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Cinecartografando as imagens de filmes do circuito de mostras ambientais brasileiras: mergulhos entre paisagens, ecologias, artes e Antropoceno

Cinecartographing Film Images of the Brazilian Environmental Film Festival Circuit: Dives between Landscapes, Ecologies, Arts and Anthropocene
Keyme Gomes Lourenço e Thaís Barros Pimenta

Resumos

Este artigo, de natureza teórica, narrativa e experimentativa, tem como objetivo cinecartografar os curtas-metragens Fogo contra fogo (2021) e Paisagens brasis em brasa (2021), ambos exibidos respectivamente, nos festivais brasileiros de temática ambiental e climática, “13ª Strangloscope – Mostra Internacional de Áudio, Vídeo / Filme e Performance Experimental” e “III Mostra Latino-Americana de Arte e Educação Ambiental” no ano de 2021. Dividimos a escrita em quatro partes. Na primeira e na segunda tecemos aproximações entre os conceitos importantes trazidos pelas leituras como Antropoceno, Paisagem em Ruínas, Arte e Imagem-tempo. Na terceira fazemos considerações acerca da metodologia cinecartográfica. E por fim, na quarta parte, tecemos narrativas e algumas considerações construídas com as imagens capturadas dos filmes e as disseminações causadas por elas, após o encontro com a pesquisa.

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Notas da redação

Revisto por Sofia Silva

Artigo recebido a 09.05.2022
Aprovado para publicação a 25.11.2022

Texto integral

Introdução

  • 1 Cf. Moure, Rebecca; Lambert, Leandra (2021), “Fogo contra fogo”, Youtube, 22 de setembro. Consultad (...)
  • 2 Cf. Lourenço, Keyme (2021), “Paisagens brasis em brasa”, Youtube, 30 de setembro. Consultado a 26.0 (...)
  • 3 A “13ª edição da Strangloscope – Mostra Internacional de Áudio, Vídeo / Filme e Performance Exper (...)
  • 4 As exibições ocorreram de 25 a 30 de outubro de 2021. A programação completa do evento pode ser ace (...)

1Este artigo, de natureza teórica, narrativa e experimentativa, tem como objetivo cinecartografar os curtas-metragens Fogo contra fogo (2021)1 e Paisagens brasis em brasa (2021),2 ambos exibidos respectivamente nos festivais brasileiros de temática ambiental e climática, “13ª Strangloscope – Mostra Internacional de Áudio, Vídeo / Filme e Performance Experimental”3 e “III Mostra Latino-Americana de Arte e Educação Ambiental”4 no ano de 2021.

2Para construção do trabalho, percorremos, portanto, alguns campos de estudos, como por exemplo a Filosofia da Diferença, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, com a proposição de uma pesquisa que saia em busca de cartografar os afetos e as potências que emergem dos encontros, no nosso caso com o cinema e suas imagens, e também, leituras sobre o Antropoceno e paisagens de Anna Tsing (2019), Donna Haraway (2016) e outros comentadores.

3Entramos em contato com as imagens dos filmes, a fim de investigar suas composições e movimentos, com o objetivo de compreender como o cinema ambiental posto em cartaz por festivais e mostras de cinema nacionais, contribui para criação de paisagens artísticas e virtuais, humanas e não-humanas do Antropoceno, por meio de suas narrativas, apontando para formas de transcender o Antropoceno, convocando e expondo outras forças que ultrapassam os limites do humano.

4Dividimos a escrita em quatro partes. Na primeira e na segunda tecemos aproximações entre os conceitos importantes trazidos pelas leituras como Antropoceno, Paisagem em Ruínas, Arte e Imagem-tempo. Na terceira fazemos considerações acerca da metodologia cinecartográfica. E por fim, na quarta parte, tecemos narrativas e algumas considerações construídas com as imagens capturadas dos filmes e as disseminações causados por elas, após o encontro com a pesquisa.

1. Percorrendo o território que as teorias constroem, aproximações entre cinema e paisagens

[...] Paisagens são tanto imaginárias quanto materiais; [...] são reuniões de modos de ser em formação [...]. (Tsing, 2019)

[...] O bom é a vida emergente, ascendente, a que sabe se transformar, se metamorfosear de acordo com as forças que encontra, e que compõe com elas uma potência sempre maior, aumentando sempre a potência de viver, abrindo sempre novas “possibilidades”. Não há verdade, só há devir, o devir é a potência do falso da vida, a vontade de potência [...]. (Deleuze, 2007)

5Inauguramos esta pesquisa pensando com a antropóloga Anna Tsing (2019) e o filósofo Gilles Deleuze (2007) os encontros que são possíveis para a vida, as forças que a afetam e ocupam o mundo e a imaginação, forças que tanto no cinema, quanto nas paisagens, criam narrativas capazes de inaugurar mundos, existências, comunidades, caminhos, mitos e, desse modo, contribuem “para a invenção de um povo” (Deleuze, 2007: 259).

6Os seres que habitam a Terra estão conectados, em rizoma com o mundo, em cooperação tecem camadas, constroem narrativas humanas e não-humanas que nos contam sobre perturbações, coordenações e simbioses, e juntos, como defende Tsing (2019), fazem paisagens que nos oferecem o inesperado, reunindo em suas composições aquilo que é próprio do nosso tempo, do tempo que a paisagem resiste. Tornando as paisagens em registros, marcas, testemunhos.

7Podemos observar que a criação de redes que advém do fato de estarmos em relações constitutivas, que surgem das fricções e dos encontros com nosso ambiente, é uma ontologia fundamental que existe desde o sempre. As ciências naturais doaram-nos muitas pesquisas para que tivéssemos, como temos agora, elementos e dados científicos que põem para falar algo que sempre foi e sempre será: a “descoberta coletiva” de que nossas antroações implicam, compõem e afetam aquilo o que está ao nosso redor do ponto de vista da natureza, é mais uma maneira de falarmos que nosso tempo está acabando.

