- * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível S (...)
1Em Don’t look up, o diretor Adam McKay nos convida a uma reflexão profunda sobre os perigos do negacionismo científico e da desinformação em tempos de pós‑verdade. É através da sátira e do humor que o filme gira em torno da descoberta de um asteroide em rota de colisão com a Terra, feita pela astrônoma Kate Dibiasky (interpretado por Jennifer Lawrence) e seu orientador, Dr. Randall Mindy (interpretado por Leonardo DiCaprio). Enquanto tentam alertar o mundo sobre a futura catástrofe, Kate e Randall se deparam com um abismo colossal na recepção de suas mensagens. O público, influenciado pela mídia e por figuras políticas populistas, recusa-se a acreditar na descoberta dos cientistas, optando por dar credibilidade às notícias falsas e teorias conspiratórias.
2Entretanto, o tratamento dado aos cientistas não se limita apenas à ausência de credibilidade. Kate, em particular, enfrenta uma sequência de ataques de misoginia e sexismo. Sua voz é silenciada, suas descobertas são questionadas e sua sanidade mental é posta em dúvida. Rotulada como “histérica”, “louca” e “descontrolada”, a cientista passa a ser ridicularizada na mídia e na sociedade, enquanto Randall, um homem branco e cisgênero, recebe atenção, escuta e simpatia por parte do público. Essa disparidade no tratamento revela como os modelos biomédicos hegemônicos, marcados por uma visão patriarcal, colonial e androcêntrica, continuam a influenciar a forma como percebemos e interpretamos o comportamento feminino. A histeria, um diagnóstico secular marcado por estereótipos e preconceitos de gênero, é acionada no filme como mecanismo de silenciamento e invalidação da voz de Kate. Esse movimento alargado sobre a histeria em um contexto contemporâneo é capaz de revelar não apenas aspectos históricos em comum mas, sobretudo, apresentar os desdobramentos de uma compreensão secular sobre doenças psicossomáticas associadas às mulheres que se foram arrastando o longo do tempo, e que são acionadas como figuras de sentido.
3Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo analisar as narrativas atribuídas à histeria feminina associada à personagem Kate Dibiasky, assim como apontar as nuances críticas e as implicações dessas narrativas que reforçam o perfil de uma mulher cientista, que é apresentada como histérica e louca, através de um enredo satírico em tempos de fim de mundo. Nesse caminho, buscamos questionar os mecanismos de opressão que silenciam as vozes femininas na ciência e na sociedade, e refletir sobre a necessidade urgente de construir um mundo mais justo e equitativo, principalmente no que se refere a emergência de uma reflexão sobre os modelos biomédicos hegemônicos e sobre o alargamento da validade terapêutica a partir de um olhar antimanicomial e anti-hospitalocêntrico.
4Para isso, a Narratologia será utilizada enquanto aporte teórico-metodológico, uma vez que as materialidades – sejam elas, audiovisuais, cinematográficas, sonoras, textuais e outras – se constroem a partir de disputas simbólicas, por meio de sentidos que atravessam o imaginário social (Borges & Franklin, 2022). Assim, a Narratologia elaborada por Luiz Motta (2007, 2017) e Wilson Borges (2014) se torna uma ferramenta de análise de estruturas e elementos narrativos fundamentais para a compreensão de processos, rastros, signos, sinais e sintomas presentes em Don’t look up (McKay, 2021).
- 1 Quando nos referimos a um entendimento do que seja ser mulher, apontamos as características de um s (...)
5Ao refletir sobre as dimensões da razão, das emoções e dos afetos, Massumi (2002) afirma que uma sociedade não é definida por normas ou leis, mas sim pelo resultado do circuito das emoções que são construídas entre relações. Para o autor, a emoção é um conteúdo subjetivo da experiência afetiva que é capturado de modo inconsciente e fixado socio linguisticamente. Ela é, então, incluída no circuito da narrativa, do sentido e da funcionalidade, uma vez que a emoção se apresenta de modo estrutural. Inserindo‑a no debate sobre histeria, é possível afirmar que não se trata apenas de alterar as nomenclaturas apresentadas em determinados contextos históricos, mas de reconfigurar a afirmação de uma emoção construída no imaginário sobre a ideia de histeria, uma vez que essa disputa se estrutura na consolidação de percepções e na gestão de afetos construída socialmente. É pelo que a histeria representa no imaginário social que os sentidos sobre ela são modificados de acordo com as historicidades. É nessa centralidade que direcionaremos este texto, na medida em que a compreensão sobre a mulher1 histérica foi construída e reconstruída a depender das temporalidades e espacialidades possíveis que, na contemporaneidade, se apresenta na forma de somatização (Catani, 2014; Neto & Marchetti, 2013; Quartilho, 2000), e que no cenário da produção cinematográfica de Don’t look up, essa compreensão se revela em forma de crítica e sátira.
- 2 O termo “histeria” deriva do grego ὑστέρα, “útero”, e foi utilizado por Hipócrates, que acreditava (...)
