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Por outros modos de bem viver: o pluriverso de alternativas e as ecovilas nas confluências comunitárias*

For Other Ways of Good Living: The Pluriverse of Alternatives and Ecovillages at Community Confluences
Renata Amorim Almeida Fonseca, Marta de Azevedo Irving, Yasmin Xavier Guimarães Nasri e Graciella Faico Ferreira

Resumos

Frente às crises globais, diversas comunidades ao redor do globo vêm empreendendo alternativas contra-hegemônicas de organização social e produtiva. A partir dessa premissa, por meio de uma revisão narrativa da literatura acadêmica e segundo uma perspectiva decolonial, esse ensaio discute o papel das ecovilas, no âmbito do pluriverso de alternativas, visando contribuir para uma reflexão crítica sobre os processos de confluências comunitárias que pretendem ser justos e ecológicos. Entende-se que as práticas socioambientais das ecovilas, em confluência com a pluralidade de alternativas comunitárias em rede, tendem a representar uma via promissora para a transição necessária no sentido de uma sociedade justa e de baixo carbono, em sintonia com as dimensões trinas de identidade cultural, equidade social e sustentabilidade ecológica, associadas à ética comunitária do Bem Viver.

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Notas da redação

Revisto por Sofia Silva

Artigo recebido a 06.05.2022
Aprovado para publicação a 22.12.2022

Texto integral

Introdução

  • * Este estudo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (...)
  • 1 Pluralismo de conceitos, cosmovisões e práticas sintonizados com os princípios de justiça social e (...)

1Em escala global, a dinâmica de inúmeras comunidades vem sendo atravessada por pressões decorrentes de incertezas geopolíticas relacionadas ao sistema vigente de desenvolvimento, como ilustrado, de maneira exemplar, pela realidade associada à pandemia da COVID-19, com seus severos desdobramentos socioeconômicos e ético-políticos. Como estratégia de resistência e (re)existência, nesse cenário pulsante e incerto, modos diversos de organização social e produtivos contra-hegemônicos vêm sendo construídos no âmbito do pluriverso,1 esse compreendido como um conjunto plural de possibilidades social e ambientalmente transformadoras (Escobar, 1995, 2018; De la Cadena e Blaser, 2018; Kothari et al., 2019).

  • 2 Grupos sociais minoritários são assim denominados não por sua expressão em termos estatísticos, mas (...)

2Buscando a vinculação direta com seus próprios modos de vida e suas territorialidades, culturas e lutas sociais, inúmeros e distintos grupos sociais, com destaque para aqueles minoritários e marginalizados2 (Porto-Gonçalves, 2002; Haesbaert, 2007; Kothari, 2021), vêm enfrentando os desafios cotidianos por meio de caminhos potencialmente inovadores, o que tem gerado, de forma pedagógica, importantes lições e oportunidades de aprendizagem sobre resiliência e esperança. Essas experiências comunitárias vêm contribuindo, ainda, para se repensar criticamente o cenário complexo de transformações em curso. Isso porque muitas das inovações territoriais comunitárias têm revelado o seu potencial para inspirar soluções possíveis para os diversos problemas econômicos, ecológicos, sociais, culturais e ético-políticos da contemporaneidade (Kothari, 2021). Desse modo, ao se desenvolverem no âmbito do próprio capitalismo, essas iniciativas podem ser entendidas como "intersticiais" e “prefigurativas”, no contexto de transição para uma sociedade pós-capitalista (Monticelli, 2018), encarnando “no aqui e agora” verdadeiras “utopias concretas” (Dinerstein, 2017), ao contribuírem, com maior ou menor êxito, para possíveis “inéditos-viáveis” diante de “situações limite” (Freire, 1983).

3Como parte desse pluriverso, compondo um amplo rol de alternativas potencialmente transformadoras e territorializadas, as ecovilas traduzem, em tese, maneiras de viver que advogam uma maior conexão consigo mesmo, com o outro e com os demais seres da natureza, buscando prefigurar, na sociedade vigente, a construção de uma civilização ecológica, resiliente e equitativa (Trainer, 2000).

4Ecovilas são oficialmente definidas como “comunidades intencionais ou tradicionais, rurais ou urbanas que utilizam processos participativos para integrar, holisticamente, as dimensões ecológica, econômica, social e cultural da sustentabilidade, buscando regenerar os ambientes social e natural” (GEN, 2022). Presentes em todos os continentes e conectadas globalmente em rede, através de uma organização da sociedade civil denominada Global Ecovillage Network (GEN), em suas ramificações regionais e locais, as ecovilas se configuram sob os mais variados formatos comunitários e contextos socioculturais na atualidade (Dawson, 2006; Liftin, 2014; Dias et al., 2017; Mattos, 2018; Roysen e Mertens, 2019).

  • 3 Diferentes definições vêm sendo dirigidas às denominadas “comunidades tradicionais” na América Lati (...)

5No Norte global, onde esse movimento se originou, as ecovilas se caracterizam, majoritariamente, como comunidades intencionais orientadas por princípios e valores associados ao debate sobre sustentabilidade. Contudo, novos contornos vêm sendo impressos na transposição desse movimento para o Sul global, uma vez que nessa dinâmica passa a ser, também, incorporada a busca pela salvaguarda de modos de vida de comunidades tradicionais,3 intrinsecamente conectados aos ciclos vitais da Terra. Assim, de acordo com Dawson (2013), a distinção entre ambas as tipologias de ecovilas reflete as distintas realidades socioeconômicas e geopolíticas, e, sobretudo, as relações de poder e fraturas entre privilegiados e marginalizados que caracterizam o sistema econômico capitalista.