8A maior parte das nossas relações, humanas ou não, são produzidas politicamente. Não há nada natural, próprio da força da Terra que faz com que isso aconteça. E por isso, entendemos que é importante desenvolver, por meio da pesquisa social, conexões entre estudos que nos ajudem a capturar a passagem desses processos e aquilo que carregam consigo a fim de ir além do Antropoceno e irromper suas paredes em busca de alternativas de como resistir a ele. A paisagem nos ajuda a realizar tais capturas e por isso nossa aposta em pensar com ela tais resistências.

9Para Tsing (2019), as paisagens são fragmentos, são feitas a partir deles, uma montagem de mosaico, e por isso, são essencialmente assimétricas e irregulares. Essa heterogeneidade pertencente às paisagens é foco desta pesquisa por acreditarmos que podemos aprender com as camadas que vão constituindo as paisagens de narrativas, maneiras de contarmos e de trazermos histórias, que fazem mundos.

  • 5 Optamos por deixar o termo em inglês, uma vez que Tsing (2019: 17) comenta que a tradução para o po (...)

10As paisagens para Tsing se dão em assemblage:5 composições que são formadas pelas diferentes manifestações da vida no mundo. A autora utiliza o termo assemblage para se referir aos “organismos que podem ser encontrados juntos e agrupados em um lugar” (Tsing, 2019: 17). Em outras palavras, tais assemblages formam paisagens que são multiespécies, e por isso reúne histórias nas paisagens que envolvem todos os tipos de seres, humanos e não humanos. Pensar a assemblage como esse agrupamento que acontece de camadas, que vão sendo depositadas na entrada e saída de seres num mesmo conjunto, nos trouxe o seguinte questionamento já relacionando tal conceito com um pensar cinematográfico: como podemos combinar paisagens às histórias, de modo que as diferenças e as multiplicidades, que são essenciais para sua constituição e sua fragmentação permaneçam à vista? De que modo a arte cinematográfica guarda consigo tais capturas nas suas imagens? Que Antropoceno é virtualizado pelo cinema?

11A modernização da vida humana coexiste e cocria, principalmente nos últimos 50 anos, com massivas mudanças climáticas junto à produção de sedimentos depositados sobre a terra, marcas próprias da atividade humana, como plástico e concreto. O Antropoceno é a sugestão de tal época geológica que abarca os frutos dessas atividades humanas.

12O debate sobre a existência ou não do Antropoceno é algo que vem gerando conflitos entre os pesquisados, e consequentemente, inúmeras maneiras de entender tal período e delimitar assim, seu começo, seus espaços, seu fim.

13Para isso, arqueólogos defendem a necessidade de mapeamento dos efeitos das atividades humanas sobre a Terra-terra, desde o início da domesticação humana das plantas e dos animais, como Smith e Zeder (2013) em “The Onset of the Anthropocene”.

14Quando olhamos para a temática, enredados pelo pensamento da pesquisa social, o que vemos é uma tradição de tais pesquisadores utilizarem o termo Antropoceno como marca do momento que o que há é apenas a força esmagadora dos projetos humanos modernos (Lewis e Maslin, 2015; Zalasiewicz et al., 2015).

15Tsing (2019) traz para o debate os componentes de tais projetos citados, e conclui que temos como combustível que movimenta tais ações uma combinação de comportamentos, “de ecologias de plantations, tecnologias industriais, projetos de governança estatais e imperiais e modos capitalistas de acumulação” (ibidem: 228; grifo dos autores). Os humanos passaram a movimentar a terra e as geleiras, as taxas de extinção aumentaram, permitiu-se que projetos de larga escala de extração alcançassem toda vida humana e não-humana. E, por isso, o Antropoceno é também essa época em que a habitabilidade das espécies passou a ser ameaçada.

16Para Tsing, o Antropoceno advém da mudança que é filha da força e do punho humano, para a autora (2019: 14), “o termo Antropoceno marca uma diferença: à medida que as infraestruturas industriais e imperiais se espalharam, os efeitos perigosos não projetados dispararam”. Desse modo, conforme o Antropoceno avança, carrega consigo o aumento da desigualdade, e para tal pensamento, as paisagens como assemblages são excepcionalmente úteis para tais análises.

17É nas paisagens, segundo o pensamento de Tsing (2019), que podemos ver emergir configurações nocivas desenhadas pela reunião de trajetórias humanas e não humanas. E assim como articula a autora (2019), nesta pesquisa objetivamos pensar as paisagens compostas pelas imagens do cinema como uma ferramenta, capaz de fertilizar as discussões abertas ao debate sobre o Antropoceno. Buscando assim, uma maneira de nos fazer voltar acreditar neste mundo.

18A pesquisadora Donna Haraway, comenta que o Antropoceno é uma época marcada por descontinuidades e incertezas, e nos provoca a pensar na necessidade de articularmos a capacidade que temos de construir refúgios, pois, “neste momento, a terra está cheia de refugiados, humanos e não humanos, e todos sem refúgios” (Haraway, 2016). Ainda segundo Haraway, as relações civilizatórias que temos no mundo, são frutos dos trajetos que se fizeram possíveis para reconstruir refúgios, intimamente relacionadas ao encontro e às relações. É “fazer parte de um bem-estar maior [...] agindo como meios e não apenas como fins” (ibidem).

19Essas leituras nos ajudam a tecer escritas que movimentam pensamentos sobre as maneiras que o Antropoceno pode ser pensado e entendido como uma composição pictórica marcada por graves descontinuidades. Nessa época, aquilo que vem depois, não será mais como aquilo que veio antes. Acreditamos que podemos dispor de maneiras para cultivar, uns com os outros, sentidos capazes de construir refúgios e ansiar por novas ontologias.