6A experiência da histeria se apresenta no mundo ainda no Egito Antigo. Percebidas enquanto experiência corporal (Catani, 2014), essas manifestações eram associadas aos corpos que expressavam alguma possível “desordem biológica”. A relação entre mulheres e histeria se solidificou na medida em que os sintomas se manifestavam a partir de sensações de “sufocamento”, o que foi determinante para que os estudiosos compreendessem essa sensação enquanto um movimento de migração do útero pelo corpo. Roudinesco e Plon (1998) afirmam que Platão (427 a.C.–327 a.C.), guiado por Hipócrates2, concluiu que essas manifestações se davam pela abstinência feminina de relações sexuais e, por isso, os estudiosos da medicina da época recomendavam como tratamento a prática sexual, a gravidez e trabalhos manuais.
7Na Idade Média, o diagnóstico perde força quando a Igreja Católica, no esforço de elaborar um controle sobre a moral e os bons costumes, passa a apontar a somatização de sintomas como castigo divino ou influência demoníaca. Apresentadas como histéricas, as mulheres passaram a sofrer intervenções e violências físicas, além de se tornarem um corpo de experimentação. Um exemplo histórico é o que ficou conhecido como Caça às Bruxas, decorrido entre os séculos XV e XVIII, caracterizado pela perseguição, tortura e assassinato de mulheres em fogueiras nas praças públicas, sobretudo na Inglaterra, cujo objetivo seria afastar os maus espíritos e criar mecanismos de controle e disciplina direcionados para as mulheres. No século XVIII foi retomada na Europa Ocidental a compreensão da histeria enquanto patologia e somatização de sintomas, o que abriu caminho para uma compreensão ainda mais punitivista e patologizante sobre o que se compreendia como “doença dos nervos”. Já no século XIX, a psiquiatria e a medicina, de modo geral, se direcionaram para os estudos sobre a histeria. É nesse contexto que Jean-Martin Charcot (1825-1893) se utilizou da hipnose para compreender as manifestações histéricas. Sigmund Freud (1856-1939) relacionou histeria e neurose, a fim de identificar as possíveis relações entre pensamentos e manifestações físicas. Ambos os autores afirmavam que, apesar de a doença não se limitar ao feminino, eram as mulheres as mais suscetíveis a um quadro histérico. Para Freud (1987), o sintoma da histeria é determinado psiquicamente a partir da experiência do trauma, ou seja, de um excesso de descarregamento de energia da mente para o corpo. Assim, para o autor, o corpo manifesta em sintomas uma certa repressão de pensamentos.
- 3 Na versão mais recente da Classificação Internacional de Doenças (CID–10), a histeria está dividida (...)
- 4 Na versão mais recente do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (American (...)
8Marques (2011) pontuou que é nesse cenário que o papel da histeria surge dentro de um processo de emancipação da psiquiatria em relação à religião. Para ele, o conceito de “loucura religiosa” é elaborado a partir de duas perspectivas: a primeira a vê como sendo provocada a partir de sentimentos religiosos extremos ligados às paixões descontroladas; e a segunda é sustentada a partir de uma base orgânica, ou mesmo aleatória. Já no século XX, a denominação de histeria sofreu novas modificações. É nesse contexto que a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID)3 e o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM)4 inserem a histeria enquanto patologia. O primeiro a descreve enquanto componente na categoria dos transtornos neuróticos e somatoformes, relacionados ao estresse, enquanto o segundo aponta para uma relação do sofrimento com os “nervos”.
9Não é recente a discussão de que espaços coletivos se utilizaram (e ainda utilizam) de instrumentos de poder para realizar a manutenção do modelo patriarcal de controle dos corpos femininos (Chesler, 1972; Couto, 1994; Del Priore, 2004; Federici, 2017; Lauretis, 1984). Essas mesmas narrativas perpetuaram a cultura de que as mulheres já nascem predispostas a desenvolver algum transtorno mental e que, por isso, se faz necessário o diagnóstico e a interdição. Entende-se por interdição não apenas o que se restringe ao controle de um corpo físico, mas também no que se refere a um corpo simbólico que opera envolto pela linguagem e pelos sentidos atribuídos. Para Jameson (1992) as interpretações sociais e históricas podem derivar justamente das narrativas, uma vez que os modos de narrar se apresentam como eixos determinantes para a produção, recepção e circulação de sentidos. É através da compreensão de um poder simbólico que Baczko descreve esse processo a partir da “apropriação de símbolos que garantam a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio” (1985, p. 299), de modo que as estruturas de poder são solidificadas a partir da imposição de símbolos e significados.
10Sabemos que as narrativas sobre o controle dos corpos femininos foram atravessadas não apenas pelo poder médico, judiciário ou religioso, uma vez que foram produzidas e reproduzidas também através de outros campos e saberes ao longo da história, como a literatura, a filosofia e a arte, que construíram sentidos e formas para a compreensão dos sujeitos e, sobretudo, das sujeitas consideradas histéricas. Esse processo também se deu a partir da representação em outras materialidades enquanto ambiência de construção ou ruptura de sentidos – que é o que veremos a seguir.
