamente como periféricos.

17Nas considerações finais, busco trazer elementos de ordem política que, combinados com a identidade periférica que parece se fortalecer nos últimos anos, podem apontar para o surgimento de novos sujeitos e projetos políticos nas periferias paulistanas.

De migrante a trabalhador: a construção de uma identidade

  • 2 Para um detalhamento da dinâmica de ocupação e segregação residencial da cidade de São Paulo, ver C (...)

18Nas décadas de 1970 e 1980, São Paulo recebia grandes contingentes de migrantes, principalmente nordestinos e de regiões mais pobres do interior do Brasil, em busca de trabalho na capital paulista. O padrão de desenvolvimento de São Paulo, caracterizado por uma concepção urbanística rodoviarista e radioconcêntrica advinda do Plano de Avenidas de Prestes Maia e do alto preço de aluguéis e terrenos nas áreas já urbanizadas forçou esses migrantes a ocuparem territórios cada vez mais distantes de onde se localizavam os principais postos de trabalho e a infraestrutura urbana até então instalada, isto é, em periferias autoconstruídas.2

19Para esses migrantes tratava-se de buscar na cidade, além dos salários potencialmente melhores, “a expectativa de receber os direitos trabalhistas, ausentes nas relações de trabalho na zona rural” (Fontes, 2008: 47). Além disso, havia a “associação da cidade com toda uma série de benefícios urbanos, particularmente nas áreas de educação e saúde” (ibidem: 48). Assim, um primeiro elemento relevante que conformava a realidade dos trabalhadores das periferias urbanas no Brasil nesse período encontra-se na aspiração à “cidadania regulada” (Santos, 1979), que alçava à condição de cidadãos com direito a garantias trabalhistas e sociais somente aqueles que conquistassem uma profissão regulamentada pelo Estado.

20Esse desejo de ingresso no mundo do trabalho e no mundo dos direitos, em outras palavras, o desejo de tornar-se trabalhador é o primeiro elemento que habitava o imaginário desses migrantes que buscavam “fazer a vida em São Paulo”. Essa prática estatal de definir uma fronteira entre os que deveriam ou não ser tratados como cidadãos e, portanto, ter “direito a ter direitos” era reproduzida por outras instituições oficiais, sobretudo a polícia. Nesse contexto, a carteira de trabalho era o “passaporte” que a polícia examinava e que dava direito de frequentar bares, sinucas ou simplesmente de circular pelo bairro (Magnani, 2003). Ter, portanto, um registo oficial de “trabalhador” era o que dava garantia às pessoas não apenas de que teriam acesso a alguns direitos sociais, mas que não teriam seus direitos civis violados pela atuação policial.

  • 3 Apesar de ter a preferência de muitos migrantes e trabalhadores das periferias de São Paulo e de te (...)

21O trabalho industrial foi um segundo elemento central na formação da identidade dos trabalhadores do período, seja pelo status e pela segurança que oferecia, seja pelas relações políticas desenvolvidas junto a sindicatos, ou ainda pela construção da solidariedade no ambiente de trabalho, em oposição aos patrões. Mesmo diante de eventuais dificuldades para se adaptar ao ritmo e às exigências do trabalho fabril,3 ele foi sendo progressivamente valorizado por ser capaz de dotar o trabalhador de certo nível de dignidade, sobretudo devido a um processo de valorização social de seu trabalho, além da segurança e relativa estabilidade financeira que o operário industrial podia desfrutar comparativamente a muitos colegas que viviam trocando de trabalho ou em permanente busca por emprego.

22“A minha categoria sempre ganhou bem [...], porque a gente tinha uma profissão”, me contou orgulhosa Francisca, 50 anos, moradora do Jardim Ângela e ex-trabalhadora da indústria metalúrgica. “Eu era uma montadora de roda, não é assim ajudante geral, a gente tem uma profissão”, completou ela ressaltando que “metalúrgico sempre teve a categoria alta, porque é muito dinâmico o nosso serviço”. Assim, “ter uma profissão”, ser capaz de executar uma tarefa complexa que exige um nível relativamente alto de conhecimento técnico, trabalhar em um ambiente “dinâmico” e ter um salário relativamente alto para os padrões da região onde mora eram alguns dos elementos que garantiam essa dignidade e o orgulho do trabalhador industrial.

23No mesmo sentido aponta a fala de José, baiano de 60 anos, também morador do Jardim Ângela, que se mudou para São Paulo em 1973. Ele já não trabalha no setor industrial desde meados dos anos 1990 e, nos últimos anos, atuou na construção civil como servente de pedreiro e, antes disso, como porteiro e segurança. Apesar disso, quando iniciei a entrevista pedindo que ele se apresentasse e dissesse seu nome, idade e profissão ele não se referiu a nenhum desses postos de trabalho que ocupou nas últimas duas décadas para se situar profissionalmente, mas ao fato de ter sido “operador de máquinas” e de ter trabalhado “em muitas fábricas”.