6Considerando esses antecedentes, tendo em vista o cenário de emergência climática e o debate em curso sobre o Antropoceno (Crutzen e Stoermer, 2000), esse ensaio tem como objetivo discutir, preliminarmente, o papel das ecovilas no âmbito do pluriverso de alternativas comunitárias, no horizonte desejável de um movimento de transição justa e sustentável em direção a uma sociedade de baixo carbono. O ensaio busca, ainda, alimentar o processo de reflexão crítica, no âmbito das próprias ecovilas e demais iniciativas comunitárias que vêm se configurando, na atualidade, como caminhos potencialmente transformadores para o enfrentamento da policrise contemporânea.

7Inspirado na perspectiva decolonial latino-americana (Quijano, 2000; Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007), reconhecendo a colonialidade do poder e seus desdobramentos perpetuados por valores culturais ocidentais, esse ensaio busca, ainda, contribuir para romper as tendências dos discursos dominantes sobre o desenvolvimento, para buscar outras referências, ontologias e epistemologias que transcendam a visão eurocêntrica que tende a alimentar o debate em curso. Para tal, se tem como inspiração teórica o paradigma do Bem Viver (Walsh, 2010; Gudynas, 2011, 2019; Acosta, 2016), problematizado na literatura pluriversa (Escobar, 2018; De la Cadena e Blaser, 2018; Kothari et al., 2019; Lang, 2022) como uma leitura intercultural que traduz as expressões sumak kawsay quéchua e suma qamaña aymara, oriundas da cosmovisão dos povos originários da região dos Andes e da Amazônia.

  • 4 No campo da crítica ao desenvolvimento, pode-se destacar o “Dicionário do Desenvolvimento” (Sachs, (...)

8Utilizando-se de pesquisa bibliográfica e revisão narrativa da literatura acadêmica para a contextualização teórica sobre o tema abordado, esse artigo se estrutura em três seções, além desta introdução. Na primeira, se propõe uma síntese da base conceitual que orienta a discussão sobre o movimento global de ecovilas, colocando em questão a própria noção de desenvolvimento. Na segunda, são discutidos os horizontes de transição, segundo uma perspectiva do pós-desenvolvimento,4 considerando o engajamento das ecovilas no pluriverso de alternativas comunitárias. A síntese dessa reflexão constitui a terceira e última seção do artigo.

1. O movimento global de ecovilas e a noção de desenvolvimento em xeque

9Conforme brevemente situado na introdução desse ensaio, diante dos complexos desafios da contemporaneidade, a própria sociedade civil vem desenvolvendo soluções potencialmente transformadoras, com o objetivo de buscar alcançar meios de vida sustentáveis e justos. Como parte desse processo, assentamentos humanos conhecidos como ecovilas vêm sendo descritos na literatura como “nichos de inovação de base” (Roysen e Mertens, 2019), como “centros demonstrativos em práticas sustentáveis” (Salazar, 2013), ou ainda como “paradigma alternativo de desenvolvimento” (Veteto e Lockyer, 2008). Em termos de sua origem e valores de base, o surgimento dessas comunidades intencionais no Norte global se inspirou nos movimentos de contracultura dos anos 1960/1970, entendidos como caminhos alternativos de se viver em uma sociedade em crise, agregando indivíduos que não se identificavam com os modos dominantes de ser, pensar e existir naquele momento (Dawson, 2013; Silva, 2014; Santos-Júnior, 2016; Roysen et al., 2021).

10Mas, desde a sua origem, na década de 1990, o conceito de ecovila vem sendo ressignificado (Gilman e Gilman, 1991), e, nos últimos anos, se percebe uma mudança substancial na base conceitual que orienta essa reflexão, com a inclusão das denominadas comunidades tradicionais no cerne da proposta, considerando o contexto do Sul global (GEN, 2022).

11Por essa razão, atualmente, o movimento de ecovilas envolve uma heterogeneidade de projetos desenvolvidos por distintos grupos sociais, o que, por sua vez, se traduz em diversas subjetividades e sentidos de comunidade e de natureza. Segundo Dawson (2006), nas margens do capitalismo, as ecovilas buscam resgatar valores ancestrais e práticas locais ameaçados pela modernidade. Segundo o autor (ibidem), nos núcleos do sistema capitalista, estas se destacam pelo seu engajamento na busca por mudanças no estilo de vida, no resgate de valores humanos, na reconexão com a natureza e, sobretudo, com o outro. Joubert e Albert (2007) reafirmam essa perspectiva interpretativa, enfatizando, também, a reconstrução dos laços comunitários como premissa central na estratégia de mitigação de impactos ambientais nas ecovilas no Norte global. Por sua vez, as ecovilas no Sul global, segundo os mesmos autores, buscam melhorias nas condições de reprodução de modos de existência baseados em relações solidárias e sentidos de pertencimento à natureza.

12Cabe enfatizar, nessa reflexão que, no contexto de agravamento das condições de desigualdade social e degradação ambiental, associadas ao avanço do capitalismo neoliberal, um “Norte no Sul global” se vem se configurando por meio de um contingente cada vez mais reduzido de privilegiados, e um “Sul no Norte global”, vem se constituindo, progressivamente, através de um contingente crescente de marginalizados. Nesse sentido, é importante enfatizar que os atuais níveis de desigualdade socioeconômica estão próximos àqueles registrados no início do século XX, no auge do imperialismo ocidental, em um cenário no qual os 10% mais ricos detêm 78% da riqueza global e metade da população apenas 2% desse total, conforme relatado pelo The World Inequality Report 2022 (Chancel et al., 2022). De acordo com essa fonte, não será possível vencer os desafios do século XXI, entre os quais a emergência climática, sem que ocorra uma redução significativa nesses níveis de desigualdade socioeconômica a ela vinculados.