20Nas reuniões que constroem as paisagens, temos também reunidos todos os modos de ser que delas emergem, modos de ser que, em intensa fricção, intenso afetamento, caminhando nas tensões que formam os planos da paisagem, “moldam o que é possível para todos os outros [seres]” (Tsing, 2019: 348). E é através dessas camadas históricas, que vão aparecendo à luz da teoria e para a pesquisa, que nos permitem pensar através de uma variedade de escalas, de latitudes e longitudes, de narrativas e anti-narrativas, em tempos outros distantes e em eventos atuais. São essas nossas apostas para trazer as paisagens para a discussão do Antropoceno.

2. Incluindo o cinema como potência para pensar o Antropoceno

21Todas estas escalas inconstantes de tempo são foco na discussão sobre cinema que Gilles Deleuze propõe em seu livro A imagem-tempo: Cinema II (2007). No sexto capítulo da obra, intitulado “As potências do falso”, o filósofo discorre sobre as narrativas cristalinas da imagem-tempo, ou seja, as narrativas do cinema moderno.

22As narrativas cristalinas, como comenta Deleuze (2007), são virtuais, valem por seu objeto, o substituem, elas são as narrativas que o criam e o apagam a um só tempo. Neste tipo de narrativa da imagem, o atual desconecta-se de seus encadeamentos motores e o real de suas conexões legais. Já o virtual, é potência, exala atualizações, começa a valer por si próprio.

23Entendemos como imagem-virtual a imagem potencializada, integrante e coexistente da imagem-real no circuito de imagens real-virtual e/ou passado-presente, “a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva: distintas e, no entanto, indiscerníveis” (ibidem: 102), e que a todo momento estão em movimento e nos levam constantemente de uma à outra.

24Desta indiscernibilidade do atual e do virtual surgem passos de dança, e uma nova coreografia é inaugurada a cada atualização, e com ela inaugura-se também uma outra realidade que antes não existia, uma dança nova. Passos aberrantes, assim como os pensamentos que são pura potência, envolvem forças do entre, fissuras das realidades: a subjetividade é o virtual. “O atual é sempre objetivo, mas o virtual é o subjetivo: primeiro era o afeto, o que sentimos no tempo; depois o próprio tempo, pura virtualidade que se desdobra em afetante e afetado, ‘a afecção de si por si’ como definição do tempo” (ibidem: 104).

25E qual a importância de pensarmos os afetos e a afecção como definição do tempo? Quando estudamos a história do pensamento e das criações deste, vemos que o tempo sustenta ou desmorona crises, à nossa noção de verdade. A verdade não varia conforme as épocas, a visão proposta por Nietzsche, trazida à discussão por Deleuze, não se refere ao mero conteúdo, o que importa “é a forma, ou melhor, a força pura do tempo que põe a verdade em crise” (ibidem: 161).

26É a partir do encontro da narrativa cristalizada com o afeto, com o devir, que resulta um novo estatuto da narração para Deleuze, a narrativa falsificante, a potência do falso:

A narração deixa de ser verídica, quer dizer, de aspirar à verdade, para se fazer essencialmente falsificante. Não é de modo algum “cada um com sua verdade”, uma variabilidade que se referia ao conteúdo. É uma potência do falso que substitui e destrói a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não-necessariamente verdadeiros (Deleuze, 2007: 161).

27O conjunto das relações na imagem-tempo é determinado pela potência do falso. No presente, a narração falsificante expõe diferenças inexplicáveis, já no passado, cria o indiscernível entre o verdadeiro e o falso. Para esse pensamento, o cinema é uma fonte de inspiração.

28Na sétima arte, as imagens são produzidas de maneira que o passado não seja herdeiro da verdade, e que do possível procedam (im)possíveis. Imagens de cinema que se lançam aos choques de territórios, às aberturas que se fazem possíveis, às linhas de vidas que se cruzam e entram em fricções.

29Temos percebido em nossa investigação que é possível trazer as discussões que Tsing (2019) elabora sobre paisagens multiespécies, Antropoceno e paisagens para o cinema unidos às leituras de Deleuze (2007) sobre o tema. Pensar as paisagens como agenciamentos, encontros entre humanos e não humanos, como camadas de tempo e história. É através das sobreposições de imagens-virtuais e imagens-reais que uma paisagem emerge. E muitos são os atores, organismos, humanos e não-humanos, vitais, não vitais, que ocupam essa paisagem. Tsing comenta que em toda pequena coordenação que emerge, cada momento de fricção tem a capacidade de fazer paisagens. “Todas as paisagens são criadas nesses momentos de fricção” (Tsing, 2019: 126) e é por isso que precisamos de histórias para conhecê-las. Buscamos desse modo, neste trabalho, criar cinecartografias de narrativas a partir das quais nossa percepção das paisagens antropocênicas, com o cinema, possa ser ampliada para pensar além das mudanças climáticas, das vidas refugiadas e das relações na modernidade.

3. Materiais e métodos

3.1. Cartografia: a pesquisa em busca de percorrer mapas

30A escrita cartográfica salta do atual para o virtual, toma os rumos que estão no meio, entre o por vir. É nômade, é o estilo de escrever e de pesquisar itinerante, em trânsito, sobre um plano móvel do mundo e de suas forças sem endereçamentos fixos. Pausando nas conexões rizomáticas prováveis e improváveis que tramam mundos possíveis. Acompanhando processos e não representando os objetos. Dando passagem às forças que pedem, que falam, que incorporam sentimentos, que emocionam. Tecendo um mapa em eterno movimento de produção.

31É inspirada na imagem do rizoma e não do decalque que a escrita e a pesquisa cartográfica criam mapas de intensidades, nunca ao contrário. Os mapas são performáticos, e não habilitados, há algo ou não; eles, como comenta Deleuze e Guattari (2011: 30) em Mil platôs: têm “múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ‘ao mesmo’. Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida ‘competência’”. Criar mapas de intensidades, implica também criar linguagens e estilos clandestinos para falar dessa experimentação afetiva, deixar o verbo criar delírio como criam os apaixonados, as crianças em brincadeira, os utópicos, os poetas, os loucos, para assim tornar os mundos explorados vivíveis.