  • 4 Cipeiro é como são conhecidos os membros da CIPA – Comissão Interna para Prevenção de Acidentes.

24A fábrica foi também o local que despertou em José um engajamento político a partir de sua atuação como “cipeiro”4 e delegado do sindicato. Ele se orgulha daquele tempo quando tinha a prerrogativa de “chegar e parar qualquer máquina que estivesse irregular pra não acontecer um acidente com aquela pessoa”. Pouco a pouco essa solidariedade para com seus companheiros foi se refletindo em atividades reivindicatórias, nas ruas e em outros espaços de representação política, como quando participou, em suas palavras, de greves, “bagunças”, “quebra-quebra” e foi a Brasília pressionar o governo para “garantir seus direitos”.

25As lutas e as vitórias em pequenos confrontos com os patrões no ambiente da fábrica tinham papel central na formação destes trabalhadores enquanto sujeitos coletivos. A forma como os movimentos passaram a se organizar, de baixo para cima, a partir de práticas cotidianas e com base no confronto com a institucionalidade política fizeram com que o pedido de favor clientelista, ou a “luta por migalhas”, desse lugar à reivindicação de direitos (Sader, 1988). Assim, a oposição aos patrões ganhava progressivamente conotações políticas.

  • 5 Dois elementos foram fundamentais na mobilização coletiva de trabalhadores nas periferias de São Pa (...)

26Contudo, é no nível da vizinhança “que a heterogeneidade econômica do ponto de vista dos lugares que ocupam no processo produtivo, cede lugar à homogeneidade das múltiplas práticas cotidianas das classes populares” (Zaluar, 2000: 50). Desse modo, paralela ao mundo do trabalho e das organizações e dos movimentos sociais e políticos que emergiam naquele período,5 havia uma crescente contraposição à identidade vinda do mundo do crime que buscava seduzir jovens moradores das periferias urbanas para a “vida fácil” de roubos, furtos e tráfico de drogas. Justificado em oposição a qualquer valor positivo que possa advir do trabalho, posto que esse era coisa de “otário”, o crime era em tudo contrário à ética familiar surgida no seio da família trabalhadora (Fontes, 2018a; Sader, 1988; Zaluar, 2000). A oposição aos “bandidos” ou “vagabundos”, como eram denominados, foi, portanto, o elemento final que moldou a identidade dos trabalhadores nas periferias urbanas do Brasil.

27Em suma, para os trabalhadores das periferias urbanas dos anos 1970 e 1980, ser “trabalhador” implicava em uma tripla identificação, costuradas entre si de maneiras diversas. Perante o Estado, isto é, nas lutas pela conquista da cidadania, o trabalhador era sinônimo de cidadão, aquele que tem acesso a diversos direitos sociais e deve ter seus direitos civis respeitados pela polícia. Na esfera econômica, ou seja, nas configurações estabelecidas no mundo do trabalho, em especial no trabalho fabril, construía-se uma identidade que se opunha à figura do patrão e buscava dar dignidade para os operários, ao mesmo tempo em que práticas de solidariedade e reciprocidade eram fortalecidas a partir da sociabilidade no chão de fábrica. Finalmente, nas configurações estabelecidas na vizinhança, havia uma busca por diferenciação diante dos “bandidos”, valorizando, assim, o trabalho duro e honesto como base para a mobilidade social.

28Surgia, então, um novo sujeito histórico o “migrante-morador-cidadão” (Arantes, 2009), consolidado sob a identidade de “trabalhador”. Além das lutas pela melhoria de seus bairros por meio de associações de moradores e de formas diversas de luta política (Fontes, 2020a), a identidade de “trabalhador” apontava para um projeto coletivo que tinha como base e pressuposto a aspiração à “utopia da sociedade salarial” (Cardoso, 2010), e a integração desses trabalhadores ao mundo dos direitos de cidadania por meio da democratização da sociedade, em curso naquele momento.

Projetos frustrados, identidades fragmentadas: a desintegração do mundo do trabalho e a expansão do mundo do crime

29Ao longo das décadas seguintes, esses elementos que haviam moldado a identidade dos trabalhadores das periferias urbanas foram sendo fragmentados ou enfraquecidos, provocando importantes transformações nas periferias paulistanas. A prolongada crise econômica que teve início ainda no fim dos anos 1970, a flexibilização do trabalho e a derrocada do trabalho industrial nas periferias de São Paulo, que ocorreram nas décadas de 1980 e 1990, trouxeram consequências profundas para a identidade dos “trabalhadores”. A descontinuidade de carreiras profissionais aliada ao aumento do tempo dedicado ao trabalho na vida das pessoas relativizaram ainda mais a função do trabalho como “pedra-de-toque da identidade pessoal e social” (Offe, 1989) e dificultaram o surgimento de elementos de solidariedade entre os trabalhadores dentro de uma mesma empresa.