13Em complemento a esse argumento, o Global Risk Perception Survey, publicado no âmbito do The Global Risks Report 2022 (WEF, 2022), identifica que as maiores ameaças globais, a longo prazo, estão relacionadas às falhas nas ações de combate ao aquecimento global pelo descumprimento do Acordo de Paris (UN, 2015a), enquanto, a curto prazo, os maiores riscos se referem às crescentes polarizações políticas globais, às ameaças aos meios de subsistência e à deterioração da saúde mental.

  • 5 A noção de confuência é aqui concebida como “as conexões possíveis para fortalecer trajetórias, liç (...)

14Em face aos processos de colapso socioambiental, na interseccionalidade dessa policrise (Morin e Kern, 1999) – ecológica, climática, econômica, social, cultural, ética, política, psicológica são reveladas as limitações do modelo societário hegemônico para o enfrentamento dos complexos desafios contemporâneos. Por essa razão, a busca por alternativas, com esse objetivo, parece pressupor uma mudança de perspectiva, em termos de visão de mundo, capaz de destituir dispositivos de poder intersubjetivos e propiciar confluências5 entre tradições e inovações, em uma mescla criativa que transcenda a própria noção de desenvolvimento (Sachs, 2000 [1992]; Escobar, 2007; Kothari et al., 2019).

15Parece importante mencionar também, nesse sentido, os debates em curso sobre desenvolvimento, em conexão com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (UN, 2015b), que ainda tendem a se concentrar no tripé que articula as dimensões ecológica, econômica e social associado à polissêmica noção de sustentabilidade (Irving e Oliveira, 2012; Irving, 2014). Mas, no nível comunitário e territorial, e no âmbito das ecovilas, em particular, além dessas três dimensões, a quarta dimensão “oculta” e subjetiva da cultura tende a ser especialmente fundamental (Liftin, 2014). Ao incorporarem valores humanos e visões de mundo que se traduzem em práticas e relações sociais potencialmente sustentáveis e equitativas, as estratégias de resistência e de (re)existência nas ecovilas tendem a contribuir para que se possa repensar paradigmas associados ao modelo de produção e consumo capitalista, difundidos sob a égide da noção de desenvolvimento.

16Justamente por se configurarem como assentamentos humanos que desenvolvem intensa experimentação prática, com foco em tecnologias sociais inovadoras e atividades de educação para a sustentabilidade, diversos estudos, incluindo aquele realizado pela Global Ecovillage Network (GEN, 2022), indicam que, de modo geral, na dinâmica das ecovilas, limitado impacto ambiental tende a ser gerado, em decorrência de práticas ali desenvolvidas, que integram, holisticamente, as quatro dimensões (social, ecológica, econômica e cultural) da sustentabilidade, envolvendo, ainda, o compartilhamento organizado de recursos, o que, por sua vez, tende a implicar na própria redução de consumo (Sherry, 2019; Roysen e Mertens, 2019; Roysen et al., 2021).

17Assim, de acordo com Dawson (2013), no âmbito comunitário, duas premissas básicas direcionam as práticas nas ecovilas: a retomada da autogestão sobre os bens comuns e a renovação cultural e econômica, em respeito aos ciclos vitais da Terra. Dawson (2013) enfatiza, ainda, a convergência entre comunidades intencionais e aquelas denominadas como tradicionais, no que tange à crítica radical ao paradigma de desenvolvimento, que associa crescimento econômico a bem-estar, impulsionando, incessantemente, a acumulação material. Em contraposição a essa tendência, essas comunidades “vêm criando estruturas paralelas para o autogoverno dentro da ordem social prevalecente, enquanto demonstram como viver bem com menos” (Liftin, 2014: 190). Nesse sentido, para algumas comunidades tradicionais, tornar-se uma ecovila significa, sobretudo, reivindicar a integridade espiritual e cultural, bem como resguardar o respeito à tradição comunitária e à autodeterminação, condições essas ameaçadas pelas dinâmicas de colonização e modernização (Dawson, 2006; Simas, 2013).

18Com esse direcionamento, é importante que sejam também analisados os posicionamentos políticos e ideológicos associados aos valores culturais que permeiam as ecovilas. Isso porque, ainda que sejam heterogêneas e suas práticas representem vias possíveis de transição justa e ecológica para uma sociedade de baixo carbono, cabem ressalvas críticas à potencial tendência de alinhamento dessas iniciativas à geopolítica do desenvolvimento sustentável, uma vez que essa via representaria, em tese, um risco de “adaptação funcional” ao sistema dominante (Silva, 2014). Mas tendem a ser tênues esses limites éticos e instrumentais entre autenticidade e “adaptação funcional” ao sistema vigente. O fato é que sem que se busque uma transformação estrutural e profunda da sociedade, o alinhamento, intencional ou circunstancial de iniciativas contestatórias aos marcos da ordem societária vigente tende a transformar possíveis soluções para os desafios associados à crise civilizatória em ações pouco efetivas, adaptadas às regras do jogo capitalista. E, nesse caso, sob a égide da lógica do capital, o protagonismo de muitos movimentos sociais rumo à transformação desejada da sociedade corre o risco de ser cooptado pela lógica de mercado, essa ressignificada como a única e inevitável via para as soluções dos problemas vinculados ao desenvolvimento, inclusive, os de cunho socioambiental. Nesse caso, o caráter inovador e contestatório original de alguns movimentos de resistência e contracultura, como parece ser o caso das ecovilas, tenderia a se perder, tornando-se esses não apenas inócuos à transformação social, mas também convenientes a outras “sustentabilidades”: as do capital e do statu quo (Fotopoulos, 2000; Leff, 2006; Silva, 2014).