32As provocações de Suely Rolnik sobre a temática chegam a nós e nos colocam em movimento de pensar um corpo vibrátil para cartografia. Suely Rolnik (2011: 39) comenta:

Você próprio [o cartógrafo] é que terá de encontrar algo que desperte seu corpo vibrátil, algo que funcione como uma espécie de fator de a(fe)tivação em sua existência. Pode ser um passeio solitário, um poema, uma música, um filme, um cheiro, um gosto... Pode ser a escrita, a dança, um alucinógeno, um encontro amoroso – ou ao contrário, um desencontro... Enfim, você é quem sabe o que lhe permite habitar o ilocalizável, aguçando sua sensibilidade à latitude ambiente (grifos no original).

33É na obra Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2011) que a autora diz que o cartógrafo acompanha e faz parte da criação de fissuras, de brechas e de linhas de fugas. Esse acompanhamento é único, ele se faz diferente a cada momento, é irreplicável. O que o cartógrafo devora, se atém, como comenta Rolnik (2011: 68), “fundamentalmente, ao grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento”.

34Para o pesquisador Rogério Machado Rosa (2017: 198), em seu texto A cartografia como estratégia de pesquisa: agenciamento de afetos, o que o movimento da cartografia propõe é uma espécie de problematização metodológica. E complementa dizendo que esse processo de problematização é atualizado permanentemente, na medida em que ocorrem os encontros na pesquisa.

35Sob essa ótica, nos ajuda pensar Rolnik (2011) e Rosa (2017) que o encontro do cartógrafo com os afetos da pesquisa instaura nele um estado de outramento, onde o que resta é apenas o risco de perder-se de si mesmo e assim se tornar estrangeiro de si, e experimentar a pesquisa, a cartografia em e com diferentes modos de existência.

36Impulsões-desejantes, o trabalho de uma pesquisa cartográfica se dá por meio das coisas, o meio como entre, a passagem, o engajamento do cartógrafo no mundo a ser conhecido. Desse modo, o cartógrafo é movido por desejos, o desejo movimenta as linhas do rizoma e delas inauguram linhas de fuga. Com o desejo não à frente, não ao lado, nem mesmo guiando a pesquisa, mas sim constituindo e alimentando a fome do cartógrafo que devora.

37Simpatizando com as escritas de Rosa, Rolnik e Guattari sobre cartografia, apostamos no desejo para cartografia dessa pesquisa, que faz linhas de fuga, que abrigam as territorializações, desterritorializações e reterritorializações que fazem devires, inocentes e únicos, o uno extraído da multiplicidade. O desejo constituindo a pesquisa-cartográfica é a força “que permite explodir os estratos, romper as raízes e operar novas conexões” (Deleuze e Guattari, 2011: 33).

3.2. Cinecartografia: criando um modo de olhar para as imagens do cinema moderno na pesquisa

38Cartografia é criação com, junto, por isso apostamos nos afetos e nas forças dos encontros para desencadear um fazer cinecartográfico, a cinecartografia. Essa parte do trabalho é escrita num tom mais livre, poético e ainda não consolidado, porque a escrita foi composta em experimentações, tanto na sua criação e confecção quanto em sua teorização e epistemologia. Experimentações que provocam quem lê, um registro que marca as intensidades que sentíamos no fazer escrita e no fazer investigativo. O que queremos não é apenas entender o que está escrito, mas afetar a subjetividade. Não há muita criatividade envolvida em explicar e ser capaz de “entregar” algumas ideias.

39Com isso, entendemos aqui como cinecartografia (Lourenço, 2022), a investigação das imagens dos filmes, criada a partir dos estudos sobre cinema de Deleuze em A Imagem-Tempo (2007) e de Lapoujade (2015) sobre imagens aberrantes, atravessadas pelas provocações de uma cartografia afetiva para pesquisa, propondo um olhar e um fazer metodológico para uma cinecartografia dos filmes de suas imagens aberrantes entre camadas, paisagens, cinema e suas conexões e emersões possíveis.

40Decidimos propor um movimento que se dá entre os desdobramentos deste texto com a experimentação da cinecartografia. Um movimento entre nossos pensamentos e escritas, e outros pensamentos, outras narrativas, especialmente as audiovisuais, na intenção de que nossas conversas aqui contribuam para trazer do fundo movimentos aberrantes, para que na superfície possamos traçar sobre eles cinecartografias, na intenção de “fazer o pensamento remontar para além de qualquer fundamento, rumo às profundezas do sem-fundo” (Lapoujade, 2015: 33) e assim projetar linhas de fuga que nos ajudem a resistir às forças antropocêntricas despertando sensibilidades antes adormecidas em nosso pensar sensível. Em nossas leituras, por nossos atravessamentos e vontades, visualizamos a importância de pensar, sentir e estudar o cinema em sociedades audiovisuais como a que vivemos. Na pós-modernidade, a linguagem audiovisual nos expõe brechas e furos que permitem vazamentos e circulações em diferentes lugares, por teorias outras, a partir dos encontros. E essa potência pode ser canalizada para pensar para além do Antropoceno.

  • 6 Para Deleuze (2007), o pensamento no Cinema Moderno consiste fundamentalmente em uma ruptura com o (...)

41Mais do que cartografias, forjamos neste ensaio cinecartografias, entendendo estas como uma cartografia das imagens dos filmes modernos,6 “da qual se resulta o movimento” (Deleuze, 2007: 159) de vida, de pensamento, de devires, de conexões, de experiências, de sensações, de ruínas, de lugares, de aprendizados e… que forma, deforma e transforma o que podemos criar, pensar e pesquisar entre o cinema e o próprio Antropoceno.