11Ao discutir sobre a produção de sentidos e os efeitos desse processo aplicado à produção de narrativas, se faz necessário direcionar o olhar sobre como a cinematografia pode abordar conceitos cristalizados socialmente, como a loucura, a histeria e o machismo, sendo necessário avaliar o contexto enquanto eixo norteador para o debate. Aqui percebido não apenas enquanto uma moldura que situa os acontecimentos e as narrativas, o contexto se revela como um campo aberto que ainda se encontra em formação, na medida em que as historicidades expandem os significados e perspectivas e os arrastam no tempo, abrindo os caminhos como novas vias de produção de sentidos e de compreensão sobre os fenômenos. Num trabalho anterior destaquei que essas narrativas apresentam mais do que informações basilares, revelando também “os lugares e papéis sociais que os sujeitos interlocutores ocupam hierarquicamente”, além “dos modos como esse envolvimento se desdobra nessas construções narrativas” (Franklin, 2023, p. 78), ou seja, são materialidades que denunciam um sintoma social que se perpetua no cotidiano de modos distintos.
12Seguindo pelo mesmo pensamento, Borges e Franklin (2022) apontaram como essas narrativas – sejam elas, audiovisuais, cinematográficas, textuais, sonoras, entre outras – se constroem a partir de disputas simbólicas justamente por construírem e reconstruírem formatos que permeiam o imaginário social. Paul Ricoeur (1990), em Interpretação e ideologias, afirma que para essa compreensão se constituir de modo analítico, é necessário avaliar o mundo do texto e identificar o que ele pode nos revelar enquanto textura possível, compreendendo o processo de configuração e refiguração como eixos de performances linguísticas repletas de ideologias e valores que, por sua vez, construiriam sentidos. Para Motta, cada indivíduo participa cotidianamente de “uma rede de construção de significados públicos a partir de fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático” (2017, p. 47), onde procura estados de compreensão da sua vida e dos modos de ser. A construção narrativa cinematográfica é construída sob determinados prismas da realidade, ou seja, não só o cinema elabora os seus sentidos em termos audiovisuais, como também reproduz a própria visão do homem sobre o real (Bernardet, 2006). O universo do cinema integra uma dimensão plural dos meios de comunicação de massa que, por sua vez, ocupam um lugar importante na construção da realidade social, reproduzindo-a e representando-a através de diferentes narrativas.
- 5 Moscovici (2012) pontua que, enquanto saber prático, a representação social é uma maneira de conhec (...)
13Stuart Hall (2000) afirmou que tanto o cinema quanto a televisão são analisados como se apenas reproduzissem as formas de produção cultural, não levando em conta a transformação das narrativas produzidas fora das mediações. Assim, existe uma representação social5 que é construída e apresentada narrativamente pelo universo cinematográfico, que possibilita o aparecimento de questões insurgentes a partir de determinados contextos. Essa produção não se dá ao acaso: ela parte da articulação de instâncias de poder que inserem no cotidiano determinadas perspectivas para serem apropriadas em maior ou menor grau, elaborando uma complexa rede de sentidos (Borges, 2022). Nessa perspectiva, a narrativa não deve ser vista somente como uma composição despretensiosa, mas como um dispositivo argumentativo (Motta, 2017) com diversas camadas de interpretação sistemática, onde tudo está relacionado ao todo e ganha significação no processo de recepção da narrativa.
14Em um cenário onde a vida das sociedades é permeada por um complexo acúmulo de narrativas, cognitivamente, elas configuram o sentido da vida e moldam as significações sobre os eventos e acontecimentos. Desse modo, toda a narrativa é construída a partir de uma intenção: emocionar, conquistar, identificar, persuadir. As narrativas são, por natureza, irônicas, trágicas, satíricas, etc., e cada uma delas é responsável por produzir determinado efeito de sentido. Para Borges (2022), a emoção é constitutiva também enquanto ação política. Esse processo se dá através dos relatos, mas também podem estar subtendidos através de atos de comunicação que são regidos por acordos implícitos entre narrador e receptor, tornando possível a compreensão não apenas do significado literal, mas também de outras significações a partir da força ilocutiva do enunciado.
15Borges (2014), ao refletir sobre os meios de comunicação de massa como instância central na contemporaneidade, defendeu que as narrativas produzidas pelos meios interferem decisivamente na vida das pessoas, sendo apropriadas em maior ou menor grau pela população. Nesse sentido, as narrativas são atravessadas, produzem sentidos e significados de mundo tanto a partir da realidade que as cerca, como também de suas convicções, crenças e paixões. Para o autor, “a dimensão ideológica é fundamental na compreensão de como podem ser estabelecidas conexões entre a narrativa produzida pelos meios de informação e aqueles que se apropriam de tal conteúdo” (Borges, 2014, p. 23), ou seja, é através da emoção, enquanto um efeito desejado pelo narrador/enunciador, que se experimentam novos tipos de subjetividade, compatíveis com certas formas ideológicas e repertórios culturais. Nesse movimento, o filme Don’t look up nos permite identificar construções simbólicas que permeiam esse imaginário, e que denunciam modos de operar de sentidos sobre a histeria nas mulheres.