19No atual momento histórico, no entanto, em função das frustrações com as promessas de desenvolvimento não cumpridas, não se pode perder de vista as ilimitadas possibilidades abertas a projetos ético-políticos alternativos, contra-hegemônicos e inclusivos. Assim, em contextos socioculturais distintos daqueles que originaram o movimento global de ecovilas e na América Latina, em particular, o termo ecovila vem se associando, cada vez mais, ao reconhecimento das cosmogonias ancestrais dos povos originários e aos paradigmas societários biocêntricos do Bem Viver, vinculados ao reconhecimento dos direitos da natureza (Acosta, 2016; Chaves et al., 2017; Gudynas, 2019). Essa tendência parece traduzir uma mudança paradigmática na própria leitura sobre desenvolvimento, com potenciais consequências na configuração das dinâmicas e práticas sociais locais.

20Nesse sentido, a aproximação do movimento institucionalizado de ecovilas às distintas alternativas comunitárias “vindas de baixo” podem contribuir para colocar em questão as causas estruturais que conectam degradação ambiental e desigualdade social, associadas ao paradigma vigente de desenvolvimento. Dessa maneira, novos arranjos organizacionais e produtivos emancipatórios tenderiam a fortalecer o caráter contracultural e de resistência desse movimento, com base no reconhecimento da importância das relações horizontais entre diferentes grupos sociais, sobretudo em nível local, o que pode possibilitar a construção de novas territorialidades social e ambientalmente transformadoras. Isso porque a afirmação da diversidade biocultural tende a possibilitar condições favoráveis às autonomias territoriais e, também, no plano global, para viabilizar a articulação entre as economias locais e regionais (Silva, 2014; López e Prada, 2015; Chaves et al., 2017; Muñoz-Villarreal, 2018).

2. Horizontes de transição: ecologia de saberes, confluência de alternativas e pós-desenvolvimento

21Conforme anteriormente discutido, diferentes grupos sociais vêm buscando enfrentar a condição de colapso socioambiental, na linha de frente de seus territórios, e vêm tentando, ao mesmo tempo, promover vias propositivas de ação e práticas políticas inovadoras territorialmente ancoradas, seja por meio de práticas agroecológicas e agroflorestais restaurativas para promoção da soberania alimentar e da democracia econômica associadas à conservação da biodiversidade, seja pelo desenvolvimento de projetos de geração de energia descentralizados, entre outras ações articuladas aos compromissos éticos de busca pelo desenvolvimento local e inclusivo. Por estarem também germinando potentes alternativas transformadoras em vários campos da vida em sociedade, as ecovilas podem ser entendidas como “laboratórios vivos” de inovações e tecnologias sociais para a sustentabilidade e a adaptação climática, desenvolvidas e testadas na microescala das próprias comunidades, abrindo um leque de possibilidades adaptáveis a diversos contextos territoriais, que podem ser traduzidas como horizontes de transição e incorporados no debate em curso sobre futuros sustentáveis e resilientes (Seyfang e Smith, 2007; Norberg-Hodge, 2019; Roysen e Schwab, 2021).

22Por todas as razões discutidas, ao desenvolverem soluções viáveis para muitos dos desafios contemporâneos, as inovações comunitárias, de modo geral, e aquelas do movimento das ecovilas, em particular, deveriam merecer maior atenção de políticas públicas, principalmente quando a humanidade caminha para o enfrentamento de um aumento global médio de temperatura de 2,7 ºC (IPCC, 2021).

  • 6 E, recentemente reafirmados no âmbito da COP 27 da Convenção do Clima.

23Como “um alerta vermelho para a humanidade”, o Sexto Relatório do Painel Intergovernamental de Mudança do Clima enfatiza a necessidade de um redesenho civilizatório radical nessa década, de modo a evitar as mudanças imprevisíveis e incontornáveis, no caso de um aumento médio de temperatura superior a 1,5 ºC. Contudo, ainda que os objetivos de neutralidade de emissões de carbono pactuados no âmbito do Acordo de Paris (UN, 2015a)6 sejam alcançados, segundo o mesmo relatório, o mais provável é que esse aumento ultrapasse os 2,2 ºC até o final desse século, o que reforça ainda mais a necessidade de políticas direcionadas às mudanças sistêmicas radicais.

24Diante desse panorama de incertezas, os modos de vida comunitários associados às ecovilas representam, em tese, possibilidades concretas para inspirar ações de mitigação e adaptação climáticas, como também para o alcance de grande parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 (UN, 2015b). Nesse contexto, por mais que o papel da sociedade civil seja crucial para a resiliência e a autonomia territorial, alianças mais amplas envolvendo governos e outros agentes de mudança da sociedade, tendem a ser essenciais para um caminho comum direcionado à justiça climática, à erradicação da pobreza, à conservação da sociobiodiversidade, e à salvaguarda das culturas e das necessidades humanas e planetárias.

25Desse modo, parece oportuno que se reflita, também, sobre as conexões capazes de fortalecer e ampliar os laços de colaboração entre os atores que regeneram as condições de vida no planeta, a partir da micropolítica comunitária, e aqueles capazes de contribuir para inspirar e viabilizar trajetórias inovadoras rumo às mudanças sistêmicas necessárias à sociedade como um todo. Contudo, aproximar teoria e prática implica em reduzir distâncias entre as noções abstratas e ambíguas associadas à reflexão sobre sustentabilidade e as transformações concretas que estão sendo empreendidas nos territórios. Para tanto, a predisposição real ao diálogo intercultural, em uma ecologia de saberes e práticas (Santos, 2007), tende a representar um desafio crucial e imperativo nesse processo.