42Há múltiplas possibilidades de cinecartografar as obras do cinema, cada afetar é único, e nessas partículas únicas linhas de fuga se criam. Tecer perguntas sem vontade de respostas entre narrativas-escritas é parte da cinecartografia, por isso questões e interrogações apareceram por toda produção escrita. Para o presente texto, ao experimentarmos os filmes, criamos uma cinecartografia com aquilo nas imagens que mais nos afetou e movimentou, na tentativa de pensar existências para esse período.

43É a partir dos estudos sobre cinema de Deleuze que entendemos a cinecartografia como um caminho para pesquisar filmes que “deve permitir apreender algo intolerável, insuportável. Não uma brutalidade como agressão nervosa, uma violência aumentada que sempre pode ser extraída das relações. Trata-se de algo mais poderoso, o injusto, o belo, o que excede nossas capacidades sensório-motoras” (Deleuze, 2007: 29). Seriam os devires?

44Esta pesquisa que põe a cinecartografia em foco, busca entre as imagens dos filmes ir além, não só para exceder e perturbar as ligações sensório-motoras, mas juntar às imagens-tempo “forças imensas que não são as de uma consciência simplesmente intelectual, nem mesmo social, mas de uma profunda intuição vital” (Deleuze, 2007: 33). E com os atravessamentos de Lapoujade (2015), pensamos que as imagens aberrantes que habitam os frames trazidos para cinecartografia podem ser tais forças imensas que espreitamos.

  • 7 Os vídeos (filmes) são compostos por uma série de imagens que ao se repetirem no curso do tempo, cr (...)

45Cinecartografias que buscam vazamentos-potência nas imagens e narrativas do filme, que libertem o cinema do que ele já é enquanto norma/forma, ou do que ele já o fez ou já está autorizado a fazer. Deleuze (2007) sugere o cinema moderno como um conjunto de relações e de experimentações, afetante e, manifestamente, afetado. Por isso, a ideia de utilizar a experimentação da cinecartografia como pesquisa: como olhar os frames7 do cinema e converter em potência o que ainda era só possibilidades.

46A cinecartografia abre brechas no texto para questões que continuam sem respostas prontas, conclusivas, acabadas, fechadas. São estas questões espalhadas pela escrita, que inauguram novas conexões na experimentação que propomos ao cinecartografar os filmes Fogo contra fogo e Paisagens brasis em brasa. As cinecartografias aninhadas nesta pesquisa forjaram saídas e fugas em nosso pensamento, necessárias para mergulhos profundos em camadas que emergiram à superfície sentidos outros para as imagens do cinema carregadas de Antropoceno e suas paisagens.

4. A experimentação que reúne os vazamentos dos frames

47Filmes que são formados por imagens que em seu interior estão rogando por um entendimento e uma existência não só para além do humano, mas também um entendimento que vai além do Antropoceno.

48Ambas as obras, Fogo contra fogo e Paisagens brasis em brasa anunciam em seu conteúdo e em sua estética cinematográfica sua característica experimental e trazem como inspiração para montagem dos roteiros as leituras de pesquisadores que pensam o Antropoceno e as maneiras de sobreviver a ele.

49Sentimos os filmes como se fossem obras que se complementam e que conseguem, mesmo de maneiras distintas e próprias, formarem um único coro que canta, reza, feitiça e prega para pensarmos as questões climáticas que estamos vivendo atualmente. Identificamos essa relação com tais temáticas, quando temos entre os frames das obras, a natureza trazida pelas imagens que está morta e devastada pela ação humana.

Imagem I O meio ambiente em Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo

Imagem I – O meio ambiente em Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo

Fonte: Frames dos filmes capturados pelos autores.

50Em imagens estáticas de ambos os filmes nos mostra seres não-humanos entrelaçados por forças humanas devastadoras. O fogo que faz fumaça subir nas imagens de Paisagens brasis em brasa é o mesmo fogo que queimou as patas da onça no último frame de Fogo contra fogo. As duas obras utilizam muito da sobreposição de vídeos como recurso estético. Tais sobreposições, além de conferir uma ideia de coexistências de seres, de lugares, de tempo, nos trazem movimentações daquilo que vem junto à essas imagens: a ganância que ateia fogo em busca de pasto, a vulnerabilidade de alguns dos seres não-humanos às ações de devastação e a nossa convivência com esses momentos num tom de familiaridade. O carro passando entre a queimada para seguir seu caminho, e os moradores em torno da onça queimada, discutindo onde depositá-la. Desses atravessamentos tecemos escritas carregadas de afetos após assistir ambos os curtas-metragens repetidas vezes, após a contaminação que escorriam das imagens.

51As linhas que nos formam em paisagens estão cobertas de fuligem. Tudo à nossa volta está em chamas. O Cerrado, o Pantanal, a Amazônia, a Mata Atlântica, e… Nós também. Pensamentos e rabiscos com todos esses sentimentos ardis que me vêm queimando, tomam-me horas tensionando camadas de paisagens criando outras paisagens, numa tentativa de conseguir colorir a tela apenas com as cinzas do que sobrou da vida. Que ausências há nas imagens de paisagens brasileiras que vemos em fogo arder? Que capturas possíveis do impossível há?

52Para Deleuze (2007) ao discutir sobre a filosofia do consenso, o filósofo alega que na maioria dos encontros em que temos extremas afinidades e consensos, estamos construindo, na verdade, outras ordens de simpatia e talvez estejamos em dissensos eternos. E isso é capturado por nós na pesquisa, através das imagens que vão sendo cinecartografadas, trazendo-nos inquietações que movimentam aquilo que pensamos sobre preservação do meio, avanço e finitude. As obras cinematográficas estudadas, de forma experimental e com uma edição que marca muito bem as passagens de imagens junto ao texto exibido, nos levaram a experimentar também experiências mais marginais, que estão à borda. O que podemos aprender com o modo como vivemos coletivamente e que coloca em xeque a própria vida? De que modo a arte do cinema tem capturado memória, ficcionalização e histórias em imagens, construindo com elas paisagens que nos retorna o Antropoceno que jorramos à Terra-terra? E após capturadas e virtualizadas, tais imagens do cinema fazem que função ao pensamento do Antropoceno? Pensamos se o mesmo que o da ciência? Aquele de datar, guardar, anunciar e ansiar por um outro mundo. Ou talvez no sentido da arte abrindo e inventando caminhos para que se resista ao caos, seja humano ou não.