16Dito isto, nosso objetivo consiste menos em analisar a construção de narrativa cinematográfica produzida pelo diretor em relação ao filme, do que os efeitos de sentidos sobre a histeria produzidos a partir da personagem Kate Dibiasky. Nesse artigo, visamos apontar as estratégias argumentativas, os subentendidos e os efeitos das narrativas que evidenciam as proposições de mundo que a personagem traz em determinado contexto, percebendo o movimento narratológico enquanto ferramenta de emancipação sobre saúde mental, o qual possibilita uma interpretação narrativa não somente de uma personagem, nem mesmo apenas de uma obra cinematográfica, mas sobretudo de sociedades, sendo capaz de revelar práticas e ideologias presentes na intertextualidade.
17Na narrativa analisada, a protagonista Kate Dibiasky é uma mulher jovem, branca, americana, que embora não esteja inserida no contexto no século XIX para ser diagnosticada como histérica, sente os impactos do machismo e da misoginia presente na contemporaneidade. Como foi citado anteriormente, as noções de histeria também se alteraram com o tempo. Enquanto no século XIX o processo patologizante da considerada doença era associada ao aparelho sexual feminino e aos desejos recalcados, a histeria do século XXI é vista sob o viés das desordens funcionais, das doenças psicossomáticas e autoimunes (Catani, 2014; Quartilho, 2000), dos quadros de burnout, dos transtornos de personalidade e dos conflitos da mente que se sustentam em um perfil agressivo e imprevisível.
18Após descobrir que o asteroide observado está em deslocamento em direção à Terra, Kate Dibiasky e seu orientador Dr. Randall Mindy confirmam que este virá a colidir em seis meses, encerrando com qualquer manifestação de vida no mundo. Desesperados, ambos buscam as instâncias superiores como a NASA e a Presidência dos Estados Unidos da América e, não recebendo a atenção que esperavam, decidem recorrer à mídia para noticiar a descoberta. É válido ressaltar que os cientistas escolheram não divulgar a informação em suas redes pessoais por acreditarem que a mídia daria uma maior amplitude e visibilidade ao fato. Esse aspecto nos é interessante na medida em que revela a posição que o jornalismo ocupa na prática social, ao ser inscrito no tempo enquanto um agente mobilizador e formador da opinião pública. Ao acionarem as instâncias midiáticas, os cientistas são considerados lunáticos e exagerados, e o tratamento e a visibilidade dada a eles se diferem por conta do seu gênero. Enquanto Dr. Mindy ganha espaço nos noticiários, capas de revista, manchetes e programas de televisão, sendo tratado como “profeta sexy do fim do mundo” e “cientista gato”, Dibiasky é ridicularizada em seus pronunciamentos e entrevistas, se tornando um “meme público”.
- 6 O voo da Apollo 11 foi o primeiro voo espacial da história a realizar uma alunagem tripulada, tendo (...)
19Aqui, ficção e realidade se entrecruzam em um processo de retroalimentação. A título de exemplo, é possível realizar uma comparação entre a personagem Kate e a cientista americana Katherine Bouman, responsável pela produção da primeira imagem de um buraco negro em 2019 (Galileu, 2019). A semelhança não se dá apenas no nome da personagem e da real cientista, uma vez que Bouman também sofreu diversos ataques misóginos na internet (BitGirls, s.d.), tendo seu trabalho questionado com alegações de fraude e negligenciamento. A comparação também pode ser realizada com a cientista espacial norte-americana Katherine Johnson, pioneira nos estudos sobre navegação astronômica informatizada, tendo trabalhado nas primeiras missões da NASA, como o voo da Apollo 116. Nesse contexto, Johnson foi a primeira mulher a se inserir no Departamento de Pesquisa de Voo da NASA, e a primeira mulher negra a compor equipes de tomadas de decisão sobre técnicas aeroespaciais.
20O nome do personagem Randall Mindy também não fica para trás: seria uma referência a Randall Monroe, ex-programador e roboticista da NASA, que se tornou um cartunista conhecido pelo seu estilo artístico repleto de ironias e piadas? Ou ao cientista britânico John Randall, responsável pelo descobrimento das estruturas de dupla-hélice do ADN humano? Com efeito, o processo de nomeação dos personagens não se dá de modo aleatório, uma vez que acionam elementos chave para a compreensão da narrativa. É fato que o processo de patologização da mulher está imbricado no sistema patriarcal (Rohden, 2008). Nessa reflexão, merecem destaque as cenas em que a produção de um programa televisivo sugeriu uma outra roupa a Kate Dibiasky antes da sua entrevista ao vivo, e quando o seu namorado rompe a relação publicamente, sem avisá-la, expondo-a nas redes sociais com a frase “Sabe aquela louca que acha que todo mundo vai morrer? Já dormi com ela!”. Nesse recorte é possível destacar, para além da patologização, a exposição da vida sexual da mulher enquanto elemento público, tanto a nível de mérito masculino quanto de ridicularização feminina.