26Desde a perspectiva da alteridade, o saber-fazer intercultural pode contribuir para catalisar o potencial comunitário para a regeneração dos ambientes naturais e sociais, o que implica em tensões, conflitos e pactos e em relações éticas de respeito às diferenças. Por outro lado, a falta de abertura para o conhecimento do outro pode inviabilizar a articulação entre os próprios movimentos sociais, como o das ecovilas, com outras iniciativas comunitárias contra-hegemônicas, envolvendo sindicatos rurais, movimentos de camponeses sem terra, indígenas e aquelas dirigidas às reformas urbana e agrária, por exemplo. A colaboração em rede, em ações concretas nesse sentido, poderia se concretizar como um caminho de grande valia para a transformação desejada, especialmente se acompanhada de uma perspectiva ética-política implicada com o compromisso de construção de uma nova ordem socioambiental (Porto-Gonçalves, 2002; Haesbaert, 2007; Silva, 2014). De acordo com Leff (2006: 232), “tais processos de transformação implicarão o encontro de diversas racionalidades, algo muito mais complexo e complicado, porém mais viável como estratégia de sustentabilidade que os ditames do mercado”.

27Assim, no contexto contemporâneo de convergência de múltiplas crises, a busca por vias capazes de assegurar o bem-estar humano, que sejam resilientes, equitativas e sustentáveis implica no enfrentando essencial de uma série de contradições expostas pela sociedade civil ao empreender movimentos comunitários, como o das ecovilas, e se engajar em lutas por autonomia e autodeterminação. Enraizadas em princípios éticos de solidariedade e nutridas pelo rico patrimônio biocultural global, as experiências comunitárias tendem a fornecer pistas potentes para o delineamento de vias capazes de assegurar o atendimento às necessidades prementes de dignidade humana e sustentabilidade ecológica, frente à insustentabilidade do capitalismo, do neocolonialismo e do heteropatriarcado (Kothari et al., 2019).

28Para ilustrar pedagogicamente esse debate, e para se pensar possíveis horizontes de transição justa e sustentável, no contexto da emergência climática, o Quadro I busca articular as dimensões de sustentabilidade, os sentidos e as práticas sociais adotados nas ecovilas e os princípios orientadores de alternativas sistêmicas, com base em uma perspectiva de análise do pós-desenvolvimento.

29Analisando o quadro apresentado de seguida, é possível observar nos sentidos e nas práticas adotadas pelas ecovilas (Roysen et al., 2021) as conexões com o debate sobre as dimensões de sustentabilidade e os princípios orientadores das alternativas sistêmicas (Solón, 2019; Kothari, 2021). Como parte do pluriverso de alternativas comunitárias, as inovações territoriais que se expressam no contexto das ecovilas parecem contribuir, assim, para compor a tecitura de uma verdadeira “tapeçaria global de alternativas” aos modos de vida em crise (Kothari et al., 2019). Desde uma perspectiva de análise do pós-desenvolvimento, as alternativas desenvolvidas e testadas na microescala comunitária, em diversos contextos territoriais, se configuram, assim, como um amplo leque de caminhos potenciais para a transformação desejada, podendo contribuir para expandir o horizonte de possibilidades dirigidas à ação política.

Quadro I – Matriz síntese sobre dimensões de sustentabilidade, sentidos e práticas sociais adotadas nas ecovilas e princípios orientadores das alternativas sistêmicas, na perspectiva do pós-desenvolvimento

Dimensões de sustentabilidade

Sentidos e práticas sociais adotados nas ecovilas

Princípios orientadores das alternativas sistêmicas

Econômica

Se relaciona às práticas colaborativas de trabalho e cuidado com os bens comuns, baseadas em atividades produtivas diversificadas. O uso multifuncional do território integra produção agrícola, turismo de base comunitária, projetos educativos, culturais e de saúde, voluntariado, entre outras atividades produtivas alternativas. Além disso, envolve mutirões, sistemas de trocas, criação de moedas sociais, propriedade coletiva da terra e de edificações, compartilhamento de ferramentas de trabalho e de automóveis, assim como a geração de renda por meio de práticas regenerativas (agricultura orgânica e agroecológica, beneficiamento de produtos naturais, cursos de formação para a difusão de práticas sustentáveis, educação comunitária e terapias alternativas, entre outras atividades produtivas).

Democracia econômica com autonomia para produtores; bem como autonomia e resiliência territorial e localizada; além do cuidado e do compartilhamento dos bens comuns.

Social

Corresponde à construção de laços comunitários e à busca por relações pautadas pela confiança e ajuda mútua, manifestando-se em práticas horizontais e descentralizadas de autogestão e desenvolvimento organizacional, em processos participativos de tomada de decisão, práticas de partilha emocional, compartilhamento de ferramentas de trabalho, refeições, meios de transporte, entre outras partilhas coletivas.

Justiça social com equidade étnico-racial, de gênero, classe e de direitos.

Ecológica

Traduz o esforço comunitário pela redução dos impactos ambientais negativos relacionados à ocupação do solo, a busca pelo cuidado e respeito no uso dos bens comuns. Essa dimensão se manifesta no desenvolvimento de diversas práticas regenerativas, tais como: bioconstrução, permacultura, agroecologia, agroflorestas, tratamento ecológico de efluentes, captação de água da chuva, compostagem dos resíduos orgânicos, reciclagem de materiais, restauração de ecossistemas associada à produção de alimentos e de plantas medicinais, conhecimento e utilização de plantas alimentícias não convencionais (PANC) da biodiversidade local, geração de energia limpa/renovável de forma descentralizada, entre outras práticas.

Resiliência e sabedoria ecológica, baseadas nos direitos da natureza e no compromisso de conservação da sociobiodiversidade.