53Não há nada no próprio tecido do mundo que impeça que a gente constitua formas de viver absolutamente distintas das que praticamos ao vivermos agora. Será por meio de que disciplinas que vamos conseguir fazer com que elementos heterogêneos venham a se conectar?

54Assumindo o Antropoceno, estamos admitindo a espécie humana como a espécie empunhada de força motriz para processos de alteração da natureza em larga escala. Assim como é assumido em Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo, os humanos derramando seu poder de manipulação do planeta, formando uma paisagem em que a sobrevivência é rarefeita e determinada. Somos anunciados há muito tempo sobre as mudanças climáticas. Ouvíamos desde crianças na escola. As projeções que o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) vem fazendo desde os anos 1980, são agora, além de tudo, premonições. Tornaram-se escritos malditos que levam humanos e não-humanos a sofrerem com a força do Antropoceno, tornam-se sem refúgios.

55No ano de 2014, ao entrarmos no curso de Ciências Biológicas, nos deparávamos com muitos discursos sobre o meio ambiente, que eram discursos considerados “radicais para o clima” na época, como por exemplo, a reportagem de Daniela Chiaretti com a engenheira Suzana Kahn, vice-presidente do Grupo III do IPCC, publicada pelo jornal Valor. Porém, hoje tais discursos nos trazem a aflição de não termos ainda conseguido parar de sugar da Terra além do que dela podemos retirar. Na reportagem Kahn comenta que:

  • 8 Para aceder à entrevista na integra, ver entrevista de Suzana Kahn concedida a Daniela Charetti (20 (...)

Não dá para atrasar, esperar até 2020. Primeiro porque há a inércia do sistema climático, os gases ficam na atmosfera muito tempo. Tem que se começar imediatamente, não dá para esperar as negociações internacionais porque se reduzem muito as opções viáveis de mitigação. Esta é uma mensagem-chave: tem que começar agora. São esforços que implicam mudanças fundamentais, estruturais, em instituições e governança. Estamos no caminho oposto ao que deveríamos. E há as incertezas climáticas.8

56De acordo com Tsing (2019), os refugiados, de certa forma podem ser considerados sujeitos ontológicos, pois, ao sair a ocupar novas paisagens, vão criando multiplicidades que inscrevem maneiras outras de restaurar as relações humanas na Terra. Nos filmes, temos a onça que tem sua floresta queimada e é refugiada de sua terra mesmo estando nela. Temos as árvores queimadas que morrem em brasa e levam consigo ninhos de aves, insetos, fungos e líquens que viviam conjugados. Toda uma rede composta por seres humanos e não-humanos que vai sendo exposta a partir da cinecartografia que evidencia as paisagens presentes nas imagens dos filmes. Nós trazemos também para o pensamento das imagens do cinema as maneiras como podemos restaurar nossas relações com a Terra, combinando o conhecimento tradicional com entendimentos científicos e artísticos para isso.

57E nas imagens o que vemos é uma experiência de habitar essas ruínas que formam o Antropoceno cheias de fogo, fumaça, morte e fuligem. Vão enredando as histórias humanas e não humanas no espaço, aceitando a instabilidade e a provisoriedade das nossas construções, das nossas cocriações.

Imagem IIPassagem das camadas dos curtas-metragens Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo com foco nos automóveis

Imagem II – Passagem das camadas dos curtas-metragens Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo com foco nos automóveis

Fonte: Frames dos filmes capturados pelos autores.

58Caminhões, imagens sobrepostas, desfoque central. Um automóvel entre o fogo que arde plantas, bichos, pedras. Outro carregando troncos de árvores centenárias mortas. Ambos de passagem pelo caos que faz paisagens em ruínas: de fogo, de desmatamento. Em Paisagens brasis em brasa, o caminhão chega de frente e vem duplicado, nos sugerindo movimento da imagem, carregando a esperança do fogo parar, da fumaça sessar. Já em Fogo contra fogo, o caminhão visto de trás, em linha reta seguindo seu caminho leva consigo toda esperança de se resolver qualquer questão. As árvores já estão mortas e, como em um cortejo fúnebre, seguem um caminho sem volta. No frame de cima da Imagem II o que temos é a esperança de que a criação humana, no caso o caminhão, dê conta de conter o poder do fogo. No frame da parte de baixo da mesma imagem, a criação humana é a finalização do sonho de ver a floresta em pé.

59A imagem é rarefeita, ela se desfaz entre ela mesma. E o passar do tempo recebe cronologias que não são submetidas ao justo entendimento do nosso cérebro. O que dessas imagens nos atravessa, capturamos e buscamos ensaiar questionamentos que faz olharmos para além do Antropoceno. Nas imagens do cinema, temos uma paisagem que é composta por várias sobreposições de imagens, em várias exposições de cores: azul, verde, rosa, roxo, vermelho, laranja e amarelo. Com brilhos e contrastes distintos, trazendo-nos uma composição coexistente entre tons quentes e frios que vão formando paisagens repletas de seres ocultos, que estão ausentes nas imagens capturadas pelos filmes, mas tornam-se evidentes na cinecartografia: a serra que cortou todos aqueles troncos, assim com os pássaros que viveram sobre eles, assim como o grito do solo ao ver mais uma árvore derrubada ecoam na imagem. Os bichos que devem ter corrido do fogo, ou ardido com ele.