30No caso brasileiro especificamente, com a Constituição Federal de 1988 e a universalização de direitos sociais como saúde e previdência social, a carteira de trabalho perdeu o status de porta de entrada para o mundo da cidadania e o trabalho formal assalariado perdeu parte de sua atratividade frente a alternativas, como o trabalho autônomo ou o empreendedorismo.

31Paralelamente, cresceram no debate público e acadêmico interpretações que substituíam a categoria crítica da informalidade pelo par empregabilidade/empreendedorismo. Essa guinada interpretativa depositava nos próprios trabalhadores e em seus atributos individuais a responsabilidade pela inserção econômica. Essa mensagem, com uma forte dimensão simbólico-ideológica no sentido de conquistar a adesão e o convencimento dos próprios trabalhadores, interferiu diretamente na autoimagem e visão de mundo desses sujeitos (Machado da Silva, 2002). Ser “trabalhador” não era mais algo necessariamente almejado pelos moradores de áreas urbanas periféricas. Alternativamente, há aqueles que agora sonham em ser um empreendedor.

32No nível da vizinhança, pude observar ao longo da minha pesquisa que essa visão de mundo provocou fissuras internas na identidade dos trabalhadores que passaram a diferenciar-se internamente entre aqueles que trabalham duro e, por isso, seriam merecedores do progresso econômico e material e aqueles que, apesar de serem trabalhadores, não fariam jus ao mesmo nível de mobilidade social. Ficar no bar ou na rua com os amigos ao invés de trabalhando ou “investindo” seu tempo no aumento de seu “capital humano” passa a ser visto como algo negativo por aqueles que conquistam alguma mobilidade social relativa. Essa realidade é completada pela redução do contato cotidiano entre os vizinhos nas ruas dos bairros periféricos diante do aumento da insegurança urbana (Fontes, 2018a).

33Reginaldo, morador do Jardim Ângela sintetiza essa perda de solidariedade entre trabalhadores em geral e entre os moradores das periferias em especial ao apontar a mudança de caráter que o termo “vagabundo” sofreu nos últimos anos. Segundo ele, no passado, “vagabundo” era sinônimo de “bandido”, termo usado por “trabalhadores” para se referir as pessoas que não trabalhavam ou que estavam envolvidas com o “mundo crime”. Atualmente, porém, o simples fato de a pessoa estar na rua ou em bar com amigos em momentos de lazer já seria suficiente para que as pessoas recebessem essa alcunha.

34Vemos, portanto, emergir uma nova polarização entre aqueles que “na garra” ou “na luta” – individual e não mais coletiva, como nos movimentos de bairro e sindical das décadas anteriores – conseguem algum progresso relativo, e um novo tipo de “vagabundo” que, mesmo não estando envolvido com atividades ilegais, não se esforçaria o bastante para conquistar a mesma ascensão econômica.

35Finalmente, é preciso destacar também que o “mundo do crime” deixou de ser o outro que se opunha de forma radical ao “mundo do trabalho”, naquela oposição moral e identitária entre “trabalhadores” e “bandidos” anotada acima. Nesse período, observou-se, em São Paulo, uma “expansão do mundo do crime” (Feltran, 2011a) consolidada na figura do Primeiro Comando da Capital (PCC). Esse processo se refere não apenas ao aumento dos índices de criminalidade, mas principalmente à ampliação da influência do mundo do crime sobre a conduta de jovens nascidos e criados nessas regiões. Desse modo, ele deve ser entendido como parte de um processo de construção de um regime próprio de justificação entre os que estão “envolvidos no mundo do crime”, que busca ampliar seu alcance, disputando a legitimidade moral com outras esferas de referência, nas quais se baseiam as classes populares para justificar seus atos (Fontes, 2019). Com isso, o “mundo do crime” foi alçado, nas periferias de São Paulo, a uma posição capaz de disputar com outras instituições como a família, o trabalho, o Estado e a religião, a “autoridade para gerar renda, proteger, oferecer justiça” e até para “elaborar concepções de mundo” (Feltran, 2011a, 2014).

  • 6 Para uma leitura mais detalhada a respeito das relações possíveis entre “trabalhadores” e “envolvid (...)

36Com isso, muda qualitativamente a relação entre “trabalhadores” e “bandidos”, nas periferias paulistanas. Para estes, o trabalhador não é mais visto como um “otário”, mas como um “sofredor”, com quem eles compartilham os dramas da “quebrada”. Aqueles que cometem crimes, em especial o tráfico de drogas, perdem, para parcela das novas gerações, a alcunha essencialista de “bandido” e passam a ser apontados como “envolvidos no mundo do crime”.6

37Assim, a promessa de integração social dos “trabalhadores” pela via da cidadania e do mercado de trabalho foi frustrada e o mundo que havia formado a identidade do trabalhador nas periferias de São Paulo desintegrou-se progressivamente, pouco mais de uma década após a sua consolidação.