Cultural

Embora essa dimensão reflita práticas distintas entre grupos e contextos socioculturais, de modo geral, se vincula à percepção de que a busca pelo autoconhecimento, pela mudança de valores, pela sensibilização e pela ampliação dos níveis de consciência é indissociável do caminho para a sustentabilidade. Essa dimensão se expressa também nas artes, em rituais, práticas meditativas e espirituais, envolvendo questões profundas associadas ao sentido de pertencimento à natureza e do sagrado, próprias ao ser humano. Ainda que se organizem de maneiras diferentes e desenvolvam soluções distintas para os seus problemas, essas comunidades estão unidas por um sistema de valores que busca superar rupturas convencionais da sociedade vigente, baseadas em critérios de raça, religião e cultura.

Diversidade cultural e epistêmica, considerando diferentes visões de mundo e reconhecendo distintos modos de viver, aprender e conhecer; como os saberes populares, ancestrais e modernos; incluindo criatividade e inovação.

Ético-política

A dimensão ético-política se expressa transversalmente nas práticas das ecovilas, com ênfase especial à dimensão social, uma vez que estas se utilizam de processos participativos para integrar, holisticamente, as distintas dimensões da sustentabilidade e para buscar regenerar os ambientes social e natural. Em alguns contextos territoriais, as ecovilas têm favorecido a ampliação de diálogo comunitário e o sentido de colaboração com outras instâncias de participação social no plano governamental, tais como conselhos municipais de meio ambiente e conselhos gestores de unidades de conservação, entre outras instâncias, contribuindo para a formulação de políticas públicas.

Democracia radical, baseada na governança territorial comunitária e na participação direta dos cidadãos no processo de tomada de decisão; instituições representativas comprometidas com o bem-estar dos diversos grupos sociais; redes globais horizontais de colaboração.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022), com base em Solón (2019), Roysen et al. (2021) e Kothari (2021).

30Nessa reflexão, importa mencionar que, de maneira recorrente, muitas das alternativas comunitárias são pejorativamente consideradas como obsoletas, “exóticas”, “primitivas”, ou mesmo inviáveis pela lógica moderna. Essas iniciativas não implicam, no entanto, em uma aceitação incondicional das tradições, nem, tampouco, advogam um retorno ao passado, mas traduzem, em suas diversas nuances, a ressignificação de práticas ancestrais, mescladas a inovações, alimentadas por valores que inspiram vias de convivialidade (Illich, 1973). Orientadas à práxis, por princípios de interdependência, integridade ecológica, equidade e respeito à ancestralidade e enraizadas em múltiplas ontologias e cosmologias ancestrais, como o sumak kawsay quéchua, o suma qamaña aymara e o teko porã guarani, essas alternativas vêm sustentando, globalmente, territórios e modos de vida gravemente ameaçados pela lógica capitalista neoliberal.

31Assim, nesse debate é de fundamental importância, o reconhecimento da contribuição de sujeitos coletivos em luta cotidiana pela afirmação da vida, para a reconfiguração geopolítica do conhecimento. Ao desafiarem, por meio de suas práticas, as teorias abstratas da episteme eurocêntrica dominante, apartadas da realidade dos territórios mobilizados por questões de justiça social e ambiental, abrem também caminhos para se redescobrir e praticar a relação entre cultura e natureza, materializados como “utopias concretas” (Dinerstein, 2017). Essas experiências, que são majoritariamente protagonizadas por comunidades rurais e periurbanas, povos indígenas, movimentos de negros e mulheres, em suas estratégias de mobilização e ação colocam em xeque as práticas sociais coloniais, modernas, racistas, patriarcais e antropocêntricas, oriundas de opressivas estruturas de poder (Quijano, 2000).

  • 7 Por conseguinte, soluções baseadas na natureza para o enfrentamento às mudanças climáticas e à eros (...)

32Por essa razão, torna-se crucial que se analise, criticamente, as estruturas subjacentes à crise civilizatória, vinculadas aos imperativos de desenvolvimento, pautadas por uma visão de mundo reducionista, fragmentada e distorcida que sustenta os padrões da racionalidade moderna. Desse modo, transcender a perspectiva convencional sobre a polissêmica noção de sustentabilidade implica em reconhecer outras racionalidades ambientais (Leff, 2006), enraizadas em cosmovisões que reafirmam a indissociabilidade intrínseca entre natureza e cultura.7

33Por essa perspectiva, se reconhece nos processos de colapso socioambiental a convergência de múltiplas crises do presente, designada como Antropoceno (Crutzen e Stoermer, 2000), com desdobramentos advindos da cisão onto-epistemológica entre natureza e cultura. Entretanto, o sentido do termo, por meio do qual se define o anthropos (ser humano) como agente de transformação geológica, deve ser interpretado com cautela. Isso porque atribuir uma ligação causal entre as ações coletivas da espécie humana e as mudanças geológicas, tende a obscurecer o componente cultural e a responsabilidade de determinados grupos humanos na condução dos processos sócio-históricos e políticos que estão na origem da presente situação de policrise global.

34Paradoxalmente, as complexas e intrincadas dinâmicas do Antropoceno revelam, justamente, as ligações intrínsecas entre cultura e natureza reconhecidas desde tempos imemoriais por muitas cosmovisões ancestrais. Assim, para que se evite uma leitura de mundo universalizante e epistemicida, “em ruínas” (Tsing, 2019), outros modos possíveis de existência precisam ser reconhecidos, seguindo as pistas das estratégias de resistência e de (re)existência, nas fraturas nem sempre visíveis do capitalismo (Krenak, 2020).

35Assim, para que se alcance a justiça ecológica e climática, é fundamental que se busque e se construa, como pressuposto, a justiça epistêmica. Isso porque as narrativas instrumentais cartesianas e mecanicistas, baseadas na visão de um mundo inanimado e desencantado, desde a origem da Ciência Moderna, dissociam natureza e cultura, sujeito e objeto e vêm contribuindo, historicamente, para alimentar o grave contexto do Antropoceno, enquanto as narrativas comunitárias, promovidas por grupos sociais que atuam à margem do capitalismo, com todas as suas contradições, tendem a se contrapor a essa leitura, contribuindo para construir realidades que “suspendem o céu” (Kopenawa e Albert, 2015) e “adiam o fim do mundo” (Krenak, 2019). Por essa razão, lançar luz sobre a pluralidade de experiências imbricadas na complexa rede de interações vivas tende a representar uma via possível para a construção de futuros desejáveis.