21O que esse movimento representa em termos de narrativa? Em um primeiro plano, revela a compreensão de que a sexualidade das mulheres precisa ser mantida em sigilo, uma vez que a exposição geraria constrangimento a elas – ao contrário dos homens, ambiente em que gera valoração. Em um segundo plano, representa a ideia da loucura enquanto subsídio para a desqualificação da fala da cientista. O tom de sátira do filme acompanha a crítica de modo explícito: a narrativa é feita para causar no receptor um sentimento de revolta, injustiça e indignação. Foi necessário um contexto de “fim de mundo” para que o recorte da narrativa sirva como um lembrete escancarado sobre a misoginia, o sexismo e as relações opressoras do patriarcado na sociedade. A partir dessa reflexão, é possível perceber como a narrativa fílmica foi construída não sobre o viés do reforço de estereótipos, mas sim na crítica à lógica de reprodução dessas perspectivas na sociedade.
22Embora o asteroide leve o nome Dibiasky em homenagem à descoberta da cientista, quem ganha espaço pelo achado é o seu orientador. Ainda durante a entrevista, os âncoras do jornal não compreendem a gravidade do fato e fazem piadas com o fim do mundo, o que gera uma frustração em Kate. Denominado de “surto” por seus colegas de trabalho e assessoria, o episódio fortalece o perfil inconstante e imprevisível de uma mulher vista como louca – reforçado, inclusive, pela própria cientista na fala “Eles acham que sou louca!”, de modo que a personagem tem a noção de como está sendo vista socialmente. Nesse sentido, ser considerada louca é a materialização da invalidação de sua descoberta, de sua existência e de sua subjetividade. Ao gerar dúvidas sobre a credibilidade da cientista, o enunciado revela, através da ironia e da sátira, a visualidade sobre a loucura feminina: a sujeita instável mentalmente, imprevisível, desequilibrada e exagerada; características essas semelhantes em diversos tempos históricos distintos, sobretudo em contextos de emancipação feminina.
23Ao longo das décadas, o processo de produção jornalística foi constituído a partir da racionalização dos fatos, na medida em que os sujeitos narradores se tornaram mediadores da informação para os receptores. Desse modo, a bancada de jornalistas inserida no filme é constituída de modo a manter a serenidade e o bom humor, apesar do anúncio de um desastre cósmico. Ao mesmo tempo em que é notável o tom de leveza diante do anúncio para benefício da audiência e do entretenimento, é perceptível como a informação científica é deficiente, uma vez que a mensagem produzida pelos cientistas não é compreendida tão facilmente pelos apresentadores. Esse aspecto também se apresenta enquanto crítica à comunicação científica que não privilegia a facilitação da emissão e da recepção de mensagem para um público leigo. Para Caetano et al. (2021), não são raros os casos em que instituições de prestígio se utilizam indevidamente do reconhecimento público para propagar conteúdos intencionalmente falsos.
24Enquanto o Dr. Mindy ganha visibilidade na mídia, Kate Dibiasky não é somente silenciada, mas mesmo quando é visibilizada, é posta no lugar do ridículo, do cômico. Chamada de “a louca do fim do mundo” e “histérica”, a personagem é colocada em um posto de loucura não necessariamente manicomializável, mas integralmente patologizável, sendo ignorada em seus posicionamentos e falas, e vista com zombaria. A ideia da histeria é assumida pela narrativa enquanto símbolo que carrega uma crítica exagerada a um problema estrutural como o machismo. O simbolismo demasiadamente excessivo presente na narrativa irônica revela como o comportamento feminino é, por si só, considerado desviante e sujeito à crítica e ao julgamento da sociedade. A narrativa fílmica reforça como a loucura é considerada uma justificativa ou mesmo causalidade plausível para o comportamento de Kate. Cabe ainda mencionar que no cartaz da obra, é Kate quem aponta para o céu, na tentativa de mostrar aos demais o asteroide que descobriu, contudo, ninguém olha para onde ela direciona a atenção, o que reforça a necessidade da astrônoma em ser vista e ser escutada.
- 7 Compreendemos por estereótipos determinadas construções simbólicas resistentes à mudança social. Pa (...)
25Esse silenciamento em meio à fala também é apresentado no filme quando Kate grita para as pessoas a sua volta: “Você vai morrer! Você vai morrer!”, na tentativa de as pessoas compreenderem a gravidade do fato, no entanto, ninguém lhe dá credibilidade. A partir da ausência desse reconhecimento, o comportamento da cientista passa a reforçar justamente a estereotipia da loucura: o escândalo, o descontrole e a imprevisibilidade. Além disso, denuncia a falta de percepção do outro sobre aquela figura. Esse estereótipo7 da loucura acompanha a personagem, de modo que suas falas geram o caos nos ambientes por onde passa. Seu comportamento está sempre sendo analisado e criticado pelos outros, mesmo em tempos de fim de mundo, em um cenário que contextualize as atitudes de uma cientista que descobriu um asteroide se deslocando em direção à Terra. Nesse movimento, o que vemos é o audiovisual elaborando cenários extremos para que o telespectador consiga captar, pelo exagero e pela narrativa irônica na linguagem, como o sistema patriarcal opera. Para Marcus Novaes e Antônio Amorim (2021), a ironia é utilizada no cinema quando há uma certa discrepância entre o que é esperado e o que realmente ocorre na narrativa. Para os autores, o jogo de contraste construído a partir da ironia, se dá não apenas através da busca por estabelecer o humor como um jogo de hierarquias, mas por uma construção narrativa que vise justamente desmontá-las, revertendo esse princípio de superioridade e humilhação pelo outro. Assim, esse elemento de embate sobre a histeria, é acrescentado na intenção de gerar desconforto no receptor, uma vez que rompe com a linearidade das emoções.