38A solidariedade no chão de fábrica tornou-se impossível diante da simples inexistência de fábricas, da flexibilização do trabalho que se disseminou por praticamente todos os setores e do enfraquecimento dos sindicatos. A carteira de trabalho perdera parte de sua atratividade por não ser mais a porta de entrada para o mundo dos direitos. O discurso em torno do empreendedorismo passou a conquistar cada vez mais adeptos entre os até então “trabalhadores”, retirando ainda mais a atratividade do trabalho assalariado formal. Com a expansão do mundo do crime, “bandidos” deixam de funcionar como principal figura de alteridade para os “trabalhadores”. E, no âmbito da vizinhança, os trabalhadores passam a enxergar divisões entre aqueles que trabalham duro e aqueles que não se esforçam o suficiente para melhorar de vida, criando, assim, mais clivagens internas aos que antes eram tidos como “trabalhadores”.

Do estigma à valorização da identidade periférica

39Como dito, internamente nas periferias, o processo de “expansão do mundo do crime” gerou um certo abrandamento na visão negativa que se tinha dos “bandidos”, especialmente entre os mais jovens. Externamente, no entanto, ocorreu o inverso. A representação pública que se passou a fazer a respeito dos moradores das periferias produziu uma “multiplicação imaginária do criminoso” na sociedade paulista (Feltran, 2011b: 186), tanto por parte da dita “opinião pública” quanto por formuladores de políticas públicas na área de segurança. Esse processo de “incriminação preventiva” de determinados “tipos sociais” se territorializou e ganhou contornos espaciais, passando a atingir todos de quem se espera um determinado comportamento, inclusive crianças e adolescentes, mas em especial de homens jovens negros (Misse, 2010). Essa sobrevalorização pública da parcela periférica envolvida com o crime gera um processo de “estigmatização territorial” de bairros e regiões periféricas que se tornam publicamente “lugares perigosos”, o que confere às autoridades o poder de tomar “medidas especiais” (Wacquant, 2007).

40A importância do estigma não está no atributo em si, mas na relação social que ele implica e na forma como os sujeitos lidam com ele. Sendo assim, parte essencial da investigação em torno do processo de estigmatização de um determinado grupo social está justamente em analisar a relação que os sujeitos identificados com aquela marca negativa estabelecem com os outros membros do grupo e com os demais membros da sociedade tidos como “normais”. A perspectiva que os sujeitos desenvolvem com relação ao estigma depende essencialmente se ele é ou não imediatamente perceptível e se o sujeito é, portanto, prontamente “desacreditado” ou se é “desacreditável” à medida que se toma conhecimento de suas marcas (Goffman, 1963). Em outras palavras, a relação das pessoas com seu estigma pode variar na medida em que a marca que o define é mais ou menos evidente para um observador externo em um primeiro contato social.

41No caso do estigma territorial, ainda que alguns traços que delimitam esse grupo possam estar marcados no corpo, como a cor da pele, outros elementos, como o jeito de falar, de se vestir, os gostos e preferências culturais são passíveis de serem ocultados, escamoteados ou acobertados, dependendo da configuração social em que os sujeitos estão participando. Além disso, uma especificidade do estigma territorial, comparativamente a outros selos de desonra, está justamente no fato que ele pode ser facilmente dissimulado e atenuado ou mesmo anulado, pela mobilidade geográfica (Wacquant, 2007).

42Diante da estigmatização das periferias e de seus moradores, sobretudo jovens negros, e dessas especificidades da estigmatização territorial, uma parcela dos moradores dessas regiões forjou nos últimos anos uma resposta distintiva, no sentido de se diferenciar daqueles com quem compartilham a vizinhança. Essas pessoas tendem a concordar com o estigma que é imposto a suas regiões, mas buscam se distinguir ou se diferenciar individualmente – ou do ponto de vista familiar – dos demais moradores daquela localidade, esses sim, tipicamente enquadrados no estereótipo estigmatizado. Para essas pessoas, viver na periferia lhes suscita vergonha, temor e frustração por não poder se mudar. Assim, buscam ao máximo fugir daquele estigma, ocultando sempre que possível sua origem, ou procurando destacar traços em si que lhes opõem e separa dos demais (Fontes, no prelo).

  • 7 Para uma análise mais detalhada desse processo de mobilidade social recente no Brasil e suas conseq (...)