  • 8 Segundo Santos (ibidem), “há um saber orgânico e um saber sintético. Enquanto o saber orgânico dese (...)

36Partindo do reconhecimento de que para o enfrentamento dos problemas modernos, as soluções tecnológicas e/ou instrumentais convencionais são insuficientes, propostas teóricas críticas ao modelo de desenvolvimento hegemônico, oriundas do Norte global, como a Ecologia Profunda, a Teoria do Decrescimento e o Ecofeminismo, tendem a convergir com os valores e princípios das denominadas Epistemologias do Sul (Santos, 2007). Nesse caso, os próprios frutos amadurecidos e colhidos no processo de industrialização e desenvolvimento tecnológico (como as tecnologias da informação e comunicação, entre outras) podem estar, também, a serviço da construção de horizontes plurais, e confluir para a construção de relações de complementariedade, em uma síntese entre “saberes orgânicos e sintéticos” (Santos, 2015: 101).8

37Para se pensar “tentacularmente” conexões e “bons conviveres” possíveis, diante do cenário das grandes catástrofes que se prenunciam, Haraway (2015) aposta, justamente, nas composições mistas e aglutinadoras, no “Chthuluceno” como horizonte socioambiental desejável, no qual saberes e fazeres ancestrais e contemporâneos se entrelaçam. Assim, inspiradas em relações de interdependência, na comunhão simbiótica interespecífica, na “convivência de parentesco”, novas narrativas na direção de futuros desejáveis traduziriam histórias suficientemente amplas, capazes de abranger as complexidades envolvidas e manter as fronteiras abertas para surpreendentes e novas conexões.

38Nesse complexo movimento, com base em uma proposta de constituição híbrida, como via de pós-desenvolvimento e resistência aos mecanismos de acumulação por espoliação dos territórios, construído na confluência entre cosmovisões indígenas e o pensamento crítico na América Latina, o paradigma do Bem Viver vem se consolidando como uma plataforma potente para a construção sócio-histórica de uma nova práxis política e socioambiental (Walsh, 2010; Gudynas, 2011; Acosta, 2016). Nesse caso, a confluência entre as múltiplas experiências de ecovilas do Norte e do Sul global pode representar uma base potente de aprendizagem coletiva e empoderamento translocal. Em confluência, os sentidos de “bons conviveres” tenderiam a se expandir, recriando mundos vivos, em ressonância com as dimensões trinas de identidade cultural, equidade social e sustentabilidade ecológica e, em conexão com a ética comunitária do Bem Viver, em um processo de ressignificação das relações do ser consigo mesmo, com outros humanos e com os demais seres da natureza.

Considerações finais

39Como discutido nesse ensaio, o contexto de múltiplas crises da contemporaneidade decorre de processos sócio-históricos, associados ao modelo vigente de desenvolvimento. Por essa razão, o debate ético-político sobre pós-desenvolvimento coloca em questão a própria noção de desenvolvimento, à medida em que propõe novos caminhos societários, inspirados em experiências territorializadas e em ontologias que buscam promover modos de existir, por pressuposto, sustentáveis, resilientes e equitativos.

40Embora o pluriverso de experiências comunitárias seja extremamente diversificado em suas origens e práticas socioambientais, a premissa que as orienta se baseia no resgate e/ou na salvaguarda comunitária da governança dos “bens comuns”. Nessa perspectiva, sentidos de complementaridade e interdependência são entendidos como inerentes às relações entre humanos e não-humanos, na articulação entre as dimensões econômicas, sociais, ecológicas, culturais e ético-políticas, transcendendo a racionalidade utilitária do sistema-mundo capitalista, moderno, colonial, patriarcal, antropocêntrico.

41Com esse direcionamento, a produção e a sistematização de conhecimentos vivenciais, empiricamente acumulados pelas comunidades conectadas aos ciclos da Terra, representam vias possíveis para ampliar os horizontes e as possibilidades de (re)existência, diante dos inúmeros e complexos desafios contemporâneos. Ao experimentarem, na prática, “caminhos sensíveis” na relação consigo mesmo, com o outro e com os demais seres da natureza, movimentos como o das ecovilas tendem a funcionar como “laboratórios vivos” para a emergência de modos viáveis para se habitar respeitosamente o planeta, produzindo inovações capazes de assegurar, simultaneamente, qualidade de vida e baixo impacto ambiental. Mas é fundamental enfatizar, nesse sentido, que as ecovilas constituem, em seu conjunto, um processo e não, propriamente, um modelo pré-formatado de sociedade, uma vez que elas se ancoram na pulsante dinâmica dos territórios e refletem peculiaridades sócio-históricas e culturais, envolvendo conflitos e contradições.

42Nesse processo de aprendizagem coletiva, a articulação em rede, as alianças e as oportunidades de encontros para o compartilhamento de conhecimentos, tendem a fortalecer, ampliar o alcance e dar a visibilidade a essas experiências. Nesse movimento, o aprendizado primordial se fundamenta nos próprios princípios ético-políticos que orientam as iniciativas construídas “desde baixo”, segundo outras bases epistemológicas e ontológicas. Desse modo, a confluência entre saberes e fazeres em amplas alianças entre diferentes grupos sociais, tenderia, também, a contribuir para a desconstrução de premissas arraigadas na contemporaneidade e para o estabelecimento de relações dialógicas entre conhecimentos tradicionais e modernos, na (re)construção de paradigmas societários.