60Nos vem o questionamento de como podemos nos relacionar com os seres não humanos sem dependermos tanto das vozes humanas que por estes seres falam? Quem poderá falar pelos seres não-humanos e ocultos nas paisagens? Que coletivos humanos e não humanos estão sendo criados e veem transformando como no cinema as narrativas e as paisagens do Antropoceno? É este o lugar em que nos deveríamos sentir em casa?

  • 9 Cf. Žižek, Slavoj (2011), “A ecologia radical de Slavoj Zizek”, kntz, 9 de fevereiro. Consultado a (...)

61O filosofo Žižek, no vídeo A ecologia radical de Slavoj Žižek (2011),9 comenta sobre a ilusão e sobre as composições que nos aprisionam num mundo em que não podemos ver o que realmente está acontecendo. Mesmo catástrofes após catástrofes acontecendo, ainda continuamos a acreditar naquilo que a paisagem ficcionalmente nos apresenta.

Eu vejo árvores, passarinhos cantando, etc. E mesmo que saiba conscientemente de todos os perigos, simplesmente não creio que tudo possa ter um fim. (Žižek, 2011, trecho do vídeo)

62Esse tipo de negação que é apontada por Žižek (ibidem) está associada, de acordo com o filósofo, ao fato de preferirmos enquanto ambientalistas, artistas, cientistas, educadores, jornalistas, políticos e... pensar no meio ambiente, como paisagens eternamente preservadas, aquelas intocadas, de ar bucólico. Ao invés de depararmos com paisagens que nos mostram um meio ambiente antropocêntrico, aquele que nós produzimos, é muito mais parecido com um cenário desolador o qual ele realmente se encontra, como vemos nos filmes aqui cinecartografados e trazidos nas Imagens I e II. Tudo isso produz ruínas, e as ruínas são capazes de desorientar até aqueles que contribuem ativamente com a sua produção: os seres humanos. Sentimos isso no passar dos curtas-metragens. Vinha-nos sempre em mente a intenção que há por trás dos artistas produtores desses materiais, e também por trás das Mostras e Festivais de cinema, ao trazerem tais debates para o circuito de cinema brasileiro. O que podem essas contaminações, esse alcance e essa visibilidade que é dada por tais eventos para essas obras? Será um impacto direto à nossa subjetividade e na maneira de nos relacionarmos com as imagens e com a crise climática e o planeta? Esses filmes poderiam ter esse poder de transformação nos espectadores? O Antropoceno está sendo relatado pelo cinema nesses locais, e entendemos que com a cinecartografia podemos investigar tais acontecimentos de forma a ampliar as compreensões que são reunidas nas exibições.

63Algumas considerações que observamos em comum nas obras de curtas-metragens indicam que não há um único discurso para se falar do meio ambiente/natureza utilizado pelas obras. Esses são construídos de diferentes formas no seio das mais diversas narrativas e técnicas de produção de imagem.

64Através das imagens do cinema produzidas pela edição, somos a todo tempo interpelados por discursos ficcionais e possíveis acerca do Antropoceno, que podem se tornar vazamentos potentes que trazem consigo novas formas de relações entre seres diferentes daquelas que nos acostumamos conviver.

65Os encontros com as imagens nos convocam e provocam a fazer negociações entre essas distintas formas de pensar o que seria o Antropoceno e como podemos e estamos a nos relacionar com ele. O que importa para nós na pesquisa é a capacidade das imagens contidas nos filmes, através da experimentação tecidas com elas, estremecer sentidos e representações muito assentados e fixos, tanto em nós que escrevemos, quanto em quem lê.

66Abrindo fissuras para que outras narrativas paisagísticas antropocêntricas, outras imagens do ambiente habitado por humanos e não humanos possam vir a tecer outros acontecimentos insurgentes nessas conexões para além do Antropoceno. Acerca de como nos relacionamos e podemos nos comunicar com a Terra e as paisagens, tornando-as vivas, vibrantes e inventivas.

Considerações finais

67Finalizamos esta última seção do presente trabalho, pensando após as imersões nas imagens dos filmes e nas escritas que foram sendo criadas com elas, que não existe uma paisagem intocável na era do Antropoceno, os humanos e os não-humanos vão modificando a paisagem, seja com ou sem harmonia entre si, elas são frutos de intensas modificações e interações entre seres. O cinema desperta nossa atenção para aquilo que recebemos em devolutiva de suas imagens: as paisagens tensionadas pela ação do Antropoceno. E ao nos despertarmos sobre essas transformações, afetados pelo que as imagens disparam, vemos que há algo na nossa relação com o meio que precisa ser reinventado para que a habitabilidade seja mais possível.

68As imagens são poderosas, a percepção humana da paisagem é algo que muda conforme muda a sociedade, a arte, a filosofia, a tecnologia. Essas obras que circulam Mostras e Festivais de cinema que trazem paisagens inúmeras em suas composições assumem também, desse modo, uma posição de registro e memória das diferentes narrativas, seres, cores e sombras que compõem linhas das paisagens capturadas.

69Talvez seja esta a paisagem que importa na investigação, a paisagem assumidamente em movimento, em mutação constante, sempre acrescida por algum elemento novo. Um tipo de paisagem que se configura continuamente a partir dos agenciamentos entre os seres que as habitam e as imagens e afetos que invadem e atravessam a todo tempo quem assiste as obras cinematográficas. As paisagens se diferem e se constituem de modos diferentes para cada um dos seres, apesar de percebermos que as vezes são tensionados alguns pontos de contato.

70Inúmeras são as paisagens na contemporaneidade. Temos contato com vários desses tipos diariamente, contribuímos e participamos de seus enredos. Somos um de seus moradores... nós também fazemos o Antropoceno.

71O cinema e suas imagens, postos em investigação na cinecartografia das obras Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo nos dizem que nenhuma das paisagens se configura com um conceito concreto e rígido. O que temos é o contrário, inúmeras dimensões que nos revelam paisagens fugidias, subversivas, disjuntivas, maleáveis, que se sobrepõem umas às outras, fazem camadas.