43Em geral, pessoas que adotam esse tipo de resposta nas periferias de São Paulo, apesar de terem nascido e crescido nessas regiões, têm poucas relações com os vizinhos. Esse grupo costuma restringir suas relações locais e busca construir um capital social com pessoas de outros bairros, que conheceram no ambiente de trabalho ou na faculdade (ibidem). Entre meus interlocutores esse discurso aparece com mais força entre aqueles que tiveram uma mobilidade social mais contundente nos últimos anos a partir das oportunidades de trabalho renda e educação que foram ampliadas no Brasil entre meados da década de 2000 e a primeira metade dos anos 2010 e esse grupo tem, em média entre 30 e 40 anos de idade.7

44É o caso de Denis, que hoje tem 33 anos e tem uma pequena escola de inglês com um amigo. Apesar de ter tido uma infância bastante pobre, conseguiu uma mobilidade social relativa e se mudou para um bairro um pouco menos periférico relativamente à região onde morava com seus pais, fato que ele atribui predominantemente a seu esforço de ter “trabalhado muito”. Para ele, quando se vai “mais p[a]ra dentro das periferias”, “ninguém cresce ali com um futuro garantido”. “A única coisa que eu vejo na rua são ainda jovens com pouca instrução, usando drogas, ouvindo música alta na frente de casa, coisa assim”, completa. Além disso, ele se incomoda com o fato de os moradores das periferias terem “prazer de fazer nada” ou por serem “acomodadas”, uma vez que a família já tem uma casa ou “um carrinho” ou por dependerem de programas sociais do governo que garantem o básico para sobrevivência.

45Em oposição a esse estigma de ser periférico, associado ou ao crime ou à falta de empenho em melhorar de vida, é possível notar o aparecimento de uma resposta que pode ser interpretada como uma reafirmação identitária, uma vez que busca valorizar justamente seus atributos que são estigmatizados. Em minha pesquisa de campo, notei que a emergência dessa resposta aparece sobretudo entre os moradores mais jovens, com menos de 30 anos, ligados a movimentos culturais e identitários (Fontes, 2018a, 2020a, 2020b). Essa reafirmação identitária é o interesse primordial deste texto, pois é a partir dela que uma nova identidade é forjada pelos moradores das periferias de São Paulo. Ela é formada como recurso para se contrapor ao estigma associado a ser da periferia, mas traz também uma crítica, no sentido de Boltanski (2016), àqueles que adoram práticas e discursos que conformam o que chamei acima de resposta distintiva a esse estigma.

46Essa crítica traz uma importante contraposição que aqueles que se identificam como “periféricos” constroem a respeito de seus vizinhos e pode ser resumida na categoria nativa “espírito da Freguesia. Produzida pelos moradores da Brasilândia, essa categoria faz referência ao desejo de se mudar para o bairro da Freguesia do Ó, um bairro vizinho, mas com padrão de classe média, mais próximo do centro expandido de São Paulo e sem o mesmo estigma de “periférico”. Nas palavras de um dos meus interlocutores, o “espírito da Freguesia” se opõe a um “espírito de comunidade” mais presente em outros tempos e faz referência àqueles que “moram aqui, mas têm espírito de quem não mora aqui” ou, em outros termos, seriam pessoas que pensam: “eu tô na favela, mas eu quero me afastar dela”.

47Essa crítica, vinda daqueles que defendem um espírito mais “comunitário”, em oposição ao imperativo da individuação na busca pela melhoria de vida, não é apenas uma romantização do passado. Trata-se, na verdade, da expressão de uma experiência negativa de desestruturação de um modo de vida valorizado e que busca ser retomado no presente em formulações tanto a respeito do espaço em que vivem – a “quebrada” – quanto na produção cultural local (Fontes, 2020a, 2020b). A origem dessa valorização da cultura local pode ser traçada a partir dos anos 1990, quando o hip-hop e suas manifestações, principalmente o rap, mas também o grafite e o break, desempenharam papel fundamental para a exaltação dos atributos e da cultura típica dos moradores da periferia e para a criação de uma identidade própria que dialogava fortemente com a realidade concreta desses sujeitos, inclusive com seu relacionamento de proximidade e interação com o “mundo do crime” (D’Andrea, 2013).

48No discurso dos rappers e outros artistas das periferias urbanas, os problemas sociais como a violência policial, a violência do “mundo do crime”, o desemprego, a segregação social, a deficiência na infraestrutura urbana e a ausência de reconhecimento social constituem uma experiência comum entre os jovens periféricos que passam, então, a compartilhar os elementos culturais associados ao hip-hop, fortalecendo “uma ideia de pertencimento e identidade”. A periferia passou, progressivamente, de signo de estigmatização a elemento identitário, constituindo-se como um “espaço social e geográfico que gera um denominador comum para jovens negros, mestiços, nordestinos e brancos: a classe pobre” (Macedo, 2014: 9).