43Desse modo, iniciativas comunitárias territorializadas, às margens do capitalismo e enraizadas no reconhecimento do rico patrimônio biocultural global, salvaguardam sementes para um novo sistema-mundo (Dussel, 2004), a serem nutridas para gerar os frutos de regeneração da Terra. À medida em que inspiram a criatividade coletiva, as narrativas comunitárias do “contra-Antropoceno” e tentaculares do “Chthuluceno” reafirmam a potência de outros modos possíveis de expressão sensível da relação entre natureza e cultura, que certamente podem contribuir para desfechos distintos dos que se prenunciam.

44Assim, para além das projeções catastróficas em curso, condicionadas à ideia de um progresso ilimitado e unidirecional, as subjetividades emergentes dessas experiências ampliam o campo de possibilidades para futuros desejáveis, como vozes de esperança em tempos de crises, propiciando, também, outros horizontes imaginativos para políticas públicas, em conexão, inclusive, com compromissos globais pactuados no âmbito do Acordo de Paris e da Agenda 2030 (UN, 2015a; UN, 2015b).

45Diante das inúmeras incertezas e colapsos que atravessam a realidade – materializados pela emergência climática, pelas incessantes inseguranças geopolíticas e, mais recentemente, pelo trágico contexto da pandemia da COVID-19, “paraquedas coloridos” (Krenak, 2019) precisam ser acionados para se abrir à potente capacidade inventiva das múltiplas inteligências entrelaçadas à Terra, em incessante devir.

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Notas

* Este estudo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, por meio de bolsas de doutorado, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e do “Projeto Sustentabilidade e Transformação Social: Rumo à Agenda 2030”, vinculado ao Programa de Internacionalização (CAPES/PrInt/UFRJ).

1 Pluralismo de conceitos, cosmovisões e práticas sintonizados com os princípios de justiça social e ecológica, engajados na construção de “um mundo onde caibam outros mundos”, segundo princípios zapatistas, em contraste com o universalismo propagado pela modernidade ocidental (Escobar, 2018; Kothari et al., 2019).

2 Grupos sociais minoritários são assim denominados não por sua expressão em termos estatísticos, mas devido à discriminação que sofrem no processo vigente de desenvolvimento, como indígenas e mulheres, por exemplo, o que se reflete em sua limitada representatividade nos espaços de poder.

3 Diferentes definições vêm sendo dirigidas às denominadas “comunidades tradicionais” na América Latina. Na legislação brasileira, por exemplo, elas são concebidas como grupos culturalmente diversos que se reconhecem como tal, com formas próprias de organização social, que ocupam e utilizam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, sendo os conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Brasil, 2007).

4 No campo da crítica ao desenvolvimento, pode-se destacar o “Dicionário do Desenvolvimento” (Sachs, 2000 [1992]), retomado por Escobar (2007), um dos autores conectado com a reflexão sobre o tema, ao criticar às bases coloniais-modernas que fundamentam essa concepção, advogando em favor de uma transformação paradigmática no campo epistêmico da economia capitalista neoliberal. O autor discute que a narrativa usual sobre desenvolvimento, não raro, oculta desafios quepropôs resolver, como a fome e a pobreza. Nesse sentido, seria necessário pensar em alternativas sistêmicas e interdisciplinares em um horizonte de pós-desenvolvimento.

5 A noção de confuência é aqui concebida como “as conexões possíveis para fortalecer trajetórias, lição aprendida com as águas ao expandirem seus cursos em fluxo e poder quando se encontram”, definição de Antônio Bispo dos Santos, intelectual quilombola (Santos, 2015). O sociólogo ambiental indiano Ashish Kothari também adota o termo com sentido semelhante, no contexto das redes “Vikalp Sangam”, “Global Tapestry of Alternatives” e “Radical Ecological Democracy” (Kothari et al., 2019).

6 E, recentemente reafirmados no âmbito da COP 27 da Convenção do Clima.

7 Por conseguinte, soluções baseadas na natureza para o enfrentamento às mudanças climáticas e à erosão da biodiversidade, por exemplo, requerem, sobretudo, narrativas que transcendam o pensamento disjuntivo e reducionista que separa cultura e natureza, mente e corpo, razão e emoção, em uma cadeia de hierarquizações que privilegia apenas um dos inúmeros aspectos binários que compõem o todo.

8 Segundo Santos (ibidem), “há um saber orgânico e um saber sintético. Enquanto o saber orgânico desenvolve o ser, o saber sintético desenvolve o ter. Somos operadores do saber orgânico e os colonialistas são operadores do sintético”.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Renata Amorim Almeida Fonseca, Marta de Azevedo Irving, Yasmin Xavier Guimarães Nasri e Graciella Faico Ferreira, «Por outros modos de bem viver: o pluriverso de alternativas e as ecovilas nas confluências comunitárias»e-cadernos CES [Online], 38 | 2022, posto online no dia 31 março 2023, consultado o 01 junho 2023. URL: http://journals.openedition.org/eces/7715; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.7715

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Autores

Renata Amorim Almeida Fonseca

Programa EICOS de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Avenida Pasteur, n.º 250, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, CEP 22290-250 Brasil
Contacto: biol.renata@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5056-2114

Marta de Azevedo Irving

Programa EICOS de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro | Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Colégio Brasileiro de Altos Estudos
Avenida Pasteur, n.º 250, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, CEP 22290-250 Brasil
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ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2677-818X

Yasmin Xavier Guimarães Nasri

Programa EICOS de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Avenida Pasteur, n.º 250, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, CEP 22290-250 Brasil
Contacto: yasminasriufrj@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9679-9157

Graciella Faico Ferreira

Programa EICOS de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Avenida Pasteur, n.º 250, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, CEP 22290-250 Brasil
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