- 8 O preconceito frequente contra o reconhecimento das contribuições de mulheres cientistas em pesquis (...)
26No filme, a repressão à personagem se dá não somente por desconhecidos ou pelas autoridades que questionam a veracidade ou a gravidade do fato, mas também por seus colegas de profissão. Em determinada cena, o chefe do Departamento de Coordenação de Defesa Planetária chama a atenção da cientista, manifestando um descontentamento com seu tom de voz: “É melhor falar um pouco mais baixo”, diz ele, assim como outras cenas nas quais seus colegas intervêm: “Na verdade, o que Kate está dizendo é...”, de modo que sua voz é sempre silenciada ou questionada. No auge da visibilidade midiática de Dr. Mindy, Kate é acusada de vazar segredos de segurança, incitar ao motim e destruir propriedade privada, com a possibilidade de não ser processada caso não aparecesse mais publicamente. Em outras palavras, sua imagem seria desassociada de sua própria descoberta. O quão simbólico é este silenciamento? O que esse movimento nos diz em termos dos sentidos acionados, senão a necessidade de controle sobre as narrativas? O tom da crítica narrativa se sustenta a partir da invalidação de Dibiasky, uma vez que, ao longo da história, diversas mulheres tiveram suas contribuições científicas negligenciadas ou atribuídas a homens8.
27Como exemplo, é possível citar a contribuição histórica de Rosalind Franklin ao desvendar a estrutura do ADN e as imagens de difração de raios-X. Apesar de seus feitos, quem recebeu em 1962 o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta foi James Watson, Maurice Wilkins e Francis Crick. Ou mesmo o caso semelhante à narrativa fílmica, quando a estudante de radioastronomia, Jocelyn Bell Burnell, detectou os primeiros pulsares no ano de 1967, um tipo de estrela de nêutrons que transforma a energia rotacional em energia eletromagnética. No caso, seus supervisores, Antony Hewish e Martin Ryle, receberam o primeiro Prêmio Nobel de Física em 1974 pelo feito, tendo a participação de Burnell sido omitida inicialmente. Não é possível identificar se ocorre um processo intencional comparativo entre a ficção e a realidade, entretanto, é surpreendente ver as semelhanças e os modos como a narrativa fílmica é elaborada de modo a tocar em aspectos e fatos históricos já vividos.
28A ironia e a sátira se apresentam na narrativa enquanto pontos de reflexão e crítica, uma vez que flertam com o exagero do contexto de fim do mundo e com situações explicitamente violentas para as mulheres. Para Novaes e Amorim, essa ironia “não implicaria em conduzir a uma ascese da verdade, mas [...] poderia abrir uma fenda em consciências fixadas e modular percepções dadas ao movimentá-las, desarranjando percepções de si mesmo e dos outros” (2021, p. 11). Assim, a compreensão sobre uma verdade que não toca apenas na realidade fílmica, mas também no cotidiano social, causa no receptor uma disputa de sentidos, uma vez que nos revela uma habituação ao absurdo. Em que momento a sociedade naturalizou esse processo? De que modos as culturas ocidentais implementaram em suas práticas um processo gradual de violência? Ao acionar elementos de um presente real com um futuro imaginado não tão distante, a narrativa revela a manifestação de sentimentos e pensamentos de modo imagético, acionando uma reflexão sobre a própria constituição do sujeito.
29Acquolini (2023) aciona o conceito de desinformação de gênero, configurada como uma forma de violência que reafirma as opressões de vozes e opiniões. A desinformação de gênero se sustenta a partir do esforço em desencorajar e dissuadir indivíduos, sobretudo mulheres, a praticarem sua liberdade de expressão, principalmente no que se refere ao exercício de cidadania e democracia. Assim, esse movimento nos apresenta, em termos narrativos, o poder de quem fala e a ausência de poder de quem cala. Desse modo, a loucura e a histeria nas mulheres são frequentemente relacionadas umas às outras, as quais as instâncias de poder buscarão encontrar as vias de mantê-las constantemente próximas.