49Além disso, essas manifestações culturais foram essenciais para elevar a autoestima de muitos jovens das periferias que se sentiam inferiorizados diante da discriminação social e racial e da repressão que sofriam cotidianamente, além da reiterada falta de sucesso educacional e profissional a que estavam submetidos.

50Conforme muitos jovens me relataram, nos últimos anos, os saraus de poesia têm se apresentado como a experiência mais marcante em sua formação pessoal e coletiva. A disseminação desse formato por vários bairros periféricos e seu caráter democrático, que permite que o protagonismo do evento seja dividido entre todos que se apresentam, são centrais. Desse modo, os saraus têm sido capazes de modificar a forma como esses jovens enxergam a própria realidade, tornando-os mais críticos, mas também mostrando o lado positivo de viver na periferia (Fontes, 2020a).

51A expansão de saraus pela periferia está intimamente ligada ao movimento da chamada literatura marginal, surgida no começo dos anos 2000 e encabeçada por escritores como Ferréz e Sergio Vaz que tem como objetivo político e intelectual “‘dar voz’ ao seu grupo social de origem, através de relatos dos problemas que os acomete em textos literários; e de conferir nova significação à periferia, por meio da valorização da ‘cultura’ de tal espaço” (Nascimento, 2011: 118). Durante minha pesquisa de campo, realizei observações participantes em dois saraus de poesia, o Sarau da Cooperifa, pioneiro do movimento de saraus em São Paulo e frequentado por muitos interlocutores que conheci no Jardim Ângela, e o Sarau Poesia na Brasa, realizado na Brasilândia.

52No Sarau da Cooperifa um dos momentos mais fortes e marcantes ocorre quando Sergio Vaz ou algum outro organizador puxa no microfone o poema “Quilombo Cultural”8 de autoria de Jairo Periafricania, considerado uma espécie de hino da Cooperifa. Logo que o poeta entoa os primeiros versos em tom de grito de guerra, praticamente todos os presentes o seguem em um grande coro: “Úh! Cooperifa meu quilombo cultural! / Éh! Poesia literatura marginal!”. Pouco mais adiante, em um dos trechos, a letra afirma que, no sarau, o “elo” entre os frequentadores “se fortalece” e, dessa forma, fazem um chamado para aqueles que estão “da ponte pra cá”, onde seria “tudo nosso”, demarcando a fronteira entre o centro e a periferia da cidade de São Paulo.9

53A letra reforça também o caráter político que os próprios organizadores atribuem ao sarau ao afirmar que não se trata de um simples evento, mas sim de um “movimento” e que o artista é cidadão na medida em que expressa seus pensamentos. Com isso, os saraus procuram retomar uma visão sobre a política na periferia que dialoga com a tradição dos “trabalhadores” e sua luta por cidadania.

54Esse aspecto também é bastante evidente em “Nosso Manifesto” do Coletivo Sarau Poesia na Brasa, que organiza o principal sarau da Brasilândia. Fazendo uma referência aos altos índices de criminalidade e à estigmatização e seus territórios, o manifesto-poema afirma que a periferia, agora, “se arma de outra forma. / Agora o armamento é o conhecimento, a munição é o livro e os disparos vem das letras”. Assim, o que os moradores dessas regiões almejam é “conhecimento e transformações nas relações sociais”. E conclui: “Agora não mais enquadramos madames no farol, e sim queremos ter os mesmos direitos das madames”.

55O Manifesto do Sarau Poesia na Brasa10 pode ser lido como uma espécie de autobiografia de alguns dos principais fundadores do sarau que, nascidos e criados na Brasilândia, estão entre os primeiros membros de suas famílias que conseguiram romper com o ciclo de pobreza e violência e cursar o ensino superior. Mesmo tendo saído do bairro e, em alguns casos, da cidade para fazer faculdade, todos eles retornaram e gostam de viver na periferia.

56Esses textos resumem algumas das importantes oposições que têm influenciado a formação das identidades dessa jovem geração de moradores das periferias paulistanas: a oposição territorial, entre o centro e quem está “da ponte pra cá”, a oposição econômica, contra a “elite”, a oposição ao Estado, “que reprime os favelados”, “através da polícia” e, por fim, a oposição no nível local aos que querem apenas bens de consumo para se parecer com as classes mais abastadas, na linha da crítica ao “espírito de Freguesia”. Esses elementos, somados ao orgulho de ser periférico que vem sendo historicamente construído como resposta à estigmatização de suas regiões tem dado margem à construção de uma identidade periférica.

57Portanto, ao mesmo tempo em que essa estetização do espaço e do cotidiano periféricos resultou em um discurso homogeneizante sobre práticas e problemas sociais que se traduziu na máxima “periferia é periferia em qualquer lugar”, também trouxe à tona “certa visão propositiva segundo a qual ‘ser da periferia significa participar de certo ethos que inclui tanto uma capacidade para enfrentar as duras condições de vida, quanto pertencer a redes de sociabilidade, a compartilhar certos gostos e valores” (Magnani, 2006: 39).

