Para além do estigma: o limiar entre a criatividade e a loucura
Montero, R. (2023). O perigo de estar lúcida (M. Sanchez, Trad.). Todavia, 272 pp. (Trabalho original publicado em 2022)
Notas da redacção
Revisto por Alina Timóteo
Texto integral
1A relação entre criatividade e loucura se apresenta como um tema complexo que vem sendo estudado enquanto objeto ontológico e filosófico. Considerado como uma “obra da natureza” na Antiguidade Clássica, o “mito do gênio louco” foi compreendido como a associação entre a genialidade e um certo grau de patologia. Pensadores como Aristóteles e Platão acreditavam em uma espécie de “loucura divina” como base fundamental para o processo criativo, de modo a que a anormalidade se tornasse uma característica de originalidade ou mesmo de qualidade.
- 1 Cf. Montero, R. (2023). O perigo de estar lúcida (M. Sanchez, Trad.). Todavia. (Trabalho original p (...)
2É o que defende a escritora espanhola Rosa Montero na obra O perigo de estar lúcida (2023).1 Em uma espécie de diário ou biografia, a autora apresenta relatos pessoais e de outros escritores, poetas e pensadores sobre a vida, a morte, o desejo, o medo, a esperança e a incerteza da loucura. Apresentando dados de pesquisas científicas, Montero aproxima do leitor a ideia de que a loucura não se restringe ao Outro, mas que pode ser vista como um lugar a ser habitado em prol da genialidade – muito embora esse lugar não possa ser ocupado por todos os que o desejam, visto que cria e sustenta a hipótese de que a criatividade produtiva só pode se dar a partir da combinação de alguns elementos essenciais, como: dissociação ou despersonalização; obsessão pela passagem do tempo e pela morte, de modo a tender para o suicídio; o contato precoce com a morte e com o trauma; a maturidade prematura associada à presença da imaturidade de um adulto próximo; a imaginação fértil; a tendência a uma hipersensibilidade emocional e sensorial, além da tendência ao vício em álcool, drogas ou medicação; e a predisposição aos transtornos psiquiátricos.
3Ao longo da construção do seu pensamento, Montero referencia os seus argumentos a partir de outros estudiosos, como psicólogos, psicanalistas, filósofos e escritores, além de trazer relatos de vida de outros narradores que reforçam suas hipóteses, associando o processo criativo ao sistema cognitivo-psíquico-social, responsável por desencadear a loucura no sujeito. Para a autora, a criatividade não nasce da loucura, mas ambas revelam pontos de contato e semelhanças. Ao afirmar que “a criatividade salva da angústia, da dissociação, da amargura” (p. 153), Montero conta de que modos o processo criativo pode ser visto pelo artista enquanto uma fuga, onde a realidade vivida escolhida foi a realidade criada pelo próprio sujeito.
4Na obra, a loucura não é vista como um problema, de modo que Montero destaca que alguns escritores diagnosticados teriam medo de buscar tratamento psiquiátrico por receio de suprimir o processo criativo. Assim, a loucura seria um lugar em que os “loucos célebres” utilizariam para explorar ideias originais, de modo que o “estar lúcida”, como cita o título da obra, se torna um perigo por ameaçar esse processo de estímulo. Através de uma escrita densa e fluída ao mesmo tempo, a leitura causa o estranhamento e o incômodo desejado pela autora ao compartilhar detalhes, traumas e eventos trágicos da vida de pensadores e escritores, revelando um mundo de opressão e subversão simultâneos durante o processo de criação artística.
- 2 Cf. Franklin, C. F. M., & Borges, W. C. (2022). Narrativas manicomiais: a produção de sentidos e as (...)
5Para Montero, a obra está sempre à espreita, assim como a loucura, de modo que a criação surge enquanto possibilidade de se conectar, às vezes, com essa fonte de energia que desloca o sujeito para uma realidade de expansão. Certamente essa é uma visão romântica sobre os impactos que a loucura pode gerar no sujeito e no seu âmbito social, pois parece considerar apenas o universo mágico, sobrenatural e esotérico da loucura do século XVI, e desconsiderar as novas formas de manicomialização do século XXI, além das novas práticas comunicativas na construção de sentidos sobre a loucura.2
6Ainda assim, O perigo de estar lúcida nos revela uma investigação sensível, atenta à realidade em que a loucura, enquanto narrativa, se encontra esmiuçada – ou em um eterno processo – na literatura, na história, na arte, na ciência, na saúde. Em uma mistura de ensaio e ficção, Rosa Montero explora o limiar que está em todos os sujeitos, mas que só se manifesta em poucos.
Notas
1 Cf. Montero, R. (2023). O perigo de estar lúcida (M. Sanchez, Trad.). Todavia. (Trabalho original publicado em 2022)
2 Cf. Franklin, C. F. M., & Borges, W. C. (2022). Narrativas manicomiais: a produção de sentidos e as práticas comunicativas sobre a loucura no Brasil. Trayectorias Humanas Trascontinentales, (9). https://doi.org/10.25965/trahs.5014
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Referência eletrónica
Camila Fortes Monte Franklin, «Para além do estigma: o limiar entre a criatividade e a loucura», e-cadernos CES [Online], 42 | 2024, posto online no dia 14 maio 2025, consultado o 12 julho 2025. URL: http://journals.openedition.org/eces/9786; DOI: https://doi.org/10.4000/13x5h
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