72As reflexões sobre natureza que advêm dos estudos de filmes, das obras de artes, juntas às filosofias cinematográficas que nos atravessam das leituras sobre cinema e Antropoceno, movimenta em nós forças para criarmos atos de resistências aos recorrentes ataques à subjetividade, ao planeta e o meio ambiente. Os atravessamentos que vão passando entre o cinema, a filosofia e o Antropoceno criam marcas em nossas existências, nos afetando, estamos em porvir: à crítica, à dúvida, aos devires, à aprendizagem, criando outras redes entre os seres, outros corpos, outras paisagens, outras ecologias, outras relações com o meio ambiente que vão para além do humano e das forças antropocêntricas. Nos entendendo como parte desse devir que invade o pensamento e a escrita, a conservação da Terra-terra e a resistência frente ao fim do mundo se faz por afeto. Encontramos nas imagens do cinema paisagens que capturam o sensível e, ao mesmo tempo em que são encaradas de longe, nos encaram.

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Bibliografia

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Notas

1 Cf. Moure, Rebecca; Lambert, Leandra (2021), “Fogo contra fogo”, Youtube, 22 de setembro. Consultado a 26.02.2023, em https://youtu.be/BSaGjosRJTc.

2 Cf. Lourenço, Keyme (2021), “Paisagens brasis em brasa”, Youtube, 30 de setembro. Consultado a 26.02.2023, em https://youtu.be/F20CtEBP2_c.

3 A “13ª edição da Strangloscope – Mostra Internacional de Áudio, Vídeo / Filme e Performance Experimental” ocorreu entre 19 e 27 de março de 2021 e teve como tema “O Antropoceno ou como apagar o rastro humano do planeta”. O cartaz com os filmes participantes está disponível em https://www.instagram.com/mostrastrangloscope/ (consultado a 26.02.2023).

4 As exibições ocorreram de 25 a 30 de outubro de 2021. A programação completa do evento pode ser acessada através do link https://www.instagram.com/mostralatinaea/ (consultado a 26.02.2023).

5 Optamos por deixar o termo em inglês, uma vez que Tsing (2019: 17) comenta que a tradução para o português reduziria o entendimento de assemblage, que implica o termo a se referir mais aos humanos. Em inglês, esse termo soa mais aberto e inclui em tais reuniões, também os não humanos.

6 Para Deleuze (2007), o pensamento no Cinema Moderno consiste fundamentalmente em uma ruptura com o esquema sensório-motor (próprio do cinema clássico), resultando em temporalidades indistinguíveis, acontecimentos desligados uns dos outros, personagens que vagam e hesitam, indeterminação entre instância da narrativa e instância do personagem. O que ocorre neste cinema é um interstício entre duas imagens, na qual cada uma delas cederá a um espaço fora do filme, voltando, depois, a entrar nele. Assim, o que caracteriza e diferencia o cinema moderno do cinema clássico é o modo do encadeamento das imagens em função da ação das personagens. Entendemos que os filmes cinecartografados nessa pesquisa são filmes contemporâneos e não modernos, como os citados nos estudos de Imagem-tempo por Deleuze (2007), porém, pensamos que é possível criar experimentações potentes a partir e com os encontros com as leituras e conceitos da obra Cinema II.

7 Os vídeos (filmes) são compostos por uma série de imagens que ao se repetirem no curso do tempo, criam movimentos e se enfileiram em imagens, histórias. Cada uma dessas imagens é chamada de frame. Desde 1929, o movimento padrão do cinema é de 24 frames por segundo (24fps). No entanto, alguns filmes atualmente são gravados com maior quantidade de quadros de imagens sequenciadas, como acontece com os filmes de alta resolução. Para mais informações, consultar “Fotograma” do Dicionário teórico e crítico de cinema (Aumont e Marie, 2003).

8 Para aceder à entrevista na integra, ver entrevista de Suzana Kahn concedida a Daniela Charetti (2014), “Cortes profundos nas emissões de gases são para já”, jornal Valor, 14 de abril. Consultado a 26.02.2023, em https://www.ihu.unisinos.br/noticias/530282-cortes-profundos-nas-emissoes-de-gases-sao-para-ja.

9 Cf. Žižek, Slavoj (2011), “A ecologia radical de Slavoj Zizek”, kntz, 9 de fevereiro. Consultado a 26.02.2023, em https://www.youtube.com/watch?v=rwPe-Kml5AI.

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Índice das ilustrações

Título Imagem I O meio ambiente em Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo
Créditos Fonte: Frames dos filmes capturados pelos autores.
URL http://journals.openedition.org/eces/docannexe/image/7815/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 634k
Título Imagem II – Passagem das camadas dos curtas-metragens Paisagens brasis em brasa e Fogo contra fogo com foco nos automóveis
Créditos Fonte: Frames dos filmes capturados pelos autores.
URL http://journals.openedition.org/eces/docannexe/image/7815/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 328k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Keyme Gomes Lourenço e Thaís Barros Pimenta, «Cinecartografando as imagens de filmes do circuito de mostras ambientais brasileiras: mergulhos entre paisagens, ecologias, artes e Antropoceno»e-cadernos CES [Online], 38 | 2022, posto online no dia 31 março 2023, consultado o 29 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/eces/7815; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.7815

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Autores

Keyme Gomes Lourenço

Doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia
Av. João Naves de Ávila, 2121, Bairro Santa Mônica, CEP 38408-100 Uberlândia (MG), Brasil
Contacto: keymelourenco@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6516-6931

Thaís Barros Pimenta

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Meio Ambiente, Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade Federal da Grande Dourados
Rodovia Dourados Itahum, Km 12 – Cidade Universitária, Caixa Postal 533, Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil
Contacto: thaispim@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1236-8158

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