58Na confluência entre a tradição literária marginal e o hip-hop, representada pelos saraus de poesia, emerge uma cultura periférica (Nascimento, 2011), consolidada e expandida pelos movimentos culturais das periferias. Ao colocar-se como representante de um modo de vida próprio da periferia, o que abarca comportamentos, valores, práticas, linguajares, modos de se vestir, visões de mundo, essa cultura periférica se coloca em luta com a “cultura dominante” (Hall, 2003) e contra a desestruturação do antigo modo de vida afetado pela violência, pelo individualismo e pela busca por distinção advindo do aumento das possibilidades de ascensão social (Fontes, 2020b).

Considerações finais

59Conforme dito na introdução deste texto, o conceito de identidade deve ser analisado de forma relacional e histórica a partir da costura entre os discursos, práticas e os processos mais estruturais que produzem subjetividades. Além disso, ele parte da identificação de características comuns ou compartilhadas, mas principalmente de diferenças externas em relação a um outro; se manifesta em diferentes formas de solidariedade, em disposições compartilhadas ou na consciência de interesses e problemas comuns e, eventualmente, em ações coletivas e traz intrinsecamente uma possibilidade de um projeto político coletivo.

60A Tabela 1 abaixo busca resumir e comparar os alguns dos principais elementos que formaram a identidade de “trabalhadores” e “periféricos” nas últimas décadas, nas periferias de São Paulo.

Tabela – Identidades nas periferias de São Paulo: trabalhadores x periféricos

Trabalhadores

Periféricos

Espaços e processos onde a identidade é formada

Fábrica, relação com Estado; bairro

Bairro, movimentos culturais e identitários; relação com Estado

Características compartilhadas e em oposição a um outro

Trabalho duro e honesto, em oposição aos patrões, “vagabundos” e “bandidos”

Ser negro, pobre e morador da periferia em oposição ao centro ou à “elite” ou ao “espírito da Freguesia”

Manifestações de solidariedade e interesse comuns

Solidariedade no chão de fábrica e na luta pela melhoria das condições de vida na região

Repúdio à violência policial vista como racista; resposta à estigmatização territorial das periferias; falta de acesso aos benefícios da cidade e ao padrão de vida das classes médias

Fontes: Elaboração própria.

61Procurei argumentar também que a identidade de “trabalhador” apontava para um projeto coletivo que tinha como base a integração desses trabalhadores à sociedade salarial e ao mundo dos direitos de cidadania por meio da democratização da sociedade em curso naquele momento. Construída em oposição aos “patrões”, aos “bandidos” e ao Estado ditatorial, a identidade e a subjetividade do “trabalhador” foram capazes de forjar novos personagens que entraram em cena – na feliz expressão de Sader (1988) – ao longo das décadas de 1970 e 1980. Dali emergiram lutas políticas e sociais, sindicatos, movimentos sociais, organizações não-governamentais e um partido político.

  • 11 A expressão é de Januário et al. (2016).
  • 12 Sobre as manifestações de junho de 2013 ver Judensnaider et al. (2013) e sobre as ocupações de esco (...)

62Resta responder, nessas páginas finais, à questão das possibilidades de um projeto político coletivo a ser formulado a partir da identidade de “periféricos”. O caráter descentralizado e organizado em torno de “coletivos”, e não mais em movimentos e partidos políticos, dificulta a unificação das pautas em torno de um projeto único. No entanto, em estrito diálogo com a cultura periférica descrita na seção anterior, parece emergir entre jovens das periferias de São Paulo uma renovada “disposição de luta”,11 que foi ativada pelas manifestações de junho de 2013, pelas ocupações de escolas públicas em 201512 e em outros momentos de mobilização política nos últimos anos (Fontes, 2020a, 2020b).

63Um elemento relevante para se destacar nessas mobilizações, sobretudo em junho de 2013, está no fato de a violência policial ter funcionado como elemento catalisador de um processo mais amplo. Muitos dos jovens enxergam no enfrentamento da repressão policial aos protestos uma espécie de redenção coletiva diante da invisibilidade das opressões que sofrem cotidianamente. Assim, além da oposição ao individualismo do espírito da Freguesia e ao estilo de vida das “elites”, emerge uma oposição ao Estado em sua face repressora, politizando ainda mais as demandas desses sujeitos.