30Um outro ponto que pode ser comparado em relação a Kate Dibiasky e seu orientador Randall Mindy são os modos como as suas famílias os recebem. Enquanto a família de Kate a rejeita com a justificativa de que o país já está dividido demais e que não querem tratar sobre política em casa, a família do orientador o recebe mesmo após ele ter traído sua esposa com uma jornalista famosa e negacionista. Na narrativa, as experiências das mulheres diferenciam-se em virtude da posição que ocupam na estrutura social. Assim, é possível perceber as relações de poder e as opressões – visíveis e invisíveis – que o sistema hegemônico reforça. Esse processo se dá de maneiras distintas, a depender das camadas de opressão existentes na sociedade. Na narrativa fílmica, essas cenas são repletas de aspectos de julgamento moral, percebidas através de gestos e olhares dos personagens. Esses aspectos não são narrados oralmente, mas revelam como as nuances de expressão corpórea também se manifestam enquanto produção de sentido, na medida em que nos convoca a refletir como a misoginia, o sexismo e o patriarcalismo estão cristalizados socialmente no cotidiano.
31Por fim, é válido destacar a representação da cientista no filme associada à produção de confiança na ciência. Produzido por homens, o saber científico raramente é questionado ou confrontado, enquanto a ciência produzida por mulheres cientistas é constantemente examinada e discutida, como se conferisse um direito a ser checado por outros – muitas vezes, homens brancos – para que, a partir daí, seja validado e posto como verdade. Essas relações de poder e controle não se restringem às mulheres diagnosticadas como loucas ou histéricas, mas a todas as mulheres que vivem em uma sociedade patriarcal, sendo impostos papeis, lugares nas sociedades, divisão sexual do trabalho, experienciando abusos sexuais e morais nos diversos espaços públicos e privados. Lagarde (2005) elabora a categoria analítica de cativeiro para se referir a subordinação ao poder, a sua dependência, a posse de suas vidas por instituições e indivíduos, a obrigação de cumprir com o “dever-ser feminino” materializado em vidas estereotipadas, e toda e qualquer privação de sua liberdade. Para a autora, cada uma das mulheres, só pelo fato de ser mulher, são cativas de sua condição genérica. Sabemos que, a depender dos determinantes sociais, essas operações se articulam em maior ou menor grau, a variar de acordo com a raça, a classe, a etnia e o eixo civilizatório das mulheres, por isso, não há como perceber e analisar essas operações sem considerar os atravessamentos sociais que as determinam.
32Dito isso, a narrativa elaborada em Don’t look up (McKay, 2021) nos apresenta provocações fundamentais não apenas sobre o reconhecimento científico de mulheres em um contexto de catástrofes climáticas mas, sobretudo, nos revela como a ideia de loucura e histeria feminina se dá a partir de aspectos morais, sociais e culturais, na medida em que a temporalidade e a espacialidade determinam os modos com que essa narrativa acontece. É importante destacar que a guinada narrativa se dá não a partir da reprodução desses símbolos e signos escancarados do machismo, mas nos modos como a sátira e a ironia elaboradas revelam um humor que flerta com o absurdo e o exagero, interrompendo uma dinâmica cristalizada socialmente, se tornando um espaço de reflexão crítica sobre os modos como a sociedade lida com a configuração da loucura e da histeria feminina.
33A materialidade narrativa nos provoca a refletir sobre a desinformação, o negacionismo, o capitalismo, as mudanças climáticas e a forma como a sociedade contemporânea lida com as problemáticas ambientais do mundo. Entretanto, é de se considerar como ponto principal a crítica que o filme elabora sobre a loucura e a histeria feminina em um contexto contemporâneo. A obra nos convida a pensar sobre como a credibilidade nas mulheres é diretamente associada a aspectos de lucidez ou de desatino, a depender de um caráter de passividade ou confronto, e ruptura de estruturas sociais históricas. Além disso, o filme desconstrói a narrativa da histeria das mulheres a partir da aproximação com um contexto recente, uma vez que revela a ausência da necessidade de uma representação cristalizada sobre a “mulher louca” enquanto um processo imagético já antes construído pela sociedade ocidental. Em outras palavras, a narrativa fílmica rompe com a figura de estranhamento da loucura e aproxima para a contemporaneidade um debate emancipatório sobre saúde mental, mostrando uma outra face da mulheridade quando esta rompe com um lugar de passividade e subordinação.
34Essa percepção pode ser percebida enquanto um convite para se repensar os modelos médicos hegemônicos que são baseados em uma visão androcêntrica no mundo, e que têm sido criticados a partir de diversas materialidades e narrativas por não incluírem as experiências das mulheres enquanto prática legítima. Nesse processo, a obra tensiona os elementos centrais através de uma “intensificação da ironia por ela mesma” (Novaes & Amorim, 2021), uma vez que nos provoca a desmontar a ideia de superioridade a partir do riso e do exagero. Essa proposta narrativa construída sob uma “sátira do caos” abre caminho para repensar esses modelos, além do rompimento dos estereótipos de gênero, da medicalização da diferença e da produção de narrativas manicomiais associadas às mulheres (Franklin & Borges, 2022). A construção da loucura marca a história das nossas sociedades há séculos, sendo modificadas de acordo com as temporalidades e espacialidades. Porém, de maneira uníssona, aponta para grupos específicos como passíveis de controle médico, social e científico, relacionando a loucura à ausência de racionalidade, à instabilidade mental e imprevisibilidade, a comportamentos considerados inapropriados e à agressividade. Um dos grupos que mais é associado a essas características é o das mulheres que, quando apresentam comportamentos ou condutas consideradas desviantes do modelo patriarcal e capitalista, são vistas como loucas ou histéricas.