64É necessário destacar também que, para os jovens que têm se engajado nessas novas mobilizações sociais, a obtenção do reconhecimento enquanto cidadãos em seus próprios territórios, isto é, nas periferias, é elemento fundamental. “Tudo [acontece] no centro, sabe, tudo, tudo, porque só lá vai ser visto. Beleza, mas eu quero ser visto aqui. Vou ficar aqui!”, me disse um estudante participante das ocupações de escolas em 2015 justificando porque não participava de manifestações na região central da cidade. Para esses jovens, sua cidadania só será plenamente reconhecida quando ele for “visto” – pela mídia e pelo poder público – em sua própria condição de morador da periferia e na periferia. Dessa forma, a lógica de protestos descentralizados que têm se firmado recentemente também está em sintonia com essa identidade periférica. Além disso, é possível observar que alguns desses coletivos com origem na cultura e em movimentos identitários tem buscado se organizar politicamente e lançar candidaturas próprias ao poder legislativo local (Fontes e Teixeira, 2020).

65Conforme apontam Novaes e Alvim (2014: 296), “a noção de direitos evoca o poder público e, consequentemente, leva a cobranças de políticas públicas”. Assim, ainda que haja, por parte dos jovens periféricos, uma oposição ao Estado em sua face repressora, representado pela forma de atuação da polícia nas periferias urbanas e um ceticismo ou um desinteresse com relação às formas tradicionais de atuação política, há um inevitável direcionamento ao Estado das demandas por direitos.

66Esses jovens da periferia têm buscado expressar na música, na poesia e na cultura de maneira geral algo que manifestações políticas recentes oferecem em termos políticos: o reconhecimento de sua condição de cidadãos plenos, isto é, do “direito a ter direitos”, sem que para isso precisem abandonar seu modo de vida ou deixar de ser negros, de famílias pobres ou moradores da periferia. Por isso, o projeto político encampado por essas mobilizações contemporâneas aponta para além da ideia de integração da tradicional ideia de um “direito à cidade”, sendo melhor entendido como a luta por um “direito à periferia” (Fontes, 2018a, 2018c).

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Notas

* Este artigo é resultado de um trabalho de investigação financiado por uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo n.º 2019/13125-2) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1 Os nomes dos personagens utilizados nesse texto foram trocados ou omitidos para preservar a privacidade dos entrevistados.

2 Para um detalhamento da dinâmica de ocupação e segregação residencial da cidade de São Paulo, ver Caldeira (2000); Fontes (2018a, 2018b); Marques (2014); Pasternak e Bogus (2005).

3 Apesar de ter a preferência de muitos migrantes e trabalhadores das periferias de São Paulo e de ter grande importância para a construção identitária dessas pessoas, a busca pelo trabalho na grande indústria estava longe de ser unanimidade naquele período, como apontam Cardoso et al. (1973).

4 Cipeiro é como são conhecidos os membros da CIPA – Comissão Interna para Prevenção de Acidentes.

5 Dois elementos foram fundamentais na mobilização coletiva de trabalhadores nas periferias de São Paulo, mas que não abordarei aqui por falta de espaço: a autoconstrução de suas moradias e o engajamento em movimentos sociais, sobretudo associações de moradores que reivindicavam serviços públicos e infraestrutura para seus bairros, muitos nascidos a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). A esse respeito ver Fontes (2018a, 2018c, 2020a).

6 Para uma leitura mais detalhada a respeito das relações possíveis entre “trabalhadores” e “envolvidos no mundo do crime” ver Fontes (2019).

7 Para uma análise mais detalhada desse processo de mobilidade social recente no Brasil e suas consequências ver Fontes (2018a, 2022).

8 A letra completa do poema pode ser encontrado em: http://efeito-colateral.blogspot.com/2008/12/nosso-hino-quilombo-cultural.html. Página consultada a 12.05.2021.

9 A expressão “da ponte pra cá”, consagrada em rap dos Racionais Mc’s, tornou-se uma categoria nativa nas periferias de São Paulo para demarcar as fronteiras que os separam das regiões centrais mais ricas da cidade: a pontes que cruzam por cima das marginais dos rios Tietê e Pinheiros.

10 O texto completo está disponível em: http://brasasarau.blogspot.com.br/p/nosso-manifesto.html. Página consultada a 03.05.2021.

11 A expressão é de Januário et al. (2016).

12 Sobre as manifestações de junho de 2013 ver Judensnaider et al. (2013) e sobre as ocupações de escola pública em 2015 ver Campos et al. (2016).

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Leonardo Fontes, «Trabalhadores e periféricos: identidades em (des)construção nas periferias de São Paulo»e-cadernos CES [Online], 36 | 2021, posto online no dia 02 maio 2022, consultado o 17 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/eces/6649; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.6649

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Leonardo Fontes

Pós-doutorando no International Interdisciplinary Postdoctoral Program, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Rua Morgado de Mateus, 615, Vila Mariana, São Paulo – SP, CEP 04015-051, Brasil
leo.ofontes@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9686-7597

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