35Ao incorporarmos as relevâncias contextuais no procedimento analítico, é possível identificar não apenas uma construção narrativa cinematográfica que se sustenta a partir da ficção – e que se limita a uma disputa entre uma perspectiva de futuro e uma reconstituição do passado – mas destaca um conjunto de significações de mundo que interferem diretamente nas relações e práticas sociais. Para Ferreira Júnior (2017), essas tramas de interpelações são perpassadas pela cultura, pelas instituições, pelos atores sociais e pelas temporalidades que formam as noções de histeria na contemporaneidade, e que na obra são sustentadas a partir de um cenário não só de negacionismo, desinformação e discursos de ódio, mas, sobretudo, de machismo, sexismo e patriarcalismo. A investigação do presente trabalho parte da preocupação com a construção e circulação dos sentidos produzidos por e nesses fenômenos, a fim de compreender as narrativas presentes construídas nos enunciados em questão.
36É interessante ressaltar que a personagem Kate Dibiasky dá a face para a imagem do descontrole, tratando-se de uma perspectiva que nos desloca para tempos distintos, em que a histeria revela uma figura que está em constante estado de crise, pois ora é constituída a partir do temor, ora é apresentada a partir do julgamento, da moralidade e de um padrão social que também se alterou com o tempo. A histérica do século XIX não é a mesma do século XXI, do mesmo modo que as interseccionalidades de raça, etnia, classe e eixo civilizatório também determinam os modos de narrar sobre essa histérica e, assim, alteram-se também os entendimentos sobre essa mulher em crise.
37Em vias de conclusão, a patologização das mulheres é percebida enquanto uma estratégia de deslegitimação de narrativas que ameacem a ordem aos sistemas de poder. Por isso, a lógica do sistema patriarcal fomenta não “somente” a idealização e o controle dos corpos femininos e as questões de moralidade e/ou comportamento, mas atualiza as formas de controle sobre as ações, os pensamentos, os corpos, a educação e as práticas das mulheres nas sociedades. A narrativa fílmica se direciona a criticar esse controle quando elabora o escancaramento das nuances das raízes patriarcais no cotidiano, sobretudo a partir da compreensão dessa histeria. Assim, é possível identificar na obra um processo entre sociedade, práticas sociais e visibilidades, tanto que no que se refere ao machismo, à misoginia e às noções de histeria nas sociedades ao logo do tempo, como também em relação à cristalização da negação, o confronto às instituições balizadoras da democracia, às relações de poder e à lógica da desinformação. Em um contexto de fim de mundo, as instituições produtoras ou disseminadoras de conhecimento, como a mídia e a ciência, assumem na obra certos lugares no processo de produção da verdade. Na narrativa fílmica, a ciência não é considerada um elemento fundamental para a mudança de comportamento ou para a busca de solução, enquanto a mídia colabora no processo de desinformação e, sobretudo, de produção de sentidos sobre a mulher histérica. Ao passo que denuncia a constante fragilidade das instâncias balizadoras, a narrativa destaca a importância do investimento científico e midiático, em termos de informação, para a sociedade contemporânea.
38Dito isto, a obra se apresenta como um meio de reflexão e crítica para a compreensão sobre a histeria feminina e sobre os ideais de loucura e de comportamento de mulheres na sociedade, onde mesmo dentro de um contexto de catástrofe a partir do fim do mundo, o conhecimento feminino é posto à prova e a sua sanidade é questionada. Essa narrativa dissidente sobre a compreensão da histeria abre caminhos para uma percepção sobre o direito das mulheres na sociedade, sobretudo o direito ao acesso a recursos de saúde mental de modo emancipatório e inclusivo. Não podemos deixar de pontuar que o artigo ganha relevância em um cenário político no Brasil no qual os direitos das mulheres vêm sendo postos diretamente em xeque (Franklin, 2022) a partir de propostas políticas como o Projeto de Lei 1094/20249, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. Em termos práticos, mulheres, jovens ou mesmo crianças podem ser consideradas assassinas mesmo em casos de estupro, se a gestação ultrapassar as 22 semanas. Esse é mais um projeto de aniquilamento de direitos e controle dos corpos das mulheres que visa determinar as práticas e as narrativas femininas na busca pelo controle de suas subjetividades. É de extrema importância refletirmos sobre a construção de uma nova visão sobre saúde mental que repense e os modelos psiquiátricos hegemônicos e que alargue a validade terapêutica a partir de um olhar antimanicomial, anti-hospitalocêntrico e democrático, que se direcione a priorizar os direitos das mulheres, sobretudo negras, pobres, periféricas, indígenas, com transtornos mentais ou com deficiências.